Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
867/22.1JALRA.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: MARIA DO CARMO SILVA DIAS
Descritores: RECURSO ORDINÁRIO
REFORMATIO IN PEJUS
HOMICÍDIO TENTADO
PENA ÚNICA
MEDIDA DA PENA
Data do Acordão: 10/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Não assiste razão ao recorrente quando invoca que teria sido violado o princípio da reformatio in pejus previsto no art. 409.º do CPP, uma vez que o recurso para a Relação da decisão final foi interposto pelo Ministério Público, o qual pediu a agravação da pena aplicada pelo homicídio tentado cometido pelo arguido, bem como a agravação da pena única, o que significa que esse recurso não foi interposto no interesse do arguido. Podia assim a Relação, perante o recurso do Ministério Público, proceder à agravação das penas que fez, não existindo qualquer violação do disposto no art. 409.º, n.º 1, do CPP, nem do princípio da reformatio in pejus. Diferente seria se a Relação tivesse agravado as penas, sem haver recurso do Ministério Público a pedir essa agravação, o que não foi o caso.

II. Quanto à pena aplicada pelo crime de homicídio tentado (5 anos e 6 meses de prisão), ao contrário do que alega em sede de recurso, pelo que resulta do texto do acórdão recorrido, mesmo tendo em atenção a sua idade, crime cometido e posicionamento em relação ao crime cometido (não havendo sequer sinais exteriores de arrependimento ativo), verifica-se que, além de manifestar indiferença pelo bem jurídico violado (bem vida) aqui em apreciação, ainda não interiorizou o desvalor da conduta que praticou, não revelando sentido crítico, não assumindo especial relevo a confissão parcial efetuada, precisando de esforçar-se mais, para mudar o seu rumo de vida (designadamente, melhor refletindo sobre o seu percurso de vida, para adquirir consciência crítica, assumir os seus erros, esforçando-se por interiorizar os valores comunitários, assim se preparando/adaptando para levar uma vida conforme ao direito, sendo conveniente e útil que vá igualmente ponderando sobre as consequências dos seus atos), sendo no caso dos autos, a natureza e modo de execução do crime cometido nas circunstâncias dadas como provadas, grave, causador de alarme e intranquilidade social, que integra o conceito de “criminalidade especialmente violenta” (art. 1.º, al. l) do CPP), tendo revelado uma personalidade violenta e avessa ao direito, tendo a Relação explicado bem, na decisão recorrida, a razão pela qual a fundamentação da 1ª instância não convencia e tinha de ser corrigida, nos moldes que indicou e que não merecem censura. Também, considerando todas as circunstâncias apuradas, igualmente não transparece que estejamos perante qualquer caso especial que justifique uma atenuação especial da pena (cf. art. 72.º do CP) em relação ao recorrente.

III. Quanto à pena única aplicada (5 anos e 8 meses de prisão), foi calculada no âmbito da moldura abstrata do concurso indicada de 5 anos e 6 meses de prisão e 6 anos de prisão e, nesse âmbito, não se pode desconsiderar os factos no conjunto, sua conexão, período temporal (crimes cometidos em concurso, respetivamente em 23.08.2022 o de homicídio tentado e em 31.01.2023 o de tráfico de estupefacientes de menor gravidade), diferente grau de gravidade considerando a sua natureza e dos bens jurídicos violados (incluindo de natureza pessoal, o que para uma pessoa da idade do recorrente, acentua essa gravidade e realça a sua indiferença para levar uma vida conforme ao direito, bem como desprezo pelas regras e valores subjacentes ao ordenamento jurídico), a sua idade e a sua personalidade (avessa ao direito, atento o circunstancialismo fáctico global apurado), que se mostra adequada aos factos cometidos, revelando tendência para a prática dos tipos de ilícitos criminais cometidos, o que tudo torna mais elevada as exigências de prevenção geral e especial relativamente ao ilícito global. Considerando as suas carências de socialização é de atender ao efeito previsível da pena única a aplicar sobre o seu comportamento futuro, a qual não deve ser impeditiva da sua ressocialização, quando chegar o momento próprio, julgando-se na medida justa, sendo adequada e proporcionada, a pena única imposta pela Relação de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão, por não ultrapassar a medida da sua culpa - que é grave considerando os respetivos factos no conjunto e a sua personalidade, à luz das considerações feitas - assim contribuindo para a sua futura reintegração social e satisfazendo as finalidades das penas.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I. Relatório

1. No processo comum (tribunal coletivo) n.º 867/22.1JALRA do Juízo Central Criminal de ..., Juiz 4, comarca de Leiria, por acórdão em 26.10.2023, decidiu-se além do mais, no que aqui interessa, condenar o arguido AA:

-pela prática, em autoria material, de um crime de homicídio, na forma tentada, p. e p. nas disposições conjugadas dos artºs. 22º, 23º, 73º, 131º, todos do Código Penal, na pena de quatro anos e seis meses de prisão;

-pela prática, em autoria material, na forma consumada de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º al. a) ex vi do artº 21º e tabela anexa ao Decreto Lei nº 15/93 de 22.1, na pena de dezoito meses de prisão; e,

- em cúmulo jurídico, na pena única de cinco anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com regime de prova.

2. Não se conformando com o decidido quanto à pena do crime de homicídio tentado e quanto à pena única, o Ministério Público recorreu para a Relação de Coimbra, pedindo a sua agravação, sendo a pena individual para 6 anos de prisão e a pena única para 7 anos de prisão, tendo por acórdão de 24.04.2024 o TRC decidido conceder parcial provimento ao recurso, com as seguintes consequências:

a) Revoga-se a decisão recorrida quanto à pena imposta ao arguido pelo crime de homicídio tentado, quanto à pena resultante do cúmulo jurídico e quanto à suspensão da execução dessa pena com regime de prova;

b) Condena-se o arguido AA pela autoria material de um crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 22º, 23º, 73º e 131º, todos do Código Penal, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

c) Declara-se perdoado 1 (um) ano de prisão da pena de 18 (dezoito) meses de prisão em que foi condenado pelo crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º, al. a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, nos termos do art. 3º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023.

d) Em cúmulo jurídico de penas, condena-se o arguido AA na pena única de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão.

e) Confirma-se, em tudo o mais, a decisão recorrida.

3. Não se conformando com o decidido pelo TRC, recorreu o arguido para o STJ, apresentando as seguintes conclusões (transcrição sem negritos):

1ª – O Arguido discorda, salvo opinião em contrário, da revogação da suspensão da pena aplicada na 1ª Instância, porque o douto Acórdão recorrido praticamente concordou com a qualificação jurídica dos factos tal e qual como foi doutamente decidido pelo Tribunal da 1ª Instância; Só tendo agravado a pena em 1 (um) ano e 2 (dois) meses, passando de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses de pena suspensa em regime de prova para uma pena efetiva de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses, porquanto;

2ª – Além de modificar a medida da pena e a sua espécie ao mesmo tempo concorda com a qualificação jurídica dos factos decididos pela 1ª Instância, viola o princípio do artigo 409º do CPP e decidiu mal ao determinar a medida da pena concreta a aplicar ao Arguido, porque;

3ª – O Tribunal da 1ª Instância alicerçou a sua decisão na apreciação e avaliação da prova produzida na audiência de discussão e julgamento na sua globalidade, a que constava nos autos e a produzida em audiência e que depois apreciada à luz dos critérios da normalidade e segundo as regras de experiência comum e a sua livre convicção, não restando qualquer dúvida ao Douto Coletivo do Tribunal da 1ª Instância, de julgar a douta Acusação parcialmente procedente e provada, visto que o Arguido presta declarações referindo trazer consigo um punhal, esclarecendo ainda que espetou a faca nas costas do Ofendido, embora não o fazendo propositadamente, mas apenas e tão só para o assustar, isto porque três indivíduos se dirigiram a ele e sentiu-se ameaçado, por ter havido uma discussão;

4ª – Se não fosse a confissão do Arguido, nenhuma das testemunhas carreadas para este processo visualizaram o Arguido a espetar a faca no Ofendido;

