Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 7.ª SECÇÃO | ||
Relator: | FERREIRA LOPES | ||
Descritores: | CLÁUSULA PENAL REDUÇÃO PRINCÍPIO DO PEDIDO PROCESSO EQUITATIVO INDEMNIZAÇÃO CONTRATO DE COMODATO DENÚNCIA INTERPRETAÇÃO DA DECLARAÇÃO NEGOCIAL INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO | ||
![]() | ![]() | ||
Apenso: | |||
Data do Acordão: | 01/16/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário : | A redução equitativa da cláusula penal, permitida pelo art. 812º do Cód. Civil, depende de pedido do devedor da indemnização e da alegação e prova de factos que revelem que a pena é manifestamente excessiva, o que significa uma desproporção substancial e chocante, relativamente ao dano efectivo sofrido pelo credor. | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça SLLS – Empreendimentos Turísticos, Unipessoal., Lda., com sede na Rua ..., instaurou contra AA, residente na Rua ..., a presente acção de processo comum, pedindo que a R. seja condenada a restituir-lhe o prédio de que é proprietária e a pagar-lhe uma indemnização já contada de 7.500,00 €, acrescida de 100,00 € por cada dia a contar desde 6/07/2022 até efectivo e integral entrega do imóvel e quantia a liquidar ulteriormente a título de mais-valia perdida e de eventuais impostos que venham a ser liquidados. Para o efeito alegou, em resumo, que, sendo proprietária do imóvel que identifica, cedeu gratuitamente o seu gozo à R. pelo prazo inicial de um ano, renovável, o que poderia cessar se denunciado por si, a todo o tempo, por escrito e com a antecedência de 60 dias relativamente ao respectivo termo, o que tendo feito com a cominação, como contratualmente previsto, da penalização de 100,00 €/dia, não foi levado a cabo pela R., apesar de, na sequência daquela notificação por carta registada, e com o mesmo objectivo, ter recorrido a notificação judicial avulsa. De igual modo, alega que com aquele comportamento a R. impede a A. de vender o prédio e de obter uma mais-valia nunca inferior a 100.000€. Citada, a Ré contestou a interpretação da Autora quanto à denúncia do contrato de comodato, que o mesmo se renovou, o excesso da cláusula penal, peticionando em reconvenção a condenação da A. a pagar-lhe €25.000,00, com juros de mora à taxa legal desde a citação até efectivo pagamento a determinar em liquidação de sentença, correspondente ao remanescente da quantia que havia entregue à A. para reserva da propriedade para si. Em Resposta, a A. manteve a posição do articulado inicial. Foi proferido despacho saneador, identificado o objecto do processo e enunciados os temas de prova. Realizado o julgamento, foi proferida sentença que culminou com o seguinte dispositivo: Julgo a acção e a reconvenção parcialmente procedente, e, em consequência: 1. condeno a R. a reconhecer o direito de propriedade da A. sobre o prédio supra id. em 1) dos Factos Provados; 2. condeno a R. a entregar o referido prédio à A. e pagar-lhe a quantia de 51.000,00 €, acrescida de € 100,00 por dia a contar da presente data até efectiva entrega do prédio. 3. absolvo a R.do restante pedido da A. 4. condeno a A. a entregar à R. a quantia de 25.000,00€. 5. julgo a extinção recíproca dos referidos créditos por força da correspondente compensação, e condeno a R. a pagar à A. a quantia excedente de 26.000,00 € (vinte e seis mil euros), acrescida de € 100,00 (cem euros) por dia a partir da presente data até efectiva entrega do prédio. Custas da acção e da reconvenção por A. e R. na proporção do respectivo decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que esta beneficia. Inconformada, a Ré interpôs recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto. Na resposta, veio a A/Recorrida requerer ao abrigo do disposto no art. 678º, nº 1, do CPC, a subida per saltum do recurso para o STJ, alegando verificarem-se todos os requisitos exigidos. Neste STJ, pelo primitivo relator, foi admitido o recurso per saltum /// A Recorrente remata a sua alegação com as seguintes conclusões: 1. Vem o presente recurso interposto da douta sentença de fls., que julgou parcialmente procedente a ação e consequentemente condenou nos termos supra referidos. A recorrente não concorda com a douta decisão do Tribunal A Quo quanto à matéria de direito, pois não nos convenceram os argumentos aduzidos por aquele Tribunal para condenar a ré em sede de direito nos supra identificados pontos. Por isso recorre em sede de matéria de direito, nos termos dos artigos 637.