Decisão Texto Integral: |
No âmbito do processo comum, com intervenção de tribunal colectivo, n.º 427/08.0TBSTB, da Vara de Competência Mista de Setúbal, foi submetido a julgamento o arguido AA, também conhecido por AA e AA, filho de BB e CC, natural de Cosntanta, Roménia, nascido a 1 de Janeiro de 1980, casado, sem profissão conhecida, sem residência fixa em território nacional, actualmente preso preventivamente, à ordem dos presentes autos.
Realizado o julgamento, por acórdão de 12 de Março de 2009, constante de fls. 2874 a 2950, do 10.º volume, foi o arguido:
a) Absolvido quanto ao crime de dano simples, p. e p. artigo 212º nº 1 do Código Penal (na viatura Ford Fiesta, com a matrícula …).
b) Condenado, pela prática, em co-autoria material e em concurso efectivo de:
1- Um crime de homicídio qualificado na forma consumada, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas g) e i), do Código Penal, (na pessoa de DD), na pena parcelar de 16 (dezasseis) anos de prisão;
2- Um crime de homicídio qualificado na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.º 1 e 2, alíneas g) e i), 22.º, n.º 1 e n.º 2, alínea b), 23.º, n.º 1 e 2, todos do Código Penal (na pessoa de EE), na pena parcelar de 5 (cinco) anos e 4 (quatro) meses de prisão;
3 - Um crime de roubo qualificado, p. e p. pelos artigos 210.º, n.º 1 e 2 alínea b), por referência ao artigo 204.º, n.º 1 e n.º 2, alínea g), ambos do Código Penal, na T..., na pena parcelar de 4 anos e 6 meses de prisão;
4 - Um crime de roubo qualificado, p. e p. pelos artigos 210.º, n.º 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204.º, n.º 1 e n.º 2, alínea g), ambos do Código Penal, praticado na “O... P...”, na pena parcelar de 4 anos e 6 meses de prisão;
5 - Um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º, do Código Penal, praticado no Ecomarché, na pena parcelar de 14 meses de prisão;
- Um crime de furto simples, p. e p. pelo artigo 203.º, do Código Penal, da viatura Renault Clio, na pena parcelar de 14 meses de prisão;
6 - Dois crimes de furto de uso de veículo, p. e p. pelo artigo 208.º, n.º 1, do Código Penal, das viaturas Ford Fiesta, nas penas parcelares de 9 meses de prisão, por cada um;
7 - Um crime de dano simples, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal (dos objectos na portaria da I...), na pena parcelar de 16 meses de prisão.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido, ora recorrente, condenado na pena única de 20 anos de prisão.
Mais foi condenado a pagar, solidariamente, com FF, GG, HH, II e JJ (todos objecto de condenação então ainda não transitada, por acórdão proferido nos autos de PCC com o nº 427/08.0TBSTB de que os presentes foram objecto de separação), aos demandantes cíveis, a quantia global de € 67.500,00, a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal, a contar da primeira data (nestes ou naqueles outros autos) em que ocorra o trânsito em julgado.
Inconformado com tal decisão, o arguido recorreu, conforme fls. 3124 a 3193, para o Tribunal da Relação de Évora, que por acórdão de 22 de Outubro de 2009, constante de fls. 3242 a 3282, negou provimento ao recurso.
De novo irresignado, o arguido interpôs recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apresentando a motivação de fls. 3289 a 3343, e em original, de fls. 3350 a 3404, que remata com as seguintes conclusões (em transcrição):
1. Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido pela 2a Secção do TRE que, erroneamente, porque se limitou a confirmar o acórdão proferido pela Vara de Competência Mista de Setúbal, decidiu negar provimento ao recurso.
2. Não tendo este Tribunal apreciado convenientemente as questões, quer de facto quer de direito, apresentadas pelo recorrente, entende este que o Tribunal ad quem não pode deixar de as conhecer.
3. Assim, não existindo outra forma de as dar a conhecer, que não a sua reprodução, entendeu o recorrente, por não escolher melhores palavras para dizer o mesmo, repetir a motivação e as conclusões uma vez que o Tribunal a quo não respondeu.
4. Cumpre referir que a Vara Mista de Setúbal baseou a sua convicção, única e exclusivamente, nos depoimentos dos co-arguidos e testemunhas do ora recorrente.
5. Acresce que, perante a prova produzida em audiência de julgamento, a Vara Mista deveria ter considerado assentes factos que se afiguram de importância fundamental para a boa solução e compreensão da causa, mas que, ao invés, foram pura e simplesmente desconsiderados, não constando nem na lista de factos provados, nem dos factos não provados.
6. Salvo o melhor e, bem devido respeito, quer a Vara Mista quer o Tribunal a quo não examinaram convenientemente a matéria de facto - nos termos das alíneas a) a c) do n.º 3 do art. 412º do C.P.P., então invocada, nem procederam ao exame da matéria de direito (a que estavam obrigados).
7. Ao invés, a Vara Mista, aproveitando-se da decisão proferida (cfr. fls. 674 a 745) em 26 de Julho de 2007, ao que parece, ainda não transitada, onde foram condenados os co-arguidos testemunhas, decidiu, valorando a prova ali dada como assente e como não assente, para fundamentar a condenação do ora recorrente.
8. Ainda que, a defesa não tenha sido profícua na transmissão da matéria que impugnava, sempre cabia à Vara Mista e agora ao Tribunal a quo a sua avaliação integral.
9. Não andou bem a Vara Mista que limitou-se a condenar com base no depoimento dos co-arguidos. Não fez, no nosso entendimento, a correcta subsunção do direito aos factos considerados provados. Nem andou bem o Tribunal a quo que, alertado para tais vícios, não os conheceu. Se não vejamos,
10. Na verdade, reputa o recorrente o acórdão recorrido como injusto e insuficiente, à luz dos princípios básicos que regem o processo penal, de lógica e de bom senso e, sobretudo, à luz de critérios elementares de justiça material ou distributiva.
11. Na verdade, todas as questões e perplexidades invocadas na motivação (a qual se dá por reproduzida na integra) restam, ainda, sem solução no acórdão recorrido.
12. Ora, com tal decisão e com a sua fundamentação não pode o arguido conformar-se, no seu se e no seu como, porquanto a mesma não relevou, nem da prova produzida em julgamento, nem tem expressão do que resultou da investigação realizada, como se impõe inequivocamente no processo penal, enquanto corolário dos princípios que conferem legitimidade e legitimação a um Estado de Direito que se pretende democrático, nas vestes e com o monopólio do poder punitivo estadual.
13. O recorrente invoca a nulidade de todo o processado, no que a si concerne, impugna a matéria de facto considerada provada, evidencia o erro no enquadramento jurídico dos factos, invoca a violação do princípio in dúbio pro reo e insurge-se contra a medida da pena encontrada e penas parcelares.
14. Cumpre referir que, a Vara Mista baseou a sua convicção, única e exclusivamente, nos depoimentos dos co-arguidos do recorrente. Estes depoimentos não podiam ter o bastante valor probatório que o tribunal a quo lhe conferiu.
15. «A declaração do arguido é apenas fundamento da decisão proferida contra si; não deve ser valorada para fundamentar a decisão contra o co-arguido.» Vd. O Conhecimento Probatório do Co-Arguido, Bol. Fac. Direito, Stvdia Ivridica 42, pág. 149. (o sombreado é nosso) E, ainda,
16. “Segundo, a apreciação do valor probatório do depoimento do arguido feito contra um seu co-arguido no mesmo processo ou em processo conexo deve suscitar especiais cautelas ao julgador. Assim, viola o princípio da presunção da inocência a fundamentação exclusiva da condenação na valoração do depoimento do co-arguido. (acórdão do STJ, de 12.7.2006, in CJ, Acs. Do STJ, XIV, 2, 241, acórdão do STJ, de 7.12.2005, in CJ, Acs. Do STJ, XIII, 3, 227, e acórdão do TRL, de 31.5.2007, in CJ, XXXII, 3, 126, e na doutrina, MEDINA DE SEIÇA, 1999: 228, e GERMANO MARQUES DA SILVA, 2002:192)" (cfr. Comentário do CPP, P.P. Albuquerque, anot. 10 ao art.2 346°, 2ª ed., pág. 871). (o sombreado é nosso)
17. Não verificada a possibilidade de corroboração da versão apresentada pelos co-arguidos, o a Vara Mista devia abster-se de considerar como factos assentes e absolver o ora recorrente atenta a manifesta violação do princípio da presunção de inocência.
Por outro lado,
18. Com efeito, a técnica consagrada no acórdão recorrido consiste em remeter os concretos problemas levantados pelo recorrente e confrontá-los com a fundamentação do acórdão proferido (cfr. fls. 674 a 745) em 26 de Julho de 2007, ao que parece, ainda não transitado, num tipo de discurso que se traduz em generalizar, para evitar apreciar o caso concreto.
19. Lamentavelmente, errou na qualificação jurídica do crime de homicídio qualificado e homicídio qualificado na forma tentada, por manifesta inadequação, e na aplicação, ainda que dúvidas existissem (in dúbio pro reo).
20. Perante os factos que se deixam descritos e respectivo enquadramento jurídico, crê o recorrente que a existirem ou subsistirem dúvidas insupríveis na avaliação da prova, tais dúvidas não podem ser valoradas contra si.
21. E não se queira justificar o indefensável, imputando a prática do crime de homicídio a título de dolo eventual quando, nos autos nem sequer existe prova que o arguido, ora recorrente, tenha estado no local. Existem depoimentos dos co-arguidos, ora testemunhas, divergentes e imprecisos no particular.
22. O mesmo raciocínio se impõe no que concerne à condenação pela prática dos crimes de roubo qualificado, furto simples, furto de uso de veículo e dano simples uma vez que o suporte da condenação são os depoimentos dos co-arguidos, ora testemunhas, e o facto de possuir uma única impressão digital no veículo BMW que não foi impugnada atempadamente.
23. E o que impõe o princípio in dúbio pro reo, como contrapelo do princípio da oficiosidade que caracteriza o processo penal.
24. E sempre se diga, nunca é demais repetir, que: "1. Nos termos do n.º2 do artigo 32º da Constituição da República, «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa». Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948 (cuja autoridade interpretativa e integradora em matéria de direitos fundamentais está estabelecida no artigo 16º, n.º 2 da Constituição da República), estatui, no n.º 1 do seu artigo 11º, que «toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas». De igual modo, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1976, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida» (artigo 14º, n.º 2), e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada» (artigo 6º, n.º 2)." Vd. O Principio da Presunção de Inocência do Arguido no Actual Processo Penal Português, AAFDL, Rui Patrício, 2000.
25. Pelo exposto, o tribunal recorrido ao não ter aplicado o princípio in dúbio pro reo, não procedeu em conformidade com os princípios que norteiam a apreciação da prova, princípio este que assim deverá ser, caso se julgue necessário, aplicado por V. Ex.as na apreciação da matéria que motiva o presente recurso.
26. Cumpre, ainda, referir que do tipo subjectivo, avulta a falta insuprível do dolo, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, isto é, da realização do ilícito típico do crime de homicídio.
27. Da leitura atenta dos autos, da prova produzida em audiência e julgamento e pelo ora invocado na motivação (que damos por integralmente reproduzida), jamais se poderá considerar configurada a prática do crime de homicídio qualificado p.p. pelos artigos 131º e 132º n.º 1 e n.ºs 2 alíneas g) e i) do Código Penal. E, consequentemente, na sua forma tentada.
28. O recorrente, assim, reitera tudo o que já alegou em sede de motivação, porquanto no caso em apreço não se encontram preenchidos os pressupostos objectivos e, muito menos, os pressupostos subjectivos para que possa existir condenação por homicídio e homicídio qualificado.
29. Ora, dispõe o art. 374.º, n.° 2 do C.P.P. (Requisitos da Sentença), aplicável ex vi do art. 425.º, n.º 4 do CPP que: "2- Ao relatório segue-se a fundamentação (...), bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão. (...)"
30. Dispondo, por sua vez, o art. 379.º (Nulidade da Sentença) o seguinte: "1. É nula a sentença:
31. Que não contiver as menções referidas no art.° 374º, n.º 2 e 3, alínea b); c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento".
32. Ora, embora a lei não determine o grau ou a extensão da fundamentação, não basta dizer que sim ou que não; é preciso o tribunal debater-se perante cada questão especificamente colocada pelo recorrente e apresentar uma solução, especificando o porquê, em que se funda o seu sentido.
33. A fundamentação deve ser um desenvolvimento das premissas previamente enunciadas, para que, mais do que vencer, a decisão logre convencer e demonstrar-se perante os seus destinatários como plena, racional e motivada.
34. Parafraseando Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 293:
“É hoje entendimento generalizado que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. Por isso que todos os Códigos modernos exigem a fundamentação das decisões judiciais, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito”. (...)
35. “A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias: permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça (...)”.
36. Ora, da decisão recorrida, restam sem solução ou resposta questões importantíssimas que foram legal e oportunamente suscitadas, que o Tribunal a quo se limita, superficialmente, a resolver de forma redutora, remetendo para abstracções e generalidades, sem qualquer apoio nas concretas questões a apreciar.
37. Pelo que a não apreciação de tais questões conforma omissão de pronúncia, a implicar a declaração de invalidade do acórdão recorrido.
38. Deste modo, à imagem do acórdão condenatório proferido pela Vara Mista, padece o acórdão recorrido de nulidade por ausência de fundamentação e omissão de pronúncia quanto a questões de que o tribunal recorrido quo deveria obrigatoriamente ter tomado conhecimento, o que determina a declaração da sua invalidade e a sua substituição por outro que se pronuncie sobre todas as questões suscitadas, com respeito pelo correlativo dever de fundamentação que devem revestir todas as decisões judiciais.
39. A não pronúncia sobre tais questões além de geradora de nulidade, nos termos gerais do art.º 379º, n.º 1, al. c) do C.P.P. acima mencionados, consubstancia uma inconstitucionalidade, por violação dos arts. 32º n.º 1, 203º e 205º, n.º 1 da C.R.P., inconstitucionalidade essa que desde já se argui para todos os efeitos legais.
40. O recorrente entende que, o acórdão condenatório devia ser considerado nulo, devendo proceder-se a novo julgamento.
41. Sem conceder, e caso V. Ex.as não acolham o teor da presente motivação, cumpre analisar a medida da pena encontrada.
42. O recorrente não tem antecedentes criminais.
43. Com efeito, perante a prova produzida em audiência e julgamento e a que se transferiu para a motivação, tal pena afigura-se manifestamente injusta, desajustada e desproporcional.
44. «As penas serão tanto mais justas quanto maior for a liberdade que o soberano conserve aos indivíduos e quanto mais sagrada e mais inviolável for ao mesmo tempo a segurança de todos.» - C. Beccaria, "Dei delitti e delle pene", in Opere, II, Firenze, 1958, pág.49.
45. Preceitos violados: arts 70º, 71º, 72º, 131º, 132º do CP. e 125º, 127º, 374º n.º 2, 379º n.º 1 al. a) do CPP e, ainda, 13ª e 32º n.º 1 da C.R.P..
Pelo exposto, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente:
a) Declarar a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia e do dever de fundamentação;
b) Alterar a decisão sobre matéria de direito verificando a inexistência dos elementos subjectivo e objectivo do crime de homicídio qualificado e homicídio qualificado na forma tentada;
c) Ordenar a realização de novo julgamento;
d) Sindicar-se o princípio da “livre apreciação da prova”, enquanto princípio jurídico, de apreciação de prova, logo, matéria de direito, para concluir pela inadmissibilidade da prova por concatenação geral, aplicada no presente caso, por não derivar das regras da lógica e da experiência comum;
e) Não valorar de forma determinante os depoimentos dos co-arguidos ora testemunhas;
f) Aplicar-se o princípio in dúbio pro reo;
g) Por último, caso não se acolha a fundamentação expressa no presente recurso, diminuir substancialmente as penas parcelares e consequentemente a medida da pena aplicada ao arguido.
A Exma. Procuradora-Geral Adjunta no Tribunal da Relação de Évora apresentou resposta ao recurso, fazendo fls. 3407 a 3415, e concluindo:
1º - O douto acórdão recorrido, proferido pelo Tribunal da Relação, examinou e pronunciou-se sobre todas as questões suscitadas pelo recorrente no recurso, que este interpôs do acórdão da 1ª instância, pelo que não se verifica omissão de pronúncia geradora de nulidade do acórdão nos termos do art 379º n.º 1 al. c) do CPP.
2º - O douto acórdão recorrido encontra-se devidamente fundamentado, de acordo com o disposto no art. 374º do CPP, não havendo qualquer reparo a fazer-lhe.
3º - Atentos os critérios legais definidos na Lei ( art. 40º e 71º do CP ), e tendo em conta a matéria de facto apurada nas Instâncias, e ora já insindicável, a moldura abstracta das penas ao caso aplicáveis, e as circunstâncias agravantes referidas, designadamente as enunciadas em ambas as Instâncias, temos por certo que a medida concreta quer das penas parcelares, quer da pena única, se revelam a adequada.
4º - Não foi violada qualquer disposição legal.
5º - Deve, pois, ser negado provimento ao recurso interposto pelo arguido e confirmado inteiramente o douto acórdão recorrido.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 3416.
O Exmo. Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça emitiu douto parecer, constante de fls. 3424 a 3427, pronunciando-se no sentido da verificação de nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia sobre a impugnação da matéria de facto, nos termos seguintes (que se transcrevem, por constituírem um importante contributo, gizado na base de uma apreciação e análise certeira, que, descendo ao pormenor, não deixa obnibulada a questão central):
«O recorrente, tal como refere expressamente, no seu recurso para a Relação impugnou a matéria de facto, sindicou o acórdão recorrido na sua fundamentação, enquadramento jurídico, principio in dúbio pro reo e dosimetria da pena.
