Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 4.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RAMALHO PINTO | ||
Descritores: | IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA ACIDENTE DE TRABALHO CONTRATO DE TRABALHO CONTRATO DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇO PRESUNÇÃO DE LABORALIDADE | ||
Data do Acordão: | 07/03/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA A REVISTA | ||
Sumário : |
I- O Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista que, salvo nos casos excepcionais contemplados no nº 3 do artigo 674º do CPC, aplica definitivamente o regime jurídico aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, consistindo as excepções referidas “na ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”, como dispõe o nº 3 do artigo 674º do C.P.C. (prova vinculada). II- Está fora das atribuições do STJ, enquanto Tribunal de revista, sindicar o modo como a Relação reapreciou os meios de prova sujeitos a livre apreciação, fora dos limites do art.º 674.º, n.º 3, do CPC. III- Mostra-se ilidida a presunção do artº 12º do CT de 2009 por o sinistrado ter sido contratado com vista exclusivamente à realização de uma obra, e ele próprio ter contratado, sem intervenção da Ré, que não o conhecia, e sem que a Ré efectuasse qualquer pagamento ao mesmo, um auxiliar, sendo que a Ré não dava, ao sinistrado ou ao auxiliar, quaisquer ordens ou instruções para a realização da obra, o sinistrado não estava obrigado a cumprir um horário de trabalho e não estava integrado na organização empresarial da Ré. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo 105/19.4T8FIG.C2.S1 Revista 150/24 Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça: AA, representado pela sua mãe BB, na qualidade de filho do sinistrado falecido CC, intentou acção emergente de acidente de trabalho, sob a forma de processo especial, contra M..., Lda. e Generali Seguros, S.A., formulando os seguintes pedidos: “a) Condenar-se as Rés a reconhecer a relação entre o falecido e a mesma como uma relação de trabalho subordinado; b) Condenar-se as Rés a reconhecer que o acidente de que foi vítima o falecido é caracterizável como acidente; c) Condenar-se as Rés a pagar a indemnização e pensão anual e vitalícia; d) Condenar-se as Rés a pagar ao beneficiário os juros de mora à taxa legal, sobre cada uma das prestações devidas, desde o respetivo vencimento até integral pagamento”. A Ré M..., Lda. contestou, invocando a inexistência de contrato de trabalho. A Ré Seguradora contestou, alegando, além do mais, a anulabilidade do contrato de seguro e a inexistência de vínculo laboral e subsidiariamente a descaracterização do acidente e a violação, por parte da entidade patronal, das regras de segurança. Foi proferido despacho saneador e foi realizada a audiência de julgamento. Em 19.03.2022, foi proferida sentença a absolver as Rés dos pedidos. O Autor interpôs recurso de apelação. Por acórdão de 14.10.2022, o Tribunal da Relação decidiu “anular a sentença para que a decisão da matéria de facto seja proferida pela Sr.ª Juíza que presidiu à audiência de discussão e julgamento proferindo-se, de seguida, nova sentença com base naquela decisão”1. Por despacho de 25.01.2023, foi proferida decisão sobre a matéria de facto pela Mma. Juiz que tinha presidido ao julgamento. Em 4.07.2023 foi proferida nova sentença, que absolveu as Rés dos pedidos. O Autor interpôs novo recurso de apelação. Por acórdão de 24.11.2023, o Tribunal da Relação decidiu julgar a apelação procedente2 e: “1. Condenar as rés a reconhecer que o evento dos autos se trata de um típico e indemnizável acidente de trabalho. 