º, 638.º e 639.º do CPC. É este o sentido e alcance do recurso que trazemos perante V. Exas. 2. Salvo o devido respeito por melhor opinião, o Tribunal A Quo faz uma interpretação errada do disposto na cláusula 3.ª, n.ºs 1 e 2 do contrato de comodato junto aos autos, no qual foram signatários recorrente e recorrida, e que aqui se pretende ver revertida. Ademais, entende o Tribunal A Quo que a cláusula penal de 100€/dia estipulada no contrato de comodato (cláusula 3.ª, n.º 4) não se revela excessiva, violando o artigo 812.º, n.º 1 do CC. i) Quanto à “denúncia do contrato de comodato” 3. Desde logo, entendeu o Tribunal A Quo que o recorrido poderia, a todo o tempo, pôr fim ao contrato de comodato com 60 dias de antecedência. 4. Refere a sentença A Quo, “Na verdade, findo o prazo certo convencionado para a duração do contrato, o fim do comodato não depende de interpelação do comodatário pelo comodante, como, de resto, resulta da Cláusula 3.ª, n.º 1 do contrato em discussão que convencionou o prazo inicial de um ano, sem qualquer previsão de necessidade de interpelação para lhe pôr fim.” 5. Discorda-se, pois, da douta Sentença quando refere que “o fim do contrato não depende de interpelação do comodatário pelo comodante”, pois quiseram as partes conceder-lhe a característica de renovação automática, como prescreve a cláusula 3.ª, n.º 2 do contrato de comodato “Findo o prazo estipulado no número anterior, o mesmo poderá ser prorrogável por idênticos períodos de 1 (um) ano (…)”. 6. E, ainda, da posição do Tribunal A Quo: “Se assim, a necessidade de interpelação para fazer cessar o comodato previsto no n.º 2 da mesma Cláusula contratual também não se reporta ao final do prazo de um ano de prorrogação, que não carece de interpelação.”, pois quando aludem as partes no contrato “ao seu termo” referem-se, parece-nos, ao término do prazo da renovação do contrato. 7. Porquanto as partes quiseram estabelecer 60 dias de antecedência para denúncia em qualquer momento, bastava-lhe dizer qualquer coisa como: “pode o comodante pôr fim ao contrato com 60 dias de antecedência” ou “pode o comodante pôr fim ao contrato 60 dias de aviso prévio”, sem mais. 8. Ora, quando referem “60 dias de antecedência relativamente ao seu termo”, a conjugação da “antecedência” relativamente “ao seu termo” leva-nos a crer que os 60 dias é mesmo o período imediatamente anterior à possibilidade de renovação automática do contrato de comodato. 9. Já no que concerne à expressão “a todo o tempo” que consta da cláusula 3.ª do aludido contrato de comodato parece-nos que as partes quiseram conceder ao comodante a possibilidade de pôr fim ao contrato quando assim o entendesse, desde que respeitasse o período antecipatório de 60 dias relativamente ao seu termo (até 60 dias antes de cada renovação). 10. Discordando-se, em consequência, da posição do Tribunal A Quo: “Nesta parte, verifica-se, assim, que foi reconhecida à A. a faculdade de denúncia ad nutum, ou seja a faculdade de denunciar o comodato, a todo o tempo, sem esperar pelo fim do prazo de um ano estabelecido para as suas prorrogações.” 11. Parece-nos que o propósito dos outorgante foi o de estabelecer alguma estabilidade ao contrato, pois trata-se da habitação própria e permanente e a necessidade da proteção familiar se impunha, concedendo assim à comodatária a renovação do contrato por períodos alargados de um ano, mas também certeza do comodante de que tal contrato não se perpetuaria, pois bastar-lhe-ia denunciá-lo com 60 dias de “antecedência relativamente ao seu termo.” 