Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13176/21.4T8LSB.L2.S2
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: NULIDADE
ERRO MATERIAL
CADUCIDADE
PROCESSO DISCIPLINAR
INVALIDADE
IRREGULARIDADE
DIREITO DE AUDIÊNCIA PRÉVIA
DIREITO DE DEFESA
DILIGÊNCIA DE INSTRUÇÃO
JUNÇÃO DE DOCUMENTO
DESPEDIMENTO ILÍCITO
JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
INFRAÇÃO DISCIPLINAR
DEVER DE LEALDADE
Data do Acordão: 09/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário : I – O processo penal e os processos sancionatórios de natureza pública são dirigidos, respetivamente, por um terceiro imparcial ou por uma autoridade adstrita a imperativos de estrita legalidade e objetividade, sendo-lhes ainda inerente uma lógica de autossuficiência, pois, relativamente ao seu objeto, mesmo em caso de recurso, a última palavra é ditada no seu seio e apenas com base nas provas produzidas no seu seio.
II – Ao invés, o procedimento disciplinar laboral é um procedimento privado (e interno) da empresa. Em caso de impugnação judicial, o empregador encontra-se vinculado pelos factos e motivos invocados no procedimento disciplinar, mas todas as provas devem provas ser apresentadas no processo judicial.

III – Para cabalmente apreender a sua essência, não pode subvalorizar-se que o procedimento disciplinar laboral tem natureza privada, é levado a cabo por um dos sujeitos de uma relação jurídica obrigacional (que visa realizar fins próprios/privados) e culmina sempre num “ato de parte”, ato que nas situações mais graves configura tipicamente uma declaração resolutória (como é o caso do despedimento).

IV- Com a resposta à nota de culpa, o trabalhador pode juntar documentos e solicitar as diligências probatórias que se mostrem pertinentes para o esclarecimento da verdade (art. 355º, nº 1, do CT). Complementarmente, dispõe o art. 356º, nº 1, do mesmo diploma, que o empregador “deve realizar as diligências probatórias requeridas (…), a menos que as considere patentemente dilatórias ou impertinentes, devendo neste caso alegá-lo fundamentadamente por escrito”.

V – Articulando as duas disposições legais, conclui-se que o regime estatuído por esta última norma – que constitui afloramento do princípio geral, presente em todas as áreas do direito adjetivo e procedimental, segundo o qual devem ser recusados todos os atos e diligências impertinentes ou dilatórias, – abrange, não só as diligências probatórias, propriamente ditas, mas também, por identidade de razão, os documentos tidos por impertinentes.

VI – Constitui justa causa de despedimento o comportamento ilícito e culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho, pautando-se este juízo por critérios de razoabilidade, exigibilidade e proporcionalidade e à luz do entendimento de um empregador normal, em face das circunstâncias do caso concreto.

VII – A conduta do trabalhador deve ser apreciada globalmente, tendo em vista captar uma imagem global dos factos, devendo ainda verificar-se um nexo de causalidade entre a conduta do trabalhador e a impossibilidade (prática e imediata) de subsistência do contrato de trabalho.

VIII – Em sentido amplo, enquanto dever orientador geral da conduta das partes no cumprimento do contrato, o dever de lealdade ele corresponde, fundamentalmente, às exigências gerais de boa fé no cumprimento/execução dos contratos.

Decisão Texto Integral: Revista n.º 13176/21.4T8LSB.L2.S2

MBM/DM/JES

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1.1. Autora /recorrente: AA

1.2. Ré/recorrida: MOTA-ENGIL, Engenharia e Construção, S. A.


X X X


2. A Autora instaurou contra a Ré ação de impugnação judicial da regularidade e licitude do despedimento, tendo peticionado a sua reintegração em caso de procedência da ação e ainda a condenação da empregadora a pagar-lhe: i) o total das remunerações que deveria ter auferido, desde a data do despedimento; ii) uma sanção pecuniária compulsória, em montante não inferior, a quinhentos euros, por cada dia de atraso no cumprimento da decisão judicial, até integral cumprimento da mesma; iii) a quantia de 30.000 €, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais causados pelo exercício abusivo do poder disciplinar; iv) juros de mora, vencidos e vincendos, sobre todas as quantias peticionadas.

3. O Tribunal de 1.ª Instância proferiu sentença, julgando a ação totalmente improcedente.

4. Após vicissitudes processuais que agora desinteressa elencar, o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL) negou provimento ao recurso de apelação interposto pela Autora (recurso em que não foi impugnada a improcedência do pedido de indemnização por danos não patrimoniais).

5. Inconformada, esta interpôs recurso de revista nos termos gerais e, subsidiariamente, de revista excecional, dizendo, em síntese, nas conclusões da sua alegação:

– O Acórdão recorrido é nulo, por omissão de pronuncia, dado não ter apreciado a questão da proporcionalidade e adequação da sanção disciplinar aplicada.

– Considerando tratar-se de lapsos materiais e de escrita, o Acórdão recorrido procedeu a uma correção dos factos dados como provados sob os nºs 31, 38 e 44, em termos que não decorrem da própria decisão e alteram o sentido da matéria de facto dada como provada.

– Os factos em causa no procedimento disciplinar são do conhecimento integral da empregadora desde, pelo menos, a data da celebração do contrato de arrendamento (janeiro de 2020), pelo que o direito a exercer o poder disciplinar caducara aquando da sua instauração, nos termos do art. 329º, nº 2, do CT.

– O procedimento disciplinar padece do vício de invalidade, por obliteração e supressão de parte da documentação junta pela A. com a sua resposta à nota de culpa (documento nº 14), facto que viola os direitos de defesa da trabalhadora e os princípios da audiência e do contraditório.

– A Autora não cometeu qualquer infração disciplinar.

– A sanção disciplinar de despedimento sem indemnização é desproporcional e desadequada.

– A R. agiu em venire contra factum proprium.

6. Foi admitida a revista nos termos gerais, quanto aos seguintes pontos: (i) nulidade por omissão de pronúncia; (ii) retificação dos factos assentes; (iii) e exceção de caducidade.