2. Condenar a ré seguradora a pagar ao autor: a) Uma pensão anual e vitalícia devida desde 12.01.2019 (dia seguinte ao da morte) no valor de € 3.273,60 (art.60 nº2º e62º nº 1 da Lei 98/2009 de 13/09 – 20% do valor da retribuição do sinistrado), obrigatoriamente remível desde a data em que é devida (artº 75ºnº 1 da LAT3) b) O subsídio por morte no montante de € 5.752,03 (art.65º nº1 e nº2 b) da Lei 98/2009 de 13/09)”. Por requerimento de 29.11.2023, o Autor veio requerer a rectificação e reforma do acórdão quanto à obrigatoriedade de remição do capital e quanto aos juros. A Ré Seguradora veio interpor recurso de revista, peticionando que seja fixado efeito suspensivo, mediante prestação de caução. Por acórdão de ........2024, o Tribunal da Relação decidiu proceder à rectificação do acórdão, passando a sua parte dispositiva a ter a seguinte redação: “1. Condenar as rés a reconhecer que o evento dos autos se trata de um típico e indemnizável acidente de trabalho. 2. Condenar a ré seguradora a pagar ao autor: a) A pensão anual e vitalícia (artº 60º nº 1 al. d) da LAT) no valor de € 3.273,60 (artº.60 nº2º da LAT – 20% do valor da retribuição do sinistrado), devida desde 12.01.2019 (dia seguinte ao da morte) a ser paga em 1/14 até ao 3.º dia de cada mês e ainda os subsídios de férias e de Natal, de idêntico montante, a serem pagos em junho e em novembro, pensão aquela atualizável de acordo com as respetivas Portarias de atualização a partir do primeiro dia de cada ano de 2020, 2021, 2022, 2023 e 2024 na percentagem de 0,70%, 0,70%, 1%, 8,4% e 6%, respetivamente. b) O subsídio por morte no montante de € 5.752,03 (art.65º nº1 e nº2 b) da Lei 98/2009 de 13/09). c) juros de mora sobre as prestações supra atribuídas e em atraso, vencidos e vincendos, à taxa anual legal, desde o respetivo vencimento e até integral pagamento”. Por despacho de ........2024, o recurso foi admitido com efeito devolutivo. A Recorrente formulou as seguintes conclusões: 1- Mesmo tendo em linha de conta as alterações determinadas à matéria de facto, não se poderia concluir, como se concluiu, pela existência de um contrato de trabalho entre o sinistrado falecido e a segunda demandada. 2- Ao contrário do que se concluiu e deu como provado, não existe qualquer prova, documental ou testemunhal, que atestasse e confirmasse que o sinistrado falecido recebia 50,00 € por cada dia de trabalho, conforme, aliás, é reconhecido expressamente em sede de Douto Acórdão recorrido. 3- O que o Tribunal da Relação de Coimbra fez foi, pura e simplesmente, em face do que ficou provado quanto ao contrato de seguro celebrado com a recorrente, tomar este facto para inviabilizar toda a argumentação vertida em sede de Douta Sentença de 1ª Instância para afastar o contrato de empreitada; mas fê-lo MAL. 4- Resulta da fundamentação do Douto Acórdão, assim como da Douta Sentença, que, além de ter sido o sinistrado falecido a contratar o ajudante DD, também era o sinistrado falecido que lhe pagava semanalmente. 5- Também resulta provado, e que não foi posto em causa, que a segunda 6- O que também resultou provado, foi o sinistrado falecido que abordou a segunda demandada para que aquele procedesse à reparação do telhado, até pela relação laboral QUE EM TEMPOS EXISTIU, mas que já não existia. 7- Alega-se que seria pouco verosímil que fosse feito um contrato de empreitada com pagamento semanal, em vez de ser uma parte no início e outra parte no fim; MAS PORQUÊ? 8- PORQUE É QUE AS PARTES NÃO PODEM ESTIPULAR UMA FORMA DE PAGAMENTO SEMANAL? ENTÃO E O PRINCÍPIO DA LIBERDADE CONTRATUAL? ONDE FICA? 9- É que este argumento também pode ser usado ao contrário, ou seja, TAMBÉM NÃO É NORMAL QUE, NUM CONTRATO DE TRABALHO, SEJA EFECTUADO O PAGAMENTO DE FORMA SEMANAL, MAS SIM MENSAL, sendo essa a regra. 10- Também não se pode olvidar que era o sinistrado falecido que pagava ao ajudante DD, por si escolhido, sem qualquer intervenção da segunda demandada, o que também não pode ser ignorado para efeitos de caracterização da relação contratual como empreitada. 11- Outro facto indesmentível, em ambas as instâncias, é que o sinistrado foi contratado pelo período de tempo suficiente para proceder à reparação do telhado, no caso, cerca de dois meses e meio. 12- Não há qualquer contrato de trabalho reduzido a escrito, visto estarmos perante um contrato com execução limitada no tempo, não existindo, por conseguinte, também, quaisquer descontos para a Segurança Social. 