Porém, apesar disso, entende que aquele tribunal não reexaminou a matéria de facto - nos termos das alíneas a) a c) do n.° 3 do art. 412.° do CPP, nem procedeu ao reexame da matéria de direito (a que estava obrigado).
Limita-se depois, na sua motivação, à repetição da motivação apresentada no recurso para a 2ª instância, sem qualquer novidade relevante.
Ora, começando pela impugnação da matéria de facto, deve dizer-se que corresponde a realidade que o acórdão recorrido não conheceu dessa impugnação.
Fê-lo, porém, de forma deliberada por entender que o arguido/recorrente não tinha dado cumprimento ao disposto no art. 412.º, n.° 3, b) e n.° 4 do CPP, quer no corpo da motivação do recurso, quer na motivação, (sic) o que, no seu entender, precludia a hipótese legal de reapreciação da matéria de facto.
Competia ao recorrente alegar e demonstrar, agora, a incorrecção dessa afirmação do tribunal recorrido que, a acontecer, traduzir-se-ia numa omissão de pronúncia com a consequente nulidade do acórdão.
Não o fez, limitando-se para além da imputação da omissão a reproduzir a motivação anterior.
Deficiente então, como agora, a motivação do recorrente permite todavia concluir que aquele defende que o não conhecimento da matéria de facto por parte do tribunal da Relação não tem justificação.
Confrontadas as peças processuais relevantes poder-se-á dizer que o recorrente, na sua motivação, que peca seguramente por excesso e por defeito, na parte que agora interessa, discorda frontalmente de duas coisas: por um lado, o ter-se dado como provado que fazia parte do grupo de indivíduos que praticou os factos descritos no acórdão e, por outro, dentro dessa matéria de facto um sector mais restrito relacionado com os acontecimentos ocorridos na "I...", especificamente aqueles que dizem respeito aos tiros de caçadeira contra a porta de uma casa de banho e local visado.
No primeiro caso pretendia obter a absolvição; no segundo uma diferente qualificação jurídica.
É também óbvio que o recorrente não deu cumprimento a nenhum dos ónus a que estava obrigado - indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados; indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação; indicar que provas pretende que sejam renovadas com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação - nas conclusões do seu recurso.
Porém, com todos os defeitos de ordem formal que se lhe podem assacar o mesmo não se pode dizer da sua motivação, e se o recorrente entendia que não se tinha provado em audiência de julgamento a sua participação nos factos, pois nem sequer estaria, na sua versão, em Portugal, seguramente que não choca que pretendesse a exclusão da sua pessoa de toda a factualidade dada como assente na 1ª instância.
Dela também consta a indicação das provas que na sua óptica impunham decisão diversa, com expressa referência aos respectivos suportes (cd 1-deck 1, pista 2, etc).
Pode assim dizer-se que, no essencial, que a impugnação nos moldes em que foi realizada fornecia os elementos suficientes a delimitar os pontos concretos que pretendia ver reapreciados com identificação das provas e respectivos suportes, tudo de molde a permitir a intervenção do tribunal de recurso, ou a, pelo menos, impor o convite ao aperfeiçoamento das conclusões.
Nessa medida, o Tribunal da Relação deveria ter conhecido do recurso em matéria de facto, nos termos apontados pelo recorrente, ou em alternativa, deveria ter convidado o recorrente a suprir as eventuais falhas das conclusões, traduzindo essa falta omissão de pronúncia que conduz à nulidade prevista no art. 379.°, n.° 1 al. c) do CPP, sentido em que se emite o presente parecer» (realces nossos).
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Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, veio o recorrente, a fls. 3430, declarar dar por reproduzida in totum a motivação e conclusões oportunamente apresentadas, nada obstando ao conhecimento deste Supremo Tribunal.
E acrescentando: “Caso assim não se entenda, acompanha a posição do Ministério Público no sentido da omissão de pronúncia já por si invocada”.
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Não tendo sido requerida pelo recorrente audiência de julgamento, o processo prossegue com julgamento em conferência, nos termos dos artigos 411.º, n.º 5 e 419.º, n.º 3, alínea c), do Código de Processo Penal.
Colhidos os vistos, realizou-se a conferência, cumprindo apreciar e decidir.
Como é jurisprudência pacífica, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso – detecção de vícios decisórios ao nível da matéria de facto emergentes da simples leitura do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, referidos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal - acórdão do Plenário da Secção Criminal, de 19-10-1995, no processo n.º 46580, Acórdão n.º 7/95, publicado no DR, I Série - A, n.º 298, de 28-12-1995 (e BMJ 450, 72), que fixou jurisprudência então obrigatória (É oficioso, pelo tribunal de recurso, o conhecimento dos vícios indicados no artigo 410º, nº 2, do Código de Processo Penal, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito) e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2 e 410.º, n.º 3, do CPP - é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação, onde sintetiza as razões de discordância com o decidido e resume o pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e se fixam os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior.
Questões a decidir
Face ao que consta das conclusões apresentadas, as razões de discordância do recorrente com o decidido são várias, misturando-se por vezes a respectiva apresentação em acumulação, de que é exemplo a conclusão 13.ª, onde confluem e se condensa a quase totalidade das pretensões recursivas aqui expressas (aí o recorrente invoca a nulidade de todo o processado, no que a si concerne; impugna a matéria de facto considerada provada; evidencia o erro no enquadramento jurídico dos factos; invoca a violação do princípio in dubio pro reo e insurge-se contra a medida da pena encontrada e penas parcelares), respigando-se, porém, as seguintes:
I - Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à impugnação de matéria de facto – conclusões 2.ª, 6.ª, 8.ª, 11.ª, 13.ª, 31.ª, 32.ª, 38.ª, 39.ª, 40.ª e alínea a) da expressão final do petitório;
II - Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto a violação do artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal – conclusões 29.ª a 37.ª e 40.ª;
III - Valor probatório das declarações de co-arguidos – conclusões 4.ª, 9.ª, 14.ª, 15.ª, 16.ª, 17.ª, 22.ª e alínea e) do pedido final;
IV - Errada valoração da prova - conclusões 5.ª, 12.ª, 21.ª;
V – Violação do princípio “in dubio pro reo” – conclusões 13.ª, 19.ª, 20.ª, 23.ª, 24.ª e 25.ª e alínea f) do pedido final;
VI - Requalificação jurídica – conclusões 9.ª (2.ª parte), 13.ª, 19.ª, 26.ª, 27.ª e 28.ª e alínea b) da expressão final da pretensão recursiva;
VII - Medida da pena - conclusões 13.ª, 42.ª, 43.ª e 44.ª e alínea f) do pedido, a final.
Apreciando.
I Questão - Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia quanto à impugnação de matéria de facto.
Começando pela arguida nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia relativamente a impugnação de matéria de facto, versada nas conclusões 2.ª, 6.ª, 8.ª, 11.ª, 13.ª, 31.ª, 32.ª, 38.ª, 39.ª, 40.ª e alínea a) da expressão final do requerimento de recurso.
A suscitada nulidade reporta-nos à questão da capacidade cognitiva das relações em sede de matéria de facto, no que tange a decisões condenatórias de tribunais colectivos, a qual tem variado ao longo do tempo.
Do recurso de matéria de facto
(fixada em deliberações de tribunal colectivo).
Para a situação actual de reconhecimento de um duplo grau de jurisdição em matéria de facto relativamente a decisões finais de tribunais colectivos e quanto à capacidade cognitiva das Relações em sede de matéria de facto, contribuiu de forma assinalável a jurisprudência do Tribunal Constitucional incidente sobre o artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, com a redacção introduzida pelo Decreto com força de lei n.º 20147, de 01-08-1931, e após a interpretação dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, desde logo com os acórdãos n.º 219/89, de 15-02-1989, e n.º 124/90, de 19-04-1990, este em sentido contrário daquele, originando o acórdão tirado em plenário n.º 340/90, de 19-12-1990, e cuja orientação foi seguida nos acórdãos n.º s 23/91, 48/91, 77/91, 187/91, 236/91, 335/91 e 350/91 e depois com o acórdão n.º 401/91, in DR - I Série A, n.º 6, de 08-01-1992, que declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 665.º do CPP/1929, na interpretação dada pelo assento de 29-06-1934, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da CRP, vindo mais tarde a ser declarada a inconstitucionalidade da mesma norma, desacompanhada da interpretação do assento, o que foi feito pelo acórdão n.º 190/94, tirado em plenário, em 23-02-1994, publicado in DR de 12-12-1995, cuja doutrina veio a ser aplicada nos acórdãos n.º 430/94, de 25-05-1994, n.º 184/96, de 27-02-1996 e n.º 420/96, de 07-03-1996, sendo de ter em conta ainda o acórdão do STJ de 18-12-1991, produzido no âmbito do processo que conduziu ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º190/94, que nos termos do artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil, veio a “recriar” uma nova norma no respeito pelo espírito do sistema e a que se seguiu em termos idênticos o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22-01-1992, produzido no âmbito do processo que conduziu ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 291/98, de 28-04-1998.
Pelo acórdão n.º 264/98, de 05-03-1998, foi decidido não julgar inconstitucional a norma respeitante aos poderes das relações em matéria de facto nos recursos das decisões penais condenatórias dos tribunais colectivos, criada pelo acórdão do STJ de 22-01-1992, no uso do poder previsto no artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil.
A discussão dos poderes de cognição em matéria de facto pelas relações conduz à análise do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929.
No domínio do Código de Processo Penal de 1929, aprovado pelo Decreto n.º 16489, de 15-02-1929, os julgamentos em processo de querela eram realizados por tribunais colectivos, com prova produzida oralmente, e organização de quesitos sobre os factos e suas circunstâncias alegados pela acusação e defesa ou que resultassem da discussão da causa, conforme o artigo 468.º (sobre o conteúdo dos quesitos regia o artigo 494.º e sobre vários outros e específicos quesitos, os artigos 495.º a 501.º).
De acordo com o estabelecido no artigo 466.º do citado Código, com a epígrafe “Oralidade”, “o interrogatório do réu, os depoimentos das testemunhas e as declarações dos ofendidos ou outras pessoas, feitos na audiência, serão prestados oralmente, salvo quando a lei determinar o contrário”.
Na versão originária, dispunha o artigo 469.º, sob a epígrafe “Respostas aos quesitos” que “O tribunal colectivo julga de facto, definitivamente, segundo a sua consciência, com plena liberdade de apreciação, e de direito, com recurso para a respectiva relação”, e após a redacção que lhe foi dada pelo Decreto n.º 20 147, de 01 de Agosto de 1931, passou a dizer que “O tribunal colectivo responderá especificadamente a cada um dos quesitos, assinando todos os vogais, sem qualquer declaração”.
Diversamente do que acontecia no processo civil, a partir da reforma de 1961, com a redacção dada ao artigo 653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, impondo ao tribunal colectivo a obrigação de, quanto aos factos que julga provados, especificar «os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador», em processo penal, as respostas aos quesitos não eram fundamentadas em virtude do disposto naquele artigo 469.º.
Pese embora alguma doutrina - Eduardo Correia e Figueiredo Dias – tenha sustentado a aplicação subsidiária do CPC, tal posição não teve acolhimento na jurisprudência, entendendo-se como não necessária ou até mesmo proibida a fundamentação das respostas aos quesitos em processo penal (vg. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 7 de Maio de 1963, BMJ n.º 128, pág. 378 (o julgamento da matéria de facto pelo Tribunal Colectivo, em processo penal, não obedece ao sistema do artigo 653.º do CPC); de 21 de Maio de 1969, BMJ n.º 187, pág. 59; de 29-02-1984 e de 29-10-1986, in BMJ n.º s 334 e 360, págs. 359 e 494, e de 19-12-1990, proferido no processo n.º 40 825, publicado no BMJ n.º 402, pág. 347, defendendo que o artigo 653.º, n.º 2, do Código de Processo Civil não tem aplicação em processo penal, por não existir caso omisso, nos termos do § único do artigo 1.º do Código de Processo Penal, uma vez que existe norma própria, a do artigo 469.º, a única aplicável).
O Tribunal Constitucional pronunciou-se várias vezes pela não inconstitucionalidade do referido artigo 469.º do Código de Processo Penal de 1929 - acórdãos n.º 55/85, de 25 de Março; n.º 61/88, de 09 de Março; n.º 207/88, de 12 de Outubro; n.º 304/88, de 14 de Dezembro; n.º 219/89, de 15 de Dezembro, publicados in Diário da República - II Série, respectivamente, de 28-05-85 (e BMJ n.º 360, Suplemento, pág. 195); de 20-08-88 (e BMJ n.º 375, pág. 138); de 03-01-89 (e BMJ n.º 380, pág. 157); de 11-04-89 (e BMJ n.º 382, pág. 230); de 30-06-89 (e BMJ n.º 384, pág. 265).
No âmbito do Código de Processo Penal de 1929, ressaltava a norma do artigo 665.º, pelo seu papel determinante na definição da capacidade cognitiva das relações.
Na sua versão originária dispunha o artigo 665.º: “As Relações conhecerão de facto e de direito, nas causas que julguem em 1.ª instância e nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1.ª instância e conhecerão só de direito, nos recursos interpostos das decisões finais dos tribunais colectivos e das decisões proferidas nos processos em que intervenha o júri, salvo o disposto no artigo 517.º.O qual se reportava a um segundo julgamento perante tribunal de júri e que foi revogado pelo artigo 22.º do Decreto-Lei n.º 605/75, de 3 de Novembro.
O Decreto com força de lei n.º 20 147, de 1 de Agosto de 1931, introduziu nova redacção no preceito, que passou a estabelecer:
“As Relações conhecerão de facto e d e direito nas causas que julguem em 1.ª instância, nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes da 1.ª instância, das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que intervenha o júri, baseando-se, para isso, nos dois últimos casos, nos documentos, respostas ao questionário e em quaisquer outros elementos constantes dos autos”.
O Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, publicado no Diário do Governo, I Série, de 11 de Julho de 1934 (na Col. Of., 33.º, 194 e na RLJ, ano 67.º, pág. 92 e ss.) interpretou o normativo do seguinte modo: «O artigo 665.º do Código de Processo Penal modificado pelo Decreto n.º 20147, de 1 de Agosto de 1931, relativamente à competência das Relações em matéria de facto, tem de entender-se no sentido de as mesmas Relações só poderem alterar as decisões dos tribunais colectivos de 1.ª instância em face de elementos do processo que não pudessem ser contrariados pela prova apreciada no julgamento e que haja determinado as respostas aos quesitos».
Consagrou-se assim um entendimento restritivo da competência das relações em matéria de facto na apreciação dos recursos das decisões dos tribunais colectivos.
Os juízos sobre a constitucionalidade do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929 emitidos pelo Tribunal Constitucional (o Supremo Tribunal de Justiça considerava não enfermar a norma em questão de inconstitucionalidade – vg. acórdão de 21-11-1990, BMJ n.º 401, pág. 437) colocaram-se quanto às versões do Decreto de 1931 e do Assento de 1934, estando em causa a observância do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República, que até à revisão constitucional de 1997, dispunha que “O processo criminal assegurará todas as garantias de defesa”.
Analisando essa jurisprudência do Tribunal Constitucional.
O Acórdão n.º 219/89, de 15 de Fevereiro de 1989, da 1.ª secção, publicado no DR- II Série, n.º 148, de 30-06-1989 (e BMJ n.º 384, pág. 265), julgou inconstitucional a norma do artigo 665.º, com a sobreposição interpretativa do Assento de 29 de Junho de 1934, “na parte em que determina que as relações, no recurso das decisões condenatórias dos tribunais colectivos criminais, ao conhecerem de matéria de facto, haverão de basear-se exclusivamente nos documentos, respostas aos quesitos e em outros elementos constantes dos autos, a ponto de só lhes ser lícito alterar, a esse nível, aquelas decisões em face de elementos do processo que não tivessem podido ser contrariados pela prova apreciada em julgamento e que houvesse determinado as respostas aos quesitos”.
Em tal acórdão, partindo-se do princípio de que a norma do artigo 665.º CPP1929, na interpretação do Assento de 1934, colocava limitações ao conhecimento, por parte das relações, da matéria de facto, nos recursos interpostos das decisões finais dos tribunais colectivos, punha-se a questão de saber se a mesma infringia ou não o princípio do duplo grau de jurisdição em processo penal.
A este respeito sublinhava-se: “… a garantia do duplo grau de jurisdição de mérito, decorrente do princípio de defesa, tal como o firma o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, não pode deixar de valer mesmo face a julgamentos realizados em 1.ª instância por tribunais colectivos”.
Concluía-se que tal norma desrespeitava, indiscutivelmente, o princípio constitucional de duplo grau de jurisdição em processo penal condenatório.
Por seu turno, a 2.ª secção, no Acórdão n.º 124/90, de 19 de Abril de 1990, publicado no DR-II Série, de 8 de Fevereiro de 1991 (e BMJ n.º 396, pág. 141), não julgou inconstitucional a norma do artigo 665.º Código de Processo Penal/1929, com a referida sobreposição do Assento de 1934.
Deste acórdão foi interposto recurso pelo M.º P.º, nos termos do artigo 79.º - D, da Lei n.º 28/82, de 07-09, com fundamento em divergência entre este acórdão da 2.ª secção e o referido acórdão n.º 219/89, da 1.ª secção, a fim de ser alcançada decisão uniformizadora de jurisprudência.
Assim, o Acórdão n.º 340/90, de 19 de Dezembro de 1990, proferido, em Plenário, no processo n.º 58/89, da 2.ª secção, publicado no DR - I Série, n.º 65, de 19 de Março de 1991 (e no BMJ n.º 402, pág. 169), veio a julgar inconstitucional a norma do artigo 665.º CPP1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento de 1934, revogando, nessa parte o acórdão recorrido.