5ª – Devido à posição assumida pelo Arguido impõe-se determinar a medida da pena concreta a aplicar ao Arguido, e aqui entende o mesmo que o Tribunal da 1ª Instância esteve com o rigor que se impunha, ao analisar para os dois crimes de que vinha acusado: o crime de tráfico de menor gravidade, o artigo 25º, al. a) do DL nº 15/93, de 22/01, prevê uma pena de prisão de um a cinco anos e para o crime de homicídio qualificado na forma tentada previsto e punido nas disposições conjugadas nos artigos 22º, 23º, nºs 1 e 2, 73º, nº 1 als. a) e b) e 131º todos os C. Penal, ex vi artigo 4º do Decreto Preambular do C. Penal, é punível com pena de prisão de 1 ano e 7 meses e 6 dias a 10 anos e oito meses de prisão;

6ª – Procedendo à análise de todos os critérios para concretizar a pena concreta à luz do artigo 71º, nº 2 do C.P. e tendo ponderado o grau de culpa do Arguido que é elevado e considerando que existem importantes exigências a nível de prevenção geral e bem como a nível de prevenção especial e as circunstâncias que depõem a favor do arguido como a idade, as condições sócio-económicas, o rudimentar grau de escolaridade, o grau elevado de ilicitude, o grau que considerou importante a gravidade das consequências dos factos praticados, a intensidade do dolo, na modalidade de dolo direto, a primodelinquência do arguido, a sua juventude, a regular inserção familiar, a confissão parcial dos factos, a manutenção da abstinência do consumo de estupefacientes e a postura cooperante como os serviços que acompanham o cumprimento da medida de coação que lhe foi imposta;

7ª – Jugou-se adequado face aos factos de personalidade do Arguido a aplicação de uma pena parcelar de 4 anos e 6 meses de prisão e 18 meses para o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, o que se revela uma aplicação razoável de pena parcelar, face a tudo o que foi provado a favor e contra o Arguido;

8ª – Para determinar a pena concreta a aplicar ao Arguido nos termos do artigo 77º do C. Penal, considerou-se em conjunto os factos provados e a personalidade do agente e tendo em conta as exigências gerais de culpa e da prevenção especial, aplicou ao Arguido uma pena única de cinco anos de prisão, quando no caso concreto foi fixado com penas parcelares a pena de 4 anos e 6 meses de prisão, tendo o Tribunal da 1ª Instância julgado adequado aplicar uma pena única de 5 anos de prisão, considerando os factos e personalidade revelada pelo Arguido na audiência de discussão e julgamento;

9ª – E após a análise cuidada da prova entendeu e bem na ótica do Arguido em suspender a pena concreta em concurso de 5 anos com regime de prova, porque a douta motivação que levou a suspender a pena de prisão foi corretamente valorada em consideração à primodeliquência do Arguido, à sua juventude, aos laços efetivos e coesos a nível familiar, a assunção parcial dos factos, à manutenção da abstinência do consumo de estupefacientes e à postura cooperante como serviços que acompanham o cumprimento da medida de coação que lhe foi imposta, que levou a concluir que o Arguido esteja disposto a aproveitar a oportunidade para se reintegrar socialmente, sabendo desde já, que se não cumprir o plano de reinserção social traçado pelos serviços de reinserção social com o apoio e vigilância dos mesmos o podem conduzir a ter de cumprir pena de prisão efetiva;

10ª – O Arguido tem de dar a concordância ao plano de reinserção e com isto toma conhecimento dos objetivos propostos para se reabilitar, o que realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, com a consciência do mesmo que cometeu um crime grave e que tem uma segunda oportunidade de se reabilitar sob pena de ameaça com prisão efetiva, o que é mais gravoso para o Arguido, uma vez que tem 21 anos e esta atenuação é uma vantagem concreta para a sua reinserção social, como também já tinha revelado receio no Relatório Social face ao desfecho do processo, nomeadamente pelas implicações de uma possível condenação privativa de liberdade poderia ter no seu futuro, tendo em conta a sua idade;

11ª – A atenuação especial da pena foi bem aplicada, porque assentou na demonstração de circunstâncias concretas que fez o julgador tomasse um juízo seguro de que o Arguido beneficiará na sua reinserção social dessa atenuação, o que é positivo para o condenado, e é devidamente suficiente para acautelar as exigências de prevenção gerais e especiais que a lei penal quer assegurar, visto que a pena é controlada pelo Douto Tribunal da 1ª Instância pelo acompanhamento que os Serviços de Reinserção Social fazem e comunicam imediatamente caso haja incumprimento, existindo mecanismos penais para fazer cumprir a pena proferida no Douto Acórdão do Tribunal da 1ª Instância, assim a pena de prisão efetiva preconizada pelo Douto Acórdão do Tribunal da relação é penosa e injusta para o Arguido;

12ª – Não sendo necessário o agravamento da pena, visto que o Arguido é primário e não tem qualquer averbamento registado no seu Registo Criminal, entende o mesmo que houve uma violação do artigo 409º, nº 1 do CPP.

Termina pedindo a procedência do recurso e, assim, pede a revogação do acórdão do Tribunal da Relação, mantendo-se a pena aplicada ao Arguido pelo Tribunal da 1ª Instância, tudo com as legais consequências.

4. Na resposta ao recurso do arguido o Sr. PGA na Relação alegou, em resumo, que tendo sido o recurso interposto pelo Ministério Público da decisão proferida pela 1ª instância, pedindo precisamente a agravação da pena qua havia sido aplicada ao arguido, manifestamente que não tem cabimento a invocação de qualquer ilegalidade da decisão, designadamente por violação do princípio da proibição da reformatio in pejus prevista no art. 409º, do Código de Processo Penal, a que acresce o facto de terem sido corretamente observados os critérios legais relativos à determinação da medida da pena, designadamente os previstos no art. 71º, do CP, não resultando que a decisão recorrida tivesse violado qualquer norma jurídica, designadamente as indicadas pelo recorrente, concluindo que o recurso deve ser julgado improcedente e confirmado o acórdão recorrido.

5. Subiram os autos a este STJ e, o Sr. PGA emitiu parecer sustentando que, sendo admissível o recurso do arguido para o STJ, por a Relação ter agravado a pena aplicada na 1ª instância, quanto ao homicídio tentado e quanto à pena única em virtude do recurso do MP, nesse sentido, a verdade é que tem de improceder, pelos motivos invocados na resposta ao recurso, apresentada pelo Sr. PGA no TRC, aos quais adere, concluindo de modo idêntico.

6. Na resposta ao Parecer do Sr. PGA, o arguido manifestou a sua discordância, mantendo o que já tinha dito anteriormente na resposta ao recurso do MP da decisão proferida pela 1ª instância, sustentando que deve ser mantida a pena que ali (na 1ª instância) lhe foi aplicada.

7. No exame preliminar a Relatora ordenou que fossem colhidos os vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão.

II. Fundamentação

8. Factos

A Relação partiu da seguinte decisão sobre a matéria de facto do acórdão da 1ª instância que deu como definitivamente assente:

O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

1. No dia ........2022, o ofendido BB e uns amigos seus, estiveram a jantar no restaurante “...”, sito em ..., local de onde saíram por volta das 00:20 horas.

2. Quando estavam a percorrer a Rua ..., apeados, em direção ao Largo ... e, posteriormente ao Parque de Estacionamento da ..., depararam-se com três indivíduos, jovens, todos do sexo masculino, ofegantes, com os quais trocaram umas palavras.

3. Um desses jovens era o aqui arguido AA que, nesse momento se encontrava munido de um punhal na cintura, tendo este cerca de 20 cm, sendo desses, 9 cm de lâmina.

4. Assim, após a troca de palavras descrita em 2., o arguido AA, tira o punhal da cintura, empunha o mesmo e, dirige-se ao ofendido BB e, espeta a faca nas costas do ofendido, ligeiramente da direita para a esquerda e sensivelmente num mesmo plano horizontal (pelo último espaço intercostal esquerdo) provocando-lhe as lesões melhor descritas no exame pericial de fls. 37 e 37 verso, que aqui se dão por integralmente reproduzidas, que só não provocaram a morte do ofendido porque este foi prontamente assistido no Hospital de ....