12. A sentença A Quo faz então uma errada interpretação das declarações negociais do contraentes – comodante e comodatária - consagradas no contrato de comodato sub judice, em violação dos artigos 236.º n.º 1 e 238.º n.º 1 do Código Civil. 13. Faz pois o Tribunal A Quo uma errada interpretação da cláusula 3.ª do contrato de comodato violando os artigos 236.º n.º 1 e 238.º n.º 1 do Código Civil; devia e podia, ao invés, ter considerado que o comodante só pode (podia) denunciar o contrato até 60 dias antes da renovação. 14. Não tendo feito a denúncia até esses derradeiros 60 dias, o contrato renovou-se, automaticamente, no dia 6 de janeiro de 2022, por mais 1 ano, e como tal deveria ter considerado assim o Tribunal A Quo. ii) Quanto ao “excesso de cláusula penal estabelecida” 15. As partes outorgantes estabeleceram no contrato de comodato uma cláusula penal de 100€/ dia de penalização por cada dia até à efetiva entrega do imóvel (cfr. artigo 3.º, n.º 4). 16. Quanto a esta matéria discorda-se do Tribunal A Quo quando refere que: “A referida cláusula penal correspondendo ao valor de uma indemnização fixada pelas próprias partes, em face da natureza do bem de que a A. está privada, da sua localização e da possível afectação do mesmo ao mercado do arrendamento, não se nos afigura excessiva e, como tal, não merece ser reduzida ao abrigo do art. 812.º do CC.” 17. Nesse sentido podia e devia o Tribunal A Quo conceder que existe uma manifesta desproporção entre o dano causado e a pena estipulada pelas partes, ou seja, que a cláusula penal manifestamente excessiva. 18. Embora o valor da cláusula penal não está dependente do valor de mercado de arrendamento, porém, neste caso, pode ser uma forma de se estabelecer um critério valorativo de uma determinada sanção penal pelo atraso de entrega do imóvel. 19. Atenta a singeleza da habitação, como se afere pelo seu valor patrimonial (88.548,60€), o montante de tal cláusula (penal), comparando com o valor de mercado de arrendamento, é manifestamente excessiva. 20. Uma “renda” mensal superior a 3.000€ parece-nos absolutamente excessivo, mesmo a título de “cláusula penal”. 21. O Tribunal A Quo faz então uma errada interpretação e de (não) aplicação do n.º 1 do artigo 812.º do Código Civil, segundo o qual entende que a cláusula penal “não merece ser reduzida” ao abrigo da equidade. 22. Em jeito de conclusão, impunha-se, na verdade, que o Tribunal A Quo procedesse à redução dos valores a título de cláusula penal, de acordo com juízos de equidade, violando deste modo os termos prescritos no dito n.º 1 do artigo 812.º do Código Civil. Em contra alegações, a Recorrida pugnou pela improcedência do recurso e a confirmação da decisão recorrida. /// Objecto do recurso: O objecto do recurso é definido pelas conclusões da alegação do recorrente (ars. 635º, nº4, 639º, nº1, do CPC). Visto as conclusões da alegação recursiva, cumpre apreciar as seguintes questões: - denúncia do contrato de comodato; - redução da causa penal “manifestamente excessiva”. /// Fundamentação. De facto. Vêm provados os seguintes factos: 1. A A. é proprietária do imóvel sito na Rua ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º .32/... e inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...05 da União de freguesias de .... 2. O valor fiscal/patrimonial do imóvel é de 88.548,60 €. 3. A aquisição daquele imóvel verificou-se no âmbito e no decurso do processo judicial n.º 6335/19.1... que correu termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Comércio de ... – Juiz 6. 4. No dia 6/01/2021, a A. cedeu gratuitamente aquele imóvel à R.. 5. Da Cláusula 3.ª do supra referido contrato consta o seguinte: “1. O presente contrato é celebrado para vigorar pelo prazo de 1 (um) ano contado desde a data da sua assinatura. 