Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
235/17.7T8AMT-K.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: LUIS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: RECURSO DE REVISTA
JULGAMENTO DA MATÉRIA DE FACTO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
REAPRECIAÇÃO DA PROVA
PROVA PERICIAL
PODERES DA RELAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
Data do Acordão: 09/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário : A impugnação do julgamento da prova pericial feito pela Relação não pode servir para o recorrente obter que o STJ sindique por completo o julgamento de facto.
Decisão Texto Integral: Proc. 235/17.7T8AMT-K.P1.S1

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


***

AA reclama para a conferência do acórdão proferido, tendo apresentado minuta com as seguintes razões:

i) O julgamento da matéria de facto pela Relação é, em princípio, definitivo;

ii) A jurisprudência do STJ tem, porém, acrescentado às referidas hipóteses de sindicância do julgamento de facto da Relação algumas outras, admitindo o controlo do iter demonstrativum percorrido pelo segundo grau no manejo das regras legais do procedimento probatório.

iii) O recorrente censura o critério adoptado pela Relação, afinal o do perito da ré, por ser ilegal quanto às prestações suplementares e à sua repercussão no valor das participações sociais.

iv) A decisão proferida é absolutamente omissa no que tange ao pedido formulado pelo Recorrente, a saber: a nulidade do acórdão do Tribunal da Relação por a sua decisão violar o normativo do dispositivo do artigo 213º do Código das Sociedades Comerciais que institui o regime legal das prestações suplementares das sociedades comerciais por quotas.

v) Nas conclusões por si formuladas no seu Recurso de Revista, as quais sintetizam as razões da sua discórdia relativamente à decisão impugnada, servindo, além do mais, para delimitar as questões a decidir pelo tribunal ad quem, tal como resulta do disposto no art.º 637.º n.º 2 do CPC, o recorrente claramente arguiu, conforme se transcreve:



Antes de mais importa referir que a decisão aqui em crise viola de forma clara e ostensiva, como infra se demonstrará, o disposto nos artigos 210º a 213º do Código das Sociedades Comerciais, motivo por que não poderá deixar de se considerar nula.


E essa violação do disposto nos supra referidos artigos decorre do facto de ter “acolhido” a posição minoritária na avaliação pericial realizada nos presentes autos para se determinar o valor da sociedade Green Building e, por consequência, da quota do aqui recorrente e da esposa no respectivo capital social.”

vi) E no seu iter argumentativo, o recorrente pugna pela adopção da posição maioritária na avaliação pericial realizada nos autos, uma vez que, no seu entendimento, esta se ajusta e corresponde ao regime legal das prestações suplementares prescrito no regime do artigo 213º da CSC e, bem assim, procura demonstrar o completo desajuste à prescrição legal e à realidade da sociedade da posição minoritária a que o Tribunal “a quo” aderiu.

vii) Estando em causa, nos presentes autos, a determinação do valor das diversas quotas societárias dos diversos sócios da sociedade “Greenbuilding”, o recorrente questiona nas suas conclusões:


35ª

De facto, e salvo o devido respeito, como pode o Decisor afirmar que a quota do sócio que realizou a prestação suplementar ficou “mais capitalizada”, ou seja, ficou a valer mais, se a mesma passou a integrar os capitais próprios da sociedade?! Questiona-se: será que aquele sócio passou a deter um direito de crédito sobre aquela sociedade logo no momento em que efectuou essa prestação suplementar?

36ª

De facto, como resulta do regime legal, e foi excelente e detalhadamente explicitado no relatório pericial, e reafirmado pelos Senhores Peritos – da posição maioritária – em sede de esclarecimentos orais (em audiência de discussão e julgamento), para que possa ser reconhecido um direito de crédito ao sócio que efectuou as prestações suplementares, necessário se torna a observância dos requisitos presentes no artigo 213º do Cód. Soc. Com.”

viii) E, procura demonstrar o total desacerto da posição minoritária no laudo pericial com o mesmo regime legal, alegando que:


46ª

Por isso, acolher-se a posição minoritária – absolutamente ilegal – é subverter o regime legal aplicável, quase que confundindo prestações suplementares com suprimentos de sócios.