5. Por outro lado, no dia 31 de janeiro de 2023, aquando da sua detenção, foi encontrado na sua posse 27,546 gramas de haxixe, equivalente a 82 doses diárias.

6. Agiu o arguido, de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de espetar o punhal nas costas do ofendido, bem sabendo que com tal ato poderia ter provocado a morte do mesmo, considerando a zona atingida o que apenas não sucedeu por razões externas à sua vontade.

7. O arguido agiu ainda consciente, livre e deliberadamente, conhecendo as características do punhal que detinha, bem sabendo que o mesmo era capaz de provocar a morte quando usado, o que sucedeu, só não provocando a morte pelo facto de o ofendido ter sido atempadamente tratado no hospital.

8. Sabia ainda o arguido que o haxixe que detinha era em quantidade superior ao legalmente permitido por lei.

9. Sabia o arguido que as suas condutas eram proibidas por lei penal.

10. Do relatório social do arguido consta o seguinte:

“Natural de ..., o processo de socialização de AA decorreu no seio do agregado familiar constituído pelo próprio, pelos pais e mais três irmãos, sendo o arguido o segundo filho. A dinâmica familiar foi descrita como adequada, verificando-se da parte dos pais preocupação na transmissão de valores e regras socialmente consentâneas. Não foram referidas restrições ao nível económico. Em termos residenciais, o agregado familiar tem ocupado casas arrendadas localizadas em várias zonas de .... Relativamente ao percurso escolar, o arguido ingressou em estabelecimento de ensino em idade regular, vindo a concluir apenas o 2º ciclo. Na sequência das dificuldades escolares apresentadas, foi encaminhado para um curso profissional, que acabou por não concluir. Refira-se o desinteresse e o absentismo assumido pelo próprio em relação aos estudos, fatores que levaram ao abandono escolar definitivo contava 17 anos. Com 18 anos, trabalhou numa empresa de conservas, em ..., pelo período de cinco meses, com contratos de trabalho temporários. Após alguns meses sem ocupação, trabalhou na a pesca, para uma pessoa conhecida do pai, onde permaneceu cerca de um ano. Parou este trabalho durante um mês, período em que fez uns biscates na construção civil, regressando novamente à atividade piscatória, não tendo conseguido precisar por quanto tempo. No campo das relações com os pares, identifica os mesmos como residentes da zona de ..., sendo que uns trabalham e outros estão sem atividade profissional. As saídas com os amigos, resumem-se à zona de residência. Assume os consumos de haxixe com alguma regularidade e ocasionalmente a ingestão de bebidas alcoólicas, práticas que fazia em contexto de grupo. No que concerne a este campo, a mãe descreve o arguido como um jovem influenciável ao grupo de pares. AA averba contactos anteriores com o aparelho da justiça, registando-se dois deles ainda em menor, ambos relacionados com ofensas à integridade física simples que, de acordo com o relatado pelas fontes, terão ocorrido por desacatos com outros pares. Posteriormente, registou um processo penal, por crime relacionado com o consumo de estupefacientes. À data dos factos que levaram ao presente processo, AA permanecia integrado no agregado familiar de origem, constituído pelos progenitores e pelos dois irmãos mais novos, contexto que se mantém até ao presente. Ao nível das relações intrafamiliares, a mesma foi descrita como positiva, com laços afetivos coesos. Em termos profissionais, o arguido encontra-se sem ocupação laboral, situação que tem mantido desde que se encontra a cumprir a medida de coação de obrigação na habitação com recurso a vigilância eletrónica (com início a 06-02-2023). No quadro económico, os gastos do arguido dependem dos rendimentos auferidos pelos progenitores (pai trabalha como ... e a mãe como operaria fabril), que se apresentam como suficientes para fazer face às despesas do agregado. No plano pessoal, o arguido assume que em certas ocasiões tende a reagir de forma impulsiva, comportamento que reconhece como negativo. Em contexto de entrevista, revelou competências pessoais, ainda que associadas a alguma imaturidade, passíveis de elaborar um pensamento crítico e reconhecer as consequências das condutas assumidas. Da informação recolhida junto da progenitora, o mesmo foi apresentado como uma pessoa calma e responsável ainda que permeável ao grupo de pares. Relativamente aos consumos aditivos, relatou que com o surgimento do presente processo cessou os consumos, mantendo-se abstinente desde essa data. No que se refere à sua situação judicial, o arguido tem mantido uma postura cooperante com os serviços que acompanham o cumprimento da medida de coação que lhe foi imposta, não havendo registo de situações de incumprimento. AA, numa perspetiva generalista de situações semelhantes às inerentes no presente processo, revela discernimento face ao bem jurídico em causa, reconhecendo o impacto negativo no outro. A atual situação jurídico-penal é vivida pelo arguido com preocupação face ao desfecho do processo, nomeadamente, pelas implicações que uma possível condenação privativa de liberdade poderia ter no seu futuro, tendo em conta a sua idade.”

11. Do certificado de registo criminal do arguido, nada consta.

12. O demandante foi transportado para o Hospital de ... e posteriormente para o Hospital de ... onde lhe foi realizado um Raio X e cirurgia para remoção do punhal.

13. O demandante sofreu dores na sequência do golpe sofrido quer na consequência da sua convalescença e a nível estético ficou portador de cicatrizes na zona atingida.

14. O demandante sofreu angústia e desgosto.

Relativamente ao não provado foi consignado no acórdão recorrido o seguinte:

Para além dos que ficaram descritos, não se provaram quaisquer outros factos com interesse para a discussão da causa, designadamente não se provou que:

-a vítima tenha respondido às provocações dos jovens;

-que o arguido tenha espetado a faca pelas costas;

-que o arguido tenha espetado a faca na parte superior das costas;

- que o produto estupefaciente que o arguido detinha fosse para ceder a outras pessoas.

A decisão de facto foi motivada nos seguintes termos:

Para formação da convicção do Tribunal, foram tidos em consideração os elementos de prova constantes dos autos, na sua globalidade, bem como a prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, prova essa apreciada e avaliada à luz dos critérios da normalidade e segundo as regras de experiência comum e a sua livre convicção (cfr. Artigo 127.º do Código de Processo Penal). O arguido prestou declarações e referiu que é verdade trazer consigo um punhal, cuja foto lhe foi exibida e confirmou ser a mesma; referiu que os três indivíduos se dirigiram a ele e sentiu-se ameaçado, por ter havido uma discussão e espetou a faca num individuo que falava estrangeiro; o Davide estava de frente para ele, tirou o punhal e fez um gesto para o assustar, de lado, mas acabou por espetar a faca nas costas e deixou de a ver porque desapareceu; referiu que fuma sete a oito charros de haxixe por dia; Sopesado o depoimento das testemunhas: CC, esclareceu que cerca da meia noite ele, o ofendido e outro amigo estavam a sair do restaurante e dirigiam-se para o parque de estacionamento onde tinham a viatura e cruzaram-se com três pessoas, que vinham em sentido oposto, e vinham ofegantes e quando estes se aproximaram fizeram uma piada e houve uma discussão, ele e o amigo fugiram e o BB inicialmente também fugiu, mas depois voltou e trazia uma faca espetada no corpo, na parte esquerda no flanco esquerdo, mais para a zona de trás; não sabe dizer quem tinha a faca, nem viu a mesma ser espetada; DD, estava em casa e veio à janela por causa de barulho e viu um rapaz a bater noutro e dizia “Chibaste-te todo”, o outro sangrava e os outros estavam assistir; o que estava a levar porrada conseguiu fugir; EE, já não recorda a data mas foram juntos a um restaurante, mas já não consegue reconhecer quem espetou a faca no ofendido; FF, acompanhava o AA, mas não percebeu o que disseram, nem o que se passou; GG, pai do arguido, esclareceu o Tribunal sobre a personalidade do arguido; HH, referiu que apareceram três pessoas que se meteram com eles e mandaram uma bocas, o AA foi atrás do estrangeiro, mas não viu o que o AA fez, nem se lembra de ter visto uma faca; foram lidas a suas declarações constantes de fls. 399 e ss do ponto 19 a 30; foram ainda ouvidas as declarações para memória futura prestadas pelo ofendido BB a fls. 201 onde descreveu com pormenor e credibilidade o que se passou; na análise critica da prova documental, nomeadamente: auto de noticia de fls. 2, fls. 25, 46 a 48; auto de apreensão de fls. 13, fls 16, fls. 23, fls. 26, 33, fls. 74 e 75, 122, 153; Auto de noticia de fls. 15; Auto de exame e avaliação de fls. 27, fls. 88; Auto de entrega de fls. 29; documentos clínicos de fls. 38 a 40, 64 a 65; relatório de diligencias iniciais de fls. 59 a 63; auto de diligência de fls. 72 e 73, fls. 115, 152, 191, 217, 294, 304; auto de visionamento de fls.127 a 130; auto pesquisa informática de fls. 185 a 190; auto busca e apreensão de fls. 297 a 300;- Autos de teste e pesagem de fls. 308 e 309; Exame pericial de fls. 471 e ss; certificado de registo criminal de fls. 503 e v; relatório social de fls. 511 e ss ; na prova pericial: relatório da perícia de avaliação do dano corporal de fls. 36 a 37 verso; Relatório de exame pericial de fls. 105 a 114, fls 131 a 139;- relatório de fls. 225 a 229; relatório de fls. 312 a 328.; relatório de fls. 437; prova por reconhecimento presencial: auto de fls. 385 a 387 (391 a 398). O facto julgado não provado resultou da circunstância de na discussão da causa não se ter produzido prova bastante acerca do mesmo.