2. Findo o prazo estipulado no número anterior, o mesmo poderá ser prorrogável por idênticos períodos de 1 (um) ano, sendo que a Primeira Contraente o poderá fazer cessar por escrito, a todo o tempo, mediante o envio de carta registada com aviso de receção, com a antecedência de 60 dias antes do seu termo, para as moradas supra indicadas que desde já se convencionam. 3. (…) 4. Acordam expressamente as partes, que caso o imóvel não seja restituído pela Segunda Contraente à Primeira, no prazo que lhe for fixado pela Primeira Contraente, incorrerá a Segunda numa penalização diária de 100,00 euros (cem euros) até à efectiva entrega do imóvel, a título de Cláusula Penal”. 6. A celebração do contrato supra referido prendeu-se, primeiramente, com a possibilidade de facultar à R. lugar onde residir. 7. E, seguidamente, com a possibilidade de a R. adquirir o imóvel que, para tanto, entregou adiantadamente à A., no dia 27/08/2021, a quantia de 20.000,00 € e no dia 30/08/2021, a quantia de 15.000,00 €. 8. No dia 8/01/2022 a R. comunicou à A. que não tinha condições para adquirir o imóvel indicado. 9. Atento este facto, a A. comunicou à R. a intenção de fazer cessar o contrato, pedindo a entrega do imóvel livre de pessoas e bens. 10. Solicitando-lhe, ainda, a possibilidade de facultar o acesso ao imóvel a potenciais interessados na sua aquisição. 11. No dia 18/01/2022, a A. devolveu à R. a quantia de 10.000,00 €. 12. No dia 26/01/2022, a A. contactou telefonicamente a R. no sentido de agendar dia e hora para apresentar o imóvel a potencial comprador, tendo sido acordado o dia seguinte, pelas 14.30 h, para tal acto. 13. No dia 27/01/2022, pelas 14.30 h, a R. não permitiu o acesso ao imóvel. 14. A A., no dia 10/02/2022 enviou à R. carta registada com aviso de recepção, comunicando a intenção e resolução em fazer cessar todos os efeitos, direitos e deveres resultantes daquele contrato e concedendo o prazo de 60 dias para que a R. entregasse o imóvel nas mesmas condições em que o recebeu, livre de pessoas e bens, sob pena de incorrer na penalização diária de 100,00 €, até efectiva entrega. 15. Tal missiva foi recusada no dia 15/02/2022. 16. Face a essa situação, no dia 21/02/2022 foi enviada uma nova carta à R. desta feita com registo simples, concedendo o prazo de 60 dias para que a R. entregasse o imóvel nas mesmas condições em que o recebeu, livre de pessoas e bens “sob pena de incorrer na penalização diária de 100,00 € (cem euros) até efectiva entrega. 17. Tal carta foi rececionada no dia 23/02/2022. 18. A A. deitou mão de notificação judicial avulsa apresentada em juízo a 19/04/2022, requerendo a notificação da R. com vista a: ser-lhe reiterada a notificação, a que foi recusada no dia 15 de Fevereiro de 2022 e a que foi recebida no dia 23 de fevereiro de 2022, da cessação do contrato celebrado no dia 6/01/2021 e relativo ao imóvel sito na Rua ..., devendo-o entregar à Requerente, livre de pessoas e bens e no mesmo estado em que o recebeu; ser-lhe comunicado que deveria, de imediato, proceder ao pagamento junto da A., de todos os consumos de água, electricidade e outros que estavam em dívida e que ascendiam a 1.149,53 € e ser-lhe comunicado que é devida à Requerente a quantia de 100,00 € a título de cláusula penal por cada dia de atraso na efectiva entrega do imóvel. 19. Tal notificação ocorreu a 6/05/2022. 20. A R. persiste em se manter no imóvel, não o entregando à A. 21. A R. continua a habitar o referido prédio, sem autorização e contra a vontade da Autora. /// Fundamentação de direito. Começando pela primeira questão enunciada: a denúncia do contrato. Insurge-se a Recorrente contra a interpretação feita na decisão recorrida da cláusula 3ª do contrato onde as partes estabeleceram os termos da denúncia. No seu entender, a melhor interpretação, em obediência aos princípios consagrados nos arts. 236º e 238º do CCivil, deve levar a concluir que a Autora só podia denunciar o contrato até 60 dias antes da renovação e não, como entendeu a sentença, a todo o tempo, com 60 dias de antecedência. Como vem provado, em 06.01.2021, a