Nestes – o que não sucedeu no caso dos autos – o sócio ao efectuar o suprimento fica imediatamente titular de um crédito sobre a sociedade, de tal sorte que a sociedade inclusivamente terá de lhe pagar juros.”

ix) E conclui, em consonância com o por si alegado, formulando o seguinte pedido:

“Pelo exposto deve a decisão aqui em crise ser declarada nula por violação clara e manifesta do disposto no artigo 213º do Código das Sociedades Comerciais e, em consequência, ser proferido douto acórdão que acolha a posição maioritária e condene a recorrida a pagar ao recorrente a quantia de 96.842,10 €, acrescida dos juros de mora contados desde o dia 13.03.2019, assim se fazendo sã e acostumada JUSTIÇA.”

x) É sobre esta questão, absolutamente essencial, do desrespeito da Decisão proferida pelo regime legal imperativo das Prestações Suplementares nas sociedades por quotas prescrito no artigo 213º do Código das Sociedades Comerciais que importaria que o Douto acórdão conhecesse e decidisse.

xi) Porém, e em face do sobredito, parece-nos manifesto que o mesmo é absolutamente omisso e não conhece, como deveria e se lhe impõe, do pedido formulado pelo recorrente no seu recurso de revista.

xii) Pelo que a sentença é nula quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.

xiii) Assim, e porque incumbe ao Tribunal conhecer de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e excepções invocadas e todas as excepções de que oficiosamente deve conhecer (artigo 608° n° 2 do CPC), está o mesmo obrigado a tomar, no caso em apreciação, uma posição directa sobre o pedido formulado, o que, salvo o devido respeito, não acontece na decisão proferida.

xiv) TERMOS EM QUE, e nos melhores de direito que V.Exas. Doutamente suprirão, requer-se que, uma vez notificada a ré para se pronunciar, se dignem julgar procedente a presente arguição de nulidade e em consequência ser julgado nulo o douto Acórdão de 11/06/2024, pelos motivos supra aduzidos.

A recorrida opôs-se à pretensão do reclamante.

Vejamos se a reclamante tem razão.

O acórdão recorrido afirmou que o objecto do recurso se consubstanciava, entre outras, na seguinte questão: vi) valor a atribuir à meação do apelante na quota da insolvente apreendida e vendida na totalidade pela Sr.ª Administradora da Insolvência.

Foi dado como provado que:

37. De acordo com o n.º 2 do artigo 3 do Pacto Social, “Os sócios poderão efetuar prestações suplementares até ao montante global de duzentos mil euros”.

38. As prestações suplementares existentes foram realizadas pelos sócios BB e CC, apresentando entre 2018 e 2020, os seguintes valores:

39. À data de 31.12.2018, valor do activo corrigido do balanço de €787.854,14 e o passivo perfaz €7.358,02, correspondendo o valor dos capitais próprios a €780.496,12 e demais teor dos relatórios periciais.

40. À data de 31.12.2020, valor do activo do balanço é de €795.863,61 e o passivo perfaz € 26.886,19, correspondendo o valor dos capitais próprios a €768.977,42

E DEMAIS TEOR DOS RELATÒRIOS PERICIAIS.

No que se refere ao ponto vi) do objecto do recurso, a Relação, depois de ter examinado e comparado os relatórios periciais em presença, concluiu:

«Ponderados todos os factores afigura-se que a posição defendida pelo Sr. Perito indicado pela apelada é a que melhor traduz a dinâmica das prestações suplementares e a sua repercussão no valor das participações sociais.

Assim, fixa-se o valor da quota em apreço em €58.112,00 (valor apurado por referência ao ano em que foi feita a transacção referida no ponto 10 da matéria de facto provada), correspondendo o crédito do apelante a €29.056,00.