Com efeito da confissão por parte do arguido que referiu ter espetado a faca no ofendido, embora não tenha assumido que o fez propositadamente, mas apenas e tão só para assustar, certo é que a tentativa de amedrontar o Davide não correu bem e este ficou com um punhal espetado nas costas e não fora a pronta intervenção dos colegas que o levaram de imediato para o hospital, teria corrido muito pior; a posição do arguido conjugada com a explicação coerente e pormenorizada feita pelo ofendido e a compatibilidade existente com a prova pericial, no Tribunal não ficou duvidas de que os factos ocorreram conforme descritos na acusação; o mesmo se diga relativamente ao crime de tráfico de menor gravidade pelo qual o arguido também vem acusado.


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9. Direito

9.1. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP).

Os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça restringem-se exclusivamente ao reexame da matéria de direito (art. 434.º do CPP), sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º

Analisadas as conclusões do recurso apresentado pelo arguido para o STJ, verifica-se que o mesmo discorda do agravamento da pena individual relativa ao crime de homicídio tentado e da pena única que lhe foram aplicadas no acórdão do TRC sob recurso, invocando para tanto que teria sido violado o princípio da reformatio in pejus previsto no art. 409.º do CPP e, além disso, sustentando que as penas adequadas foram as impostas pela 1ª instância, que ponderou adequadamente os factos apurados e as agravantes e atenuantes apuradas, de acordo com os critérios legais, sendo a pena única de 5 anos de prisão suspensa por igual período com regime de prova mais do que suficiente para incutir no mesmo o dever de reinserção social e de alteração da sua vida quotidiana, não sendo necessário o agravamento da pena, visto que é primário, confessou os factos, interiorizou o desvalor da sua conduta, é jovem, sendo regular a sua inserção familiar, mantendo-se abstinente do consumo de estupefacientes e tendo uma postura cooperante com os serviços que acompanharam o cumprimento da medida de coação que lhe foi imposta.

Vejamos então.

9.2. Comecemos por referir que, não assiste razão ao recorrente quando invoca que teria sido violado o princípio da reformatio in pejus previsto no art. 409.º do CPP, uma vez que o recurso para a Relação da decisão final foi interposto pelo Ministério Público, o qual pediu a agravação da pena aplicada pelo homicídio tentado cometido pelo arguido, bem como a agravação da pena única, o que significa que esse recurso não foi interposto no interesse do arguido.

Podia assim a Relação, perante o recurso do Ministério Público, proceder à agravação das penas que fez, não existindo qualquer violação do disposto no art. 409.º, n.º 1, do CPP, nem do princípio da reformatio in pejus.

Diferente seria se a Relação tivesse agravado as penas, sem haver recurso do Ministério Público a pedir essa agravação, o que não foi o caso.

Irrelevante para esta questão que a Relação tivesse concordado com a qualificação jurídico-penal dos factos dados como provados constante da decisão da 1ª instância.

Assim, improcede essa argumentação do recorrente.

9.2. Coloca, também, o recorrente a questão da medida das penas que foram agravadas pela Relação (isto é, da pena imposta pelo crime de homicídio tentado e da pena única) não terem ponderado os factos apurados, bem como as agravantes e atenuantes que deles decorriam e que deveriam ser repostas as aplicadas pela 1ª instância (alegando a dado passo que concorda com a interpretação feita pela 1ª instância de afastar o regime especial previsto no DL n.º 401/82, de 23.09, mas depois mais à frente, referindo que foi bem aplicada a atenuação especial).

Vejamos então.

Quanto às questões suscitadas no recurso do Ministério Público, concretamente relativamente à medida da pena fixada para o crime de homicídio tentado e quanto à pena única consignou-se o seguinte na decisão da Relação sob recurso:

Importa desde já notar que a função do tribunal superior na fiscalização da medida da pena não é tanto a de verificar se o seu quantum é exactamente o correcto, mas se a concretização está fundamentada e se a pena encontrada se contém dentro da faixa penal que o próprio tribunal de recurso utilizaria.

Sendo pacífica a matéria de facto que o tribunal a quo teve como assente, também não foi questionado o enquadramento jurídico-penal assumido no acórdão recorrido, que se traduziu na condenação do arguido pela autoria material, de um crime de homicídio na forma tentada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artºs. 22º, 23º, 73º e 131º, todos do Código Penal, na pena de quatro anos e seis meses de prisão e ainda pela autoria material de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º al. a) ex vi artº 21º e tabela anexa ao Decreto Lei nº 15/93 de 22 de Janeiro, na pena de dezoito meses de prisão.

Vejamos, pois, à luz das normas aplicáveis e dos ensinamentos da doutrina e da jurisprudência, como se desenvolve o raciocínio tendente à determinação da medida concreta da pena, tendo presente que só a pena concernente ao crime de homicídio tentado foi questionada.

A moldura penal a considerar é a prevista para o crime consumado especialmente atenuada (art. 23º, nº 2, do Código Penal), donde resulta que sendo o tipo-base punível com a pena de 8 a 16 anos de prisão, há que considerar uma redução de um terço no limite máximo da pena e de um quinto no limite mínimo [art. 73º, nº 1, als. a) e b), do Código Penal], fixando-se assim uma moldura de prisão de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses.

A concretização da pena parte do critério geral do art. 71º, tomando como referência o fundamento legitimador da pena, que reside na prevenção. São, na verdade, finalidades exclusivamente preventivas que subjazem à aplicação das penas e das medidas de segurança, cabendo à culpa o papel de pressuposto da pena e de limite máximo da sua medida.

Em consonância com essa opção, dispõe o art. 40º, nº 1, que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

Assim, a concretização da pena dentro da respectiva moldura faz-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, com ponderação de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, todavia depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente, o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram, as condições pessoais do agente e a sua situação económica, a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando destinada a reparar as consequências do crime, e a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

As exigências de prevenção afirmam-se na dupla vertente da prevenção geral e da prevenção especial, assumindo cada uma delas uma específica função:

– A prevenção geral dirige-se à generalidade dos membros da comunidade jurídica e desdobra-se numa vertente positiva (prevenção geral positiva, de integração ou de socialização 1), através da qual se determina o limite mínimo da pena admissível para o caso concreto, assente na necessidade de garantir a manutenção da confiança da comunidade na validade da norma (a sua eficácia para salvaguardar os bens jurídicos que tutela); e numa vertente negativa ou de dissuasão de potenciais infractores; finalidades cuja prossecução exige um mínimo de punição 2, variável em função do contexto e do momento histórico, capaz de satisfazer aquela dupla função.