Por seu turno, a Formação a que alude o artigo 672º, nº 3, do CPC1, admitiu a revista excecional relativamente às seguintes questões: (iv) invalidade do procedimento disciplinar por supressão de documentos juntos pela Autora, (v) ilicitude do despedimento por falta de justa causa (inexistência de infração disciplinar e desproporcionalidade da sanção) e (vi) abuso de direito da Ré.

7. O Exmo. Procurador-Geral-Adjunto pronunciou-se no sentido da parcial procedência da revista, em parecer a que responderam ambas as partes, em linha com o antes sustentado nos autos.

8. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art.º 608.º, n.º 2, in fine), as questões a decidir2 são as elencadas em supra nº 6.

E decidindo.


II.


9. A matéria de facto fixada pelo acórdão recorrido é a seguinte:3

1. A A. foi admitida em 01.10.1990 na antiga S...,SA, depois incorporada Mota-Engil Engenharia e Construção, SA, tendo completado, em 01.10.2020, 30 anos de antiguidade perante esta última;

2. Desde dezembro de 2019, a Trabalhadora passou a prestar serviço como ... da Direção de Obra na empreitada de Construção da I..., sita em ..., sendo a responsável local pela área de Procurement, através da qual se visava encontrar soluções alternativas de engenharia a propor ao Cliente e as consequentes interações com parceiros e fornecedores;

3. Tal função foi considerada determinante na fase inicial da obra em causa, face ao volume e especificidade da empreitada: Edifício Habitacional com 195 aportamentos em 26 pisos elevados – mormente no que respeita aos processos que se encontravam no caminho crítico da execução, como, por exemplo, Estudo de Instalações Sanitárias Pré-fabricadas, Estudos de Divisórias em Gesso Cartonado, Caixilharias, etc.;

4. No âmbito desta função, era missão da Trabalhadora assegurar todas as atividades inerentes ao processo do Procurement, negociação e decisão de adjudicação das compras de subempreitadas, serviços e materiais solicitados/requisitados pelo Gestor do Centro de Custo, analisando as respetivas requisições e Projeto/CE, de acordo com orientações do Diretor de Aprovisionamentos, de forma a garantir a melhor relação preço / qualidade / prazo / condições de pagamento, cumprimento das datas e necessidade e os indicadores de gestão (objetivos da empresa).

5. Como Responsabilidades, no quadro do Obra da I..., em articulação com o Departamento Central de Aprovisionamentos da Empresa, a Trabalhadora tinha a seu cargo:

(…)

6. A autora tinha à data do despedimento as funções (que já não exercia) de adjunta de direção de obra, e era engenheira civil;

7. Desde 19.11.2020 que a autora foi dispensada formalmente de se apresentar ao serviço da ré;

8. Em 28.12.2020 a A. foi notificada da nota de culpa, sendo concedido o prazo para consulta dos autos e oferecimento de defesa escrita;

9. Com data de 31.03.2021, a ré remeteu à autora a decisão final de despedimento (…);

10. A ré encetou com a autora um processo de negociação de cessação de contrato de trabalho por mútuo acordo, tendo a autora recusado tal proposta em 13 de novembro de 2020;

11. A partir de dezembro de 2019, a ré aceitou custear o arrendamento de uma casa em ... para a autora, da sua trabalhadora, entre o plafond mensal de 700 a 800 euros e aceitou que a própria procurasse um apartamento dentro dessas condições;

12. A autora comunicou à ré ter encontrado um apartamento disponível para arrendar na zona de ..., com renda mensal de 750 euros, tendo afirmado que o apartamento pertencia a um familiar seu.

13. Reunindo os requisitos objetivos estabelecidos pela empresa, tal opção foi validada pela Direção de Obra e de Produção, tendo aquela delegado na mesma Eng.ª AA – devido à invocada relação familiar e a sobrecarga de trabalho do Administrativo – a intermediação do processo de formalização do arrendamento junto da Direção Jurídica;

14. Com data de 07.01.2020, a ré celebrou com BB, um contrato de arrendamento de um T2, sito (…) em ..., por um ano, com início a 15.01.2020 e termo a 14.01.2021, (…) pelo valor de € 750 mensais (…);

15. A autora foi residir no dito imóvel que a ré arrendou para a sua trabalhadora com esse fim;

16. Em 23.11.2020, pelas 11H15M, a Trabalhadora (…) remeteu ao Secretariado da Direção Jurídica (…) mensagem de correio eletrónico, com o seguinte teor:

“Em anexo Email da proprietária do Apartamento que se encontra alugado na Rua .... A mesma pretende a Cessação do contrato em questão, mais se informa que já enviou carta registada com aviso de recepção para a Mota-Engil. Desta forma, fico a aguardar o vosso pronunciamento para poder transmitir em conformidade”.

17. No dia 23.11.2020, às 10h58M (apenas 17 minutes antes do email anterior), a Sra. BB enviou, sob a epígrafe “Cessação do contrato de arrendamento do apartamento de ...”, a seguinte mensagem de correio eletrónico:

“(…) Conforme conversado durante a semana passada, comecei a trabalhar em .... Com os recentes entraves deslocamento, necessito com urgência voltar a utilizar o meu apartamento em .... Informo também que já enviei para a vossa sede no ... carta registada com aviso de receção a informar da não renovação do contrato e das condições que me parece poder facilitar a cessação do contrato com 1 mês de antecedência. (…)”;

18. Antes de 23 de novembro de 2020, nunca a autora informou a ré de uma intenção da senhoria reaver o apartamento.

19. Com data de 20.11.2020, BB, remeteu à ré uma carta registada com AR, sobre a epigrafe ' Cessação do contrato de arrendamento para fins habitacionais com prazo certo', comunicando a sua intenção de não renovar o contrato de arrendamento em apreço (…).

(…)

21. BB é filha da autora.

(…).

