Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
30/22.1GABCL.G1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANTERO LUÍS
Descritores: RECURSO PER SALTUM
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA
TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 10/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. Comete um crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01 e não um crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo artigo 25.º do mesmo diploma legal, a arguida que actuando “em execução de plano conjunto e comunhão de esforços” e “concertadamente” na venda entre 2022 e Maio de 2023, em várias freguesias dos concelhos de Vila Nova de Famalicão e Guimarães produtos estupefacientes  (cfr. pontos 1.2 e 1.4) a vários consumidores, várias vezes por semana, em média 3 vezes a cada um deles, 23 dos quais identificados (cfr. pontos 1.5 a 1.26) e 5 não identificados (cfr. pontos 1.27 a 1.31), tendo efectuado pelo menos 3 compras por grosso de produtos estupefacientes (cfr. ponto 1.34) e apreendidas, na sua residência e do coarguido produtos estupefacientes, dinheiro (€2.500,00), duas balanças de precisão digitais e sacos para partir e embalar o produto estupefaciente;

II. Tal factualidade integra o chamado tráfico de média dimensão, com algum nível de organização (deslocação ao Porto e compra em média quantidade) e posteriormente preparação, partição, embalagem do produto e revenda a dezenas de consumidores na zona de residência da arguida e seu companheiro, utilizando para tanto uma viatura e vários telemóveis para efectuar os contactos;

III. Tal factualidade não pode enquadrar no conceito legal de “ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída”, ao nível dos meios utilizados, modalidade ou circunstâncias da acção, qualidade ou quantidade das substâncias, nem a imagem global dos factos, demonstra, nem sequer indicia, uma menor ilicitude.

IV. A circunstância de um arguido deter uma arma numa perspectiva de defesa de eventuais agressões, na prática de actos ilícitos, não atenua a sua culpa.  A mera detenção de arma para defesa apenas atenua a culpa em situações de normalidade de vida.

V. Não pode ser valorado favoravelmente, a criação do risco pelo arguido ao praticar actividades ilícitas e depois deter uma arma para minorar o risco por si próprio criado. Admitir este raciocínio estava encontrada a fórmula para justificar, do ponto de vista da culpa, a detenção de armas em actividades criminosas.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça


I - Relatório

1. Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Central Criminal de ... - Juiz 4, por acórdão de 29 de Maio de 2024, foram os arguidos AA e BB, condenados, no que a este recurso interessa, nos seguintes termos:

- Condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência às tabelas I-A e I-B, anexas a tal diploma, na pena de 5 (cinco) anos de prisão;

- Condenar o arguido AA pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art.º 86.º, n.º 1, al. d), por referência aos art. 2º, n.º 1, alinea ap), 3.º, n.ºs 2, al. e) (quanto à soqueira), todos da Lei 5/2006, de 23/2 (RJAM), na pena de 6 (seis) meses de prisão;

- Em cúmulo jurídico, condenar o arguido AA na pena única de 5 (cinco) anos e 2 (dois) meses de prisão efectiva;

- Condenar a arguida BB pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência às tabelas I-A e I-B, anexas a tal diploma, na pena de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão, a qual será suspensa por igual período de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses, sujeitando-a a regime de prova, a ser elaborado pela DGRSP.

2. Inconformados com tal decisão, dela interpuseram recurso ambos os arguidos: o AA para o Supremo Tribunal de Justiça e a BB para o Tribunal da Relação de Guimarães.

Por decisão sumária da Exma. Desembargadora Relatora, de 23 de Agosto de 2024, foi declarada a “incompetência em razão da matéria deste Tribunal da Relação de Guimarães para conhecer dos recursos interpostos pelos arguidos AA e BB e, consequentemente, determino a oportuna remessa dos autos ao Colendo Supremo Tribunal de Justiça, por ser o materialmente competente para o efeito.

3. Remetidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, dos referidos recursos os recorrentes retiram as seguintes conclusões: (transcrição)

o AA

1.º O crime de detenção de arma proibida, previsto no artigo 86.º, n.º 1, al. d) da Lei n.º 5/2006, prevê a possibilidade de aplicação de uma pena de multa (até 480 dias) ou a pena de prisão (até 4 anos).