13- Nos termos e para os efeitos do artº 674º do Código de Processo Civil, deve ser reposto o Facto Assente sob o nº 11º, tal como constava da Douta Sentença de 1ª Instância, assim como deve ser eliminado que foi aditado à matéria assente relativo ao rendimento pago ao sinistrado falecido e respectiva forma e quantitativo diário. 14- O que desde já se requer. 15- Não estão, de todo, preenchidos os requisitos do artº 12º do Código do Trabalho, designadamente quanto às alíneas a) e d). 16- Quanto à alínea a), se é certo que o sinistrado desenvolvia a sua actividade nas instalações da segunda demandada. 17- Estando perante um contrato de empreitada, é precisamente isso que acontece, ou seja, a actividade de empreitada é desenvolvida no local que vier a ser designado para o efeito. 18- Quanto à alínea d), tão pouco se pode usá-la para fazer a questão cair na alegada presunção, pois a forma de remuneração/pagamento, num contrato de empreitada, pode ser aquela estabelecida pelas partes, que até pode ser ao dia. 19 - O sinistrado usava equipamento que a si pertencia. 20 - O sinistrado não estava sujeito a qualquer horário de trabalho, embora praticasse um determinado horário, NÃO ESTAVA OBRIGADO A CUMPRI-LO. 21- O SINISTRADO NÃO TINHA QUALQUER SUBORDINAÇÃO ECONÓMICA OU JURÍDICA RELATIVAMENTE À SEGUNDA DEMANDADA. 22- Sendo perfeitamente normal que o sócio gerente da segunda demandada, se estivesse no local, desse a sua opinião ou até desse indicações, na qualidade de dono da obra. 23 - Todos estes factos, além de não demonstrarem a existência de qualquer contrato de trabalho, demonstram precisamente o seu contrário, isto é, que estamos perante um contrato de empreitada. 24 - Conforme consta do Facto Assente sob o nº 31, não colocado em causa, “O sinistrado não fazia uso de quaisquer meios de segurança, nomeadamente arnês ou linhas de vida (sublinhado e carregado nosso) 25- Impõe-se, pois, concluir que, se estivermos perante um acidente de trabalho, este ocorreu por manifesta violação das regras de segurança por parte da segunda demandada. 26- Pois, ou não forneceu esse EPI ao sinistrado falecido, ou então não fiscalizou a sua utilização. 27- E, assim sendo, impõe-se uma condenação solidária, com o reconhecimento do consequente reconhecimento do direito de regresso. 28- O Douto Acórdão em recurso violou, pois, os art°s 8o e 18°, ambos da Lei 98/2009, de 04/09, assim como o art° 12° do Código do Trabalho, assim como o art° 674° do Código de Processo Civil. O Autor não contra-alegou. O Exmº PGA emitiu parecer no sentido de ser concedida a revista. x Cumpre decidir. Com vista à enunciação das questões a decidir, há que dizer o seguinte: A Recorrente entende que, caso o contrato seja considerado como contrato de trabalho e consequentemente o acidente seja qualificado como acidente de trabalho, a sua responsabilidade deveria ser solidária com a Ré M..., Lda., por ter ficado provado que o sinistrado não fazia uso de quaisquer meios de segurança, nomeadamente arnês ou linhas de vida. Na contestação a Ré- Seguradora invoca, além do mais, a responsabilidade agravada da entidade empregadora (artigo 18.º da LAT), por o acidente ter resultado da falta de observação das regras de segurança no trabalho. Esta questão não foi apreciada pela 1.ª instância, por ter ficado prejudicada pela decisão de considerar que não havia contrato de trabalho. O Tribunal da Relação, apesar de ter qualificado o contrato como de trabalho e de ter considerado que estávamos perante um acidente de trabalho, também não apreciou a questão. Houve, assim, uma omissão de pronúncia no acórdão recorrido3. Contudo, a Recorrente não veio arguir a nulidade por omissão de pronúncia, requerendo apenas subsidiariamente a apreciação da questão. Não estando em causa questão de conhecimento oficioso e não tendo sido invocada a nulidade por omissão de pronúncia, tal questão não pode ser apreciada por este STJ. Ainda que assim não fosse, importa realçar que, quando o Tribunal da Relação não conhece de certas questões, o Supremo Tribunal de Justiça, ainda que entenda que nada obsta à sua apreciação e que dispõe dos elementos necessários, não pode substituir-se ao Tribunal da Relação. Com efeito, o artigo 679.