23. Pese embora o Regulamento interno da ré determinar o direito à autora em ver pago o arrendamento de um T1, a Ré aceitou custear o arrendamento de um T2, posto que a autora se encontrava a residir com o seu agregado familiar, composto por 4 pessoas, e por forma a que tal se pudesse manter;

24. O apartamento ocupado por AA desde 15 de janeiro de 2020 (pelo menos), cujo contrato de arrendamento foi celebrado em 07 de janeiro de 2020, foi adquirido em nome de BB em 23 de dezembro de 2019 (15 dias antes da celebração do contrato de arrendamento) (…);

25. A renda do imóvel em apreço era paga por meio de transferência bancária para o IBAN ...00 5, fornecido pela autora e constante do contrato, cuja titularidade pertence a BB e à autora, na qualidade de cotitular;

(…)

27. Aquando da celebração do Contrato de arrendamento a autora enviou ao departamento jurídico da ré o número de conta bancária para pagamento de rendas (…).

28. A Trabalhadora não tem antecedentes disciplinares registados;

29. Todos os documentos relativos e necessários à celebração do contrato de arrendamento em apreço foram enviados pela autora ao departamento jurídico, incluindo o cartão cidadão da senhoria, tendo sido trocada correspondência entre a autora e CC (secretária do departamento jurídico da ré) (…);

30. A R. nunca entrou em contacto com a proprietária do imóvel para a troca de documentação e celebração do contrato de arrendamento, tendo tudo tratado através da Trabalhadora ora A.;

31. E foi a empregadora quem enviou para a trabalhadora e não para a proprietária do imóvel, toda a documentação referente à celebração do contrato de arrendamento em causa, sendo tal o procedimento normal em todos os contratos de arrendamento celebrados pela ré em que os contactos com o senhorio são feitos pela direção de obra ou técnico administrativo.4

(…)

33. A autora antes de trabalhar em ..., tinha a sua morada, comunicada à ré como sendo, Urbanização ... em ...;

(…)

37. Existia na ré o código de ética e conduta empresarial que constitui folhas 63 a 79 dos autos;

38. Desde a data que a autora desocupou o imóvel, 09.12.2020 e a data do final do contrato de arrendamento (14.01.2021) a ré não colocou no imóvel qualquer trabalhador; 5

39. A R. desconhecia que a senhoria da casa arrendada à A. era a filha desta;

40. A A. apenas informou a R. que a casa que tinha encontrado para poder ser arrendada, e pago o arrendamento pela R., era de um familiar seu;

41. A A. nunca informou a R. que a conta bancária para a qual era transferido pela R. o pagamento de renda era de sua pertença em cotitularidade;

42. A A. nunca informou a R. que a sua filha, senhoria da casa, continuaria, como continuou a viver com ela no imóvel arrendado pela R.;

43. Os contratos de arrendamento das casas são feitos pelo departamento jurídico da R., que ao elaborarem o mesmo não sabem a quem se destina o imóvel que está a ser arrendado pela R.;

44. O departamento jurídico da R. sabia que o imóvel que tinha arrendado era pertença da filha da A., mas não sabia que o mesmo ia ser habitado pela A., apenas tendo dado conta disso em 23 de Novembro de 2020;6

45. O código de ética mencionado vigorava na R. e nas empresas do grupo.


III.


a. Primeira, segunda e terceira questões:

10. A sanção disciplinar deve ser proporcional à gravidade da infração e à culpa do infrator (art. 360º, nº 1, do CT).

Estando em causa, como ocorre no caso dos autos, a mais gravosa das sanções disciplinares, significa isto que só constituiu justa causa de despedimento o comportamento culposo do trabalhador que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação do trabalho (cfr. art. 351º, nº 1, do mesmo diploma).

Embora sem usar o vocábulo “proporcionalidade”, é manifesto que o TRL abordou esta questão, ao afirmar que os factos praticados pela A., “para além de culposos (…), consubstanciam grave violação do dever de lealdade a que estava obrigada para com a apelada e causa para o seu despedimento, uma vez que não seria mais razoavelmente exigir-lhe manter a relação laboral, invocando, aliás, expressamente o art. 351º, nº 1, do CT.

Improcede, pois, a arguida nulidade por omissão de pronúncia.

11. Como imediatamente se alcança do confronto entre os factos dados como provados na 1ª Instância sob os nºs 31, 38 e 44 e a redação que aos mesmos deu a Relação, é patente que em nada de essencial se alterou o sentido da matéria de facto, tendo apenas sido corrigidos ostensivos lapsos materiais e de escrita (cfr. notas de rodapé nº 4, 5 e 6), ao contrário do alegado pela recorrente.

12. No tocante à terceira questão em apreço, provou-se que a R. desconhecia que a senhoria da casa arrendada à A. era a filha desta (nº 39 dos factos provados), bem como que o departamento jurídico da R. sabia que o imóvel que tinha arrendado era pertença da filha da A., mas não sabia que o mesmo ia ser habitado pela A., apenas tendo dado conta disso em 23 de Novembro de 2020 (nº 44 dos factos provados).

Uma vez que instauração do procedimento disciplinar ocorreu em 19.12.2020 (tendo a A. sido notificada da nota de culpa em 28.12.2020), é inequívoco que não foi excedido o prazo de 60 dias consagrado no nº 2 do art. 329º, do CT, improcedendo, assim, a alegada exceção de caducidade.

b. Quarta questão:

13. Agora no plano do procedimento disciplinar, a recorrente invoca que o mesmo enferma de invalidade, pelo facto de ter sido determinado o desentranhamento de parte da documentação por si junta com a resposta à nota de culpa.

Desde já se adianta que sem razão, pelos motivos que se passam a expor.

14. Em qualquer tipo de processo há uma natural antinomia e tensão entre as garantias processuais concedidas ao visado e, por outro lado, os fins que com ele se visam efetivar.

Assim acontece, paradigmaticamente, no processo penal, dada a real impossibilidade de integral harmonização das suas finalidades primárias: por um lado, a proteção dos direitos fundamentais das pessoas, maxime as garantias de defesa do arguido; por outro lado, a realização da justiça, a descoberta da verdade e o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo crime.