2.º O critério da escolha da pena prevista em alternativa encontra-se estabelecido no artigo 70.º do C.P., o qual estabelece que o Tribunal dá preferencia à aplicação da pena não privativa de liberdade sempre que esta realize de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

3.º As finalidades de punição são, de acordo com o artigo 40.º do C.P., a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.

4.º Perante duas penas principais previstas, em alternativa, a primeira operação consistirá na escolha, ou seja, em determinar qual das duas espécies de penas eleger no caso concreto, após o que competirá proceder à determinação da medida concreta da espécie de pena já escolhida.

5.º No presente caso, consideramos ajustada, adequada e suficiente a aplicação de uma pena de multa.

6.º Senão vejamos, estamos na presença de uma detenção de arma proibida, mais concretamente, de uma soqueira, que foi encontrada no interior do veículo do Recorrente, na sequência da execução de mandados de busca e apreensão, em virtude da sua detenção pela prática de ilícitos relacionados com o tráfico de estupefacientes.

7.º Não ficou demonstrado que a referida soqueira o acompanhava nas ocasiões que transacionava produto estupefaciente.

8.º A soqueira nunca foi usada pelo Recorrente.

9.º Trata-se, portanto, de um ato de detenção de arma proibida, sem mais.

10.º Acresce que, o Recorrente confessou grande parte da factualidade constante na acusação pública contra ele deduzida, assim como, demonstrou arrependimento pelos factos praticados, e conformação com os valores ético-jurídicos dominantes.

11.º Para além disso, ficou provado que o Recorrente goza de uma estrutura familiar que o acolhe e o apoia, nomeadamente, da companheira, também Arguida nos presentes autos, da mãe, dos filhos, dos enteados e do irmão.

12.º O Recorrente tem consciência do desvalor da sua conduta, apresentando um juízo de autocensura, justificando tais atos com a problemática aditiva.

13.º O Recorrente é de situação económica modesta.

14.º Pelos motivos acima explanados, entendemos que a pena de multa realiza de forma adequada e suficiente a proteção dos bens jurídicos e a reintegração do Recorrente na sociedade, nos termos do artigo 40.º do C.P..

15.º Por essa razão, deveria o Tribunal a quo ter optado pela aplicação de um pena de multa, em detrimento da pena de prisão, porquanto a conduta do Recorrente não reveste de gravidade tal que imponha a opção por pena privativa de liberdade,

16.º Sem prescindir, por mera cautela de patrocínio, caso assim não se entenda, deve a pena de prisão de 6 (seis) meses, aplicada ao crime de detenção de arma proibida, ser reduzida no seu quantum, aplicando-se ao Recorrente uma pena próxima do limite mínimo da moldura penal aplicável (no máximo de três meses de prisão).

17.º A determinação da medida da pena constitui, para o julgador, uma tarefa complexa, a qual têm de ter em consideração a natureza, forma de execução e gravidade do crime, devendo optar por uma das reações penais legalmente previstas. 18.º A determinação da medida concreta da pena deve obedecer aos critérios e fatores a que aludem os artigos 40.º e 71.º do C.P., e tem de ser encontrada em função da culpa do agente, sem nunca a poder ultrapassar, e das exigências de prevenção -geral e especial -, tendo em vista a proteção dos bens jurídicos e a reintegração social daquele.

19.º Para além disso, o Tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, considerando, nomeadamente, as circunstâncias agravantes e atenuantes apresentadas nas alíneas a) a f), do n.º 2, do artigo 71.º do C.P.

20.º Conforme ensina o Prof. Dr. Figueiredo Dias, em “Direito Penal – Questões Fundamentais – A Doutrina Geral Do Crime”, Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, página 121:

“1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.

2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.

3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”

21.º O Julgador deve proceder à determinação da medida concreta da pena tendo em consideração este modelo.

22.º Sucede, porém, que o Tribunal a quo não procedeu à determinação da medida concreta da pena com base neste modelo e através dos critérios consagrados nos artigos 40.º e 71.º do C.P., uma vez que não valorou devidamente diversos fatores/circunstâncias que deveriam ter sido tidos/as em consideração no momento da determinação da mesma.

23.º A moldura penal abstrata aplicável ao crime de tráfico de estupefacientes (artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro) é a pena de prisão de 4 (quatro) a 12 (doze) anos.

24.º Encontrada a moldura penal abstrata, importa decidir qual a medida concreta da pena aplicável ao Recorrente, recorrendo, então, aos critérios e fatores dos artigos 40.º e 71.º do C.P. e ao modelo perfilhado pela doutrina e adotado pela jurisprudência.