º do Código de Processo Civil excluiu expressamente a aplicação ao recurso de revista do disposto no artigo 665.º, que prevê a regra da substituição. Deste modo temos, como questões a decidir: - se deve ser reposta a redacção do ponto 11 dos factos assentes constante da sentença e se devem ser eliminados os factos aditados pelo acórdão recorrido; - se o contrato celebrado entre o sinistrado e a Ré - M..., Lda. deve ser qualificado como contrato de trabalho ou como contrato de empreitada. x É a seguinte a factualidade a ter em conta (a negrito as alterações e aditamentos efectuados pela Relação): 1. O Sinistrado, CC, nasceu a ...-02-1957. 2. O Sinistrado faleceu a 11-01-2019, no estado de divorciado, e deixou um filho, o Autor AA, do qual é legal representante a sua mãe, BB. 3. A 11-01-2019, o Sinistrado sofreu um acidente do qual resultou a sua morte. 4. a Ré “M..., Lda., à data do evento em causa, tinha a responsabilidade emergente de acidentes de trabalho do Sinistrado transferida para a Ré/Seguradora “GENERALI SEGUROS, S.A.”, pelo montante global anual de €.16.368,00 [(€1.100,00 x 14) + (€88,00 x 12)]. 5. A 15-01-2019, a PSP participou ao tribunal da ... o acidente aqui em apreço. 6. Na tentativa de conciliação (fls.201 a 203), a Ré/Seguradora reconheceu a existência de contrato de seguro válido assim como a retribuição transferida, mas recusou toda e qualquer responsabilidade no acidente em causa, na medida em que, disse, o mesmo resultou de violação das regras de segurança e higiene no trabalho por parte da Ré e negligência grosseira por parte do Sinistrado. 7. Na mesma diligência, a legal representante do Autor aceitou o acordo proposto nos seus precisos termos. 8. A BB, foi casada com o Sinistrado, de quem sobejou, como único filho de ambos, o Autor, incapaz, aqui representado pela sua mãe. 9. Entre o Sinistrado e o legal representante da Ré – EE – subsistia uma relação estreita, estribada na circunstância de o Sinistrado haver sido seu funcionário entre os anos de 1995 e 2003; 10. Mercê dessa proximidade, o legal representante da Ré e o Sinistrado, acordaram a reparação do telhado da fábrica explorada pela Ré, (entretanto desativada) na sequência dos danos provocados pela tempestade “...” que havia assolado o território nacional e, em particular, a cidade da .... 11 - Na reparação aludida em 10., o sinistrado disponibilizou a mão de obra, sendo que o material consumível– telhas/chapas, grampos etc. – foi fornecido pela ré, tendo sido disponibilizado ao sinistrado, para além de um capacete de características não concretamente apuradas, um empilhador existente na fábrica e mais tarde, face a avaria do veículo aonde este se deslocava, foi-lhe emprestada a carrinha da fábrica. 12. A Ré, por ter medo que acontecesse algum azar, foi falar com o seu mediador de seguros, tendo contratado o seguro de acidentes de trabalho a que se alude em 4.. 13. Para a realização da reparação do telhado a que “supra” se alude, não foi definido qualquer horário de trabalho. 14. O acidente a que se alude em 3. deveu-se a uma queda quando o Sinistrado procedia à reparação do telhado a que “supra” se alude. 15. Após o acidente a que se alude nos autos, foi realizada uma autópsia médico legal ao corpo do Sinistrado. 16. O Autor padece de um quadro psicótico, com carácter irreversível, que o impossibilita de exercer de forma plena, pessoal e consciente, os seus direitos, nomeadamente os seus direitos pessoais ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres – e inclusive celebrar negócio da vida corrente, estando sujeito à medida de maior acompanhado. 17. A 13-10-2018, em consequência da tempestade “...”, o imóvel onde a Ré exercia a sua atividade sofreu avultados danos, designadamente ao nível da cobertura; 18. Para a realização da reparação do telhado o sinistrado não estava obrigado a cumprir um horário de trabalho, embora normalmente trabalhasse de segunda a sexta-feira, entre as 09h30 e as 17h00. 19. Sabendo da situação, o Sinistrado, antigo funcionário da Ré, e que se dedicava a pequenos trabalhos de construção civil, procurou o gerente EE, dispondo-se a realizar os necessários trabalhos de reparação da cobertura. 