Como se sabe, o remédio para esta conflitualidade, teoricamente irredutível, reside na concordância prática de todas as finalidades em conflito, sendo certo que “erigir qualquer uma das finalidades conflituantes em finalidade única ou mesmo absolutamente determinante da estruturação do processo coloca-o em conflito irremível com os mandamentos do Estado de Direito”7. Dito de outra forma, “num Estado de Direito, a conciliação entre a liberdade individual e as exigências de justiça e segurança não é um problema de tese ou antítese, mas de conseguir a adequada síntese entre ambas as funções”.8

Embora com intensidade diversa, também assim ocorre, nomeadamente, nos processos sancionatórios de natureza pública, sendo certo que em relação a todos estes tipos de processo se constatam alguns elementos comuns: são dirigidos por um terceiro imparcial ou por uma autoridade adstrita a imperativos de estrita legalidade e objetividade; inere-lhes uma lógica de “autossuficiência”, pois relativamente ao seu objeto, mesmo em caso de recurso, a última palavra é ditada no seu seio (definitividade) e apenas com base nas provas nelas produzidas.

Ao invés, o procedimento disciplinar laboral é um procedimento privado (e interno) da empresa, pelo que, em caso de impugnação do despedimento, é relegada para a fase jurisdicional a apresentação de todas as provas, maxime as atinentes à existência de “justa causa” por banda do empregador: este encontra-se vinculado na ação impugnatória pelos factos e motivos invocados no procedimento disciplinar; mas, quanto ao mais, tudo se passa como se tal procedimento não tivesse existido.

De facto – e aqui reside o pano de fundo que permite uma visão integrada das diferentes dimensões envolvidas na questão em análise –, “o procedimento disciplinar nada prova” e “por isso mesmo se exige que o empregador realize de novo a prova em sede judicial, de nada valendo a que tiver sido produzida em sede de procedimento”9.

Enquanto conjunto ordenado de atos dirigido à eventual aplicação de uma sanção, o procedimento disciplinar laboral poderá considerar-se um processo (em sentido amplo) de natureza sancionatória, como decidiu o Tribunal Constitucional, nomeadamente, no acórdão em que se pronunciou no sentido da inconstitucionalidade da versão originária do art. 356.º, n.º 1, do CT (de 2009)10.

Mas este juízo de inconstitucionalidade está longe de ser pacífico na doutrina, considerando, por exemplo, Monteiro Fernandes11: «[A] tramitação preparatória do despedimento disciplinar serve apenas para delimitar o motivo da rutura – possibilitando a posterior impugnação judicial e desenhando o perímetro dentro do qual o futuro debate terá lugar – e permitir que o trabalhador se defenda antes da consumação dela, obrigando à ponderação das suas razões pelo empregador. Não se trata de um procedimento que vise o “apuramento da verdade” ou a “realização da justiça” (a decisão será sempre a que melhor convenha ao empregador) e não faz, por isso (…) nenhum sentido invocar, como que por analogia, as garantias dos processos criminal e contraordenacional a que alude, nomeadamente, o art. 32.º, CRP».

No mesmo idêntico se pronuncia Pedro Furtado Martins, citando Rui Moura Ramos e Abranches Pinto: «a posição do trabalhador que é objeto de garantia constitucional está salvaguardada ao nível do processo disciplinar não apenas através da sua audiência prévia, ou seja da resposta à nota de culpa (…), mas principalmente, através da necessidade de a entidade patronal fundamentar a decisão, devendo entender-se que “é na motivação do despedimento que reside o âmago (…) da tutela efetiva da posição do trabalhador”».12

Por sua vez, apesar de acompanhar a extensão geral das garantias do art. 32.º, n.º 10, da CRP, ao processo disciplinar laboral, também Maria do Rosário Palma Ramalho, ponderando que “da natureza sancionatória do poder disciplnar laboral não decorre a consequência da imprescindibilidade da fase instrutória do processo para assegurar [as] garantias constitucionais, dado o carácter privado deste processo”, bem como que “a fase instrutória do processo não desempenha aqui a sua função típica, que é a de permitir a alegação de factos e a produção de provas perante uma entidade terceira, não trazendo, por isso, uma mais valia significativa sobre a defesa do trabalhador, que, em si mesma, já assegura o princípio do contraditório, conclui “que tal extensão [das garantias constitucionais] não pode ser feita em termos maximalistas e formais, mas deve antes adaptar-se à especificidade deste processo, que reside no facto de conjugar a natureza sancionatória com o carácter privado e com a circunstância de se reunir na mesma pessoa (o empregador) a qualidade de vítima e de avaliador da infração disciplinar 13.

Em suma, para cabalmente apreender a sua essência, não pode subvalorizar-se que o procedimento disciplinar laboral tem natureza privada, é levado a cabo por um dos sujeitos de uma relação jurídica obrigacional (que visa realizar fins próprios/privados) e culmina sempre num “ato de parte”, ato que nas situações mais graves configura tipicamente uma declaração resolutória (como é o caso do despedimento).

15. Ainda antes de entrar na análise das pertinentes disposições legais do Código do Trabalho, tendo em vista apreender o “espírito” do conjunto do sistema jurídico, refira-se que, mesmo no domínio do processo penal: i) a violação ou a inobservância das disposições do processo penal só determina a nulidade do ato quando esta for expressamente cominada na lei (art. 118º, nº 1, do CPP); ii) nos casos em que a lei não comina a nulidade, o ato ilegal é irregular (art. 118º, nº 2, também do CPP); iii) a omissão de diligências que possam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade é insuscetível de configurar uma nulidade insanável (cfr. art. 119º, do mesmo diploma); iv) a insuficiência do inquérito ou da instrução só configura nulidade se não tiverem sido praticados determinados atos legalmente obrigatórios, sendo que a omissão posterior de diligências essenciais para a descoberta da verdade só constitui nulidade se estas forem essenciais para a descoberta da verdade [art. 120º, nº 2, d), do CPP]; v) as nulidades referidas em iv) devem ser arguidas [art. 120º, nº 3, do CPP].

Posto isto.

16. Com a resposta à nota de culpa, o trabalhador pode juntar documentos e solicitar as diligências probatórias que se mostrem pertinentes para o esclarecimento da verdade (art. 355º, nº 1, do CT).

Complementarmente, dispõe o art. 356º, nº 1, do mesmo diploma, que o empregador “deve realizar as diligências probatórias requeridas (…), a menos que as considere patentemente dilatórias ou impertinentes, devendo neste caso alegá-lo fundamentadamente por escrito”.