Acolhendo esta orientação, seguiram-se os acórdãos n.º 23/91, de 06-02, e n.º 48/91, de 26-02 (referenciado no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 06-03-1997, processo n.º 45 789, publicado no BMJ n.º 465, pág. 437, que determinou a baixa dos autos ao Tribunal da Relação, cumprindo-lhe jurisprudencialmente criar outra “norma” destinada a suprir a lacuna deixada pela declaração da inconstitucionalidade do artigo 665.º), ambos da 1.ª secção, e ainda n.º 77/91, de 10-04 (BMJ n.º 406, pág. 686); n.º 187/91, de 07-05; n.º 236/91, de 23-05 (ver infra); n.º 335/91, de 03-07; e n.º 350/91, de 04-07, todos da 2.ª secção.
Com esta base veio a ser proferido em 30 de Outubro de 1991, o Acórdão n.º 401/91, proferido no processo n.º 205/91, da 1.ª secção, publicado no DR - I Série - A, n.º 6, de 8 de Janeiro de 1992 (e BMJ n.º 410, pág. 236), o qual declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral da norma do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo assento de 29 de Junho de 1934, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição.
Mais tarde, veio a ser declarada a inconstitucionalidade do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, desacompanhado da interpretação restritiva que lhe foi dada pelo assento de 29 de Junho de 1934, o que aconteceu na sequência de recursos interpostos de acórdãos proferidos pelo mesmo Colectivo do Supremo Tribunal de Justiça, de 18 de Dezembro de 1991 e de 22 de Janeiro de 1992.
Assim aconteceu com o Acórdão n.º 190/94, de 23 de Fevereiro de 1994, tirado em Plenário, proferido no âmbito do processo n.º 62/92 e publicado no DR – II Série, n.º 285, de 12 de Dezembro de 1995 (e no BMJ n.º 434, pág. 231).
No processo em causa havia sido declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, na formulação do Assento de 1934, pelo já referido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 236/91, da 2.ª secção, de 23 de Maio de 1991 - que entendera dever seguir o decidido no Acórdão n.º 340/90, de 19 de Dezembro - na sequência do que o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 18 de Dezembro de 1991 (processo n.º 40 508), recusou a aplicação do artigo 665.º do CPP 1929, sem a sobreposição definida pelo assento de 1934, ou seja, na redacção advinda do Decreto de 1931, por a considerar “não constitucional”.
Entendeu então o Supremo Tribunal de Justiça, que face à redacção do preceito mesmo sem a restrição emergente do assento, subsistiam efectivos limites aos poderes cognitivos das relações na apreciação da matéria de facto constante das decisões do colectivo, sendo a norma inaplicável pelos tribunais, optando por preencher a lacuna resultante da decretada inconstitucionalidade através de norma própria e “criando” então uma nova norma no respeito pelo espírito do sistema (artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil), tendo tal acórdão sido confirmado pelo Tribunal Constitucional.
Para o STJ, na decisão recorrida, a norma do artigo 665.º na redacção do Decreto n.º 20 147, de 1 de Agosto de 1931, sem a interpretação restritiva do assento de 1934, padece de inconstitucionalidade, dado subsistirem, perante ela, as limitações dos poderes das Relações na apreciação da matéria de facto constante das decisões do Colectivo.
A doutrina firmada naquele acórdão do Tribunal Constitucional n.º 190/94 veio a ser aplicada nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 430/94, de 25-05-1994; n.º 184/96, de 27-02-1996, proferido em plenário, no processo n.º 416/91, publicado in DR - II Série, n.º 118, de 21-05-1996 (e BMJ n.º 454, pág. 298), e ainda no n.º 420/96, de 07-03-1996 (cfr. referência a este no acórdão n.º 291/98, proferido em plenário no processo n.º 58/98, e publicado no DR-II Série, n.º 287, de 14-12-1998).
Na sequência desta última jurisprudência para integrar a lacuna, o Supremo Tribunal de Justiça recriou a norma do artigo 665.º CPP1929, como já se referiu, em 18-12-1991, no âmbito do processo que conduziu ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 190/94, e, em termos idênticos, um outro, elaborado pelo mesmo Colectivo, em 22-01-1992, no processo n.º 41 419, publicado no BMJ n.º 413, pág. 119, no âmbito do processo que conduziu ao acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 264/98, de 05 de Março de 1998, publicado no DR - II Série, de 09-11-1998, pág. 15 831.
No processo que conduziu ao acórdão de 1992, havia sido declarada a inconstitucionalidade da norma do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, com a sobreposição interpretativa do Assento de 1934, na medida em que limitava os poderes das relações, na apreciação da matéria de facto, nos recursos para si interpostos das decisões do tribunal colectivo pelo já referido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 335/91, de 03 de Julho - que entendera igualmente fazer aplicação da jurisprudência firmada pelo citado Acórdão n.º 340/90, que julgara inconstitucional a norma impugnada, na interpretação constante do assento referido - na sequência do que o Supremo Tribunal de Justiça, em acórdão de 22 de Janeiro de 1992 (referido processo n.º 41 419, in BMJ n.º 413, 119), recusou a aplicação do artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929, sem a sobreposição interpretativa definida pelo assento de 1934, ou seja, na redacção advinda do Decreto de 1931, por a considerar “não constitucional”.
Entendeu então o Supremo Tribunal de Justiça, que face à redacção do preceito, mesmo sem a restrição emergente do assento, subsistiam efectivos limites aos poderes cognitivos das relações.
Nesse acórdão de 22 de Janeiro de 1992 o Supremo Tribunal de Justiça decidiu que o citado artigo 665.º, relativamente à competência das relações quanto à reapreciação da matéria de facto acolhida nas decisões dos tribunais colectivos, continuava a estar ferido de inconstitucionalidade, mesmo sem a sobreposição do assento de 29 de Junho de 1934, e não havendo norma para regular o caso concreto, impunha-se ao julgador criar ele próprio a norma adequada, como se houvesse de legislar dentro do espírito do sistema a fim de integrar a lacuna.
Na recriação da norma, dentro do espírito do sistema, foram tidos em consideração os princípios da chamada “constituição processual criminal”, contidos no artigo 32.º da Constituição pelas normas do Código de Processo Penal de 1929 e do Código de Processo Penal de 1987.
A norma “eleita” em ambos os casos foi, então, enunciada da seguinte forma:
1. As Relações conhecerão de facto e de direito nas causas que julguem em 1.ª instância, nos recursos interpostos das decisões proferidas pelos juízes de 1.ª instância, das decisões finais dos tribunais colectivos e das proferidas nos processos em que intervenha o júri, baseando-se para isso, nos dois últimos casos, nos documentos, respostas aos quesitos e em quaisquer outros elementos constantes dos autos, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum.
2. As Relações podem anular as decisões do tribunal colectivo, mesmo oficiosamente, quando reputem deficientes, obscuras ou contraditórias as respostas aos quesitos formulados ou quando considerem indispensável a formulação de outros quesitos, ou quando haja erro notório na apreciação da prova.
3. As Relações podem determinar oficiosamente a renovação da prova para evitar a anulação da decisão do tribunal colectivo.
4. A decisão que determinar a renovação da prova é definitiva e fixa os termos e a extensão com que a prova produzida em 1.ª instância pode ser renovada.
5. Havendo lugar à renovação da prova, intervêm na audiência os juízes do processo, sob a presidência do relator, observando-se, na parte aplicável, o disposto nos artigos 423.º e 430.º do Código de Processo Penal de 1987.
Acrescentou ainda o citado acórdão inovador/recriador alguns esclarecimentos pertinentes, que se passam a transcrever:
«Pela redacção do n.º 1 da norma transcrita, a competência das relações em matéria de facto fica efectivamente alargada em relação à redacção constante do correspondente preceito do Código.
Quanto ao n.º 2 chamou-se directamente ao artigo 665.º os poderes de anulação já contemplados no n.º 2 do artigo 712.º do Código de Processo Civil, aplicáveis subsidiariamente, mas aditando-se o caso de erro notório na apreciação da prova, por inspiração do novo Código de Processo Penal (cfr. artigos 410.º, n.º 2, alínea c) e 428.º, n.º 2).
Relativamente ao n.º 3, introduz-se na norma em causa a inovação da renovação da prova, que caracteriza os poderes das relações na estrutura da nova lei de processo, e que possibilita ao tribunal de recurso fazer reproduzir perante si próprio determinada prova, em vez de ordenar a anulação da decisão recorrida, nos termos previstos no n.º 2.
O n.º 5 limita-se a regular os trâmites da audiência de julgamento de recurso com renovação da prova em termos análogos aos do novo Código de Processo Penal.
Crê-se que, globalmente, a norma enunciada vai ao encontro das mais prementes garantias de defesa constitucionalmente garantidas.
A elas acresce ainda a existência de um grau de recurso das decisões das Relações para o Supremo Tribunal de Justiça, que, embora circunscrito à matéria de direito, pode levar este Tribunal a ordenar a baixa do processo à Relação quando entenda que a decisão de facto pode e deve ser ampliada em ordem a constituir base suficiente para a decisão de direito (artigo 729.º, n.º 3, do Código de Processo Civil, aplicável subsidiariamente), o que não deixa de constituir certamente uma garantia suplementar quanto ao apuramento da matéria de facto».
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As normas constantes dos n.º s 1, 2 e 3, do acabado de citar preceito ad hoc, foram objecto de recurso de constitucionalidade.
E pelo Acórdão n.º 264/98, de 05 de Março de 1998, proferido no processo n.º 636/95, da 2.ª secção, publicado no DR - II Série, n.º 259, de 09-11-1998, pág. 15831 a 15834, foi decidido «não julgar inconstitucional a norma respeitante aos poderes das relações em matéria de facto nos recursos das decisões penais condenatórias dos tribunais colectivos, criada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22 de Janeiro de 1992, no uso do poder previsto no artigo 10.º, n.º 3, do Código Civil».
Nesse aresto teve-se em conta a identidade substancial entre o recriado artigo 665.º do Código de Processo Penal de 1929 e as normas dos artigos 410.º, n.º 2 e 433.º do Código de Processo Penal de 1987, que não foram julgadas inconstitucionais em vários acórdãos e referindo que o segundo grau de jurisdição em matéria de facto em parte alguma reveste a natureza de um direito potestativo do arguido a ver repetida «sem quaisquer limitações» a prova produzida.
No Acórdão n.º 181/99, de 10 de Março de 1999, proferido no processo n.º 699/98, DR - II Série, n.º 174, de 28-07-1999, ainda sobre o artigo 665.º reconstruído pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 22 de Janeiro de 1992, invocando o aludido acórdão n.º 264/98, atento o conteúdo substancialmente idêntico entre a norma recriada e as dos artigos 410.º, n.º 2, 426.º e 433.º do Código de Processo Penal de 1987, não julgadas inconstitucionais nos acórdãos n.ºs 234/93, 322/93, 356/93, 141/94, 170/94 e 171/94, conclui que a solução a conferir à questão da conformidade constitucional da tal norma há-de ser semelhante à que o Tribunal Constitucional tem dispensado àqueloutra questão, com os mesmos fundamentos, concluindo que não enferma do vício de inconstitucionalidade.
Sobre a questão, embora não conhecendo do recurso, veja-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 291/98, de 28 de Abril de 1998, proferido em plenário, no processo n.º 58/98, publicado no DR-II Série, n.º 287, de 14-12-1998, pág. 17669 (na sequência do processo onde foram proferidos os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 420/96, de 07-03-1996, este aplicando a doutrina do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 190/94 e do Supremo Tribunal de Justiça, de 10-10-1996).
Em sentido diverso, mas em caso inédito de recurso interposto por assistente, o acórdão n.º 71/99, de 03-02-1999, proferido no processo n.º 484/97, da 1.ª secção, publicado no DR – II Série, n.º 181, de 05-08-1999.
No Código de Processo Penal de 1987
A proclamada - em 1987 - e bastas vezes reclamada autonomia do regime de recursos em processo penal, como se constata da análise dos sucessivos textos legais, cedo deu lugar, esgotado o paradigma da autonomia e da auto-suficiência, a mero seguidismo da regulamentação da matéria no plano cível, sendo muito clara essa tendência, pelo menos, no que respeita ao recurso de matéria de facto.
No regime processual penal introduzido com o Código de Processo Penal de 1987, os acórdãos finais dos tribunais colectivos eram irrecorríveis, no que tange a uma ampla, verdadeira e efectiva reapreciação da matéria de facto.
De acordo com a versão originária e nos termos dos artigos 427.º e 432.º, alínea c), dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo recorria-se directamente para o Supremo Tribunal de Justiça.
Tal recurso visava exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.º s 2 e 3 – artigo 433.º daquele Código.
No tocante à matéria de facto, o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça só podia ter por fundamento um dos vícios previstos nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 do artigo 410.º do CPP.
Este sistema de “revista alargada” conferia ao STJ poderes de intromissão em aspectos fácticos. Tal poder de sindicar dados fácticos era, porém, limitado, restrito, parcial, mitigado, exercido de forma indirecta, dentro do condicionalismo estabelecido pelo artigo 410.º; a cognição da matéria de facto cinge-se aos vícios da decisão (e não do julgamento), elencados nas alíneas a), b) e c) do n.º 2 daquele preceito, a partir do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não se socorrendo nunca do registo de prova, acaso feito na 1.ª instância, ao abrigo do artigo 363.º.
O objecto da reapreciação é a decisão e não o julgamento.
A cognição de matéria de facto pelo Supremo era restrita aos vícios do artigo 410.º, n.º 2, e a renovação da prova era admitida pela Relação a partir da verificação desses vícios e desde que houvesse razões para crer que a renovação, por força da existência daqueles, permitiria evitar o reenvio do processo para novo julgamento.
A modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto era possível pela detecção dos vícios decisórios a determinar o reenvio para novo julgamento, ou para o evitar, com a renovação das provas - artigos 430.º e 431.º.
Na versão originária, apenas no n.º 3 do artigo 412.º se fazia referência aos casos de renovação de prova, nos termos seguintes:
«Quando, nos termos do artigo 430.º, houver lugar a renovação da prova, o recorrente indica, a seguir às conclusões, as provas que entende deverem ser renovadas perante o tribunal de recurso, mencionando em relação a cada uma os factos que se destina a esclarecer e as razões que justificam a renovação».
Como se podia ler no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 17-04-1997, in BMJ n.º 466, pág. 227, a regra do duplo grau de jurisdição em matéria de facto no ordenamento nacional era apenas tendencial.
O preceito do citado artigo 363.º sempre se apresentou como anódino para estes efeitos, pois versando o princípio geral da documentação de declarações orais, estabelecia que “as declarações prestadas oralmente na audiência são documentadas na acta quando o tribunal puder dispor de meios estenotípicos, ou estenográficos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas, bem como nos casos em que a lei expressamente o impuser”.
Segundo o Acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 253/92, DR - 2.ª série, de 27-10-1992, aquele registo de prova não tinha no sistema do Código de Processo Penal então vigente a finalidade de permitir ao tribunal de recurso o controlo do julgamento de facto, feito pelo tribunal recorrido.
O registo das declarações produzidas oralmente na audiência feita por tribunal colectivo sempre foi entendido como um meio de controlo da prova posto ao serviço desse tribunal. Com esse registo - entendia-se - o que se pretende é assegurar que o tribunal colectivo, com base nas declarações prestadas na audiência, venha a dar como provado o que realmente se provou e como não provados os factos de que se não logrou fazer prova – acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 234/93, DR - 2.ª série, de 02-06-1993; n.º 398/94, DR - 2.ª série, de 26-10-1994; n.º 677/99, de 21-12-1999, DR - II Série, de 28-02-2000.
O recurso em matéria de facto no regime do Código de Processo Penal 1987 era, assim, admitido mediante a reapreciação através da documentação das declarações prestadas em audiência nos casos de julgamento perante tribunal singular, ou com a renovação da prova.
Assim se manteve o sistema processual penal até 1998, diferentemente do que aconteceu no plano do processo civil.
O Decreto-Lei n.º 39/95, de 15-02, in DR, I Série-A, n.º 39/95 (é mesmo coincidência e não lapso), daquela data, alterando o Código de Processo Civil, estabeleceu a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e da prova nelas produzida, definindo a regulamentação da execução da gravação da prova, enquanto meio que permite a constituição de uma base para a reapreciação da decisão em matéria de facto pelo tribunal de recurso.
O diploma, verdadeiramente pioneiro, visou consagrar, na área do processo civil, uma solução legislativa substancialmente inovadora, ao prever e regulamentar a possibilidade de documentação ou registo das audiências finais e das provas nelas produzida, pondo termo ao peso excessivo que a lei processual então vigente conferia ao princípio da oralidade e concretizando uma aspiração de sucessivas gerações de magistrados e advogados.
A admissibilidade do registo das provas produzidas ao longo da audiência de discussão e julgamento permitiria alcançar um triplo objectivo, de que ressaltava desde logo, como primordial, o de, na perspectiva das garantias das partes no processo, as soluções instituídas implicarem a criação de um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, facultando às partes uma maior e mais real possibilidade de reacção contra eventuais e excepcionais erros do julgador na livre apreciação das provas e na fixação da matéria de facto relevante para a solução jurídica do pleito; em segundo lugar, procurando evitar o possível perjúrio e por fim tendo em atenção considerações de satisfação do tribunal quanto à força persuasiva das decisões e do prestígio da administração da justiça.
O registo das provas permitiria ainda auxiliar de forma relevante o julgador a rever e confirmar no momento da decisão, com maior segurança, as impressões pessoais que foi colhendo ao longo de julgamentos demorados, fraccionados no tempo e comportando a inquirição de numerosos depoentes sobre matérias complexas.