– Por seu turno, a prevenção especial acumula uma função positiva de ressocialização do delinquente a uma outra, negativa, de dissuasão da prática de futuros crimes, operando na graduação da pena entre o mínimo reclamado pelas exigências de prevenção geral e o máximo consentido pela culpa (cfr. arts. 40º, nº 2 e 71º, nº 1) como factor de determinação do quantum 3 de pena necessário à ressocialização (entendida como adesão do agente aos valores comunitariamente postergados) e à prevenção da reincidência (que se atinge através duma pena doseada em moldes de representar um sacrifício de tal forma penoso que o agente não quererá repetir).

Na determinação das penas parcelares que impôs ao arguido, após breve enquadramento do seu regime jurídico, o tribunal recorrido consignou o seguinte:

(…) ponderado o grau de culpa do arguido ( elevado ), ponderadas as exigências de prevenção - existindo importantes exigências a nível da prevenção geral, e , bem assim, a nível da prevenção especial, bem como as circunstâncias que depõem a favor e contra o arguido a idade / condição sócio-económica, rudimentar grau de escolaridade, o grau (elevado) de ilicitude, o grau (importante) de gravidade das consequências dos factos praticados, a intensidade do dolo, na modalidade de dolo directo, a primodelinquência do arguido, a sua juventude, a regular inserção familiar, a assunção parcial dos factos, a manutenção da abstinência do consumo de estupefacientes e a postura cooperante com os serviços que acompanham o cumprimento da medida de coação que lhe foi imposta ao arguido afigura-se-nos adequado aos factos e à personalidade do agente a aplicação (…).

Estes considerandos ficaram muito aquém da valoração que o caso concreto reclamava.

Sendo a culpa a “razão de ser” da pena 4, mas também o factor determinante do seu limite, haverá que estabelecê-la antes da ponderação das razões de prevenção, que só se colocam depois da sua determinação.

A culpa consiste essencialmente num juízo (ético-jurídico) de censura dum facto típico por referência à pessoa do seu agente 5 por não ter actuado de forma diversa, podendo e devendo tê-lo feito. O grau de culpa do agente, que determina o limite máximo e intransponível da pena, avalia-se pela ponderação de todos os elementos que na culpa se projectam. Desde logo, avulta o dolo, que no caso revestiu a modalidade de dolo directo.

O dolo decompõe-se em três elementos distintos: um elemento intelectual; um elemento volitivo; e um elemento emocional. O elemento intelectual traduz o conhecimento dos elementos objectivos do tipo; o elemento volitivo consubstancia-se na vontade de realização do tipo objectivo, traduzindo o “querer” praticar determinado facto ou ver produzido um determinado resultado; e por fim, o elemento emocional consiste na atitude interior do agente e revela-se na sua consciência do desvalor do facto e na opção, não obstante, pela conduta 6.

Se o facto de o arguido se passear na rua trazendo um punhal à cintura, como na ocasião se verificou, já diz muito sobre a sua personalidade, a circunstância de o ter espetado nas costas da vítima de tal forma que ficou cravado no corpo desta, tendo sido necessário submetê-la a uma intervenção cirúrgica para o remover, revela a fortíssima intensidade do dolo com que o arguido actuou.

Assume ainda carácter predominante o grau de ilicitude do facto 7, que encontra eco na gravidade objectiva da conduta enquanto reflexo do modo de actuação do agente nos termos provados (não havendo que valorar autonomamente a circunstância de aquela actuação ter sido em tudo apta para provocar a morte da vítima, que apenas não sobreveio por circunstâncias alheias à sua vontade; traduzindo os elementos do tipo, está já repercutida na moldura legal).

As razões que obstaram à morte da vítima – o facto de esta ter sido de imediato conduzida para meio hospitalar e lhe terem sido prestados os cuidados adequados, como elucidativamente resulta do relatório médico-legal constante dos autos – em nada ficou a dever-se a qualquer actuação do arguido para minorar as consequências da sua acção, sendo este totalmente alheio a essas medidas de auxílio.

Relativamente a um crime que admite os três tipos de actuação dolosa previstos no art. 14º do Código Penal, como sucede com o crime de homicídio tentado, num plano meramente ideal poderemos admitir que a moldura legal se desdobra em três faixas penais tendencialmente correspondentes a cada uma daquelas modalidades do dolo, adequando-se a faixa inferior ao dolo eventual, a faixa central ao dolo necessário e a faixa mais elevada ao dolo directo; raciocínio que não sendo determinante para a concretização da pena por ser anterior à consideração das exigências de prevenção, permite, no entanto, o estabelecimento de um referencial na aproximação ao limite máximo e intransponível da pena, que é precisamente o limite consentido pela culpa.

Uma culpa caracterizada nos moldes que acima se apontaram é, pois, compatível com uma pena situada no terço superior da moldura penal. Vista a configuração dos factos, a fortíssima intensidade do dolo e o elevadissimo grau de censurabilidade da conduta, haverá que situar a medida na culpa na zona central desta última faixa penal.

Na avaliação das exigências de prevenção, atendendo em primeira linha à prevenção geral nas duas modalidades acima referidas (de integração e de dissuasão), não há como contornar os dados estatísticos correspondentes à criminalidade violenta e grave. O Relatório Anual de Segurança Interna referente ao Ano de 2022 – o mais recente disponível – permite verificar que após vários anos de tendência de descida deste tipo de criminalidade, se assiste agora a um considerável recrudescimento, cifrando-se o aumento da criminalidade participada enquadrável nessa espécie em 14,4%, suplantando o Distrito de ..., por larga margem, a média nacional, ao apresentar um aumento da criminalidade violenta na ordem dos 20,3% relativamente ao ano anterior. ..., local onde ocorreram os factos, surge nesse Relatório assinalado com semáforo vermelho, ao exibir 880 participações criminais (criminalidade geral) no ano de 2022. Tudo isto permite afirmar fundadamente que as exigências de prevenção geral são elevadíssimas, reclamando do sistema de justiça uma intervenção que restabeleça a confiança comunitária na validade e eficácia das normas penais e aprimore o seu carácter dissuasor, ajustando a concretização das penas às exigências do particular momento histórico vivido. Aponta esta conjugação de circunstâncias para um mínimo de pena exigível a situar-se acima da linha de separação entre o primeiro e o segundo terços da moldura penal, sob pena de postergação das finalidades assinaladas à prevenção geral nas duas vertentes que identificámos.

Impõe-se, de seguida, a apreciação das razões de prevenção especial, sabido que são estas que vão, em última análise e dentro da moldura da prevenção geral, com o limite fornecido pela culpa, determinar a medida da pena.

A prevenção especial só entra verdadeiramente em cena se o agente se encontrar efectivamente carecido de socialização 8. Assentando nas necessidades de socialização do agente, impõe-se a avaliação da sua personalidade tal como revelada no cometimento do crime, nos ilícitos anteriormente praticados, se os houver, e ainda nos demais elementos que, resultando do processo, permitam compreender a essência do seu modo de agir.

No caso, para além dos traços de personalidade evidenciados pela frieza e brutalidade da sua actuação, respiga-se da matéria de facto que embora nada conste do seu certificado de registo criminal teve contactos anteriores com o sistema de justiça, dois deles ainda em menor, relacionados com ofensas à integridade física simples no âmbito da interacção com os seus pares; e ulteriormente, um processo penal relacionado com consumo de estupefacientes. O próprio arguido admite ter um carácter impulsivo e a progenitora dá nota da sua permeabilidade aos grupos de pares.

Intercorrem, por fim, todas as circunstâncias ainda não consideradas e que deponham a favor do agente ou contra ele.

A ausência de antecedentes criminais é vector que se desvanece quando o arguido atenta contra a vida humana através duma acção leviana e sem que intercorra qualquer razão que permita minimamente compreender a génese do sucedido, tanto quanto é certo que as explicações que prestou em audiência não são minimamente convincentes. De resto, a sua confissão, meramente parcial, não assume especial relevo nem traduz, sequer, uma plena e contricta assunção dos factos, mas apenas a tentativa de exculpação possível.