Articulando as duas disposições legais, conclui-se que o regime estatuído por esta última norma – que constitui afloramento do princípio geral, presente em todas as áreas do direito adjetivo e procedimental, segundo o qual devem ser recusados todos os atos e diligências impertinentes ou dilatórias (cfr. arts. 291º, nº 1 e 2, e 340º, nº 4, do CPP, art. 6º, nº 1, do CPC, art. 7º-A, do CPTA, e art. 59º, do CPA), – abrange, não só as diligências probatórias, propriamente ditas, mas também, por identidade de razão, os documentos tidos por impertinentes (inexiste qualquer fundamento ou motivo de ordem material suscetível de justificar que as duas situações, essencialmente idênticas, tivessem tratamento diverso).

Em face da factualidade assente, nada permite afirmar que os documentos em causa assumissem qualquer relevo para a boa decisão da causa, pelo que não merece censura o decretado desentranhamento dos mesmos.

Independentemente desta conclusão, refira-se que nunca o ilegal desentranhamento (ou recusa de junção) de documento(s) gera(ria) a invalidade do procedimento, uma vez que tal vício não é enquadrável em qualquer das hipóteses previstas no art. 383º, nº 2, do CT, mas, antes no art. 389º, nº 2, do mesmo diploma,

Com efeito, o Código do Trabalho distingue as situações de invalidade do procedimento disciplinar (tipificando-as e definindo, por essa via, no plano do procedimento disciplinar laboral, o âmbito da tutela conferida aos direitos de defesa do trabalhador e aos princípios da audiência do visado e do contraditório) das de mera irregularid invalidade irregularidade ade fundada em deficiência de procedimento por omissão das diligências probatórias referidas nos nºs 1 e 3 do artigo 356.º, caso em que, se forem declarados procedentes os motivos justificativos invocados para o despedimento, o trabalhador tem apenas direito a indemnização correspondente a metade do valor que resultaria da aplicação do n.º 1 do artigo 391.º (cfr. arts. 382.º, n.º 2, e 389.º, n.ºs 2 e 3).

c. Quinta questão:

17. A questão fundamental que constitui o objeto processual da revista consiste em determinar se ocorre justa causa de despedimento, por tal se entendendo o comportamento ilícito e culposo do trabalhador14 (infração disciplinar) que, pela sua gravidade e consequências, torne imediata e praticamente impossível a subsistência da relação de trabalho (art. 351.º, n.º 1, do Código do Trabalho), pautando-se este juízo por critérios de razoabilidade/exigibilidade (na apreciação da justa causa, deve atender-se, no quadro de gestão da empresa, ao grau de lesão dos interesses do empregador, ao carácter das relações entre as partes ou entre o trabalhador e os seus companheiros e às demais circunstâncias que no caso sejam relevantes – n.º 3 do mesmo artigo) e de proporcionalidade (art. 330.º, n.º 1), sendo que “a gravidade dos factos e a culpa do trabalhador se aferem de acordo com o entendimento de um empregador normal, em face das circunstâncias do caso concreto e em função de critérios de objetividade, exigibilidade e razoabilidade” (v.g., Ac. desta 4.ª Secção do STJ de 14.01.2015, Proc. n.º 272/10.2TTCVL.C1.S1).

Dois aspetos ainda a realçar: (i) a conduta do trabalhador deve ser apreciada globalmente, tendo em vista captar uma imagem global dos factos; (ii) e deve verificar-se um nexo de causalidade entre a conduta do trabalhador e a impossibilidade (prática e imediata15) de subsistência do contrato de trabalho.16

Como sinaliza António Meneses Cordeiro17, “se se atentar nos diversos termos do artigo 351º/2, logo se verifica que eles têm diversos graus de indeterminação”, o que “tem dois aspetos ou implicações: “(a) o da própria justa causa em si, que aparece ora mais concreta, ora mais vaga, no texto da alínea que a contenha;(b) o das relações dessa justa causa com a ideia básica do nº 1; quanto mais indeterminada for a justa causa, mais necessário é recorrer à definição geral dada pela lei, para apurar a sua concretização.”

18. Sustentando existir justa causa de despedimento, entendeu o Tribunal da Relação:

“[E]m face dos factos provados bem decidiu a sentença quando considerou existir justa causa para a apelada proceder ao despedimento da apelante; note-se que não está em causa que a conduta da apelante tenha produzido um qualquer prejuízo económico ou estritamente financeiro para a apelada, pois que em todo o caso esta se dispôs a suportar a renda de casa para aquela habitar; está em causa, sim, a violação do Capítulo III do Código de Ética e Conduta Empresarial, em vigor em cada uma das empresas do Grupo Mota-Engil desde 2015 (factos provados 37 e 45) pois que os factos provados relevantes (maxime os 11 a 15, 21 a 25 e 39 a 44) mostram, ad nauseam que, que em completa derrogação do conflito de interesses tutelados (no Capítulo III daquele Código de Conduta e no mais que adiante se referirá) escondeu da apelada que estava a propor que arrendasse um apartamento para dispor para a sua habitação e do seu agregado familiar à sua própria filha, com a qual foi para lá viver e partilhava a conta bancária na qual era depositado o valor da renda, mas sem a informar de que a proprietária (15 dias antes do arrendamento...) e depois senhoria era a própria filha; ou seja, por um lado a apelada disponibiliza-lhe o apartamento para nele viver e (presumivelmente) ainda lhe pagava (pelo menos...) metade da renda (já que a conta bancária era conjunta com a proprietária). São factos que, para além de culposos (ao menos presumivelmente), consubstanciam grave violação do dever de lealdade a que estava obrigada para com a apelada e causa para o seu despedimento, uma vez que não seria mais razoavelmente exigir-lhe manter a relação laboral (art.os 343.°, n.° 1, 350.°, n.ºs 1 e 2 e 344.°, n.° 1 do Código Civil e 128.°, n.° 1, alínea f) e 351.°, n.ºs 1 do Código do Trabalho).”

Por seu turno, o raciocínio expendido pela 1ª Instância (no mesmo sentido) é o seguinte:

“Os factos dados por assentes são graves. Revelam uma personalidade de uma pessoa que se quis aproveitar da sua entidade empregadora, que a quis enganar, ocultar factos e quis, e conseguiu, obter um benefício financeiro à sua custa.