25.º As necessidades de prevenção geral são elevadas, em virtude do mercado de drogas estar cada vez mais disseminado e ter consequências nefastas para os consumidores, comunidade em geral, especialmente no caso das drogas de maior danosidade para a saúde pública.

26.º Quanto às necessidades de prevenção especial consideramos que as mesmas são medianas, pois, não obstante a ausência de antecedentes criminais, o certo é que é existe um histórico de adição, tendo a última o levado ao tráfico de heroína e cocaína para sustentar o seu vício e vida em geral.

27.º Devemos, ainda, considerar a favor da conduta do Recorrente, o facto de ter confessado grande parte da factualidade constante na acusação pública contra ele deduzida e explicado todos os motivos subjacentes às suas condutas, nomeadamente, a sua problemática aditiva.

28.º O Recorrente encontra-se arrependido dos factos que praticou.

29.º À data dos factos, o Recorrente era consumidor de heroína e cocaína em grandes quantidades.

30.º Os proveitos obtidos pelo Recorrente, no tráfico de estupefacientes, foram reduzidos e destinados ao sustento do seu consumo e da vida, em geral.

31.º O Recorrente, desde a sua detenção, encontra-se abstinente ao consumo de substâncias psicoativas, está a ser acompanhado pelos serviços clínicos do Estabelecimento Prisional e foi encaminhado para o CRI – ....

32.º O Recorrente encontra-se, desde agosto de 2023, a frequentar, no Estabelecimento Prisional, as sessões do Projeto Homem

33.º Em contexto prisional, tem assumido um comportamento ajustado, sem incidentes e recebe o contato e apoio da companheira, mãe, filho e irmão.

34.º O Recorrente pretende efetuar tratamento à sua problemática aditiva, por forma a manter-se abstinente e a retomar a sua vida profissional.

35.º O Recorrente perspetiva, voltar a trabalhar para antigas entidades patronais.

36.º O Recorrente é reconhecido na sociedade como uma pessoa pacífica e educada.

37.º O Recorrente revelou capacidade de reconhecimento da ilicitude do comportamento reportado nos presentes autos.

38.º O Tribunal a quo não ponderou relevantemente as circunstâncias pessoais e as condições de vida do Recorrente.

39.º Consideramos, com o devido respeito, que a pena efetivamente aplicada pelo Tribunal a quo ao Recorrente é desproporcional à gravidade dos factos.

40.º Ponderadas todas as circunstâncias acima mencionadas, reveladoras da inserção social do Recorrente, e que devem ser valoradas e consideradas como atenuantes da sua conduta, por necessárias à ressocialização que se almeja, cremos que o mesmo deve ser condenado, relativamente ao crime de tráfico de estupefacientes, numa pena nunca superior a 4 (quatro) anos e 6 (seis) de prisão.

41.º Em cúmulo jurídico deverá a pena única ser aplicada, dentro da moldura penal abstrata aplicável, balizada entre um mínimo de 4 (quatro) anos e 6 (seis) meses correspondente à pena concreta mais elevada e o máximo de 4 (quatro) anos e 9 (nove) meses, correspondente à soma das penas parcelares em concurso, de harmonia com os critérios de proporcionalidade, da adequação e da proibição do excesso, tendo em atenção em conjunto os factos e a personalidade do agente, as exigências de prevenção geral e especial.

42.º Consideramos, assim, justa, proporcional e adequada, a aplicação de pena situada a meio da moldura penal abstrata, ou seja, na pena única de 4 (quatro) anos e 7 (sete) meses de prisão.

43.º Uma vez que entendemos que a pena a aplicar ao aqui Recorrente não deve ser superior a 4 (quatro) anos e 7 (sete) meses de prisão, cumpre analisar se é possível a pena ser suspensa na sua execução.

44.º O artigo 50.º, n.º 1 do C.P. consagra um poder-dever ao qual o julgador se encontra vinculado, sendo que, sempre que aplique uma pena de prisão não superior a cinco anos, aquele deverá, obrigatoriamente, ponderar a respetiva suspensão, fundamentando quer a concessão, quer a denegação da suspensão, realizando, para tal efeito, um juízo de prognose do comportamento futuro do agente, pesando as necessidades de prevenção geral e de prevenção especial aplicáveis ao caso concreto.