A regular inserção familiar, sendo positiva, foi, no entanto, insuficiente para que o arguido interiorizasse e assumisse valores de respeito pela integridade física e pela vida dos seus semelhantes. O fenómeno aditivo, presente no arguido, também não o favorece, pese embora o registo positivo da abstenção na fase de cumprimento da medida de coação a que esteve sujeito.

Por fim, a sua juventude não poderá deixar de ser favoravelmente sopesada na medida da pena.

Tudo visto, a pena pelo crime de homicídio tentado deverá ser concretizada em 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.

O tribunal recorrido rejeitou a aplicação do regime especial para jovens delinquentes, pese embora o arguido, à data dos factos, contasse 20 anos de idade, podendo em abstracto beneficiar do regime previsto no DL nº 401/82, de 23 de Setembro.

É certo que o Código Penal de 1982 salvaguardou no art. 9º a aplicabilidade de normas fixadas em legislação especial aos maiores de 16 anos e menores de 21, intenção concretizada no citado DL n.º 401/82, cuja vigência se iniciou em simultâneo com o Código Penal e que com ele foi articulado 9. Gizado numa óptica de redução dos efeitos estigmatizantes e de salvaguarda da possibilidade de ressocialização do jovem delinquente 10, prevendo um regime (…) mais reeducador do que sancionador (…)11, esse diploma não afastou, no entanto, (…) a aplicação – como última ratio – da pena de prisão aos imputáveis maiores de 16 anos, quando isso se torne necessário, para uma adequada e firma defesa da sociedade e prevenção da criminalidade, e esse será o caso de a pena aplicada ser a de prisão superior a dois anos 12.

A questão da atenuação especial não se coloca relativamente à pena única, mas apenas e tão-só relativamente a cada uma das penas parcelares 13.

Este regime não é de aplicação automática aos jovens delinquentes com idade compreendida entre 16 e 21 anos, sendo à luz dos factos que justificam a aplicação das penas que haverá que indagar se o menor ou jovem adulto deve beneficiar da especial atenuação da pena, nos termos do art. 4º do DL nº 401/82. Essa disposição abre caminho ao tribunal para se decidir por uma especial atenuação da pena nos termos previstos no Código Penal (…) quando tiver sérias razões para crer que da atenuação resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado.

As sérias razões a que a lei se refere não poderão reconduzir-se a considerações de carácter genérico sobre as vantagens da atenuação especial ou relativas à abstracta repercussão da pena no processo de socialização do jovem condenado. Deverão ser necessariamente constatações reportadas aos factos concretamente verificados, às circunstâncias da prática do crime ou à personalidade, percurso de vida e/ou perspectivas de futuro do jovem delinquente. Só razões dessa natureza poderão justificar uma atenuação especial ao abrigo do regime de excepção previsto.

Ora, a matéria de facto fixada não permite descortinar argumentos que possam consubstanciar essas sérias razões, em termos de imporem uma atenuação especial da pena. O percurso pessoal do arguido foi marcado pelo precoce abandono dos estudos e adição ao consumo de estupefacientes, não lhe é conhecido um projeto de vida e revelou com a sua actuação uma personalidade violenta, pautada pelo completo desprezo pela vida dos seus semelhantes. Não se poderá assim referir quanto a ele uma vivência socialmente inserida, antes denotando significativas falhas ao nível da formação da sua personalidade. Acresce que os factos em análise se revestiram de elevadíssimo grau de ilicitude e, relembre-se, foram praticados com dolo directo, sendo merecedores de um muito severo juízo de censura por se terem traduzido num atentado contra a vida humana, bem jurídico supremo.

Como vem sustentando o STJ, em tais circunstâncias não é legítimo concluir pela existência de razões sérias para concluir que da atenuação especial da pena resultem vantagens para a reinserção social do jovem condenado, porquanto esse prognóstico radica “(…) no caso concreto, da personalidade do jovem, da sua conduta anterior e posterior ao crime, da natureza e do modo de execução do ilícito e dos seus motivos determinantes”, devendo a atenuação especial “(…) ser concretizada e quantificada de harmonia com o disposto nos artigos 72º e 73º do Código Penal (…)” 14.

É, pois, de acolher a rejeição da aplicação do regime especial para jovens, tal como o entendeu o tribunal recorrido, considerando-se inexistirem sérias razões que justifiquem a atenuação especial da pena relativamente a qualquer dos crimes cometidos.

Impõe-se, consequentemente, a reformulação do cúmulo jurídico de penas imposto pelo art. 71º, nº 1, do Código Penal.

Havendo, não obstante, que proceder ao cúmulo jurídico de duas penas e beneficiando uma delas do perdão concedido pelo art. 3º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023, de 02 de Agosto, impõe-se proceder de imediato em conformidade, visto ainda o disposto nos arts. 7º, nº 3 e 14º, do mesmo diploma.

A pena de 18 (dezoito) meses de prisão em que o arguido foi condenado pelo crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo artº 25º, al. a), do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, beneficia de 1 (um) ano de perdão, nos termos do art. 3º, nº 1, da Lei nº 38-A/2023, ficando assim reduzida a 6 (seis) meses de prisão.

Apenas este remanescente deverá ser cumulado com a pena imposta pelo crime de homicídio qualificado15 na forma tentada.

O ponto de partida para a determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares é, como estatui o art. 77º, nº 2, do Código Penal, uma moldura penal cujo limite máximo resulta da soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, sem que possa ultrapassar 25 anos de prisão ou 900 dias de multa, consoante a natureza das penas, e cujo limite mínimo corresponde à mais elevada das penas parcelares.

No caso vertente haverá que considerar uma moldura de cúmulo de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses a 6 (seis) anos de prisão.

O critério previsto no art. 77º, nº 1, parte final, do Código Penal, aponta para a concretização da medida da pena única através da ponderação conjunta dos factos praticados e da personalidade do agente. Os factos que há que ponderar aqui são aqueles que constam da fundamentação fáctica enumerada supra, para onde remetemos, visando a referência à personalidade do agente a ponderação da sua personalidade tal como ficou expressa nos factos que consubstanciam os elementos objectivos e subjectivos dos crimes cometidos, avaliados agora numa perspectiva de conjunto, visando aferir se o acervo fáctico revela uma mera pluriocasionalidade ou se evidencia já uma tendência criminosa, com apreciação ainda dessa imagem global do facto criminoso para a determinação da gravidade do facto global, que permitirá encontrar a pena única ajustada.

Na determinação da pena conjunta, os critérios gerais da fixação da pena indicados no art. 71º - culpa e prevenção - funcionam apenas como referência da pena única, na medida em que tendo já sido valorados na determinação concreta de cada uma das penas parcelares não poderão novamente ser valorados, sob pena de violação da proibição de dupla valoração, salvo se a valoração relativa ao conjunto dos factos revestir, face à ponderação individualizada nos crimes parcelares, uma coloração essencialmente diversa, evidenciando que em rigor não traduz a ponderação do mesmo factor já anteriormente considerado.

Analisando a matéria de facto assente numa perspectiva de conjunto, de modo a obter uma imagem global do facto, oferece-se como ajustada uma pena única de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão.

Fica prejudicada, consequentemente, a apreciação da eventual suspensão da execução da pena, por a pena concretamente aplicada a não consentir.

Pois bem.

Está em discussão a pena individual efetiva do crime de homicídio tentado em que o recorrente/arguido foi condenado na Relação, bem como, a pena única efetiva que lhe foi imposta, as quais considera penosas e injustas, pretendendo que lhe sejam antes aplicadas as da 1ª instância, por serem as adequadas, concordando com a não aplicação do regime penal especial para jovens (DL 401/82).

Genérica e resumidamente diremos que, as finalidades da pena são, nos termos do artigo 40.º do Código Penal, a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade16.

Na determinação da pena, o juiz começa por determinar a moldura penal abstrata e, dentro dessa moldura, determina depois a medida concreta da pena que vai aplicar, para, de seguida, escolher a espécie da pena que efetivamente deve ser cumprida 17.

Nos termos do artigo 71.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, a determinação da medida da pena, dentro dos limites fixados na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, atendendo-se, em cada caso concreto, a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a seu favor ou contra ele.

Diz Jorge de Figueiredo Dias 18, que “só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. (...) Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de reintegração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida.”