20. Para esse efeito, e sem qualquer intervenção da Ré, o Sinistrado contratou para o auxiliar o DD; 21. Pessoa que o gerente da Ré, EE, sequer conhecia. 22. Nunca a Ré procedeu a quaisquer pagamentos ao referido DD, os quais sempre foram efetuados pelo sinistrado, ignorando aquela quanto este lhe pagava. 23. Os trabalhos de reparação do telhado em causa iniciaram-se em novembro de 2018, sem que a Ré desse, ao Sinistrado ou ao DD, quaisquer ordens ou instruções. 24. O EE – gerente da Ré – era pessoa de idade avançada – octogenária. 25. Os trabalhos de reparação iniciaram-se em novembro de 2018 e o acidente veio a ocorrer em janeiro de 2019. 26. Parte dos instrumentos de trabalho eram do sinistrado. 27. Foi entregue ao Sinistrado uma chave de acesso ao local de modo a que acedesse ao mesmo quando o entendesse. 28. Eliminado. 29. Relacionado com a matéria em causa nos autos, a ACT, instaurou à Ré um processo de contraordenação que aquela impugnou e cujo recurso correu termos com o n.º 1638/19.8... 30. O empilhador existente na fábrica, e que foi disponibilizado ao Sinistrado, foi por ele adaptado como plataforma elevatória. 31. O sinistrado não fazia uso de quaisquer meios de sustentação, nomeadamente arnês nem linhas de vida. 32. O legal representante da 2ª ré indicava ao sinistrado os espaços credores de limpeza e manutenção mercê da tempestade. 33. Em contrapartida do trabalho referido em 11, o sinistrado auferia a quantia € 50/dia, quantia esta que a era paga semanalmente pelo legal representante da 2ª ré. x • o direito: - a primeira questão- se deve ser reposta a redacção do ponto 11 dos factos assentes constante da sentença e se devem ser eliminados os factos aditados pelo acórdão recorrido: É jurisprudência consolidada deste STJ (veja-se, o qual seguiremos, o Ac. de 17 de Março de 2022, proc. 6947/19.3T8LSB.L1.S1), que, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 46º da Lei 62/2013, de 26 de Agosto (Lei de Organização do Sistema Judiciário) e 682º do Código de Processo Civil, o Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista que, salvo nos casos excepcionais contemplados no nº 3 do artigo 674º do CPC, aplica definitivamente o regime jurídico aos factos materiais fixados pelo Tribunal recorrido, consistindo as excepções referidas “na ofensa de uma disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força probatória de determinado meio de prova”, como dispõe o nº 3 do artigo 674º do C.P.C. (prova vinculada). Daqui se segue que o sindicar o modo como a Relação fixou os factos materiais só pode ocorrer no âmbito do recurso de revista se aquele Tribunal deu por provado um facto sem produção do tipo de prova que a lei exige como indispensável para demonstrar a sua existência ou se tiver incumprido os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova. Significa isto que, por regra, e salvo nas situações excepcionais assinaladas, é definitivo o juízo formulado pelo Tribunal da Relação, no âmbito do disposto no artigo 662º, nºs 1 e 2, do C.P.C., em matéria de facto sobre prova sujeita à livre apreciação, não podendo o mesmo ser modificado ou censurado pelo Supremo Tribunal de Justiça, cuja intervenção está limitada aos casos da parte final do nº 3 do artigo 674º do mesmo Código, nos termos do qual o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode ser objecto de recurso de revista, que o mesmo é dizer que o erro de julgamento em matéria de facto em si, quando não esteja inquinado por erro de direito, não é sindicável pelo Supremo Tribunal de Justiça e não pode constituir fundamento de recurso de revista. Contudo, o Supremo Tribunal de Justiça, como tribunal de revista, pode censurar o modo como a Relação exerceu os poderes de reapreciação da matéria de facto, já que se tal for feito ao arrepio do artigo 662º do Código do Processo Civil, se está no âmbito da aplicação deste preceito e, por conseguinte, em matéria de direito. Ou seja, nas palavras do acórdão do STJ de 12.11.2020, Procº nº 3159/05.7TBSTS.P2.S, citando o acórdão de 06/07/2011, Proc.