Autor cedeu gratuitamente à Ré o prédio urbano identificado supra, de que é proprietária, para a Ré aí habitar e, eventualmente, o vir a adquirir. A cedência do prédio pela Autora à Ré consubstancia um contrato de comodato, aspecto em que todos estão de acordo. Comodato é, na definição do art. 1129º do Cód. Civil, “o contrato gratuito pelo qual uma das partes entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de a restituir.” Está-se, assim, perante um contrato real quod constitutionem, gratuito, não sinalagmático, pois que entre as obrigações dele decorrentes para ambas as partes não há correspectividade, ou seja, o uso da coisa não beneficia de contraprestação. Como se colhe da sua própria definição, é da natureza do contrato de mandato a obrigação de restituir a coisa. O que claramente resulta do art. 1135º do CC ao elencar entre as obrigações do comodatário a de “restituir a coisa findo o contrato” (alínea h). Quanto à restituição da coisa estabelece o art 1137, nº1, do mesmo Código que “se os contraentes não convencionaram o prazo certo para a restituição da coisa, mas esta foi emprestada para uso determinado, o comodatário deve restituí-la ao comodamente logo que o uso finde, independentemente de interpelação”. E acrescenta o nº 2 que “se não foi convencionado prazo para a restituição nem determinado o uso da coisa, o comodatário é obrigado a restituí-la logo que seja exigida.” Dito isto. Decorre dos factos provados que, no dia 06 de Janeiro de 2021, a Autora cedeu gratuitamente à Ré o imóvel. O comodato foi celebrado por escrito, tendo sido estabelecido no nº1 da cláusula 3ª que o mesmo vigoraria pelo prazo de 1 (um) ano “contado desde a data da sua assinatura”, e ainda o seguinte no nº2: “ Findo o prazo estipulado no número anterior, o mesmo poderá ser prorrogável por idênticos períodos de 1 (um) ano, sendo que a Primeira Contraente o poderá fazer cessar por escrito, a todo o tempo, mediante o envio de carta registada com aviso de receção, com a antecedência de 60 dias antes do seu termo, para as moradas supra indicadas que desde já se convencionam.” A decisão recorrida interpretou esta cláusula nos termos seguintes: “Do que fica dito colhe-se que havia um prazo certo para a duração do contrato, um ano. Certo que esse período de um ano era prorrogável por igual período de um ano. Neste caso, porém, o acordo das partes foi no sentido de o comodato terminar não apenas ao cabo do ano de prorrogação mas também, a todo o tempo, mediante interpelação da A., comodante, com 60 dias de antecedência relativamente ao seu termo. Na verdade, findo o prazo certo convencionado para a duração do contrato, o fim do comodato não depende de interpelação do comodatário pelo comodante, como, de resto, resulta da Cláusula 3.ª, n.º 1 do contrato em discussão que convencionou o prazo inicial de um ano, sem qualquer previsão de necessidade de interpelação para lhe pôr fim. Se assim, a necessidade de interpelação para fazer cessar o comodato previsto no n.º 2 da mesma Cláusula contratual também não se reporta ao final do prazo de um ano de prorrogação, que não carece de interpelação. Acresce que neste n.º 2, as partes começam por admitir a possibilidade de a A. comodante fazer cessar o contrato a todo o tempo, para só depois impor para o efeito uma interpelação 60 dias antes do seu termo, ou seja 60 dias antes da cessação que a A., a todo o tempo, podia exigir. Nesta parte, verifica-se, assim, que foi reconhecida à A. a faculdade de denúncia ad nutum, ou seja a faculdade de denunciar o comodato, a todo o tempo, sem esperar pelo fim do prazo de um ano estabelecido para as suas prorrogações.” Dissentindo do assim decidido, contrapõe a Recorrente que as regras de interpretação do negócio jurídico plasmadas nos arts. 236º e 238º do CC, impõem que se interprete a cláusula 3ª no sentido de que a Autora, querendo denunciar o contrato, devia fazê-lo até 60 dias antes da renovação e não como entendeu a sentença. Sem