Daí o aditamento ao CPC, pelo artigo 2.º, do artigo 522.º - A e do artigo 522.º - B, neste – com a epígrafe (Registo dos depoimentos prestados em audiência final) -, a permitir que fosse o próprio tribunal a determinar oficiosamente a gravação da audiência, sempre que, apesar das partes terem prescindido da documentação da prova, se entenda que os interesses da administração da justiça a reclamam, dispondo o igualmente aditado artigo 522.º - C, sobre a forma de gravação, conferindo prevalência ao sistema sonoro.
Face ao seu carácter inovador, numa primeira fase, o diploma apenas se aplicou aos processos iniciados após a sua vigência e pendentes em tribunais de ingresso, onde as repercussões da gravação das audiências seriam presumivelmente menores, atento, desde logo, o volume do serviço.
No que especificamente importa a esta matéria, o diploma em causa introduziu o artigo 690.º - A, a estabelecer:
1.Quando se impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, proceder à transcrição, mediante escrito dactilografado, das passagens da gravação em que se funda.
3 – Na hipótese prevista no número anterior, incumbe à parte contrária, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra-alegação que apresente, à transcrição dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente.
4 – O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 684.º-A.
A introdução no Código de Processo Civil do artigo 690.º - A veio implicar naturalmente a alteração da alínea a) do n.º 1 do artigo 712.º (Modificabilidade das decisões), que passou a estabelecer:
1 - As respostas do tribunal aos quesitos não podem ser alteradas pela Relação, salvo:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à resposta ou se, tendo ocorrido gravação de todos os depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artigo 690.º - A, a decisão sobre a matéria de facto com base neles proferida.
O sistema então introduzido no processo civil manteve-se, permanecendo intocado, no que respeita a este específico ponto, pela reforma de 1995/1996, nada sendo alterado pelos Decreto-Lei n.º 329-A/95, de 12-12-1995 (Suplemento, n.º 285/95) e Decreto-Lei n.º 180 /96, de 25-09-1996, vindo a sofrer alteração apenas em 2000.
Aliás, como consta do preâmbulo do primeiro dos citados diplomas, a implementação de um verdadeiro segundo grau de jurisdição no âmbito da matéria de facto, já resultante de diploma anteriormente aprovado, obriga a procurar formas de aligeiramento das tarefas a cargo das Relações nas outra áreas, sob pena de se correr o risco do seu rápido e irremediável afundamento e nessa perspectiva instituiu-se então a inovadora figura do recurso per saltum da 1.ª instância para o Supremo.
Todavia, a reforma de 1995 não deixou de no plano civil introduzir uma alteração de vulto, sem qualquer disposição análoga em processo penal, como a resultante do aditamento do artigo 508.º - A, n.º 2, alínea c), do CPC, ao prescrever que as partes poderiam “requerer a gravação da audiência final ou a intervenção do colectivo”, excluindo a gravação da audiência, necessariamente, a intervenção do colectivo.
Aqui a gravação possibilitava a intervenção do juiz singular, esclarecendo o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 329-A/95 que: “Estabelece-se agora, como regra, no processo declarativo comum ordinário, a intervenção do juiz singular na fase do julgamento, condicionando a requerimento das partes a intervenção do tribunal colectivo e mantendo o princípio de que esta fica precludida se alguma das partes tiver requerido a gravação da prova”.
Sendo o referido diploma – Decreto-Lei n.º 39/95 - de Fevereiro de 1995, nada ocorreu nesta matéria no domínio do processo penal, nomeadamente, com a alteração do Código de Processo Penal operada pelo Decreto-Lei n.º 317/95, de 28 de Novembro.
A inovação nesta matéria no âmbito do processo penal chegaria em 1998.
Com a Lei nº 59/98, de 25 de Agosto, foram alterados os artigos 412.º e 431.º do Código de Processo Penal.
Com tal Lei visou-se tornar admissível o recurso para a Relação da matéria de facto fixada pelo Colectivo, dando seguimento à consagração do 2.º grau de jurisdição no julgamento da matéria de facto e possibilidade de recurso nesta matéria, na sequência do aditamento da expressão “incluindo o recurso” na parte final do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição da República, introduzido na 4.ª revisão operada pela Lei Constitucional n.º 1/97, in DR-I Série, de 20-09-1997, vindo criar pela primeira vez no nosso sistema processual penal, um verdadeiro direito a recurso em matéria de facto das decisões do tribunal colectivo, a exercer nas condições e com os requisitos enunciados nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º, o que veio a ser “confirmado” pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 10/2005, de 20-10-2005, publicado in DR, I - A, de 07-12-2005, o qual estabeleceu a seguinte orientação: “Após as alterações ao Código de Processo Penal, introduzidas pela Lei n.º 59/98, de 25/08, em matéria de recursos, é admissível recurso para o Tribunal da Relação da matéria de facto fixada pelo tribunal colectivo”.
Maia Gonçalves, no Código de Processo Penal Anotado, 9.ª edição, pág. 729, alertava então que a lei é aqui particularmente exigente, tratando-se de “matéria a que haverá que prestar particular cuidado, pois o Código denota o intuito de não deixar prosseguir recursos inviáveis ou em que os recorrentes não exponham com clareza o sentido das suas pretensões”.
A partir de 1 de Janeiro de 1999 passou a ser outro o enquadramento da questão, face à alteração do quadro legislativo operado pela citada Lei n.º 59/98, que entrou em vigor naquela data.
Essa alteração assentava em dois vectores anunciados na Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 157/VII, in Diário da Assembleia da República, II Série - A, n.º 27, de 28-01-1998, a saber:
1 – A ampliação dos poderes de cognição das Relações - alínea f) do n.º 16;
2 – O assegurar-se um recurso efectivo em matéria de facto – alínea g) do mesmo n.º 16.
Passou a estabelecer o n.º 3 do artigo 412.º do CPP, na redacção dada pela Lei n.º 59/98, de 25/08:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas”.
E o n.º 4: “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência aos suportes técnicos, havendo lugar a transcrição”.
O n.º 3 já não se refere apenas a renovação da prova e o originário foi desdobrado em 3 alíneas, fazendo especificação do ónus do recorrente.
Absolutamente nova foi a disposição introduzida com o artigo 431.º, fixando as condições em que as relações podem alterar a decisão da 1.ª instância em matéria de facto, pois não havia disposição correspondente (o originário 431.º versava sobre o reenvio do processo), sendo de anotar a grande similitude com o artigo 712.º, do CPC, versando igualmente sobre a modificabilidade da decisão recorrida.
Com a epígrafe (Modificabilidade da decisão recorrida) passou a estabelecer o novo artigo 431.º:
“Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, a decisão do tribunal de 1.ª instância sobre a matéria de facto pode ser modificada:
a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;
b) Se, havendo documentação da prova, esta tiver sido impugnada nos termos do artigo 412.º, n.º 3; ou
c) Se tiver havido renovação da prova.
A partir de 1 de Janeiro de 1999 passou a ser possível impugnar a matéria de facto fixada pelo colectivo de duas formas: a já existente “revista ampliada”, com invocação dos vícios decisórios previstos no n.º 2 do artigo 410.º, com a possibilidade de sindicar as anomalias emergentes do texto de decisão, e uma outra com maior amplitude, mais abrangente, possibilitando a sindicância da matéria de facto fixada com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo, porque o direito ao recurso ínsito no n.º 1 do artigo 32.º da CRP não é ilimitado, não envolvendo uma irrestrita impugnabilidade das decisões de facto dos tribunais colectivos, a observância de certas formalidades.
A partir de então o conhecimento da matéria de facto passa a ser feito com maior amplitude, competindo à Relação reapreciar a prova produzida na audiência de julgamento da 1.ª instância.
Entretanto, em 2000, sobrevieram novas alterações no âmbito do processo civil.
O Decreto-Lei n.º 183/2000, de 10 de Agosto, in DR - I Série - A, n.º 184, entrado em vigor em 01de Janeiro de 2001 (artigo 8.º), o qual procurou combater a morosidade processual, definiu no preâmbulo o seguinte: «Prevê-se ainda que o início e o termo da gravação de cada depoimento, informação ou esclarecimento deva ser registado na acta da audiência de julgamento, possibilitando-se assim que as partes possam recorrer da matéria de facto com base na simples referência ao assinalado na acta, devendo o tribunal de recurso proceder à audição e visualização do registo áudio e vídeo, respectivamente, excepto se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição, a qual será realizada por entidades externas para tanto contratadas pelo tribunal».
O artigo 1.º alterou a redacção do artigo 690.º - A, nos n.º s 2, 3 e 5, passando a estabelecer (em itálico as inovações):
1. Quando se impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Quais os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º - C.
3. Na hipótese prevista no número anterior, incumbe à parte contrária proceder, na contra alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, também por referência ao assinalado na acta, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 522.º - C.
4. O disposto nos n.ºs 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 684.º - A.
5. Nos casos referidos nos n.ºs 2 a 4, o tribunal de recurso procederá à audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes, excepto se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição, a qual será realizada por entidades externas para tanto contratadas pelo tribunal.
Com esta nova versão de 2000 dispensava-se o recorrente de proceder à transcrição das passagens da gravação em que se baseia, mas impondo-se-lhe, para além do mais, sob pena de rejeição, a indicação dos depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta.
E assim em vez da transcrição passou a reapreciação a servir-se da audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes.
No processo penal não se notou repercussão imediata das alterações processadas em 2000 no regime de recursos em processo civil, muito embora não deixasse a transcrição de constituir causa de morosidade da tramitação do recurso.
A esta reforma do processo civil, no que ora nos importa (as subsequentes alterações introduzidas pela Lei n.º 30-D/2000, de 20-12, pelos Decreto-Lei n.ºs 272/2001, de 13-10 e 323/2001, de 17-12, pela Lei n.ºs 13/2002, de 19-02, pelos Decreto-Lei n.ºs 38/2003, de 08-03, 199/2003, de 10-09, 324/2003, de 27-12, e n.º 53/2004, de 18-03, pela Lei n.º 6/2006, de 27-02, pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 29-03 e pela Lei n.º 14/2006, de 26-04, neste segmento nada trouxeram de novo), seguiu-se em 2007 uma grande reforma da arquitectura do sistema de recursos no CPC, com a opção por um sistema unitário de recursos na 1.ª e 2.ª instâncias.
De acordo com a Lei de autorização legislativa nº 6/2007, de 2 de Fevereiro, donde emergiu o Decreto-Lei n.º 303/2007, no artigo 2.º, alínea n), a modificação no segmento que ora importa, era a “alteração das regras que regem os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão de facto, determinando que cabe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, proceder à identificação da passagem da gravação em que funde essa impugnação, com referência aos meios de gravação áudio que permitem uma identificação precisa e separada dos depoimentos, sem prejuízo de as partes poderem proceder à transcrição das passagens da gravação em que se funde a impugnação”.
E assim na versão de 2007 do Código de Processo Civil, operada pelo Decreto-Lei n.º 303/2007, de 24 de Agosto, in DR - 1.ª série, n.º 163, em vigor a partir de 1 de Janeiro de 2008 (artigo 12.º), é revogado pelo artigo 9.º, alínea a), o artigo 690.º-A.
É alterado de forma substancial o regime de recursos, sendo republicado (artigo 10.º) em anexo o capítulo VI do subtítulo I do título II do livro III do Código de Processo Civil, passando o artigo 685.º - B, aditado pelo artigo 2.º, sob a epígrafe (Ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto), a dispor o seguinte:
1. Quando se impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados e seja possível a identificação precisa e separada dos depoimentos, nos termos do n.º 2 do artigo 552.º-C, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso no que se refere à impugnação da matéria de facto, indicar com exactidão as passagens em que se funda, sem prejuízo da possibilidade de, por sua iniciativa, proceder à respectiva transcrição.
3. Na hipótese prevista no número anterior, incumbe ao recorrido, sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, proceder, na contra–alegação que apresente, à indicação dos depoimentos gravados que infirmem as conclusões do recorrente, podendo, por sua iniciativa, proceder à sua transcrição.
4. Quando a gravação da audiência for efectuada através de meio que não permita a identificação precisa e separada dos depoimentos, as partes devem proceder às transcrições previstas nos números anteriores.
5. ………………………………………………………………………………………...
Entretanto, no processo penal.
A 15.ª alteração do Código de Processo Penal operada pela Lei nº 48/2007, de 29 de Agosto, procedeu, no que ora interessa, às seguintes modificações:
Artigo 363.º (Documentação de declarações orais)
«As declarações prestadas oralmente na audiência são sempre documentadas na acta, sob pena de nulidade».
Artigo 364.º (Forma de documentação)
«1 - A documentação das declarações prestadas oralmente na audiência é efectuada, em regra, através de gravação magnetofónica ou audiovisual, sem prejuízo da utilização de meios estenográficos ou estenotípicos, ou de outros meios técnicos idóneos a assegurar a reprodução integral daquelas. É correspondentemente aplicável o disposto nos n.ºs 2 e 3 do artigo 101.º.
2 – Quando houver lugar a gravação magnetofónica ou audiovisual, deve ser consignado na acta o início e o termo da gravação de cada declaração».
Artigo 412.º
3 - “Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas (Não alterado).
4 - “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
5- ………….………………………………………………………….…………
6 - No caso previsto no n.º 4, o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.
Artigo 431.º
…………………………………………………………………………………..
a) ..………………………………………………………………………………
b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do artigo 412.º; ou
c) ……………………………………………………………………………….
Como resulta da comparação entre os dois regimes, a versão introduzida pela Lei n.º 48/2007, de 25 de Agosto, acolhe a versão de 2000 do artigo 690.º-A do CPC:
690.º A - …indicar os depoimentos em que se funda, por referência ao assinalado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 522.º - C.(assinalado na acta o início e o termo da gravação).
412.º - … as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do artigo 364.º(consignação na acta o início e o termo da gravação), devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”.
690.º- A - …Nos casos referidos nos n.ºs 2 a 4, o tribunal de recurso procederá à audição ou visualização dos depoimentos indicados pelas partes, excepto se o juiz relator considerar necessária a sua transcrição,
412.º - …o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas.
Diversamente do que ocorre no cível, em que se impõe a rejeição do recurso no caso de incumprimento dos ónus, e por força da jurisprudência do Tribunal Constitucional foi introduzida a norma do n.º 3 do artigo 417.º, permitindo a formulação de convite ao aperfeiçoamento.
Estabelece o n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, na redacção dada pela reforma de 2007: «Se a motivação do recurso não contiver conclusões ou destas não for possível deduzir total ou parcialmente as indicações previstas nos n.ºs 2 a 5 do artigo 412º, o relator convida o recorrente a apresentar, completar ou esclarecer as conclusões formuladas, no prazo de 10 dias, sob pena de o recurso ser rejeitado ou não ser conhecido na parte afectada».
Mas sem deixar de se esclarecer – n.º 4 – que o aperfeiçoamento não permite modificar o âmbito do recurso que tiver sido fixado na motivação.
***
A fundamentação do acórdão recorrido, nomeadamente, a citar jurisprudência anterior a 15 de Setembro de 2007, como o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/2002, parecendo olvidar que à data estava em vigor a nova redacção do artigo 417.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, concita a chamada à colação da norma vigente e para melhor percepção da mesma, dos antecedentes jurisprudenciais de onde emergiu a nova norma, que conduz inevitavelmente à prolação de despacho de convite ao aperfeiçoamento, ao contrário do que ocorre no processo civil em que a rejeição se impõe, o que se compreende, face à primazia do princípio do dispositivo ali, e aqui ao contraditório e descoberta da verdade material, e à consideração do direito ao recurso como uma da emanações das garantias de defesa, consagradas no artigo 32.º da CRP.
A questão foi analisada igualmente na vertente de conjugação do direito de acesso à justiça e aos tribunais consignado no artigo 20.º da Constituição e o princípio da proporcionalidade e as garantias de defesa, incluindo o direito ao recurso para apreciação da conformidade constitucional das normas da qual resultava o não conhecimento de recurso.
Vejamos então a evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional donde emergiu o citado n.º 3 do artigo 417.º do Código de Processo Penal.
O Tribunal Constitucional analisou as exigências de formalismo em matéria de recursos, à luz do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, em conjugação com o princípio da proporcionalidade.
É vasta a jurisprudência sobre a constitucionalidade da rejeição de recursos, designadamente, quanto aos ónus das partes nos recursos em processo penal e contra-ordenacional, quando o recorrente não tenha cumprido determinados ónus impostos na lei, pronunciando-se o Tribunal Constitucional pela inadmissibilidade do estabelecimento de desproporcionados e gravosos ónus e ou preclusões ao recorrente em processo penal e assinalando a desconformidade com o princípio das garantias de defesa com a imposição ao arguido de ónus ou preclusões tidos por excessivos ou desproporcionados.
Acórdão n.º 193/1997, de 11 de Março de 1997, proferido no processo n.º 28/95, da 2.ª secção (Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 36.º, págs. 395 a 406) - decidiu julgar inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, os artigos 412.º, n.º 1 e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido da falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem a formulação de convite ao aperfeiçoamento dessas conclusões.
Acórdão n.º 43/99, de 19 de Janeiro de 1999, proferido no processo n.º 46/98, da 1.ª secção, publicado no DR - II Série, n.º 72, de 26-03-1999.
Reafirma a jurisprudência adoptada no acórdão n.º 193/97, de 11 de Março de 1997, defendendo a possibilidade de compaginação entre o princípio da celeridade processual normalmente exigida pelo processo penal e o da plenitude das garantias de defesa, através do convite para corrigir a deficiência das conclusões por serem prolixas ou revelarem falta de concisão.
O acórdão decide julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 412.º, n.º 1 e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido da falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição imediata do recurso, sem que previamente seja feito o convite ao recorrente para aperfeiçoar a deficiência, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição
Acórdão n.º 417/99, de 29 de Junho de 1999, proferido em processo da 1.ª secção, publicado in DR - II Série, n.º 61, de 13-03-2000.