Mais à frente 19, esclarece que “culpa e prevenção são os dois termos do binómio com o auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena em sentido estrito”.

Acrescenta, também, o mesmo Autor 20 que, “tomando como base a ideia de prevenção geral positiva como fundamento de aplicação da pena, a institucionalidade desta reflecte-se ainda na capacidade para abranger, sem contradição, o essencial do pensamento da prevenção especial, maxime da prevenção especial de socialização. Esta (…) não mais pode conceber-se como socialização «forçada», mas tem de surgir como dever estadual de proporcionar ao delinquente as melhores condições possíveis para alcançar voluntariamente a sua própria socialização (ou a sua própria metanoia); o que, de resto, supõe que seja feito o possível para que a pena seja «aceite» pelo seu destinatário - o que, por seu turno, só será viável se a pena for uma pena suportada pela culpa pessoal e, nesta acepção, uma pena «justa». (…) A pena orientada pela prevenção geral positiva, se tem como máximo possível o limite determinado pela culpa, tem como mínimo possível o limite comunitariamente indispensável de tutela da ordem jurídica. É dentro destes limites que podem e devem actuar pontos de vista de prevenção especial - nomeadamente de prevenção especial de socialização - os quais, deste modo, acabarão por fornecer, em último termo, a medida da pena. (…) E é ainda, em último termo, uma certa concepção sobre a ordem de legitimação e a função da intervenção penal que torna tudo isto possível: parte-se da função de tutela de bens jurídicos; atinge-se uma pena cuja aplicação é feita em nome da estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada; limita-se em seguida esta função pela culpa pessoal do agente; para se procurar atingir a socialização do delinquente como forma de excelência de realizar eficazmente a protecção dos bens jurídicos”.

Depois, sendo aplicada pena de prisão, consoante o seu quantum (caso seja aplicada pena de prisão até 5 anos) impõe-se ao tribunal determinar se é caso de a substituir por uma pena não detentiva ou por uma pena detentiva prevista na lei.

Analisando a decisão da Relação sob recurso no que respeita à fundamentação da pena de 5 anos e 6 meses de prisão aplicada ao arguido, pelo crime de homicídio tentado cometido, verificamos que, no essencial, estamos de acordo com as considerações feitas, quando concluiu que não se verificava o condicionalismo previsto no art. 4.º do DL n.º 401/82 (funcionando a jovem idade do arguido como atenuante geral) e, bem assim, com as considerações que teceu relativamente à determinação da medida concreta dessa pena individual aplicada (que agravou em relação à aplicada na 1ª instância).

Assim.

Como é claro apenas podem ser atendidos os factos dados como provados e o que deles se pode deduzir em termos objetivos.

Algumas das considerações que o recorrente faz assentam em factos que não foram dados como provados, como sucede, por exemplo, quando apela a meios de prova (v.g. declarações do arguido) e, como tal, não podem ser atendidos.

Neste caso em apreciação, havia que considerar, que o arguido agiu com dolo direto e com consciência da ilicitude da sua conduta.

Essa culpa e dolo são intensos, tendo presente a ação concreta em questão nos autos, por si praticada, como foi destacado pela Relação.

A ilicitude dos factos apurados é elevada, atento o seu modo de atuação, impondo-se que agisse de outro modo com o ofendido, tanto mais que não tinha motivos para essa sua atuação (nem havia motivos/razões que justificassem minimamente o seu modo de agir).

A forma como atuou é muito grave, revelando uma maior desatenção à advertência de conformação ao direito.

De ponderar igualmente as consequências da sua conduta, que assumiram elevada gravidade, como se vê pelas lesões sofridas pelo ofendido, dadas como provadas, e, o que é certo é que, da conduta do arguido não redundou a sua morte, dada a pronta assistência médica de que beneficiou, com o auxílio de terceiros.

São muito elevadas as exigências de prevenção geral (necessidade de restabelecer a confiança na validade da norma violada), tendo em atenção o bem jurídico violado (a vida) no crime de homicídio tentado cometido, que deve ser combatido com maior severidade, embora de forma proporcional à danosidade que causa e tendo em atenção as particulares circunstâncias do caso.

São também muito elevadas as razões de prevenção especial, atendendo ao que se apurou em relação às condições de vida do recorrente e personalidade desajustada aos valores sociais e à comunidade em que se insere, manifestando indiferença pelo bem jurídico violado (desprezo manifestado pelo bem supremo da vida humana, o que resulta da própria conduta que adotou, como foi bem explicado na decisão recorrida).

Pondera-se igualmente o seu comportamento anterior aos factos, sendo que o facto de não ter antecedentes criminais é o que se espera do cidadão comum, pelo que pouco relevo tem (apesar de no caso do arguido já teve contactos com o sistema de justiça, inclusive quando era menor, como foi destacado na decisão recorrida, o que mostra que desde cedo revelou uma personalidade desajustada), bem como o comportamento posterior (pelo menos enquanto esteve sujeito à medida de coação, mantendo-se abstinente do consumo de estupefacientes, o que é positivo, se os abandonar definitivamente).

Embora tendo como limite a medida da sua culpa, a necessidade de prevenir a prática de futuros crimes é essencial, sendo que o tipo de crime cometido, na forma tentada, ora em análise, revela bem as carências de socialização do recorrente e sua personalidade propensa ao crime que cometeu.

Dos factos dados como provados, mesmo considerando os relativos às suas condições de vida não resulta, nem pode extrair-se que, na altura em que cometeu o referido crime, estivesse a atravessar uma fase difícil da sua vida, uma vez que, então, tinha condições para levar uma vida conforme ao direito.

Ou seja, o facto de o arguido gozar de apoio familiar nos termos dados como provados em nada altera a apreciação feita pela Relação, tanto mais que essa situação já existia antes de cometer o crime aqui em apreço, não tendo constituído motivo para o levar a não cometer o crime em questão nos autos.

Além disso, as dificuldades pelas quais passou na fase de crescimento (tal como muitos outros cidadãos) não o impediam de ter escolhido uma vida conforme ao direito.

Ainda se atenderá à respetiva idade (nasceu em 12.04.2002), quer à data do cometimento do crime em análise (23.08.2022), quer ao tempo entretanto decorrido e, ao efeito previsível da pena sobre o seu comportamento futuro.

Ao contrário do que alega em sede de recurso, pelo que resulta do texto do acórdão recorrido, tendo em atenção a sua idade, crime cometido e posicionamento em relação ao crime cometido (não havendo sequer sinais exteriores de arrependimento ativo), verifica-se que, além de manifestar indiferença pelo bem jurídico violado (bem vida) aqui em apreciação, ainda não interiorizou o desvalor da conduta que praticou, não revelando sentido crítico.

A confissão efetuada foi parcial, não assumindo especial relevo, como bem refere a Relação.

Por outro lado, precisa de esforçar-se mais, para mudar o seu rumo de vida, designadamente, melhor refletindo sobre o seu percurso de vida, para adquirir consciência crítica, assumir os seus erros, esforçando-se por interiorizar os valores comunitários, assim se preparando/adaptando para levar uma vida conforme ao direito, sendo conveniente e útil que vá igualmente ponderando sobre as consequências dos seus atos.

No caso dos autos, a natureza e modo de execução do crime aqui em questão (homicídio tentado), cometido nas circunstâncias dadas como provadas, é grave, causador de alarme e intranquilidade social, que integra o conceito de “criminalidade especialmente violenta” (art. 1.º, al. l) do CPP), tendo revelado uma personalidade violenta e avessa ao direito.

A personalidade do arguido também não deixa de ser reveladora de uma forma de estar na vida, que precisa de se autodisciplinar, pois, não se compreende, como é que adota uma conduta tão grave como a descrita nos factos dados como provados, sendo certo que não se apurou qualquer facto que demonstre sinal de arrependimento ativo (o que revela também uma certa adequação aos factos).

A circunstância do arguido ser um jovem de 20 anos de idade à data dos factos é de pouco relevo, mesmo considerando que é primário, tanto mais que para além de já ter contactos com o sistema de justiça (mesmo quando era menor), o certo é que o mesmo reconheceu que, por vezes, reage de forma impulsiva, o que mostra que precisa de se tornar mais responsável e mudar o seu rumo de vida.