razão, com o devido respeito. É certo que na interpretação das cláusulas de um contrato devem ser observadas as regras fixadas nos arts. 236º e 238º do Cód. Civil. Segundo o mencionado art. 236º, a declaração negocial vale como o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, salvo se este não puder razoavelmente contar com ele. E continua aquele dispositivo dizendo que “sempre que o declaratário conheça a vontade real do declarante, é de acordo com ela que vale a declaração”. Por seu lado, tratando-se de negócio formal, o art 238º estipula que a declaração não pode valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso. Além disso, na interpretação daquela declaração há que atender a todas as circunstâncias do caso concreto, todos os elementos que um declaratário medianamente instruído, diligente e sagaz, na posição do declaratário efectivo, teria tomado em conta. Consagrou-se, assim, a denominada teoria da impressão do destinatário, de acordo com a qual a declaração negocial deve ser interpretada como um declaratário medianamente sagaz, diligente e prudente, a interpretaria, colocado na posição concreta do declaratário. A interpretação das declarações ou cláusulas contratuais constitui matéria de facto, da exclusiva competência das instâncias, mas é matéria de direito, sindicável pelo Supremo, determinar se na interpretação das declarações foram observados os critérios legais impostos pelos arts. 236º e 238º, para efeito da definição do sentido que há-de vincular as partes, face aos factos concretamente averiguados pelas instâncias (cfr. Acórdão do STJ de 17.04.2008, CJ/STJ, II, p. 33). É o que se fará de seguida. Na cláusula 3ª, quiseram as partes estabelecer o tempo por que perduraria o comodado. Começaram por fixar um prazo certo para sua duração, 1 ano, renovável por igual período, com uma importante ressalva: o comodante poderia fazer cessar o contrato, a todo o tempo, mediante comunicação escrita, com a antecedência de 60 dias. O sentido objectivo da cláusula, que um declaratário normal, “o homem normal e médio”, colocado na posição do real declaratário, é a interpretação da sentença, não o sentido propugnado pela Recorrente em que a denúncia teria de ser feita até 60 dias antes da renovação. Como bem referiu a decisão recorrida, na cláusula 3ª “ foi reconhecida à A. a faculdade de denúncia ad nutum, ou seja a faculdade de denunciar o comodato, a todo o tempo, sem esperar pelo fim do prazo de um ano estabelecido para as suas prorrogações.” Com o que improcede este primeiro fundamento do recurso. /// Sustenta ainda a Recorrente que a cláusula penal fixada no contrato é manifestamente excessiva, e assim o tribunal deveria ter procedido à sua redução equitativa nos termos do art. 12º do CCivil. O nº1 do art. 810º do CCivil contém a definição de cláusula penal: a convenção pela qual as partes fixam “o montante da indemnização exigível”. Entende-se comumente que a cláusula penal assume a dupla função ressarcitória e coercitiva. Como se escreve no Acórdão do STJ de 20.10.1998, CJ/STJ, 3ª, pag. 78, citando Antunes Varela e Calvão da Silva, “ a cláusula penal assume a dupla função ressarcitória e coercitiva – ressarcitória, porque ela prevê antecipadamente um forfait que ressarcirá o dano resultante do eventual incumprimento ou cumprimento inexato, pelo que o devedor vinculado à cláusula penal ficará obrigado ao ressarcimento do dano fixado antecipadamente e negocialmente; coercitiva, porque “funciona também como poderoso meio de pressão de que o credor se serve para determinar o seu devedor a cumprir a obrigação, desde que o montante da pena seja fixado numa cifra elevada, relativamente ao dano efectivo.” No caso presente, as partes fixaram a cláusula penal no nº4, cláusula 3ª nos seguintes termos: “Acordam expressamente as partes, que caso o imóvel não seja restituído pela Segunda Contraente à Primeira, no prazo que lhe for fixado pela Primeira Contraente, incorrerá a Segunda numa