No mesmo sentido, e fazendo aplicação do acórdão n.º 193/97 e do anterior, decide julgar inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, as normas constantes dos artigos 412.º, n.º 1 e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a rejeição liminar do recurso penal, sem que ao recorrente seja previamente dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de concisão.
Acórdão n.º 275/99, de 5 de Maio de 1999, proferido no processo n.º 744/98, da 3.ª secção e publicado no DR - II Série, n.º 161, de 13-07-1999 e no BMJ n.º 487, pág. 61. Julgou inconstitucional, por violação dos artigos 20.º e 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 690.º, n.º 3, do CPC (na redacção anterior à resultante dos Decretos-Lei n.ºs 329-A/95 e 180/96, subsidiariamente aplicável em processo penal ainda regido pelo Código de 1929), quando, para o efeito de decidir que certa alegação não contém conclusões – o que implica o não conhecimento do recurso -, ela se interpreta em termos de considerar relevante um critério baseado exclusivamente no número das conclusões formuladas ou das páginas por elas ocupadas; e
Julgou inconstitucional a mesma norma, na mesma redacção, por violação do princípio da proporcionalidade, consagrado nos n.º s 2 e 3 do artigo 18.º, com referência ao direito de acesso à justiça e aos tribunais, consagrado no artigo 20.º da Constituição, quando interpretado no sentido de que a consequência aí prevista do não conhecimento do recurso se não restringe à parte das conclusões que se mostra efectivamente afectada.
Acórdão n.º 532/2001, de 04 de Dezembro de 2001, (Plenário), proferido no processo n.º 452/2001, DR - II Série, n.º 23, de 28-01-2002, no mesmo processo da 8.ª Vara Criminal de Lisboa, onde foi proferido o anterior acórdão n.º 275/99, determinando a reforma do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça recorrido em conformidade com julgamento de inconstitucionalidade formulado naquele acórdão n.º 275/99.
Acórdão n.º 303/1999, de 18 de Maio de 1999, proferido no processo n.º 942/98, da 2.ª secção, publicado no DR - II Série, n.º 164, de 16-07-1999, e BMJ, n.º 487, pág. 124 - julga inconstitucionais, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, os artigos 63.º, n.º 1, e 59.º, n.º 3, do Regime Geral das Contra-ordenações quando interpretados no sentido da falta de indicação das razões do pedido nas conclusões da motivação levar à rejeição liminar do recurso interposto pelo arguido, sem que tenha havido prévio convite para proceder a tal indicação.
Acórdão n.º 319/1999, de 26 de Maio de 1999, proferido no processo n.º 668/98, publicado no DR- II Série, n.º 247, de 22-10-1999 - decidiu «julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 10, da Constituição, a norma constante dos artigo 59.º, n.º 3 e 63.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10, quando interpretada no sentido de que o recurso apresentado em processo de contra-ordenação sem conclusões deve ser imediatamente rejeitado, sem que o recorrente seja previamente convidado a apresentar as conclusões em falta».
Acórdão n.º 288/2000, de 17 Maio de 2000, proferido no processo n.º 395/99, da 3.ª secção, publicado no BMJ n.º 497, pág. 103, que decidiu «julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a interpretação normativa do artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, que atribui ao deficiente cumprimento dos ónus que nele se prevêem o efeito da imediata rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade processual de suprir o vício detectado».
Acórdão n.º 337/2000, de 27 de Junho de 2000, proferido em Plenário, no processo n.º 183/2000, publicado no DR I.ª Série - A, n.º 167, de 21-07-2000, na sequência de julgamentos de inconstitucionalidade formulados nos supra referidos acórdãos n.º s 43/99 e 417/99 (publicados no DR-II Série, de 26-03-1999 e de 13-03-2000) e n.º 43/00, de 26-01-2000 (proferido na sequência do acórdão n.º 275/99 e no mesmo processo e publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 46.º, pág. 803), decidiu «declarar com, força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante dos artigos 412.º, n.º 1, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal (na redacção anterior à Lei n.º 59/98, de 25 de Agosto), quando interpretados no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação implicar a imediata rejeição do recurso, sem que previamente seja feito convite ao recorrente para suprir tal deficiência».
Acórdão n.º 340/2000, de 04 de Julho de 2000, proferido, em Plenário, no processo n.º 287/00, publicado no DR - II Série, n.º 259, de 09-11-2000 - confirma a decisão do aludido acórdão n.º 43/2000, de 26-01-2000 (Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 46.º, pág. 803), determinando o cumprimento integral do seu julgamento, o qual, por seu turno, indeferira reclamação e mantivera decisão sumária proferida no mesmo processo em que se decidira «julgar inconstitucional a norma constante dos artigos 412.º, n.º 1 e 420.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de a falta de concisão das conclusões da motivação levar à rejeição imediata do recurso, sem que previamente seja feito o convite ao recorrente para aperfeiçoar a deficiência, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição», ou seja, reiterara nos seus precisos termos a decisão proferida no acórdão n.º 43/99.
Acórdão n.º 265/01, de 19 de Junho de 2001, proferido no processo n.º 213/2001, publicado no DR I.ª Série - A, de 16-07-2001, aprovado após julgamento de inconstitucionalidade nos acórdãos n.º 319/99, de 26 de Maio de 1999 (DR- II Série, n.º 247, de 22-10-1999) supra referido e n.º s 509/00 e 590/00 (não publicados, e lavrados na sequência de reclamações interpostas de decisões sumárias, que se ancoraram nos citados acórdãos n.º s 303/99 e 319/99), com a declaração de inconstitucionalidade com força obrigatória geral, por violação dos artigos 32.º, n.º 10 e 18.º, n.º 2, da Constituição, da norma que resulta das disposições conjugadas constantes do n.º 3 do artigo 59.º e do n.º 1 do artigo 63.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27-10, na dimensão interpretativa segundo a qual a falta de formulação de conclusões na motivação de recurso, por via do qual se intenta impugnar a decisão da autoridade administrativa que aplicou uma coima, implica a rejeição do recurso, sem que ao recorrente seja previamente convidado a efectuar tal formulação.
Citando o acórdão n.º 319/99 aí se escreveu que o dever de convidar o recorrente a apresentar as conclusões antes de rejeitar o recurso corresponde à exigência de um processo equitativo, porquanto o essencial do próprio recurso - as alegações ou a motivação - já se encontra nos autos, apenas faltando a fase conclusiva.
Acórdão n.º 388/2001, de 26 de Setembro de 2001, proferido no processo n.º 333/01, da 2.ª secção, publicado no DR-II Série, n.º 258, de 07-11-2001, em reclamação do M.º P.º para a conferência, confirma o juízo de inconstitucionalidade constante da decisão sumária reclamada, com os fundamentos do acórdão n.º 288/2000, de 17 de Maio de 2000, supra referido, que julgou inconstitucional a norma do artigo 412.º, n.º 2, do CPP.
Acórdão n.º 401/2001, de 26 de Setembro de 2001, proferido no processo n.º 746/00, da 2.ª Secção, publicado no DR-II Série, n.º 258, de 07-11-2001, decidiu «julgar inconstitucional, por violação do disposto no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, o artigo 412.º, n.º 2, do CPP, interpretado no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele preceito tem como efeito a rejeição liminar do recurso, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências.
Acórdão n.º 259/2002, de 18 de Junho de 2002, proferido no processo n.º 101/2002, da 1.ª secção, publicado no DR - II Série, n.º 288, de 13-12-2002 (e Acs. Tribunal Constitucional, volume 53.º), decidiu sobre a dimensão normativa em causa num recurso interposto pelo assistente.
Em causa no recurso estava a apreciação da conformidade constitucional das normas do artigo 412.º, n.ºs 3 e 4, do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o assistente impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) do n.º 3 e no n.º 4 do artigo 412.º do CPP tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir o vício dessa falta de indicação, se também da motivação do recurso não constar tal indicação.
Como se extrai desse acórdão “Não sendo a posição do assistente que recorre idêntica à do arguido que recorre, há que perspectivar a questão à luz do disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição e não obviamente à luz do artigo 32.º, n.º 1”.
Aí se pondera que nem da jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa aos recursos de natureza penal (ou contra-ordenacional) nem da relativa aos recursos de natureza não penal “pode retirar-se que o despacho de aperfeiçoamento seja uma exigência constitucional, naqueles casos em que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação ou todos os fundamentos possíveis da motivação. Tal equivaleria no fundo, à concessão de um novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso. Identicamente, não há-de ao assistente reconhecer-se o direito de, por via de um despacho de aperfeiçoamento, beneficiar de novo prazo para impugnar a decisão da matéria de facto”.
A solução foi a de não declarar inconstitucionais as referidas normas.
O caso versado neste acórdão tinha duas especialidades.
Em primeiro lugar o impugnante não era o arguido, mas o assistente, não fazendo sentido invocar o artigo 32.º, mas antes o artigo 20.º da CRP, entendendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional que no domínio não penal (ou contra - ordenacional), deste preceito não decorre um genérico direito à obtenção de um despacho de aperfeiçoamento.
Por outro, o vício não se resume a falta das menções apenas nas conclusões, mas da falta da indicação das menções na própria motivação.
Acórdão n.º 320/2002, de 09 de Julho de 2002, proferido, em sessão plenária, no processo n.º 754/01, publicado no DR - I.ª Série - A, n.º 231, de 07-10-2002, na sequência de julgamentos de inconstitucionalidade formulados nos acórdãos n.º s 288/2000, de 17 de Maio, da 3.ª secção, 388/01, de 26 de Setembro, da 2.ª secção e 401/2001, de 26 de Setembro, da 2.ª secção (o primeiro publicado no BMJ n.º 497, pág. 103 e os restantes no DR - II Série, n.º 258, de 07-11-2001), declarou «com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, da norma constante do artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência».
Acórdão n.º 323/2003, de 02 de Julho de 2003, proferido no processo n.º 195/2003, da 2.ª secção, inédito – julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a interpretação norma normativa dos artigos 411.º, n.º 3, 412.º, n.º 1, e 420.º do Código de Processo Penal, segundo a qual deve ser liminarmente rejeitado o recurso do arguido cuja motivação não contenha conclusões, sem previamente se lhe facultar o suprimento da omissão.
Acórdão n.º 428/2003, de 24 de Setembro de 2003, proferido no processo n.º 532/2002, da 3.ª secção, publicado no DR – II Série, n.º 269, de 20-11-2003 - decidiu «julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma constante dos artigos 412.º, n.º 1, 414.º, n.º 2, e 420.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de conclusões da motivação do recurso conduz à rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência».
Acórdão n.º 529/2003, de 31 de Outubro de 2003, proferido no processo n.º 667/2003, da 3.ª secção, publicado no DR - II Série, n.º 290, de 17-12-2003 (e Acs. Tribunal Constitucional, volume 57.º) - decidiu «julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 412.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas suas alíneas a), b) e c) tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso do arguido nessa parte, sem que ao mesmo seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência».
Acórdão n.º 140/2004, de 10 de Março de 2004, proferido no processo n.º 565/2003, da 2.ª secção, publicado no DR-II Série, n.º 91, de 17-04-2004 (e Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 58.º, pág. 633).
O recurso tinha por objecto a apreciação da constitucionalidade das normas do artigo 412.º, n.ºs 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretadas no sentido de que a falta de indicação, na motivação do recurso em que se impugne matéria de facto, das menções exigidas nesses n.º s 3 e 4, tem como efeito o não conhecimento desta matéria, sem que ao recorrente seja dada oportunidade de suprir tais deficiências.
No caso, não estava em causa qualquer falta das especificações exigidas nos n.º 3, alínea b) e 4 apenas nas conclusões do recurso, mas a sua falta quer nas conclusões quer no próprio texto da motivação do recurso.
A questão tem similitude neste particular com a do acórdão n.º 259/2002, com a diferença de que o recurso é de arguido e não como ali de assistente, mas segue a fundamentação daquele, a par e passo, e que transcreve em larga medida.
Afirma que no caso, não está em causa apenas uma certa insuficiência ou deficiência formal das conclusões apresentadas pelo arguido, mas antes a indicação exigida pela alínea b) do n.º 3 e pelo n.º 4 do artigo 412.º, que é imprescindível logo para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto, e não um ónus meramente formal. “O cumprimento destas exigências condiciona a própria possibilidade de se entender e delimitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, exigindo-se, pois, referências específicas, e não apenas uma impugnação genérica da decisão proferida em matéria de facto”.
Decidiu «não julgar inconstitucional a norma do artigo 412.º, n.º s 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências».
(Este acórdão foi seguido no acórdão de 23 de Maio de 2006, proferido no processo n.º 342/2006, da 2.ª secção - referida a fls. 721 do 65.º volume de Acórdãos do Tribunal Constitucional - a confirmar decisão sumária que não julgou inconstitucional a norma do artigo 412.º, n.º 3, alíneas a), b) e c) e n.º 4, do CPP).
Acórdão n.º 322/2004, de 05 de Maio de 2004, proferido no processo n.º 98/2004, da 3.ª secção, referido nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 59.º, pág. 884, e disponível em www.tribconstitucional.pt, citado no seguinte - decidiu julgar inconstitucional «a norma constante dos n.º s 3 e 4 do artigo 412.º, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugne a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas nas alíneas a), b) e c) daquele n.º 3, pela forma prevista no referido n.º 4, tem como efeito o não conhecimento daquela matéria e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja facultada oportunidade de suprir tal deficiência».
Acórdão n.º 405/2004, de 02 de Junho de 2004, proferido no processo n.º 802/2003, 3.ª secção, publicado no DR - II Série, n.º 172, de 23-07-2004 (e Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 59.º, pág. 665).
Após anotar que, diferentemente do que sucedia no recurso julgado pelo acórdão n.º 140/2004, verifica-se no caso em apreciação que as faltas apontadas apenas ocorrem nas conclusões da motivação, e não na própria motivação em si, decidiu «julgar inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma dos n.º s 3 e 4 do artigo 412.º, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso em que o arguido impugna a decisão sobre a matéria de facto, das menções contidas na alínea a) e, pela forma prevista no n.º 4, nas alíneas b) e c) daquele n.º 3, tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência».
Acórdão n.º 487/04, de 07 de Julho de 2004, proferido no processo n.º 267/99, da 2.ª secção (referenciado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 60.º, pág. 920) - julga inconstitucionais as normas dos artigos 412.º, n.º s 1 e 2 , e 420.º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual o deficiente cumprimento dos ónus previstos no primeiro daquele artigos ou a falta de concisão das conclusões da motivação de recurso levam à rejeição do recurso, sem que seja dada oportunidade aos recorrentes para suprir essas deficiências.
Acórdão n.º 488/04, de 07 de Julho de 2004, proferido no processo n.º 671/2004, da 3.ª secção (igualmente referenciado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 60.º, pág. 920) - confirma decisão sumária, que julgou inconstitucional a norma do artigo 412.º, n.º s 3, alínea b), e 4, do Código de Processo Penal, interpretada no sentido de que a falta, na motivação e nas conclusões de recurso em que se impugne matéria de facto, da especificação nele exigida tem como efeito o não conhecimento desta matéria e a improcedência do recurso, sem que ao recorrente tenha sido dada oportunidade de suprir tais deficiências.
Acórdão n.º 357/2006, de 8 de Junho de 2006, proferido no processo n.º 730/05, da 2.ª Secção, publicado nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 65.º, pág. 722 - «julga inconstitucional, por violação do artigo 32.º, n.º 1, da Constituição, a norma constante do artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de que a falta de indicação, nas conclusões da motivação do recurso do arguido, de forma clara, das provas que impunham decisão diversa da recorrida, tem como efeito o não conhecimento da impugnação da matéria de facto e a improcedência do recurso nessa parte, sem que ao recorrente seja dada a oportunidade de suprir tal deficiência».
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Noutra perspectiva, a jurisprudência do Tribunal Constitucional, ainda na sequência do entendimento de inadmissibilidade do estabelecimento de desproporcionados e gravosos ónus ou preclusões ao recorrente em processo penal, procurou evitar que um lapso do recorrente quanto à incorrecta indicação do tribunal para onde deveria endereçar o recurso, contendo simultaneamente impugnação de matéria de facto e questões de direito, se convertesse na prática na postergação de uma garantia constitucional consagrada para o processo criminal, isto é, em denegação de uma garantia constitucionalmente consagrada, como é a do direito ao recurso.
Nesses casos, o Supremo Tribunal de Justiça, sendo-lhe erroneamente dirigido o recurso, que deveria ser interposto para a Relação, por vezes, nem determinava a remessa dos autos para o tribunal que na sua óptica deveria ser o competente, nem convidava o recorrente no sentido, em face do lapso em que incorrera, a indicar se não pretenderia restringir o recurso a questões de direito, “deixando cair” o recurso sobre questões de facto, pois para aquelas já seria competente o Supremo; é que, na falta de remessa para o tribunal competente e de convite ao aperfeiçoamento, com o não conhecimento do recurso, o resultado seria a irremediável preclusão total do recurso deduzido contra decisão condenatória em pena privativa de liberdade, em caso em que era inequívoca a vontade de recorrer.
Nessa linha situam-se os acórdãos seguintes.
Acórdão n.º 284/2000, de 17 de Maio de 2000, proferido no processo n.º 305/00, da 2.ª secção, publicado in DR – II Série, n.º 258, de 08-11-2000 (e no BMJ n.º 497, pág. 92) - decidiu «julgar inconstitucional, por ofensa do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, o complexo normativo constituído pelos artigos 33.º, n.º 1, 427.º, 428.º, n.º 2 e 432.º, alínea d), todos do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de que, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal colectivo de 1.ª instância pelo arguido e para o STJ, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele tribunal de recurso não pode determinar a remessa do processo ao tribunal da relação».