Vejamos esta parte. A R., quanto a nós, não teve um prejuízo patrimonial. Ela decidiu pagar um arrendamento para a A. até ao limite de um valor e foi esse valor que pagou. Fosse à A., à filha da A. ou a terceiros, a decisão de pagar estava tomada e nessa medida o prejuízo patrimonial não ocorreu, pois sempre a R. pagaria essa quantia.

Porém a A. teve um enriquecimento ilícito. Note-se que conseguiu que lhe fosse atribuído um T2 ao invés do T1 a que teria direito em virtude de residir com a família. E oculta o facto de a família ter afinal uma casa onde a pode hospedar. Nesta atitude existe deslealdade, e, quanto a nós, revelação de um carácter em quem não se pode confiar. Mas, além da deslealdade, a A. obtém um benefício económico. Ela consegue fazer seus/filha que consigo vive, e na conta bancária que partilha com a mesma, o dinheiro da renda. Consegue para si, ou para os seus, um benefício ilícito.

Foi desleal, incorreta, e não cremos que seja preciso qualquer código de conduta ou de ética estar em vigor na R., como estava, e proibir, como proibia, semelhante atitude para vermos que salta à evidência a incorreção da mesma.

A A. agiu mal.

Porém a questão está em saber se tal basta para que a confiança que a R. deve depositar na sua funcionária ficou irremediavelmente afetada a ponto de o despedimento ser a única solução possível.

E cremos que sim. Nenhuma entidade empregadora pode confiar em quem tem este tipo de atitude porque o modo como vai encarar esta funcionária será sempre de alguém que foi desleal, que foi trapaceira e a quis enganar. Existe uma falta de respeito da A. para com a sua entidade empregadora ao agir como agiu. Ocultou factos essenciais e nessa medida ludibriou as regras vigentes na empresa, as normas sociais vigentes na sociedade laboral, e tal revela deslealdade. De que modo voltará a entidade empregadora a olhar para esta funcionária novamente? Quando esta afirmar que algo é branco como pode a R. não suspeitar que seja falso ou algo esteja a ser ocultado?! Não é a dimensão do sucedido que importa essa quebra irremediável da confiança. É a atitude. E a atitude revela personalidade e ninguém pode confiar em quem é deste modo. Quem foi desleal uma vez em matérias desta natureza não pode levar a que se confie novamente.

A deslealdade da A. é manifesta e não carece de ser reforçada. A confiança que qualquer pessoa colocada na posição da R. poderia sentir na A. foi totalmente posta em causa e não pode ser exigível a manutenção da relação laboral pois nenhuma outra solução que não o afastamento da A. da R. poderia ser tolerada. E nessa medida o despedimento é lícito.

(…)”

19. Basicamente, o acórdão recorrido entende que a Autora violou o dever de lealdade e o Capítulo III (sic) do Código de Ética e Conduta Empresarial vigente na R. (doravante, designado apenas por Código de Ética), por “completa derrogação do conflito de interesses tutelados”, embora sem explicitar, na fundamentação de direito, o conteúdo das concretas normas que teriam sido infringidas.

Na matéria de facto provada também não se concretizam os exatos conteúdos do Código de Ética suscetíveis de relevar no caso sub judice, apenas se retirando daí que “existia na ré o código de ética e conduta empresarial, que constitui folhas 63 a 79 dos autos” (nº 37 dos factos provados) e que “o código de ética mencionado vigorava na R. e nas empresas do grupo" (nº 45 dos factos provados), sendo que daquele documento constam profusos sublinhados a amarelo, em especial do seu ponto 3.3., epigrafado “conflito de interesses”.

Vejamos.

20. Em sentido restrito, o dever de lealdade corresponde aos deveres de não concorrência e de sigilo [art. 128º, nº 1, f), do CT].

Todavia, no seu sentido amplo, enquanto dever orientador geral da conduta das partes no cumprimento do contrato, ele corresponde, fundamentalmente, às exigências gerais de boa fé no cumprimento/execução dos contratos (cfr. art. 762º, nº 2, do Código Civil, e art. 126º, nº 1, do CT)18, as quais se exprimem, nas palavras de Monteiro Fernandes, “pela necessidade de obviar a que as prestações (…) sejam funcionalmente desvirtuadas pelo comportamento dos prestadores, isto é, de impedir que o fim visado pelo credor (…) seja anulado ou compensado por um prejuízo resultante do modo e do animus do cumprimento”19, ou seja, pelo “sentido de garantir que a atividade pela qual o trabalhador cumpre a sua obrigação representa de facto a utilidade visada, vedando-lhe comportamentos que apontem para a neutralização dessa utilidade ou que (…) determinem situações de perigo” 20.

21. Por outro lado, à luz do Código de Ética (p. 6 do referido documento), «um “conflito de interesses surge quando um interesse pessoal (direto ou indireto) de um dado colaborador influencia ou tem a capacidade de influenciar o devido desempenho dos seus deveres laborais e que origine, ou possa originar, um conflito entre o interesse pessoal do colaborador e os direitos ou interesses do Grupo, podendo dar origem a danos dos direitos e interesses, propriedade e/ou reputação do Grupo», entendendo-se por interesse pessoal o “interesse de um colaborador que envolva a oportunidade de, no desempenho dos seus deveres laborais, obter um ganho pessoal (ou reduzir uma perda pessoal potencial), seja ele monetário, objetos de valor ou outros bens ou serviços e/ou outros direitos de propriedade, quer seja para o próprio, a sua família ou terceiros».

22. Diferentemente do ajuizado pelo Tribunal a quo, não temos por líquido que a recorrente tenha violado o dever de lealdade ou a obrigação de não agir em conflito de interesses com a Ré.

Antes de mais, não pode deixar de notar-se alguma incongruência entre os pontos 29 (Todos os documentos relativos e necessários à celebração do contrato de arrendamento em apreço foram enviados pela autora ao departamento jurídico, incluindo o cartão cidadão da senhoria, tendo sido trocada correspondência entre a autora e CC, secretária do departamento jurídico da ré) e 44, 1ª parte (O departamento jurídico da R. sabia que o imóvel que tinha arrendado era pertença da filha da A.) da matéria de facto e, por outro lado, os pontos 39 (A R. desconhecia que a senhoria da casa arrendada à A. era a filha desta), 40 (A A. apenas informou a R. que a casa que tinha encontrado para poder ser arrendada, e pago o arrendamento pela R., era de um familiar seu) e 44, 2ª parte [(O departamento jurídico da R.) … não sabia que o mesmo ia ser habitado pela A., apenas tendo dado conta disso em 23 de Novembro de 2020].