45.º Tal visa obter a socialização em liberdade, em consonância com a finalidade politico-criminal do instituto (afastamento do condenado da prática de novos crimes por meio da simples ameaça da pena, eventualmente com sujeição a deveres e regras de conduta, se tal se revelar adequado a tal objetivo).

46.º No caso vertente, atendendo à prova produzida, à grande parte da confissão, ao arrependimento demonstrado, à clara assunção de responsabilidade, ao facto do Recorrente não ter antecedentes criminais, à sua personalidade, à postura educada ao longo de toda a audiência, ao período em que exerceu a atividade e ao modo de organização da atividade de venda de produto estupefaciente, e, ainda, as perspetivas reais de reinserção e o tempo de reclusão já sofrido, consideramos adequado e proporcional aplicar-lhe a suspensão da execução da pena, em igual período, ainda que condicionada ao regime de prova, nos termos do disposto no artigo 494.º, n.º 1 do C.P.P.

47.º O enquadramento do Recorrente permite-nos fazer um juízo de que as simples razões de censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as razões de punição, pelo que entendemos ser possível a sua atuação conforme o Direito, em liberdade, com a suspensão da execução da pena, em igual período, ainda que sujeita a regime de prova.

48.º O Recorrente concorda com a aplicação da suspensão acompanhada do regime de prova.

49.º É nosso entendimento, com o devido respeito, que a pena aplicada pelo Tribunal a quo contraria o objetivo da política criminal que a lei perspetiva e que a justiça não pode subtrair-se, que é o afastamento do delinquente, no futuro, da prática de novos crimes e da preferência da lei pelas penas não privativas da liberdade.

50.º Para além disso, considera-se que a pena aplicada ao Recorrente se revela desajustada à corrente jurisprudencial maioritária.

51.º Consideramos, com o devido respeito, que o Tribunal a quo fez uma errada escolha da medida da pena a aplicar ao Recorrente, pois o Direito Penal não é nem pode ser encarado só pela sua vertente condenatória e sancionatória, mas sim e também pela sua forte componente de reintegração do agente infrator na sociedade.

52.º Por isso, Venerandos Juízes Conselheiros entendemos que deverão V. Exas. optar pela aplicação de uma pena única não superior a 4 (quatro) anos e 7 (sete) meses de prisão, suspensa na sua execução, uma vez que esta se mostra suficiente à recuperação social do Recorrente e satisfaz as exigências de recuperação e de prevenção do crime.

53.º Sem prescindir, ainda que se considere que o Recorrente deve ser condenado numa pena de prisão efetiva, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, consideramos que a mesma deverá ser a mais próxima dos seus limites mínimos.

TERMOS EM QUE,

Deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser alterada a decisão em crise, no sentido de ao Recorrente ser:

a) Quanto ao crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de fevereiro, aplicada pela de multa ou, caso assim não se entenda, reduzir a medida da pena, aplicando-se uma pena próxima do limite mínimo da moldura penal aplicável (máximo três meses);

b) Quanto ao crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93 de 22 de janeiro, aplicada pena não superior a 4 (quatro) anos e 6 (seis) de prisão;

c) Em cúmulo jurídico, aplicada a pena única que resultar da moldura penal abstrata decorrente das condenações que vierem a ser aplicadas nos termos das anteriores alíneas a) e b), mas nunca superior a 4 (quatro) anos e 7 (sete) meses de prisão, a qual deverá ser suspensa na sua execução, nos termos do disposto no artigo 50.º do C. P., por igual período, ainda que sujeita ao regime de prova, cuja aplicação o Recorrente não se opõe ou, caso assim não se entenda, ser aplicada uma pena de prisão efetiva mais próxima dos seus limites mínimos.

Fazendo-se, assim, a habitual e sempre esperada JUSTIÇA!”

a BB

“1. A arguida/recorrente, BB, foi, face aos factos todos por provados, condenada, como co-autora, de um crime de tráfico de estupefacientes na pena de 4 anos e 8 meses de prisão.

2. Face a tais factos entendeu o Tribunal a quo que os mesmos integram o crime de tráfico e outras atividades ilícitas previsto e punido pelo art. 21.º, n.º 1, do DL 15/93. Contudo afigura-se-nos que a ação da recorrente pode ser enquadrada no tipo privilegiado punido pelo art.º 25º.