O valor acolhido pela sentença ─ € 25.000,00 correspondente ao valor de venda entre pai e filho (cfr. ponto 28 da matéria de facto provada), que se traduziria no valor de € 12.500,00 para o crédito do apelante ─ não se revela minimamente idóneo para se aferir do valor da quota em apreço».

Foi na base deste valor que o Tribunal retirou as consequências jurídicas adequadas, em desconformidade com o entendimento do primeiro grau, mas igualmente condenatórias.

Não há, nas sociedades modernas, nenhuma actividade, nenhuma área de conhecimento, que possa dizer-se que nunca ficará sujeita à soberania dos tribunais.

Como os juízes são humanos e não máquinas, carecem, para bem julgarem certos casos, do apoio técnico e/ou científico de terceiras pessoas, os peritos.

A imensa maioria dos peritos recebeu o seu manancial de conhecimentos especializados por meio do ensino.

A prova pericial é, desde há muito, o caminho normal para dar a conhecer ao juiz as máximas de experiência que até então lhe eram desconhecidas.

A maior parte dos peritos são transmissores das doutrinas ou ensinamentos que eles próprios receberam já elaborados. Daí que se diga que a sua fonte de conhecimento é processualmente irrelevante e que o seu saber não é individual e é fungível.

Os peritos transmitem ao juiz as premissas maiores fácticas que são necessárias para a ulterior subsunção .

A tarefa final de autoridade –a decisão- pertencerá sempre ao juiz, o qual, como qualquer profano aliás, poderá reconhecer os erros lógicos, as contradições, as ambiguidades, as obscuridades, etc. dos laudos e decidir de modo diferente deles.

Pensamos ter bem explicado tudo isto no acórdão reclamado.

O reclamante entende que houve omissão de pronúncia, porquanto o tribunal não conheceu da arguida nulidade do acórdão por violação do 213.º CSC.

Ora, esta posição só se compreende se não se tiver em conta a devida separação entre as questões de facto e as questões de direito, e particularmente como estas duas questões podem actuar e se fazer valer no processo.

Acresce que recurso de revista não pode servir para incrementar a intromissão do STJ no julgamento de facto, não pode ser uma forma oblíqua de manifestar a discordância com uma decisão desfavorável.

O reclamante reconhece que a violação das normas do Código das Sociedades Comerciais que indica,

«decorre do facto de se ter “acolhido” a posição minoritária na avaliação pericial realizada nos presentes autos para se determinar o valor da sociedade Green Building e, por consequência, da quota do aqui recorrente e da esposa no respectivo capital social».

Entende que a Relação deveria ter seguido a posição pericial maioritária.

O prevalecimento deste ponto de vista passava por uma hipotética alteração da decisão de facto.

Como reconhece o reclamante, é bem verdade que o STJ não é uma terceira instância e só em casos excepcionais conhece de facto.

Uma dessas excepções consiste em o STJ poder «controlar o iter demonstrativum percorrido pelo segundo grau no manejo das regras legais do procedimento probatório».

Este poder é muito mais restrito do que o poder do segundo grau em matéria de facto, porquanto o Supremo não pode, como vimos, a pretexto de sindicar a precisão, a lógica e a coerência dos relatórios perícias intrometer-se no julgamento de facto, cujo conhecimento lhe está, em princípio, vedado.

O acórdão objecto de reclamação cingiu-se ao perímetro de sindicância do julgamento de facto que lhe está reservado na lei. Não tendo havido qualquer alteração da matéria de facto, a decisão, porque justa, só podia ter sido confirmada.

Em conclusão: não houve qualquer omissão de pronúncia.


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A reclamação está sujeita a tributação, conforme resulta do disposto no artigo 7.º, 4 do Regulamento das Custas Processuais.

Quanto ao montante da taxa de justiça leva-se em consideração o penúltimo rectângulo da tabela II a que se refere aquela disposição legal.


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Pelo exposto, acordamos em indeferir a reclamação.

Custas pelo reclamante, com taxa de justiça que se fixa em 2,5 UC.


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17.9.2024

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Maria Rosário Gonçalves

Leonel Serôdio