O facto de a Relação não dar a mesma relevância que o arguido pretendia quanto às circunstâncias que se apuraram, não significa que tivesse sobrevalorizado a vertente punitiva em detrimento da vertente pedagógica.

O que se passou é que o arguido/recorrente parte de pressupostos errados (e, na medida em que remete para a decisão da 1ª instância, podemos afirmar que até já foram bem corrigidos pela Relação) e sobrevaloriza circunstâncias a seu favor indevidamente (alguns deles até de forma subjetiva), portanto, sem razão.

Com efeito, a Relação explicou bem, na decisão recorrida, a razão pela qual a fundamentação da 1ª instância não convencia e tinha de ser corrigida, nos moldes que indicou e que não merecem censura.

Também, considerando todas as circunstâncias apuradas, igualmente não transparece que estejamos perante qualquer caso especial que justifique uma atenuação especial da pena (cf. art. 72.º do CP) em relação ao recorrente.

Como ensina Jorge de Figueiredo Dias, «as situações a que se referem as diversas alíneas do nº 2 não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ser relacionadas com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena»21.

E, não é esse o caso dos autos (sendo de afastar qualquer atenuação especial da pena), como facilmente se alcança das considerações acima efetuadas, tendo presente os factos dados como provados.

Assim, tudo avaliado, olhando aos factos apurados e tendo presente o limite máximo consentido pelo grau de culpa do arguido/recorrente, bem como aos princípios político-criminais da necessidade e da proporcionalidade, julga-se adequada e ajustada a pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão aplicada pela Relação.

Na perspetiva do direito penal preventivo, essa pena de prisão efetiva, mostra-se adequada, equilibrada e proporcionada em relação à elevada gravidade dos factos cometidos em apreciação, satisfazendo as finalidades das penas, tendo em atenção os critérios previstos nos arts. 40.º e 71.º do CP, que foram observados, ao contrário do que alega o recorrente.

Aplicar pena inferior a essa (como pretendido pelo recorrente) pelo crime ora em apreciação, era desajustado perante as gravosas circunstâncias do caso concreto e comprometia irremediavelmente a crença da comunidade na validade da norma incriminadora violada, não sendo sequer comunitariamente suportável.

Quanto à pena única, foi calculada no âmbito da moldura abstrata do concurso indicada de 5 anos e 6 meses de prisão e 6 anos de prisão.

E, nesse âmbito, não se pode desconsiderar os factos no conjunto, sua conexão, período temporal (crimes cometidos em concurso, respetivamente em 23.08.2022 o de homicídio tentado e em 31.01.2023 o de tráfico de estupefacientes de menor gravidade), diferente grau de gravidade considerando a sua natureza e dos bens jurídicos violados (incluindo de natureza pessoal, o que para uma pessoa da idade do recorrente, acentua essa gravidade e realça a sua indiferença para levar uma vida conforme ao direito, bem como desprezo pelas regras e valores subjacentes ao ordenamento jurídico), a sua idade e a sua personalidade (avessa ao direito, atento o circunstancialismo fáctico global apurado), que se mostra adequada aos factos cometidos, revelando tendência para a prática dos tipos de ilícitos criminais cometidos, o que tudo torna mais elevada as exigências de prevenção geral e especial relativamente ao ilícito global.

Considerando as suas carências de socialização é de atender ao efeito previsível da pena única a aplicar sobre o seu comportamento futuro, a qual não deve ser impeditiva da sua ressocialização, quando chegar o momento próprio, sendo conveniente e útil que vá interiorizando o desvalor das condutas que praticou, apure o sentido crítico, reflita sobre as consequências dos seus atos sobre as outras pessoas e continue a preparar-se para adotar uma postura socialmente aceite.

Na perspetiva do direito penal preventivo, julga-se na medida justa, sendo adequada e proporcionada, a pena única imposta pela Relação de 5 (cinco) anos e 8 (oito) meses de prisão, por não ultrapassar a medida da sua culpa - que é grave considerando os respetivos factos no conjunto e a sua personalidade, à luz das considerações feitas - assim contribuindo para a sua futura reintegração social e satisfazendo as finalidades das penas.

Improcede, pois, a argumentação do recorrente nesta matéria, sendo irrelevante o apelo que faz à argumentação utilizada pela 1ª instância.

Em conclusão, o tribunal recorrido valorou todas as circunstâncias favoráveis ao arguido, não havendo motivo para qualquer intervenção corretiva por este STJ.

Assim, improcede o recurso do arguido, sendo certo que não foram violados os princípios e as disposições legais respetivas por ele invocadas.


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III - Decisão

Pelo exposto, acordam nesta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC`s.


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Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo depois assinado pela própria e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 31.10.2024

Maria do Carmo Silva Dias (Relatora)

José Carreto (Adjunto)

José Luís Lopes da Mota (Adjunto)

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1. - Cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, págs. 110-111.

2. - Sobre o tema, cf. Taipa de Carvalho, Direito Penal - Parte Geral, págs 63-69.

3. - Sobre a relação da prevenção especial com o quantum da pena, cf. Anabela Miranda Rodigues, «O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Pena Privativa de Liberdade», in Problemas Fundamentais de Direito Penal - Homenagem a Claus Roxin, pág. 206.

4. - Acórdão do STJ, de 18/05/2011, Proc. nº 24/10.0PAMTJ.L1.S1, relatado por Santos Cabral.

5. - Para utilizar a expressão de Taipa de Carvalho, trata-se de uma “atitude ético-pessoal de oposição ou de indiferença perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta ilícita” – Direito Penal - Parte Geral, pág. 466.

6. - Sobre o tema, Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, págs. 348 e ss.

7. - Como observa Cavaleiro de Ferreira (Lições de Direito Penal, Tomo I, págs. 66 e ss.) a ilicitude penal desdobra-se em dois juízos ou qualificações: de ilicitude objectiva e de culpa ou culpabilidade, que correspondem à função valorativa e à função imperativa da norma jurídica. O primeiro, é indispensável para a existência do crime e prende-se com a tipicidade do facto. Já o segundo, respeita à sua quantidade ou gravidade. Ao aludir ao “grau de ilicitude”, o art. 71º, nº 2, al. a) do Código Penal tem em vista o último daqueles juízos, pois só esse admite quantificação.

8. - Figueiredo Dias, Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, págs. 81 ss.

9. - Maia Gonçalves, Código Penal Anotado, anot ao art. 9º.

10. - Veja-se o ponto I – 6 do Preâmbulo do Código Penal de 1982.

11. - Preâmbulo do citado Decreto-Lei nº 401/82.

12. - Idem

13. - Veja-se o Ac. do STJ de 06/03/2014, proc. nº 352/10.4PEOER.S1, disponível para consulta em www.dgsi.pt/JSTJ

14. - Crf. o Ac. do STJ de 24/10/2002, proc. nº 02P3157, do qual se transcreveu o texto em itálico; e ainda o Ac. do STJ, de 18/09/2013, proc, nº 62/12.8PJOER.S1, ambos disponíveis para consulta em www.dgsi.pt/JSTJ

15. Lapso de escrita, uma vez que é homicídio simples tentado.

16. Anabela Rodrigues, «O modelo da prevenção na determinação da medida concreta da pena», in RPCC ano 12º, fasc. 2º (Abril-Junho de 2002), 155, refere que o art. 40.º CP condensa “em três proposições fundamentais, o programa político-criminal - a de que o direito penal é um direito de protecção de bens jurídicos; de que a culpa é tão só um limite da pena, mas não seu fundamento; e a de que a socialização é a finalidade de aplicação da pena”.

17. Neste sentido, Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, Editorial Notícias, 1993, p.198.

18. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 72.

19. Jorge de Figueiredo Dias, ob. cit., p. 214.

20. Jorge de Figueiredo Dias, "Sobre o estado actual da doutrina do crime”, RPCC, ano 1º, fasc. 1º (Janeiro-Março de 1991), p. 29.

21. Jorge de Figueiredo Dias, Direito Penal Português, Parte geral II, As consequências jurídicas do crime, p. 302.