3. Em concreto, não se verifica organização na distribuição, sendo o período temporal durante o qual se estendeu a ação relativamente curto, as quantidades apuradas, não são de molde a poderem ser consideradas elevadas, razão pela qual entendemos que a ilicitude do facto se mostra consideravelmente diminuída, podendo consequentemente a conduta da arguida ser subsumível à previsão da al. a) do citado artigo 25.º.

4. Acresce que, conforme decorre da fundamentação da matéria de facto provada, o companheiro da arguida era toxicodependente e praticavam o crime precisamente motivados pelas sua dependência a substâncias psicotrópicas, sendo que através da prática do ilícito visava sobretudo satisfazer essa mesma dependência, o que, inequivocamente, lhe diminui o grau de culpa.

5. Sendo que a passagem da disposição base (art.º 21.º), para o tipo privilegiado punido pelo art.º 25º, deve fundamentar-se na diminuição considerável da ilicitude do facto revelada pela valoração em conjunto de diversos fatores; ora, extrai-se dos factos provados que a arguida quanto às modalidades da ação, verifica-se encontrem-se preenchidas as de detenção ilícita, distribuição, cedência e venda; quanto às circunstâncias da ação, verificamos que a atividade se desenvolveu, desde o início de 2022 a maio de 2023; estão descritas vendas apenas a consumidores de longa data. Ora, estes fatores são suficientes para se concluir verificar-se – ao contrário do decidido - aquela considerável diminuição da ilicitude, justificadora da aplicação da previsão do art.º 25.º, do DL. 15/93.

6. A atuação da recorrente decorre num ambiente circunscrito e com uma curta duração, sendo que as quantidades efetivamente transacionadas não podem ser consideradas elevadas. A que acresce ser o presente ilícito praticado num contexto de toxicodependência do companheiro da arguida e motivado por essa mesma dependência;

7. O tipo matricial ou tipo-base do crime de tráfico (art.º 21.º, n.º 1 do DL 15/93) corresponde, genericamente, a casos que são já de média e de grande gravidade e atentos os factos provados, a atuação da recorrente não assume sequer média gravidade, antes se reconduzindo toda a ação a um caso de considerável diminuição da ilicitude previsto no art.º 25.º.

8. O vasto campo dos casos que se acolhem à previsão do art.º 21.º e que ofendem já de forma grave ou muito grave os bens jurídicos protegidos com a incriminação são, em suma, situações que, pelo que toca às quantidades, devem atingir significativas ordens de grandeza, que não se compadecem, de um modo geral, com a venda de substâncias estupefacientes ao consumidor final por um traficante que vai satisfazendo as necessidades de um círculo de pessoas reduzido, por tempo relativamente curto, como sucede in casu.

9. A conduta do recorrente cabe dentro do crime previsto no artigo 25.º, pois, a atividade ilícita em que o arguido estava inserido situava-se num patamar equivalente a uma organização de modesta ou pequena dimensão. Estamos na base da atividade do pequeno tráfico, logo perante um crime de tráfico de considerável diminuição da ilicitude previsto no artigo 25º do DL 15/93, de 22/01.

10. Impondo-se, por isso, a absolvição da recorrente da prática de um crime de tráfico de estupefacientes do artigo 21.º, n.º 1, do DL 15/93 de 22/01 e a sua condenação pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, numa pena de prisão entre dois (2) anos e dois (2) anos e seis (6) meses, suspensa na sua execução e subordinada ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta ou regime de prova, o que seria suficiente, face aos elementos constantes do relatório social da arguida, para garantir as finalidades da punição. Pelo que a aplicação ao arguida/recorrente de uma pena de prisão suspensa na sua execução sujeita a deveres, regras de conduta ou a regime de prova seria suficiente não só para evitar que o agente reincida, como também realizaria o limiar mínimo de prevenção geral de defesa da ordem jurídica.

11. Sem prescindir, ainda que por mero dever de patrocínio, caso se entenda que o crime praticado pela arguida integra a o tipo matricial do artigo 21.º, o que apenas por mero exercício intelectual se concebe, afigura-se-nos que quanto à medida concreta da pena, a pena de cinco (4) anos e de prisão pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes previsto e punido no artigo 21.º do DL 15/93, é manifestamente exagerada, sendo nítida a violação do disposto no artigo 71.º, n.º 1, do C. P. pelo menos, em termos de culpa, extraída dos elementos de prova referidos no douto aresto recorrido.