penalização diária de 100,00 euros (cem euros) até à efectiva entrega do imóvel, a título de Cláusula Penal.” Estão reunidas aqui as duas funções assinaladas à cláusula penal: por um lado, a fixação antecipada da indemnização devida à Autora caso o imóvel não lhe fosse restituído no prazo devido, por outro a ameaça de pena diária, com finalidade óbvia de desincentivar o incumprimento. E a questão que se coloca é a de saber se o art. 812º, que prevê a possibilidade de redução equitativa da cláusula penal, “quando for manifestamente excessiva”, pode aqui ser aplicado e levar à redução da cláusula, como pretende a Recorrente. Em anotação ao art. 812º do CCivil, Ana Prata, Código Civil anotado, Volume I, Almedina, escreve o seguinte: “(A redução) molda-se pela equidade, o que significa que o tribunal tem de atender às circunstâncias do caso para decidir; entre essas circunstâncias estão, naturalmente, o valor dos danos (pois a cláusula tem de ser “manifestamente excessiva” desde logo em relação a esse valor), as situações económicas de lesante e lesado, as dificuldades que o devedor tinha para cumprir (desde que estas não fossem suficientes para o exonerar da obrigação); a gravidade da sua culpa no não cumprimento; a facilidade/dificuldade que o credor tenha em obter satisfação substitutiva do seu interesse e outras que o tribunal entenda dever considerar.” No acórdão do STJ de 12.09.2019, P. 9018/16, ponderou-se que “o conceito de excesso manifesto é um conceito indeterminado que tem de ser concretizado caso a caso, não bastando o simples excesso e exigindo-se uma desproporção que seja, por um lado, substancial ou significativa e, por outro lado, patente, evidente, que “salte aos olhos”. O STJ vem reiteradamente decidindo neste sentido, isto é, que aplicação do art. 812º do CC depende de uma desproporção, de um excesso evidente e grave (Acórdãos de 24.04.2012, CJ/STJ, II, pag.73, de 19.06.2018, P. 2042/13 e de 06.07.2023,P. 547/20). A qualificação de uma cláusula penal como manifestamente excessiva não se identifica como a cláusula penal meramente excessiva (o citado acórdão do STJ 24.04.2022). Com pertinência escreveu-se no acórdão de 19.06.2018 supra referido, “o fim da cláusula penal é não só a indemnização pelo incumprimento, fixada a forfait, mas também compelir o devedor a cumprir não sendo por isso aferida pelo valor matemático do incumprimento, desde logo por ser fixado ex ante. A cláusula penal tem também um fim punitivo; só será ilegítima se houver uma chocante desproporção entre os danos que previsivelmente o devedor causar com a sua conduta e a indemnização prevista na cláusula para os ressarcir. A não ser assim, não teria qualquer função coercitiva ou compulsória que equivalesse ao valor real dos danos; não seria dissuasora do incumprimento.” Competia à Ré/recorrente, que pretende a redução da cláusula penal, alegar e provar factos que revelem a “manifesta excessividade” da pena (cfr. Acórdão do STJ de 04.04.2024, P. 891/21). Tendo presente as considerações precedentes, compulsada a matéria de facto, é manifesta a ausência de elementos que permitam concluir que a indemnização fixada a título de cláusula penal - €100,00 por cada dia de atraso na restituição do imóvel, um prédio urbano sito na cidade ... – é manifestamente excessiva, no sentido de chocante, exagerada, face aos danos efectivos resultantes do incumprimento. Não tendo a Ré/recorrente lograr provar factos que revelem que a cláusula penal convencionada é manifestamente excessiva, desproporcionada a pretendida redução colidiria com a necessária preservação do seu valor cominatório e dissuasor (acórdão do STJ de 24.04.2012, supra citado). Pelo que também nesta parte a revista não pode ser acolhida. Com o que improcedem na totalidade as conclusões da Recorrente. Decisão. Pelo exposto, nega-se a revista e confirma-se a decisão recorrida. Custas pela Recorrente. Lisboa, 16.01.2025 Ferreira Lopes (relator) Fátima Gomes Rui Machado e Moura |