Neste contexto, tendo sido (pelo menos) comunicado à ré pela autora que o apartamento pertencia a um familiar seu, não se afigura especialmente relevante que a trabalhadora não tenha concretizado que o referido familiar era a sua filha (cfr. ainda nº 12 dos factos provados), sendo certo que a ré aceitou custear o arrendamento de uma casa em ... para a autora, entre o plafond mensal de 700 a 800 euros, tal como concordou que esta procurasse um apartamento dentro dessas condições (nº 11 dos factos provados), ao que acresce que a opção feita, reunindo os requisitos objetivos estabelecidos pela empresa, foi validada pela Direção de Obra e de Produção da R. (nº 13 dos factos provados).

23. Reconhecendo que a R. não teve qualquer prejuízo patrimonial (a sentença da 1ª Instância refere que “[A R.] decidiu pagar um arrendamento para a A. até ao limite de um valor e foi esse valor que pagou. Fosse à A., à filha da A. ou a terceiros, a decisão de pagar estava tomada e nessa medida o prejuízo patrimonial não ocorreu, pois sempre a R. pagaria essa quantia”; e o TRL que “não está em causa que a conduta da apelante tenha produzido um qualquer prejuízo económico ou estritamente financeiro para a apelada, pois que em todo o caso esta se dispôs a suportar a renda de casa para aquela habitar”), entenderam as instâncias, todavia, que a A. teve um enriquecimento ilícito.

Para assim concluir, diz a 1ª Instância (se bem compreendemos, com o sufrágio da Relação): “Note-se que conseguiu que lhe fosse atribuído um T2 ao invés do T1 a que teria direito em virtude de residir com a família. E oculta o facto de a família ter afinal uma casa onde a pode hospedar.” Por sua vez, o acórdão recorrido censura o facto de A. ter levado a R. “a arrendar uma casa à sua filha comprada quinze dias antes e receber a renda em conta conjunta com ela de cujo valor, presumivelmente, metade lhe pertence (art. 516.º do Código Civil)”.

24. Não se evidencia que os factos provados suportem esta conclusão, desde logo porque a Ré aceitou efetivamente custear o arrendamento de um T2, em virtude de a Autora se encontrar a residir com o seu agregado familiar, composto por 4 pessoas, e por forma a que tal se pudesse manter, como consta do facto provado nº 23, ao que acresce que nada na factualidade assente permite afirmar que a recorrente, ilicitamente, tenha “levado” a Ré a fazer fosse o que fosse.

Por outro lado, a A. e a sua filha são pessoas jurídicas distintas, dotadas de personalidades e esferas jurídicas que não se confundem, pelo que, sendo normal e lícita a aquisição por esta última de uma fração autónoma para colocação no mercado de arrendamento, é evidente que nem a proprietária da casa (filha da A.) tinha a obrigação de na mesma “hospedar” a família (renunciando ao seu direito de a arrendar), nem a A. tinha o direito (perante a filha) – ou o dever (em face da R.) – de nela se instalar sem contrato/título que o permitisse.

É inegável que dos factos provados nº 25 e 41 decorre a existência de uma “conta coletiva” (cotitularidade) entre a A. e a sua filha, embora se desconheça se se trata de uma conta coletiva solidária (que pode ser movimentada por qualquer dos seus titulares isoladamente), ou de uma conta coletiva conjunta (que só pode ser movimentada mediante as assinaturas de todos os seus titulares).

Em qualquer caso, o dinheiro depositado numa conta bancária pertence ao património do estabelecimento bancário e não ao património do depositante, ficando este a deter um direito de crédito sobre aquele. Por outro lado, impõe-se distinguir os poderes de movimentação da conta e os créditos relativos às quantias depositadas, não tendo os correspondentes direitos que ser coincidentes.

É certo que “nas relações entre si” (apenas, portanto, na esfera das relações internas) se presume que os fundos integrantes de uma conta bancária coletiva “pertencem” aos respetivos titulares, em partes iguais, tendo em vista determinar os termos em que cada um dos devedores ou credores solidários “deve suportar o encargo da dívida ou obter o benefício do crédito”, nomeadamente em situações de conflito entre os cotitulares de uma conta bancária (por exemplo, com frequência, em casos de dissolução do casamento ou de união de facto).

Porém, nos presentes autos apenas está em causa a relação jurídica existente entre a A. e a R., a qual é estranha às relações existente entre a primeira e a sua filha, enquanto cotitulares de uma conta bancária, pelo que não há que chamar à colação o art. 516.º, do Código Civil.

Assim, nada se tendo apurado sobre as razões subjacentes a essa situação, mas sabendo-se que com frequência a cotitularidade de um ascendente ou descendente não traduz qualquer situação de “compropriedade” dos fundos depositados (apenas radicando em razões de ordem prática, tendo em vista agilizar a movimentação da conta bancária em determinadas situações), afigura-se-nos que nada permite conjeturar que do pagamento da renda por parte da R. (à BB) adviesse algum benefício (económico) para a Autora.

25. Em suma, reafirma-se, não se nos afigura que os factos provados permitam concluir, com a necessária certeza e nitidez, que a apurada conduta da recorrente assume relevância disciplinar.

Em todo o caso, uma vez que o despedimento deve reservar-se para comportamentos graves, a que estejam aliadas consequências relevantes e uma culpa grave, a verdade é que, mesmo entendendo ter sido praticada uma infração disciplinar, nunca se justificaria sancionar a trabalhadora com a mais grave das sanções disciplinares.

Com efeito, ponderada a imagem global dos factos – em especial, a ausência de qualquer prejuízo para a R., a circunstância de não se ter provado que a A. tenha tido algum benefício ilegítimo e os 30 anos de antiguidade desta (nº 1 dos factos provados) –, isso não se mostra razoável, nem proporcionado.