º nº 645/05.2TBVCD.P1.S1, “se a este Supremo Tribunal de Justiça lhe é vedado sindicar o uso feito pela Relação dos seus poderes de modificação da matéria de facto, já lhe é, todavia, possível verificar se, ao usar tais poderes, agiu ela dentro dos limites traçados pela lei”, tratando-se então de verificar se o Tribunal da Relação, no uso ou não uso dos poderes que lhe são conferidos pelo artigo 662º do C.P.C., incumpriu deveres de ordem adjectiva, se (des)respeitou a lei processual, relacionados com a apreciação da matéria de facto, o que é inequivocamente matéria de direito. Em suma, como se afirmou no acórdão deste Supremo Tribunal de 30.11.2021, Procº nº 212/15.2T8BRG-B.G1.S1, ao tribunal de revista compete assegurar a legalidade processual do método apreciativo efectuado pela Relação, mas não sindicar o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da prudente convicção do julgador. “I. O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa escapa ao âmbito dos poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça (artigos 674.º, n.º 3, e 682.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), estando-lhe vedado sindicar a convicção das instâncias pautada pelas regras da experiência e resultante de um processo intelectual e racional sobre as provas submetidas à apreciação do julgador. II. São excepções a esta regra a existência de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova (prova vinculada ou tarifada)”- Ac. do STJ de 15.09.2021, Proc. n.º 559/18.6T8VIS.C1.S1. No caso vertente, a Recorrente não alega a ofensa de disposição expressa da lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova. E é manifesto que a Relação não fixou os factos materiais dando por provado um facto sem produção do tipo de prova que a lei exige como indispensável para demonstrar a sua existência, assim como não incumpriu os preceitos reguladores da força probatória de certos meios de prova. E o que se passa é que a Recorrente não concorda com a decisão da impugnação tal como foi feita pelo Tribunal da Relação, mas tal não constitui fundamento para intervenção deste Supremo Tribunal, neste particular aspecto. Com base nestes critérios, é insindicável por este STJ a decisão do acórdão recorrido sobre a matéria de facto. -a segunda questão - se o contrato celebrado entre o sinistrado e a Ré - M..., Lda. deve ser qualificado como contrato de trabalho ou como contrato de empreitada: Escreveu-se, além do mais, no acórdão recorrido: “No caso, a matéria de facto provada, após as alterações introduzias por esta Relação não nos esclarece de forma inequívoca quanto à génese da relação, ou seja, que vontades estiveram na sua origem, nem tão pouco essa matéria, no que toca à execução contratual, nos esclarece cabalmente sobre a sua qualificação. Ou seja: continuam a existir dúvidas consistentes sobre a qualificação da relação contratual. Deste modo, haverá que saber se se verificam duas ou mais das circunstâncias a que alude o citado artº 12º do CT, cuja prova, como base da presunção, incumbe ao autor beneficiário. Ora, presente a factualidade, verificamos estarem preenchidas, pelo menos as circunstâncias referidas nas alíneas a) e d) do citado artº 12º. Na verdade, o sinistrado realizava a sua atividade em local pertencente à 2ª ré, a qual beneficiava daquela atividade e era-lhe paga, semanalmente, quantia certa em contrapartida do seu trabalho. Assim sendo, a questão que agora se coloca é a de saber se a seguradora logrou ilidir a presunção. E a resposta, na nossa perspetiva, é negativa. De facto, embora o sinistrado não estivesse obrigado a observar uma hora para o início e fim da atividade que desempenhava, ou seja, não estivesse sujeito a um verdadeiro horário de trabalho como é próprio ou típico do trabalho subordinado, a verdade é que tinha normalmente horas certas para iniciar e findar o seu trabalho, bem como alguns instrumentos eram de sua pertença. Por tudo isto, salvo melhor opinião, entendemos que a presunção de laboralidade não se encontra ilidida, devendo considerar-se que o sinistrado, ainda que por presunção, se encontrava vinculado à 2ª ré através de um contrato trabalho gozando da tutela infortunística”. Não subscrevemos este entendimento. Tendo o acidente ocorrido em 11/01/2019 há que ter em conta a presunção de existência de contrato de trabalho prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho de 2009 (Lei nº 7/2009, de 12 de Fevereiro, doravante designado de CT, naturalmente na redacção anterior à Lei n.