O acórdão, acolhendo as soluções consagradas no domínio do processo civil, não subordinado ao princípio mais exigente quanto a garantias, constante do n.º 1 do artigo 32.º da CRP, em que avulta o direito ao recurso das decisões condenatórias, mas onde estão previstos regimes procurando obviar a soluções de pura e desproporcionada justiça formal, cita para o efeito os artigos 673.º, n.º 3, do Código de Processo Civil (não se pode indeferir um requerimento de interposição de recurso com fundamento no erro da espécie de recurso), e com particular interesse para o caso, as disposições dos artigos 725.º, n.º 4, e n.º 6, do mesmo preceito, em conjugação com o seu n.º 5 e com os n.ºs 1 e 2 do artigo 722.º, do mesmo Código de Processo Civil.
Acórdão n.º 80/2001, de 21 de Fevereiro de 2001, proferido no processo n.º 637/2000, publicado no DR - I Série - A, n.º 64, de 16-03-2001, e tendo em conta o decidido no acórdão anterior, de que se transcreve significativa parte, e ainda nos acórdãos do mesmo Tribunal Constitucional n.ºs 334/00 e 336/00, declarou inconstitucional, com força obrigatória geral, por violação do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição, a norma que resulta das disposições conjugadas constantes dos artigos 33.º, n.º 1, 427.º, 428.º, n.º 2 e 432.º, alínea d), todos do Código de Processo Penal, quando interpretadas no sentido de que, em recurso interposto de acórdão final proferido pelo tribunal colectivo de 1.ª instância pelo arguido e para o Supremo Tribunal de Justiça, muito embora nele também se intente reapreciar a matéria de facto, aquele tribunal de recurso não pode determinar a remessa do processo ao Tribunal da Relação».
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A partir da reforma de 1998, operada pela citada Lei n.º 59/98, manteve-se o regime de recurso directo dos acórdãos finais proferidos pelo tribunal colectivo para o Supremo Tribunal de Justiça, com a restrição de visar exclusivamente o reexame da matéria de direito – artigo 432.º, alínea d) -, mas mantendo-se os poderes de cognição do sistema de revista alargada, ou a fórmula mitigada de reapreciação de matéria de facto, para utilizar a expressão contida na alínea a) do n.º 15 da aludida Exposição de Motivos, face ao que se contém na parte inicial do artigo 434.º “Sem prejuízo do disposto no artigo 410.º, n.ºs 2 e 3 …”, que reproduz o anterior artigo 433.º, e como dizia o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 07-07-1999 “vincando-se ainda mais o princípio regra em relação aos recursos interpostos na 1.ª instância – da decisão da 1.ª instância interpõe-se recurso para a Relação”.
A Relação passou a conhecer de facto ao nível daquelas decisões, passando a admitir-se recurso de matéria de facto dos acórdãos finais de tribunais colectivos.
Para além do recurso directo para o Supremo, os acórdãos finais dos tribunais colectivos passaram a ser recorríveis para a Relação, nos termos dos artigos 427.º e 428.º, n.º 1 (As relações conhecem de facto e de direito) do Código de Processo Penal.
A partir de então, pretendendo o recorrente impugnar um acórdão final proferido por tribunal colectivo, pode optar por uma de duas coisas: visando exclusivamente o reexame de matéria de direito – artigo 432.º, alínea d) – dirige o recurso directamente ao Supremo Tribunal de Justiça; se não visar exclusivamente este reexame, dirige-o então, de facto e de direito, à Relação (artigos 427.º e 428º, n.º 1, do Código de Processo Penal), caso em que da decisão desta, não sendo caso de irrecorribilidade, nos termos do artigo 400.º do CPP, poderá depois recorrer, para o Supremo Tribunal de Justiça.
Neste caso, porém, o recurso – agora puramente de revista – terá que visar exclusivamente o reexame da decisão recorrida 8ª da relação) em matéria de direito, com exclusão dos eventuais vícios, processuais ou de facto, do julgamento da 1.ª instância, admitindo-se que o Supremo, em certos casos, se possa abster de conhecer do fundo da causa e ordenar o reenvio nos termos processualmente estabelecidos.
A partir de então passou assim a ser possível impugnar (para a Relação) a matéria de facto de duas formas: a já existente revista (então cognominada de ampliada ou alargada) com invocação dos vícios decisórios do artigo 410.º, n.º 2, com a possibilidade de sindicar as anomalias ou disfunções emergentes do texto da decisão, e uma outra, mais ampla e abrangente, porque não confinada ao texto da decisão, com base nos elementos de documentação da prova produzida em julgamento, permitindo um efectivo grau de recurso em matéria de facto, mas impondo-se na sua adopção a observância de certas formalidades.
Passou a estar nas mãos do recorrente a definição do tribunal ad quem, recorrendo para o Supremo Tribunal de Justiça no caso de cingir a divergência a matéria de direito e para a Relação no caso de pretender sindicar matéria de facto, e neste caso, optar por uma das duas citadas vias – uma mais restrita, outra mais abrangente -, escolhendo o tipo e âmbito de cognição da matéria de facto por parte da Relação.
No primeiro caso estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas alíneas a), b) e c) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal, cuja indagação, como resulta do preceito, apenas se poderá fazer através da leitura do texto da decisão recorrida, circunscrevendo-se a apreciação da matéria de facto ao que consta desse texto, por si só considerado ou em conjugação com as regras da experiência comum, sem possibilidade de apelo a outros elementos estranhos ao texto, mesmo que constem do processo.
Nesta forma de impugnação, as anomalias, os vícios da decisão elencados no n.º 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal têm de emergir, resultar do próprio texto, da peça escrita, por si só considerada ou conjugada com as regras da experiência comum, o que significa que os mesmos têm de ser intrínsecos à própria decisão, como peça autónoma.
A possibilidade de introdução do Tribunal ad quem no domínio da facticidade sempre será parcial, restrita, limitada e indirecta, consistindo numa fórmula mitigada de reapreciação da matéria de facto, para utilizar a expressão contida na alínea a) do n.º 15 da aludida Exposição de Motivos; tratando-se de vícios inerentes à decisão, à sua estrutura interna (e não de erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida), de vícios emergentes da decisão documentados no texto, a sua indagação não pode ir além do suporte textual, sem possibilidade de recurso a elementos estranhos àquela peça escrita.
Daí que, conforme jurisprudência uniforme e já remota deste Supremo Tribunal, se entenda que os vícios têm de resultar da própria decisão recorrida, encarada por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, analisada na sua globalidade, mas sem recurso a quaisquer elementos estranhos à peça decisória, que lhe sejam externos, constando do processo em outros locais, como documentos juntos ou depoimentos colhidos ao longo do processo - acórdãos do STJ de 29-11-1989, processo n.º 40255/89-3ª; de 19-12-1990, processo n.º 41327/90-3ª, in BMJ n.º 402, pág. 232; de 31-05-1991, in BMJ n.º 407, pág. 77; de 03-07-1991, Colectânea de Jurisprudência 1991, tomo 4, pág. 12; de 16-10-1991, in BMJ n.º 410, pág. 10; de 13-02-1992, in BMJ n.º 414, pág. 389; de 22-09-1993, CJSTJ 1993, tomo 3, pág. 210; de 09-11-1994, CJSTJ 1994, tomo 3, pág. 245; de 20-03-1995, BMJ n.º 445, pág. 335 (não é inconstitucional e não viola o princípio do duplo grau de jurisdição em matéria de facto, a norma do n.º 2 do artigo 410º CPP, ao exigir que os vícios tenham de resultar do texto da decisão recorrida); de 18-09-1996, BMJ n.º 459, pág. 283; de 25-09-1996, BMJ n.º 459, pág. 304; de 17-10-1996, BMJ n.º 460, pág. 399; de 15-10-1997, processo n.º 582/97; de 19-11-1997, processo n.º 873/97-3ª; de 20-11-1997, processo n.º 1242/97-3ª; de 11-03-1998, BMJ n.º 475, pág. 480; de 28-10-1998 e de 29-10-1998, in BMJ, n.º 480, págs. 83 e 292.
E mais recentemente: de 15-02-2007, processo n.º 3174/06 - 5.ª; de 14-03-2007, processo n.º 617/07 - 3.ª; de 17-05-2007, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 197; de 23-05-2007, processo n.º 1405/07 - 3.ª; de 11-07-2007, processo n.º 1416/07 - 3.ª, de 27-07-2007, processo n.º 2057/07-3.ª; de 24-10-2007, processo n.º 3338/07-3ª; de 17-01-2008, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 206; de 05-03-2008, processo n.º 3259/07-3.ª; de 12-06-2008, processo n.º 4375/07-3ª; de 19-06-2008, processo n.º 122/08-5ª (por conseguinte, não será lícito recorrer à prova produzida para se surpreender qualquer dos referidos vícios, exactamente porque não se pode confundir aqueles, enquanto afectam, de forma patente, a estruturação fáctica interna, em que há-de ter apoio a decisão de direito, com erro de julgamento); de 16-10-2008, processo n.º 2851/08-5ª; de 22-10-2008, processo n.º 215/08-3ª; de 04-12-2008, processo n.º 2486/08-5ª; de 14-05-2009, processo n.º 1182/06.3PAALM.S1-3.ª (Veja-se ainda o acórdão n.º 573/98, de 13-10-1998, publicado no DR – II Série, n.º 263, de 13-11-1998).
Como se extrai dos acórdãos do STJ de 11-12-1996, in BMJ n.º 462, pág. 207 e de 12-11-1997, processo n.º 32507, característica comum a todos os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º, do Código de Processo Penal, a fim de fundamentarem o reenvio do processo para novo julgamento, quando insanáveis no tribunal da recurso, é que resultem do texto da decisão recorrida, sem influência de elementos exteriores àquela, a não ser as regras da experiência comum.
Trata-se de vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei. Vícios da decisão, não do julgamento, como se exprime Maria João Antunes (Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Janeiro-Março de 1994, pág. 121).
Na análise a efectuar para detecção do vício há que ter em conta que a fixação da matéria de facto teve na sua base uma apreciação da prova, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, nos termos do artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do CPP, nomeadamente, o erro notório na apreciação da prova, não podem ser confundidos com a insuficiência de prova para a decisão de facto proferida ou com a divergência entre a convicção pessoal do recorrente sobre a prova produzida em audiência e a convicção que o tribunal firme sobre os factos, questões do âmbito da livre apreciação da prova, princípio inscrito no citado normativo - artigo 127.º do CPP.
Não podendo, neste tipo de análise, prevalecer-se de prova documentada, nem se encontrando perante prova legal ou tarifada, não pode o tribunal superior sindicar a boa ou má valoração daquela, e querer discutir, nessas condições, a valoração da prova produzida é afinal querer impugnar a convicção do tribunal, olvidando a citada regra.
Neste aspecto, o que releva, necessariamente, é essa convicção formada pelo tribunal, sendo irrelevante, no âmbito da ponderação exigida pela função de controlo ínsita na identificação dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, do CPP, a convicção pessoalmente alcançada pelo recorrente sobre os factos.
Para avaliar se a convicção formada pelo tribunal padece dos aludidos vícios há, que apreciar, por um lado, a fundamentação da decisão quanto à matéria de facto (os fundamentos da convicção) e, por outro, a natureza das provas produzidas e os processos intelectuais que o conduziram a determinadas conclusões.
O erro-vício não se confunde com errada apreciação e valoração das provas, com o erro de julgamento relativamente à apreciação e valoração da prova produzida. Tendo como denominador comum a sindicância da matéria de facto, são muito diferentes na sua estrutura, alcance e consequências. Aquele examina-se, indaga-se, através da análise do texto; esta, porque se reconduz a erro de julgamento da matéria de facto, analisa-se em momento anterior à produção do texto, na ponderação conjugada e exame crítico das provas produzidas do que resulta a formulação de um juízo, que conduz à fixação de uma determinada verdade histórica que é vertida no texto; daí que a exigência de notoriedade do erro se não estenda ao processo cognoscitivo/valorativo, cujo resultado vem a ser inscrito no texto, só este sendo susceptível de apreciação.
No segundo caso – impugnação da matéria de facto nos termos dos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º do Código de Processo Penal - a apreciação pelo tribunal superior já não se restringe ao texto da decisão, mas abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.º s 3 e 4 do artigo 412.º do CPP, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do artigo 431.º, alínea b), do Código de Processo Penal.
Esta possibilidade de sindicância de matéria de facto, não sendo tão restrita como a operada através da análise dos vícios decisórios - que se circunscreve ao texto da decisão em reapreciação - por se debruçar sobre a prova produzida em audiência de julgamento, sofre, no entanto, quatro tipos de limitações.
Desde logo, uma limitação decorrente da necessidade de observância por parte do recorrente de requisitos formais da motivação de recurso face à imposta delimitação precisa e concretizada dos pontos da matéria de facto controvertidos, que o recorrente considera incorrectamente julgados, com especificação dos concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, das concretas provas e referência ao conteúdo concreto dos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente e que impõem decisão diversa da recorrida, tudo com referência ao consignado na acta, com o que se opera a delimitação do âmbito do recurso. Esta exigência é de entender como contemplando o princípio da lealdade processual, de modo a definir em termos concretos o exacto sentido e alcance da pretensão, de modo a poder ser exercido o contraditório.
A reapreciação por esta via não é global, antes sendo um reexame parcelar, restrito aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e às concretas razões de discordância, necessário sendo que se especifiquem as provas que imponham decisão diversa da recorrida e não apenas a permitam, não bastando remeter na íntegra para as declarações e depoimentos de algumas testemunhas.
Já a nível do poder cognitivo do tribunal de recurso, temos a limitação decorrente da natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, a não vivência do julgamento, sede do contraditório, circunscrevendo-se o “contacto” com as provas ao que consta das gravações. Não se pode olvidar que o juízo feito pelo Tribunal da Relação será sempre um juízo distanciado, falho de proximidade de que a instância é beneficiária, não colhido em directo e ao vivo, como ocorre com a 1.ª instância em que a percepção e convicção criada pelo julgador decorre da oralidade com que decorre a audiência de julgamento e da imediação da recolha das provas, de que é indissociável a livre apreciação da prova.
Por outro lado, há limites à pretendida reponderação de facto, já que a Relação não fará um segundo/novo julgamento integral.
Pede-se ao tribunal de recurso uma intromissão no julgamento da matéria de facto, um juízo substitutivo do proclamado na 1.ª instância, mas há que ter em atenção que o duplo grau de jurisdição em matéria de facto não visa a repetição do julgamento em segunda instância, não impõe uma avaliação global, não pressupõe uma reapreciação pelo tribunal de recurso do complexo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida e muito menos um novo julgamento da causa, em toda a sua extensão, tal como ocorreu na 1.ª instância, tratando-se de um reexame necessariamente segmentado, não da totalidade da matéria de facto, envolvendo tal reponderação um julgamento/reexame meramente parcelar, de via reduzida, substitutivo.
Como o Supremo Tribunal de Justiça tem reafirmado o recurso da matéria de facto perante a Relação não é um novo julgamento em que a 2.ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada em 1.ª instância, como se o julgamento não existisse, tratando-se antes de um remédio jurídico, destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros e não indiscriminadamente, de forma genérica, quaisquer eventuais erros.
Neste sentido podem ver-se os acórdãos de 17-05-2007, processo n.º 1397/07 - 5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 197 (citando o acórdão do Tribunal Constitucional, n.º 59/2006, de 18-01-2006, proferido no processo n.º 199/2005, da 2.ª secção); de 05-12-2007, processo n.º 3406/07 - 3.ª; de 09-01-2008, processo n.º 2075/07 - 3.ª e processo n.º 4457/07 - 3.ª; de 17-01-2008, processo n.º 2696/07-5.ª, CJSTJ 2008, tomo 1, pág. 206 (fazendo aquela mesma citação do acórdão n.º 59/2006); de 23-04-2008, processo n.º 899/08-3.ª, CJSTJ 2008, tomo 2, pág. 205; de 07-05-2008, processo n.º 294/08 – 3.ª; de 14-05-2008, processo n.º 1139/08 – 3.ª; de 04-06-2008, processo n.º 1126/08 - 3ª; de 18-06-2008, processo n.º 1971/08 – 3.ª; de 20-11-2008, processo n.º 3269/08 - 5.ª; de 03-09-2008, processo n.º 2031/04 - 3.ª; de 15-10-2008, processo n.º 2894/08 – 3.ª; de 23-10-2008, processo n.º 2869/08 – 5.ª; de 29-10-08, processo n.º 1016/07 – 5.ª; de 27-01-2009, processo n.º 3978/08 – 3.ª (trata-se de um julgamento de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas); de 26-02-2009, processo n.º 3270/08 - 5.ª; de 27-05-2009, processo n.º 145/05 - 3.ª e processo n.º 1511/05.7PBFAR.S1 - 3.ª.
Aliás, esta limitação de cognição da matéria de facto, por parte do Tribunal da Relação, sempre esteve presente, como logo esclareceu o primeiro diploma legal onde se estabeleceu a documentação das declarações orais.
Com efeito, como foi afirmado no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 39/95, de 15 de Fevereiro, o registo da prova produzida em audiência visava assegurar um verdadeiro e efectivo 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto, mas acrescentando-se que essa garantia “nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência - visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente sempre terá o ónus de apontar claramente e fundamentar na sua minuta de recurso”.
E que “o objecto do 2.º grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não é a pura e simples repetição das audiências perante a Relação, mas, mais singelamente, a detecção e correcção de concretos, pontuais e claramente apontados e fundamentados erros de julgamento, o que atenuará sensivelmente os riscos emergentes da quebra da imediação na produção da prova (que, aliás, embora em menor grau, sempre ocorreria, mesmo com a gravação em vídeo da audiência)”.