Vale por dizer que, por falta justa causa, o despedimento foi ilícito, nos termos das disposições conjugadas dos arts. 330º, nº 1, 351º, nºs 1 e 3, e 381º, b), todos do CT, ficando assim prejudicada a apreciação da exceção de abuso de direito, também alegada pela recorrente, como derradeira linha de argumentação.

26. Resta apurar as consequências ressarcitórias da ilicitude do despedimento, matéria que naturalmente não foi apreciada pela Relação, em virtude de os correspondentes pedidos terem ficado prejudicados pela resposta dada à questão (logicamente) anterior.

A regra da substituição ao tribunal recorrido, prevista no art. 665º, nº 2, do CPC, não é aplicável ao recurso de revista interposto para o Supremo, nos termos do art. 679º, do mesmo diploma, pelo que se impõe que, para o efeito, os autos sejam remetidos para a Relação21.


IV.


27. Em face do exposto, concedendo a revista interposta pela Autora, acorda-se em revogar o acórdão recorrido, e, consequentemente, em sua substituição: a) declara-se a ilicitude do despedimento em causa; b) determina-se a remessa dos autos à Relação, para os efeitos referidos em supra nº 24.

Custa da revista pela R., sendo as demais, em ambas as instâncias, fixadas a final, em função da proporção do decaimento das partes.

Lisboa, 11.09.2024

Mário Belo Morgado - Relator

Domingos Morais

José Eduardo Sapateiro


_____________________________________________

1. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎

2. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

3. Transcrição expurgada dos factos destituídos de relevância para a decisão do recurso de revista.↩︎

4. Era a seguinte a redação constante da sentença da 1ª Instância, retificada pelo TRL: “E foi a Empregadora quem enviou para a Trabalhadora e não para a proprietária do imóvel, toda a documentação referente à celebração do contrato de arrendamento em causa, sendo tal o procedimento normal em todos os contratos de arrendamento celebrados pela ré em que os contratos com o senhorio são feitos pela direção de obra ou técnico administrativo”.↩︎

5. Era a seguinte a redação constante da sentença da 1ª Instância, retificada pelo TRL: “Desde a data que a autora comprou o imóvel, 09.12.2020 e a data do final do contrato de arrendamento (14.01.2021) a ré não colocou no imóvel qualquer trabalhador”.↩︎

6. Era a seguinte a redação constante da sentença da 1ª Instância, retificada pelo TRL: “O departamento jurídico da R. sabia que o imóvel que tinha arrendado era pertença da filha da A., mas não sabia que o mesmo ia ser arrendado à A., apenas tendo dado conta disso em 23 de novembro de 2020;”.↩︎

7. Figueiredo Dias, Os princípios estruturantes do processo e a revisão de 1998 do CPP, in RPCC, Ano 8, Fasc. 2º, 202.↩︎

8. Odone Sanguiné, Prisión provisional y derechos fundamentales, Tirant lo Blanch, Valencia, 2003, p. 34.↩︎

9. Cfr. Pedro Furtado Martins, Cessação do Contrato de Trabalho, 3ª edição, p. 182 – 183.↩︎

10. Na sua versão originária, dispunha o art. 356.º, n.º 1, que “cabe ao empregador decidir a realização das diligências probatórias requeridas na resposta à nota de culpa”. O Tribunal Constitucional declarou, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade desta norma (Ac. 338/10, publicado no DR 1ª série, de 08/11/2010) – por violação do artigo 32.º, n.º 10 (que impõe a observância dos direitos de audiência e de defesa do arguido em quaisquer processos sancionatórios), conjugado com o artigo 53.º, ambos da CRP –, assim repristinando o disposto pelo art. 414º, nº 1, do CT de 2003.

Consequentemente, a Lei 23/2012, de 25/6, deu nova redação ao preceito legal, dispondo atualmente o art. 356º, n.º 1 (em moldes análogos aos consagrados no sobredito art. 414.º, n.º 1) que “o empregador (…), deve realizar as diligências probatórias requeridas na resposta à nota de culpa, a menos que as considere patentemente dilatórias ou impertinentes, devendo, nesse caso, alegá-lo fundamentadamente por escrito”.↩︎

11. Direito do Trabalho, Almedina, 22ª edição, p. 697.↩︎

12. Ob. cit., p. 184.↩︎

13. Tratado de Direito do Trabalho, II, 9ª edição, p. 999 - 1000.↩︎

14. Segundo Claus-Wilhelm Canaris, a ilicitude, consistente na violação de um direito subjetivo de outrem ou da violação de uma norma jurídica destinada a proteger interesses jurídicos alheios, diz-nos o porquê e em que circunstâncias o lesado recebe a proteção do ordenamento jurídico, enquanto a culpa o porquê e em que circunstâncias ao agente é imposto o ónus de suportar o prejuízo sofrido por terceiro (cfr. Felipe Teixeira Neto, in A ilicitude enquanto pressuposto da responsabilidade civil delitual: um exame em perspetiva comparada luso-brasileira – https://www.cidp.pt/revistas/rjlb/ 2017/6/2017_06_1163_1190.pdf.↩︎

15. Cfr. Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, II, 4ª edição, p. 821.↩︎

16. Quanto à densificação do requisito “impossibilidade de subsistência da relação de trabalho”, cfr. Bernardo da Gama Lobo Xavier, Direito do Trabalho, Verbo, 2011, p. 738 – 739.↩︎

17. Direito do Trabalho, II, Almedina, 2019, págs. 960 – 961.↩︎

18. V.g. Júlio Manuel Vieira Gomes, Direito do Trabalho, I, Coimbra Editora, 2007, p. 532, Maria do Rosário Palma Ramalho, ob. cit., p. 349 - 350, e Monteiro Fernandes, ob. cit., p. 342 - 343.↩︎

19. Ibidem, p. 343.↩︎

20. Ibidem, p. 344.↩︎

21. Sobre esta problemática, v.g. Acs. do STJ de 01.10.2015, Proc. nº 2104/05.4TBPVZ.P.S1 (7ª Secção), e de 30.03.2017, Proc. nº 2443/14.3T8BRG.G1 (2ª Secção).↩︎