º 13/2023, de 3 de Abril). Onde se estabelece, no seu nº 1: “1 - Presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre a pessoa que presta uma actividade e outra ou outras que dela beneficiam, se verifiquem algumas das seguintes características: a) A actividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado; b) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da actividade; c) O prestador de actividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma; d) Seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de actividade, como contrapartida da mesma; e) O prestador de actividade desempenhe funções de direcção ou chefia na estrutura orgânica da empresa”. Assim, a lei não exige agora a verificação de todos estes factos para que a presunção funcione, limitando-se a exigir a ocorrência de alguns deles, referência que tem sido pacificamente entendida como exigindo a ocorrência mínima de duas destas circunstâncias. Ou seja, para que a aludida presunção se aplique basta que se verifiquem duas das cinco características elencadas no nº 1 desse artigo 12º. Ora, tal como se concluiu no acórdão recorrido, tal é o caso, estando preenchidas as duas hipóteses das als. a) e d), operando a referida presunção. Funcionando a presunção, cabia à Ré ilidi-la e provar que não existia contrato de trabalho. O que indubitavelmente logrou fazer. Resulta do conjunto dos factos 10, 13, 17 a 23 e 27, já com as alterações operadas pelo Tribunal da Relação, que o que foi pretendido pelas partes foi o resultado da actividade a desenvolver pelo sinistrado e não aquela propriamente dita. Este último foi contratado com vista exclusivamente à realização de uma obra- o sinistrado, que se dedicava a pequenos trabalhos de construção civil, propôs ao gerente da 2.ª Ré realizar os necessários trabalhos de reparação da cobertura (facto 19) e o legal representante dessa Ré e o sinistrado acordaram a reparação do telhado da fábrica explorada pela primeira (facto 10). Tudo características próprias de um contrato de empreitada (artºs 1207º e ss. do C.C.). Por outro lado, temos que o contrato de trabalho é um contrato intuitu personae, não sendo típico do mesmo que o trabalhador se faça substituir indicando ele próprio o substituto, como acontecia no caso dos autos- sem intervenção da 2.ª Ré o sinistrado contratou um auxiliar (facto 20); a 2ª Ré não conhecia esse auxiliar (facto 21); sendo o sinistrado que lhe pagava a remuneração (facto 22); a 2.ª Ré nunca procedeu a qualquer pagamento a esse auxiliar (facto 22). Foi o sinistrado quem indicou esse auxiliar e não a Ré, o que seria curial na relação laboral subordinada, como corolário do exercício do poder de direcção desta. E a doutrina e a jurisprudência, designadamente a do STJ, coincidem no entendimento que nestas situações está fortemente indiciada a inexistência de contrato de trabalho. Assim, e tal como é referido no parecer do Exmº PGA: Na doutrina: “(…) se o trabalhador tiver outros trabalhadores ao seu serviço, há um indício de autonomia, que pode afastar a qualificação laboral do seu contrato (…)”- Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II, 9.ª edição, Almedina, 2023, pag. 45. Sendo o contrato de trabalho “(…) um negócio jurídico intuitu personae, não parece possível, por via de regra, da parte do prestador de trabalho recorrer a colaboradores (…)” – Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 11.ª edição, Almedina, 2023, pag. 313. “Sem o consentimento do empregador, o trabalhador não se pode fazer substituir por outrem na execução do contrato, pelo que a infungibilidade da prestação me parece inegável.” – João Leal Amado, Contrato de Trabalho, 4.