E como se pode ver dos acórdãos do Tribunal Constitucional, n.º 124/90, publicado no DR - II Série, de 08-02-1991; n.º 322/93, publicado no DR - II Série, de 29-10-1993; n.º 677/99, de 21-12-1999, publicado no DR - II Série, de 28-02-2000, o sentido é o mesmo, podendo ler-se:
“Com o recurso não se pretende um novo julgamento da matéria de facto.
Tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência da imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito: basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal de recurso”.
Podem ver-se ainda, com interesse para a matéria que nos ocupa, os acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 253/92, publicado no DR - II Série, de 27-10-92, n.º 401/91, proferido no processo n.º 205/91, da 1.ª secção, e publicado no DR - I Série - A, n.º 6, de 8 de Janeiro de 1992 e no BMJ n.º 410, pág. 236 (o direito ao recurso sobre a matéria de facto não implica renovação de prova perante o tribunal ad quem) e n.º 573/98, de 13-10-1998, publicado no DR – II Série, n.º 263, de 13-11-1998.
Segundo o acórdão n.º 181/99, de 10 de Março de 1999, proferido no processo n.º 699/98, publicado no DR - II Série, n.º 174, de 28-07-1999, «o segundo grau de jurisdição em matéria de facto em parte alguma reveste a natureza de um direito potestativo do arguido a ver repetida “sem quaisquer limitações” a prova produzida, o que corresponderia, na prática a inutilizar todas as primeiras decisões probatórias que culminassem em condenação».
E como refere o acórdão n.º 59/2006, de 18 de Janeiro de 2006, proferido no processo n.º 199/05, da 2.ª secção, publicado no DR - II Série, de 13-04-2006 (e Acórdãos do Tribunal Constitucional, volume 64.º, pág. 359) o recurso em matéria de facto decidido pelo Tribunal da Relação implica, não a realização de um novo julgamento, que ignorasse o julgamento realizado em 1.ª instância, mas uma reapreciação da matéria de facto, na qual têm aplicação os princípios da imediação e da oralidade, embora condicionados à natureza própria do meio impugnatório.
«O tribunal superior procede então à reanálise dos meios de prova concretamente indicados (ou as questões cuja solução foi impugnada) para concluir pela verificação ou não do erro ou vício de apreciação da prova e daí pela alteração ou não da factualidade apurada (ou da solução dada a determinada questão de direito).
A intromissão da Relação no domínio factual cingir-se-á a uma intervenção “cirúrgica”, no sentido de delimitada, restrita à indagação, ponto por ponto, da existência ou não dos concretos erros de julgamento de facto apontados pelo recorrente, procedendo à sua correcção, se for caso disso, e apenas na medida do que resultar do filtro da documentação.
A juzante impor-se-á um último limite que tem a ver com o facto de a reapreciação só poder determinar alteração à matéria de facto assente se o Tribunal da Relação concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitam uma outra decisão.
Os condicionamentos ou imposições a observar no caso de recurso de facto, referidos nos n.ºs 3 e 4 do artigo 412º constituem mera regulamentação, disciplina e adaptação aos objectivos do recurso, já que a Relação, como se referiu, não fará um segundo julgamento de facto, mas tão só o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento, que tenham sido referidos no recurso e às provas que imponham (e não apenas sugiram ou permitam outra) decisão diversa indicadas pelo recorrente, uma reapreciação restrita aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados e das razões de discordância.
Como referimos no acórdão de 05-12-2007, processo n.º 3406/07, «Esse imprescindível e indeclinável contributo do recorrente para a pedida reponderação da matéria de facto corresponde a um dever de colaboração por parte do recorrente e sua responsabilização na demarcação da vinculação temática deste segmento da impugnação, constituindo tais formalidades factores ou meios de segurança, quer para as partes quer para o tribunal».
O que está em causa é no fundo a delimitação objectiva do recurso, com a fundamentação da pretensão e o esclarecimento dos objectivos a que se propõe o recorrente, com um especial ónus a cargo do recorrente, impondo-se-lhe o dever de tomar posição clara nas conclusões sobre o que é objecto do recurso, especificando o que no âmbito factual pretende ver reponderado, assim como na hipótese de renovação deve especificar as provas que devem ser renovadas (alínea c) do n.º 3 do artigo 412.º).
Como se diz no acórdão de 08-03-2006, processo n.º 185/06-3ª “O ónus conexiona-se com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto”, e como se sintetiza nos acórdãos de 10-01-2007, processo n.º 3518/06-3ª e de 15-10-2008, processo n.º 2894/08-3ª “A delimitação precisa dos pontos de facto controvertidos constitui um elemento determinante na definição do objecto do recurso em matéria de facto e para a consequente possibilidade de intervenção do tribunal de recurso”- cfr. ainda acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 12-06-2005, processo n.º 1577/05-3ª; de 08-02-2006, processo n.º 2892/05- 3ª (no sentido de que não vale uma impugnação genérica); de 04-01-2007, processo n.º 4093/06-3ª; de 25-01-2007, processo n.º 4551/06-5ª; de 28-02-2007, processos n.ºs 4698/06 e 35/07, ambos da 3ª secção; de 16-05-2007, processo n.º 1395/07-3ª; de 04-07-2007, processo n.º 2304/07-3.ª.
Como se refere no acórdão de 27-01-2009, processo n.º 3978/08-3.ª, “O julgamento efectuado pela Relação é de via reduzida, de remédio para deficiências factuais circunscritas, confinadamente a pontos específicos, concretamente indicados, não valendo uma impugnação genérica, repousando em considerações mais ou menos alargadas ou simplesmente abrangentes da leitura pessoal, unilateralista e interessada que os sujeitos processuais fazem das provas e do resultado a que devam chegar.
A extensão desse julgamento, restrito a pontos de facto concretos, é uma conclusão recorrente deste STJ, tanto bastando para se rejeitar, liminarmente, a pretensão do recorrente com o sentido de atingir toda a matéria de facto – cf. Ac. de 09-03 2006, Proc. n.º 06P461”.
Como é sabido, a impugnação da matéria de facto nos termos do artigo 412.º, n.º s 3 e 4, do Código de Processo Penal, constitui a área por excelência, a hipótese única, em que se verifica o duplo grau de jurisdição em matéria de facto.
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Constitui princípio geral do direito processual que o tribunal deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, como decorre da primeira parte do n.º 2 do artigo 660.º do Código de Processo Civil, aplicável ex vi do artigo 4.º do Código de Processo Penal.
Omitindo o tribunal este dever de julgamento, quando o juiz/tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar, a respectiva decisão é nula – artigos 668.º, n.º 1, alínea d), do CPC e 379.º, n.º 1, alínea c), do CPP.
Como vimos, a parte que impugna matéria de facto tem um duplo ónus: por um lado, o de circunscrever ou delimitar, de forma precisa e sintética, o objecto do recurso, indicando claramente a parcela ou segmento da decisão que considera viciada e por outro, fundamentar, de forma concludente, as razões por que discorda do decidido, indicando os meios probatórios que conduzam a decisão diversa da tomada, quanto a concretos pontos de facto que pretende impugnar.
Os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão em matéria de facto, a exemplo do que ocorre com o artigo 690.º - A, do CPC, decorre dos princípios estruturantes da cooperação, lealdade e boa fé processuais, com vista a assegurar a seriedade do recurso e obviar que os poderes da Relação sejam utilizados para fins dilatórios.
Cumpridos que sejam os requisitos estabelecidos nos n.º 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal, o recorrente tem direito à reapreciação da matéria de facto fixada em 1.ª instância pelo colectivo, o que envolve necessariamente uma nova apreciação das provas produzidas e a emissão de um novo juízo em matéria de facto, embora rigorosamente restrito aos pontos questionados pelo recorrente.
O Supremo Tribunal de Justiça já se pronunciou por verificação de nulidade de acórdão da Relação por omissão de pronúncia, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), aplicável por força do artigo 425.º, n.º 4, do Código de Processo Penal, pelo menos nos seguintes acórdãos:
- de 17 de Maio de 2007, proferido no processo n.º 1397/07, da 5.ª secção, publicado na CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 197, elaborado antes, pois, da reforma de Setembro de 2007, cujo sumário se passa a transcrever:
“Havendo impugnação da matéria de facto, o Tribunal da Relação tinha de proceder a uma efectiva reapreciação dos pontos da matéria de facto cuja sindicância foi pedida, através dos meios de prova transcritos, não bastando tecer comentários sobre princípios processuais ou baseados apenas na fundamentação da sentença recorrida.
Se houver o entendimento de que os recorrentes não obedeceram completamente aos comandos previstos no art.º 412.º, n.º s 3 e 4, deverá o Tribunal da Relação mandar aperfeiçoar as conclusões, a fim de assegurar um segundo grau de recurso em matéria de facto.
Assim não tendo acontecido, está-se perante uma situação de omissão de pronúncia, que leva à anulação da decisão objecto de recurso”.
Já no domínio da nova lei podem ver-se os acórdãos de 14-05-2008, processo n.º 1139/08-3.ª; de 03-07-2008, processo n.º 1312/08-5.ª; de 15-10-2008, processo n.º 2894/08-3.ª; de 22-10-2008, processo n.º 3066/08-3.ª; de 23-10-2008, processo n.º 2869/08-5.ª; de 05-11-2008, processo n.º 2963/08-3.ª de 19-11-2008, processo n.º 3550/08-3.ª; de 04-12-2008, processo n.º 1886/08-5.ª, CJSTJ 2008, tomo 3, pág. 247; de 18-02-2009, processo n.º 4128708-3.º e processo n.º 2879/08-3.ª; de 20-01-2010, processo n.º 149/07.9JELSB.E1.S1-3.ª e 112/08.2GACDV.L1.S1-3.ª, de 03-03-2010.
Como referiu o acórdão de 9-01-2008, processo n.º 2075/07-3.ª “no recurso da matéria de facto pede-se ao tribunal superior uma intromissão no julgamento daquela matéria, situando-se a alienidade a ela numa postura de muito clara denegação do direito ao recurso nessa sede”.
Revertendo ao caso concreto.
Em primeiro lugar, há que assinalar que lida a motivação de recurso, dúvidas não haverá de que o arguido pretendia impugnar a matéria de facto dada por provada pelo Colectivo de Setúbal.
Com efeito, logo no requerimento de interposição do recurso para a Relação, a fls. 3124, refere o recorrente, claramente, que “o presente recurso visa o reexame da matéria de facto - nos termos do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, tendo por base o registo da prova efectuado em audiência, e também o reexame da matéria de direito”.
Na motivação apresenta um segmento «III - Recurso sobre matéria de facto», a fls. 3129, identificando:
A) Pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados – fls. 3129 a 3139;
B) Do registo, não atendido pelo tribunal a quo, da prova produzida em audiência e julgamento com relevância para a decisão - fls. 3139 a 3151;
C) Factos que o recorrente considera que o tribunal a quo devia ter considerado provados – fls. 3151/2;
D) Factos que o recorrente considera que o tribunal a quo devia ter considerados não provados – fls. 3152/3.
Para melhor percepção da questão, vejamos as conclusões apresentadas pelo recorrente no anterior recurso, constantes de fls. 3185 a 3193:
«Cumpre referir que o tribunal a quo baseou a sua convicção, única e exclusivamente, nos depoimentos dos co-arguidos/testemunhas do ora recorrente.
Acresce que, perante a prova produzida em audiência de julgamento, o tribunal a quo deveria ter considerado assentes factos que se afiguram de importância fundamental para a boa solução e compreensão da causa, mas que, ao invés, foram pura e simplesmente desconsiderados, não constando nem na lista de factos provados, nem dos factos não provados.
Salvo o melhor e, bem devido respeito, o tribunal a quo não examinou convenientemente a matéria de facto - nos termos das alíneas a) a c) do n.º 3 do art. 412º do C.P.P., então invocada, nem procedeu ao exame da matéria de direito (a que estava obrigado).
Ao invés, aproveitando-se da decisão proferida (cfr. fls. 674 a 745) em 26 de Julho de 2007, ainda não transitada, onde foram condenados os co-arguidos testemunhas, decidiu, valorando a prova ali dada como assente e como não assente, para fundamentar a condenação do ora recorrente.
Ainda que, a defesa não tenha sido profícua na transmissão da matéria que impugnava, sempre cabia ao tribunal a quo a sua avaliação integral.
Não andou bem o tribunal a quo que limitou-se a condenar com base no depoimento dos co-arguidos. Não fez, no nosso entendimento, a correcta subsunção do direito aos factos considerados provados. Se não vejamos,
Na verdade, reputa o recorrente o acórdão recorrido como injusto e insuficiente, à luz dos princípios básicos que regem o processo penal, de lógica e de bom senso e, sobretudo, à luz de critérios elementares de justiça material ou distributiva.
Na verdade, todas as questões e perplexidades invocadas na presente motivação (a qual se dá por reproduzida na integra) restam sem solução no acórdão recorrido.
Ora, com tal decisão e com a sua fundamentação não pode o arguido conformar-se, no seu se e no seu como, porquanto a mesma não relevou, nem da prova produzida em julgamento, nem tem expressão do que resultou da investigação realizada, como se impõe inequivocamente no processo penal, enquanto corolário dos princípios que conferem legitimidade e legitimação a um Estado de Direito que se pretende democrático, nas vestes e com o monopólio do poder punitivo estadual.
O recorrente invoca a nulidade de todo o processado, no que a si concerne, impugna a matéria de facto considerada provada, evidencia o erro no enquadramento jurídico dos factos, invoca a violação do princípio in dubio pro reo e insurge-se contra a medida da pena.
Cumpre referir que o tribunal a quo baseou a sua convicção, única e exclusivamente, nos depoimentos dos co-arguidos do recorrente. Estes depoimentos não podiam ter o bastante valor probatório que o tribunal a quo lhe conferiu.
«A declaração do arguido é apenas fundamento da decisão proferida contra si; não deve ser valorada para fundamentar a decisão contra o co-arguido.» Vd. “O Conhecimento Probatório do Co-Arguido”, Bol. Fac. Direito, Stvdia Ivridica 42, pág. 149. (o sombreado é nosso) E, ainda,
“Segundo, a apreciação do valor probatório do depoimento do arguido feito contra um seu co-arguido no mesmo processo ou em processo conexo deve suscitar especiais cautelas ao julgador. Assim, viola o princípio da presunção da inocência a fundamentação exclusiva da condenação na valoração do depoimento do co-arguido. (acórdão do STJ, de 12.7.2006, in CJ, Acs. Do STJ, XIV, 2, 241, acórdão do STJ, de 7.12.2005, in CJ, Acs. Do STJ, XIII, 3, 227, e acórdão do TRL, de 31.5.2007, in CJ, XXXII, 3, 126, e na doutrina, MEDINA DE SEIÇA, 1999: 228, e GERMANO MARQUES DA SILVA, 2002: 192)” (cfr. Comentário do CPP, P.P. Albuquerque, anot. 10 ao art.º 346º, 2ª ed., pág. 871). (o sombreado é nosso)
Não verificada a possibilidade de corroboração da versão apresentada pelos co-arguidos, o tribunal a quo devia abster-se de considerar como factos assentes e absolver o ora recorrente atenta a manifesta violação do principio da presunção de inocência. Por outro lado,
Com efeito, a técnica consagrada no acórdão recorrido consiste em remeter os concretos problemas levantados pelo recorrente e confrontá-los com a fundamentação do acórdão proferido (cfr. fls. 674 a 745) em 26 de Julho de 2007, ainda não transitado, num tipo de discurso que se traduz em generalizar, para evitar apreciar o caso concreto.
Lamentavelmente, errou na qualificação jurídica do crime de homicídio qualificado e homicídio qualificado na forma tentada, por manifesta inadequação, e na aplicação, ainda que dúvidas existissem (in dubio pro reo).
Perante os factos que se deixam descritos e respectivo enquadramento jurídico, crê o recorrente que a existirem ou subsistirem dúvidas insupríveis na avaliação da prova, tais dúvidas não podem ser valoradas contra si.
É o que impõe o princípio in dubio pro reo, como contra pólo do princípio da oficiosidade que caracteriza o processo penal.
E sempre se diga, nunca é demais repetir, que: “1. Nos termos do nº2 do artigo 32º da Constituição da República, «todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa». Por sua vez, a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 10 de Dezembro de 1948 (cuja autoridade interpretativa e integradora em matéria de direitos fundamentais está estabelecida no artigo 16º, nº 2 da Constituição da República), estatui, no nº1 do seu artigo 11º, que «toda a pessoa acusada de um acto delituoso presume-se inocente até que a sua culpabilidade fique legalmente provada no decurso de um processo público em que todas as garantias necessárias de defesa lhe sejam asseguradas». De igual modo, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos, de 1976, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de infracção penal é de direito presumida inocente até que a sua culpabilidade tenha sido legalmente estabelecida» (artigo 14º, nº2), e na Convenção Europeia dos Direitos do Homem, de 1950, estabelece-se que «qualquer pessoa acusada de uma infracção presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada» (artigo 6º, nº2).” Vd. “O Principio da Presunção de Inocência do Arguido no Actual Processo Penal Português”, AAFDL, Rui Patrício, 2000.
Pelo exposto, o tribunal recorrido ao não ter aplicado o princípio in dubio pro reo, não procedeu em conformidade com os princípios que norteiam a apreciação da prova, princípio este que assim deverá ser, caso se julgue necessário, aplicado por V. Ex.ªs na apreciação da matéria que motiva o presente recurso.
Cumpre, ainda, referir que do tipo subjectivo, avulta a falta insuprível do dolo, como conhecimento e vontade de realização do tipo objectivo, isto é, da realização do ilícito típico do crime de homicídio.
Da leitura atenta dos autos, da prova produzida em audiência e julgamento e pelo ora invocado na motivação (que damos por integralmente reproduzida), jamais se poderá considerar configurada a prática do crime de homicídio qualificado p.p. pelos artigos 131º e 132º n.º 1 e n.º2 alíneas g) e i) do Código Penal. E, consequentemente, na sua forma tentada.