ª edição, Coimbra Editora, 2014, pag. 76. “A maior parte da doutrina entende que no contrato de trabalho a prestação a que o trabalhador se obriga é infungível e deve ser executada pessoalmente por este (…)”, pelo que a possibilidade de o trabalhador “(…) se fazer substituir por outrem nessa execução ou a possibilidade de subcontratar ou de escolher um auxiliar no cumprimento é suficiente para permitir a conclusão de que não se trata de um contrato de trabalho.” Júlio Manuel Vieira Gomes, Direito do Trabalho, Volume I, Coimbra Editora, 2007, pags. 135 e 136. Na jurisprudência: “O contrato de trabalho é um negócio intuitu personae, pelo que a possibilidade de o prestador da atividade se fazer substituir por outrem, bem como a de ter trabalhadores ao seu serviço ou de poder socorrer-se de auxiliares, indicia, em princípio, uma relação de autonomia.”- acórdão do STJ de 12-01-2023, (proc. 16978/18.5T8LSB.L2.S1.). “(…) sendo o contrato de trabalho intuitu personae, não é típico do mesmo que o trabalhador se faça substituir indicando ele próprio o substituto (…)”- acórdão do STJ 12-10-2022 (proc. 3347/19.9T8BRR.L1.S1). Por outro lado, e isto é natural e igualmente decisivo, a factualidade provada aponta sem qualquer margem para dúvidas no sentido de ausência de subordinação jurídica, elemento indispensável da definição da relação juré﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽﷽a Rnte áT de 2009 por o sinistrado ho idade a dsenvolver ídico-laboral- artº 11º do CT: - os trabalhos de reparação do telhado foram efectuados sem que a Ré desse, ao sinistrado ou ao auxiliar, quaisquer ordens ou instruções (facto 23); - o sinistrado não estava obrigado a cumprir um horário de trabalho (facto 13) e tinha uma chave das instalações onde trabalhava para entrar e sair quando assim o entendesse (facto27). Circunstâncias claramente indiciadoras de que o sinistrado não estava sujeito ao poder de direção da 2.ª Ré. E não estava integrado na organização empresarial da 2.ª Ré. Procede, assim, o recurso. x Decisão: Nos termos expostos, concede-se a revista, revogando-se o acórdão recorrido e repristinando-se a sentença de 1ª instância. Custas, em todas as instâncias, pelo Autor. Lisboa, 03/07/2024 Ramalho Pinto (Relator) Domingos José de Morais José Eduardo Sapateiro
Sumário (da responsabilidade do Relator).
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1. A Juíza que presidiu à audiência de julgamento jubilou-se sem ter proferido a sentença ou decisão quanto à matéria de facto, tendo o Juiz que lhe sucedeu proferido sentença, presumivelmente com base na gravação dos depoimentos.↩︎ 2. Apesar de não constar do dispositivo do acórdão, o Tribunal da Relação alterou a decisão da matéria de facto, eliminando o ponto 28, alterando a redacção dos pontos 11, 18 e 26 e aditando dois novos pontos aos factos assentes, nos seguintes termos: 11 - “Na reparação aludida em 10., o sinistrado disponibilizou a mão de obra, sendo que o material consumível– telhas/chapas, grampos etc. – foi fornecido pela ré, tendo sido disponibilizado ao sinistrado, para além de um capacete de características não concretamente apuradas, um empilhador existente na fábrica e mais tarde, face a avaria do veículo aonde este se deslocava, foi-lhe emprestada a carrinha da fábrica”. 18 – “Para a realização da reparação do telhado o sinistrado não estava obrigado a cumprir um horário de trabalho, embora normalmente trabalhasse de segunda a sexta-feira, entre as 09h30 e as 17h00”. 26 – “Parte dos instrumentos de trabalho eram do sinistrado”. Factos aditados: “O legal representante da 2ª ré indicava ao sinistrado os espaços credores de limpeza e manutenção mercê da tempestade”. “Em contrapartida do trabalho referido em 11, o sinistrado auferia a quantia € 50/dia, quantia esta que a era paga semanalmente pelo legal representante da 2ª ré”↩︎ 3. Na contestação a Ré Seguradora invoca ainda que o acidente de trabalho deveria ser descaracterizado. Apesar desta questão também não ter sido apreciada pelo acórdão recorrido, a recorrente não a invoca nas alegações de recurso.↩︎ |