O recorrente, assim, reitera tudo o que já alegou em sede de motivação, porquanto no caso em apreço não se encontram preenchidos os pressupostos objectivos e, muito menos, os pressupostos subjectivos para que possa existir condenação por homicídio e homicídio qualificado.
Ora, dispõe o art. 374.º, n.º 2 do C.P.P. (Requisitos da Sentença), aplicável ex vi do art. 425.º, n.º 4 do CPP que:
“2 - Ao relatório segue-se a fundamentação (...), bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, (...)”
Dispondo, por sua vez, o art. 379.º (Nulidade da Sentença) o seguinte:
“1. É nula a sentença:
Que não contiver as menções referidas no art.º 374º, n.º 2 e 3, alínea b);
a) (...)
b. c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Ora, embora a lei não determine o grau ou a extensão da fundamentação, não basta dizer que sim ou que não; é preciso o tribunal debater-se perante cada questão especificamente colocada pelo recorrente e apresentar uma solução, especificando o porquê, em que se funda o seu sentido.
A fundamentação deve ser um desenvolvimento das premissas previamente enunciadas, para que, mais do que vencer, a decisão logre convencer e demonstrar-se perante os seus destinatários como plena, racional e motivada.
Parafraseando Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. II, pág. 293: “É hoje entendimento generalizado que um sistema de processo penal inspirado nos valores democráticos não se compadece com decisões que hajam de impor-se apenas em razão da autoridade de quem as profere, mas antes pela razão que lhes subjaz. Por isso que todos os Códigos modernos exigem a fundamentação das decisões judiciais, quer em matéria de facto, quer em matéria de direito”. (...)
“A fundamentação dos actos é imposta pelos sistemas democráticos com finalidades várias: permite a sindicância da legalidade do acto, por uma parte, e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça (...) ”.
Ora, da decisão recorrida, restam sem solução ou resposta questões importantíssimas que foram legal e oportunamente suscitadas, que o tribunal a quo se limita, superficialmente, a resolver de forma redutora, remetendo para abstracções e generalidades, sem qualquer apoio nas concretas questões a apreciar.
Pelo que a não apreciação de tais questões conforma omissão de pronúncia, a implicar a declaração de invalidade do acórdão recorrido.
Deste modo, padece o acórdão recorrido de nulidade por ausência de fundamentação e omissão de pronúncia quanto a questões de que o tribunal a quo deveria obrigatoriamente ter tomado conhecimento, o que determina a declaração da sua invalidade e a sua substituição por outro que se pronuncie sobre todas as questões suscitadas, com respeito pelo correlativo dever de fundamentação que devem revestir todas as decisões judiciais.
A não pronúncia sobre tais questões além de geradora de nulidade, nos termos gerais do art.º 379º, n.º 1, al. c) do C.P.P. acima mencionados, consubstancia uma inconstitucionalidade, por violação dos arts. 32º n.º 1, 203º e 205º, n.º 1 da C.R.P., inconstitucionalidade essa que desde já se argui para todos os efeitos legais.
O recorrente entende que, o acórdão condenatório devia ser considerado nulo, devendo proceder-se a novo julgamento.
Sem conceder, e caso V. Ex.ª não acolham o teor da presente motivação, cumpre analisar a medida da pena encontrada pelo tribunal a quo.
Com efeito, perante a prova produzida em audiência e julgamento e a que se transferiu para a motivação, tal pena afigura-se manifestamente injusta, desajustada e desproporcional.
«As penas serão tanto mais justas quanto maior for a liberdade que o soberano conserve aos indivíduos e quanto mais sagrada e mais inviolável for ao mesmo tempo a segurança de todos.» - C. Beccaria, “Dei delitti e delle pene”, in Opere, II, Firenze, 1958, pág.49.
Preceitos violados: artº 70º, 71º, 72º, 131º, 132º do C.P. e 125º, 127º, 374º nº2, 379º n.º 1 al. a) do CPP e, ainda, 13º e 32º n.º1 da C.R.P..
Pelo exposto, deve o recurso ser julgado procedente por provado e, consequentemente:
a) Declarar a nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia e do dever de fundamentação;
b) Alterar a decisão sobre matéria de direito verificando a inexistência dos elementos subjectivo e objectivo do crime de homicídio qualificado e homicídio qualificado na forma tentada;
c) Ordenar a realização de novo julgamento;
d) Sindicar-se o princípio da “livre apreciação da prova”, enquanto princípio jurídico, de apreciação de prova, logo, matéria de direito, para concluir pela inadmissibilidade da prova por concatenação geral, aplicada no presente caso, por não derivar das regras da lógica e da experiência comum;
e) Aplicar-se o principia in dubio pro reo;
f) Por último, caso não se acolha a fundamentação expressa no presente recurso, diminuir substancialmente a medida da pena aplicada ao arguido.»
Sobre a questão assim discreteou o acórdão recorrido:
«C) Da modificação da decisão sobre a matéria de facto:
A decisão proferida sobre a matéria de facto pode ser modificada pelo Tribunal da Relação, se e quando a prova tiver sido impugnada nos termos do artº 412º/3 e 4, do CPC, -vide artº 431º/b), do mesmo diploma.
Na realidade, o recurso da matéria de facto vem concebido pela lei como remédio jurídico e não como instrumento de refinamento jurisprudencial. (em nota de rodapé: «Cf. Simas Santos e Leal Henriques, em “Recursos em Processo Penal” 7ª edição, actualizada e aumentada, 2008, pág. 105»). Dito de outro modo o recurso da matéria de facto não foi concebido como instrumento ao serviço da realização de novo julgamento, com reapreciação de toda a prova que fundamenta a decisão recorrida, como se o julgamento efectuado na primeira instância não tivesse existido. Trata-se, tão-somente, de um instrumento concebido para a correcção de erros de julgamento e de procedimentos, devidamente discriminados pelas partes. (Em nota de rodapé «Cf Ac do TC n.º 59/206 de 18/01/2006, no proc. 199/2005, em, www.tribunalconstitucional.pt, e Acs. do Supremo Tribunal de Justiça de 27/01/2009, e de 20/11/2008, tirados, respectivamente nos procs. 08P3978 e 08 P3269, em www.dgsi.pt, e de17/05/2007, na CJSTJ 2007, II, 197).
O recorrente que queira ver reapreciados determinados pontos da matéria de facto tem que dar cumprimento a um tríplice ónus:
- Indicar, dos pontos de facto, os que considera incorrectamente julgados;
- Indicar, das provas, as que impõem decisão diversa, com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação;
- Indicar que provas pretende que sejam renovadas com a menção concreta das passagens da gravação em que funda a impugnação.
O arguido não deu cumprimento a nenhum dos ónus supra referidos, nas conclusões da motivação.
Invoca o recorrente que o tribunal a quo fundamentou a condenação do arguido aproveitando-se da decisão proferida no processo de onde este foi extraído e com base nos depoimentos dos co-arguidos, sem que tenha considerado a prova produzida em julgamento.
Na motivação do recurso (a que haverá que atender, por falta do despacho que deveria ter sido produzido ao abrigo do artº 417º/3, do CPP) transcreveu toda a factualidade assente, pretendendo que dela saia toda e qualquer referência à sua pessoa.
Quanto às provas que refere não terem sido atendidas pelo Tribunal remete para a gravação da totalidade da prova testemunhal produzida. Não refere, quais as concretas passagens em que funda a impugnação, limitando-se a transcrever meia dúzia de frases relativamente a cada um dos depoimentos que invoca, na globalidade.
Manifestamente, o arguido confunde impugnação da decisão sobre a matéria de facto com erro na apreciação da prova (artº 410º/2,c), do CPP).
Mas ainda que assim não se entenda, por falta de cumprimento do disposto no artº 412º/3 b) e 4, do CPP, quer no corpo da motivação de recurso, quer nas conclusões, e este Tribunal está precludida a hipótese legal de reapreciação da matéria de facto.
Por um lado, tais deficiências violam o princípio base, que estrutura o nosso sistema, do recurso remédio. Veja-se o Ac. do STJ, de 01/07/05, tirado no proc. nº 1681/01-3: «Com o estipulado no artº 412º do CPP e outras normas complementares o que se pretende, ao ser imposto recurso, é criar um conjunto de regras de natureza prática que permitam, uma vez observadas pelos recorrentes, colocar perante o tribunal ad quem, de forma clara, as razões fácticas e jurídicas que os levam a discordar e a atacar as decisões recorridas, de modo a que o tribunal possa apreciá-las com rigor, nem mais nem menos do que é pedido (salvo obviamente a margem de actuação oficiosa). A formulação de conclusões exigindo-se a sua articulação, insere-se no mesmo propósito, mas agora de molde a apresentar-se um quadro sintético, um resumo das questões que se pretende ver submetidas ao tribunal para que se recorre. Já se tem dito que se apela ao dever de colaboração das partes e dos seus representantes com o tribunal na administração da justiça, assegurando em última instância a defesa dos direitos e objectividade da sua realização».
Por outro ainda que houvesse que considerar a inconstitucionalidade, declarada pelo T.C., como força obrigatória geral, decretada pelo Tribunal Constitucional (em nota de rodapé cita o acórdão n.º 320/2002, de 9/7, no processo n.º 754/01), da norma (então) contida no artº 412º/2, do CPP, por violação do artº 32º/1, da CRP, quando interpretada no sentido de que a falta da indicação, nas conclusões da motivação, de qualquer das menções contidas nas alíneas b) e c) tem como efeito a rejeição liminar do recurso do arguido, sem que ao mesmo seja facultada a oportunidade de suprir tal deficiência, agora reiterada, em nosso entendimento pela redacção dada artº 417º/3, do CPP, pela L. 48/2007, que impõe ao relator o convite a aperfeiçoamento das conclusões formulada, nas situações de violação do disposto nos nºs 2 a 5 do artº 412º, sempre se entende que, no caso de falta de indicação das referidas menções não só nas conclusões como na própria motivação, o recorrente não deve ser convidado a corrigir as conclusões, uma vez que a própria motivação apresenta deficiências de fundo, por não satisfazer exigências legais imperativas. (Em nota de rodapé cita acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15/7/2004, no proc. 2360/04-5.ª). O aperfeiçoamento, neste caso, equivaleria a violar a regra de que as conclusões são mero resumo da motivação e a permitir a concessão de novo prazo para recurso, inadmissível (cita «Cf. Ac TC nº 259/2002, de 18/06/2002, nº 101/02, in DR, II série, de 13/12/2002»).
Na conformidade, não se procede a reapreciação da matéria de facto».
Na fundamentação da posição de não conhecimento da impugnação da matéria de facto, o acórdão incorre em contradição, pois, começando por reconhecer-se que deveria ter sido cumprido o n.º 3 do artigo 417.º, e porque assim não foi haveria que atender à motivação afirmando-se depois que na motivação nada se contém, parecendo só poder esse o sentido do seguinte trecho: «Na motivação do recurso (a que haverá que atender, por falta do despacho que deveria ter sido produzido ao abrigo do artº 417º/3, do CPP) transcreveu toda a factualidade assente, pretendendo que dela saia toda e qualquer referência à sua pessoa».
Refere que a própria motivação apresenta deficiências de fundo, por não satisfazer exigências legais imperativas. Mas nada se diz sobre as concretas falhas da motivação.
De seguida, o acórdão debita sobre erro na apreciação da prova, afirmando «Por a questão colocada não configurar situação de erro notório na apreciação da prova não há que apreciar os extractos de depoimentos que o recorrente transcreve. Diga-se, ademais, que ainda que a análise desses depoimentos houvesse lugar, em nada inquinam o provado».
A apreciação do vício nada tem a ver com extractos, mas com mera literalidade da decisão, com o documento escrito que incorpora a condenação e apenas isso.
Refere o acórdão recorrido que: «Manifestamente, o arguido confunde impugnação da decisão sobre a matéria de facto com erro na apreciação da prova (artº 410º/2,c), do CPP)».
Não pode, ressalvado o devido respeito, afirmar-se isso, pois o que o recorrente invoca não se reduz ao que consta do texto, como resulta da motivação.
Em abono da sua posição cita dois acórdãos do Tribunal Constitucional, o acórdão n.º 320/2002, de 9/7, no processo n.º 754/01, o qual não tem aqui aplicação pois se pronunciou sobre a norma (então) contida no artigo 412.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não estando em causa essa dimensão normativa restrita a matéria de direito, mais concretamente a propósito de conclusões a nível de reapreciação de matéria de direito e não sobre os n.ºs 3 e 4.
No acórdão recorrido cita-se ainda o supra citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 259/02, de 18-06-2002, proferido no processo n.º 101/2002, da 1.ª secção, publicado no DR - II Série, n.º 288, de 13-12-2002, o qual decidiu sobre dimensão normativa completamente diferente daquela que nos ocupa, pois em causa estava um recurso interposto pelo assistente.
Como se extrai desse acórdão “Não sendo a posição do assistente que recorre idêntica à do arguido que recorre, há que perspectivar a questão à luz do disposto no artigo 20.º, n.º 1, da Constituição e não obviamente à luz do artigo 32.º, n.º 1”.
Aí se pondera que nem da jurisprudência do Tribunal Constitucional relativa aos recursos de natureza penal (ou contra-ordenacional) nem da relativa aos recursos de natureza não penal “pode retirar-se que o despacho de aperfeiçoamento seja uma exigência constitucional, naqueles casos em que o recorrente não tenha, por exemplo, apresentado motivação ou todos os fundamentos possíveis da motivação. Tal equivaleria no fundo, à concessão de um novo prazo para recorrer, que não pode considerar-se compreendido no próprio direito ao recurso. Identicamente, não há-de ao assistente reconhecer-se o direito de, por via de um despacho de aperfeiçoamento, beneficiar de novo prazo para impugnar a decisão da matéria de facto”.
O caso versado neste acórdão tinha duas especialidades.
Em primeiro lugar o impugnante não era o arguido, mas o assistente, não fazendo sentido invocar o artigo 32.º, mas antes o artigo 20.º da CRP, entendendo a jurisprudência do Tribunal Constitucional que no domínio não penal (ou contra - ordenacional), deste preceito não decorre um genérico direito à obtenção de um despacho de aperfeiçoamento.
Por outro, o vício não se resume a falta das menções apenas nas conclusões, mas da falta da indicação das menções na própria motivação.
Aliás, em situação similar a este conquanto em recurso interposto por arguido, mas em que estava em causa omissão na motivação pronunciou-se o acórdão n.º 190/04, igualmente supra referido.
Como vimos os acórdãos de 2002 e 2004 citados são casos especiais, que não logram aplicação aqui.
Como se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-05-2007, processo n.º 1397/07-5.ª, CJSTJ 2007, tomo 2, pág. 197, este Tribunal “tem vindo a considerar inconstitucional, por violação dos direitos a um processo equitativo e do próprio direito ao recurso, as normas dos n.º s 3 e 4 do artigo 412.º do Código de Processo Penal na interpretação segundo a qual o incumprimento dos ónus aí fixados, conduz à rejeição do recurso, sem a possibilidade de aperfeiçoamento (cfr. Acs. de 26-9-01, proc. n.º 2263/01, de 18-10-01, proc. n.º 2374/01, de 10-04-02, proc. n.º 153/00, de 5-6-02, proc. n.º 1255/02, de 7-10-04, proc. n.º 3286/04-5, de 17-2-05, proc. n.º 4716/04-5, e de 15-12-05, proc. n.º 2951/05-5 e muitos outros), salvo se houver uma total omissão quer na motivação quer nas conclusões”.
O que não é o caso, no que respeita à motivação, como de resto assinalado ficou no parecer do Ministério Público supra referido.
Ademais a lei foi alterada e a verdade é que o legislador acolheu sem dúvida com a introdução do n.º 3 do artigo 417.º a jurisprudência do Tribunal Constitucional no plano criminal, assim se distanciando, por naturais razões, do regime vigente no cível, desde 2000.
No caso sobre a efectiva pretensão recursiva do recorrente não foi dada resposta cabal, devendo pelo menos ser formulado despacho convite ao aperfeiçoamento.
Ao omitir a necessária reapreciação e avaliação das provas produzidas, o acórdão recorrido omitiu pronúncia sobre questão que tinha de apreciar e decidir, o que determina nulidade.
No caso presente, deveriam ser “reavaliadas” da forma possível (na ausência de oralidade, imediação e concentração) as provas concretamente indicadas relativamente aos concretos pontos de facto que o recorrente indicou como tendo sido incorrectamente julgados, avaliando se efectivamente essas provas impõem ou não uma decisão diversa da recorrida, sendo que, para a hipótese de se considerar a existência de alguma insuficiência nas indicações prescritas, sempre haveria que lançar mão do mecanismo corrector do n.º 3 do artigo 417.º do CPP.
Nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.
Tal normativo é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso, nos termos do n.º 4 do artigo 425.º do Código de Processo Penal, que estabelece: “É correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º, sendo o acórdão ainda nulo quando for lavrado contra o vencido, ou sem o necessário vencimento”.
Conclui-se, assim, pela omissão de pronúncia sobre a impugnação da matéria de facto, já que a Relação não se debruçou sobre a questão suscitada sobre matéria de facto.
A procedência da arguição desta nulidade só por si determina ficarem prejudicadas as demais questões suscitadas no recurso, como resulta do n.º 2 do artigo 660.º do CPC.
Decisão
Pelo exposto, acordam neste Supremo Tribunal de Justiça em declarar a nulidade do acórdão recorrido, que deverá ser substituído por outro, que se pronuncie sobre a impugnação da matéria de facto suscitada pelo recorrente AA.
Sem custas.
Consigna-se que foi observado o disposto no artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
Lisboa, 25 de Março de 2010
Raul Borges (Relator)
Fernando Froís |