13. Com efeito, toda a pena tem como suporte axiológico normativo uma culpa concreta, significando este princípio não só que não há pena sem culpa, mas também que a culpa decide da medida da pena, ou seja, a culpa não constitui apenas pressuposto-fundamento da validade da pena, mas afirma-se como limite máximo da mesma. E,

14. Mesmo no crime de tráfico de estupefacientes, quando medidas com rigor excessivo as penas deixam de realizar os seus fins, sendo certo que o combate ao tráfico de droga não pode ser realizado só com penas muito severas, estas têm de ser justas e adequadas à culpa do agente.

15. Não atendendo, assim, a todos os elementos dosimétricos do artigo 71.º, do Código Penal, a medida concreta da pena aplicada ao recorrente merece censura; pois, face à pena aplicada é nítida a violação do disposto no artigo 71.º, n.º 1, do C. P., em termos de culpa da arguida, a qual é diminuta.

16. A pena de quatro (4) anos de prisão pela autoria de um crime de tráfico de estupefacientes é exagerada, sendo que ocorre uma violação do disposto no artigo 71.º, n.º 1, do C. P. pelo menos, em termos de culpa, extraída dos elementos de prova referidos no douto aresto recorrido. Pois,

17. A dimensão da ilicitude que impõe o primado das finalidades de prevenção geral tem de estar conformada pela situação concreta e pelas variadas formulações, objetivas e subjetivas, da atividade que esteja em causa e o nível e a densidade da ilicitude constituem, nos crimes de tráfico de estupefacientes, os elementos referenciais das exigências de prevenção geral, mas, nas exigências das finalidades das penas, a medida da intensidade da ilicitude que determina o nível adequado de prevenção tem de ser avaliada no âmbito específico do círculo de ilicitude pressuposto no tipo de ilícito respetivo; e,

18. Nos limites da graduação da ilicitude para que está pensado o tipo base, a abranger um largo espectro de situações, a atividade do recorrente situar-se-ia, justamente ainda, próxima dos limites inferiores do perímetro do art.º 21.º, n.º 1, do D. L. n.º 15/93, de 22-01, que, pela plasticidade da moldura, tem vocação para acolher uma multiplicidade de casos de média e acentuada gravidade;

19. Destarte, seria adequada a aplicação à arguida/recorrente de uma pena de quatro (4) anos de prisão; pela prática do crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.º do D. L. n.º 15/93, de 22/01, a qual realizaria as exigências decorrentes do fim preventivo especial, ligadas à reinserção social do delinquente e exigências decorrentes do fim preventivo geral, ligadas à contenção da criminalidade e à defesa da sociedade. Sendo que a pena aplicada não realiza nenhum dos seus fins, na medida em que a pena, para além de dever ser a retribuição justa do mal praticado, deve, sobretudo, contribuir para a reinserção social do agente, de forma a não prejudicar a sua situação senão naquilo que é necessário e deve dar satisfação ao sentido de justiça e servir de elemento dissuasor relativamente

20. Tal pena de uma pena de quatro anos (4) de prisão, deverá ser suspensa na sua execução, sujeita a regime de prova, pois, apesar de fortes as exigências de prevenção geral sob a forma de exigências mínimas e irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico, que se fazem sentir, prevenção especial não são elevadas, atento os factos tidos por provados constantes do relatório social da arguida. Perante a personalidade, as condições de vida, o comportamento global e a natureza do crime, não constitui um risco demasiado elevado confiar em que a ameaça da pena, mesmo sujeita a regime de prova e com imposição de regras de conduta, terá reflexos positivos sobre o seu comportamento futuro evitando a repetição de comportamentos delituosos (prevenção especial). Pelo que o prognóstico é, relativamente à arguida recorrente, pois, positivo.

21. Assim, deve a pena de prisão ser suspensa na sua execução, embora sujeita ao regime de prova, em virtude das limitadas necessidades de prevenção especial e a ausência de antecedentes criminais, com o que se fará a pretendida justiça.

Foram violadas as normas referidas supra, nomeadamente os artigos 21.º e 25.º do D. L. n.º 15/93 de 22/01, artigo 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal e as demais que V.as Ex.as doutamente suprirão.

Nestes termos e nos demais de direito, sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá, o presente recurso, merecer provimento, com todas as consequências legais.” (fim de transcrição)

4. O Ministério Público na 1ª Instância apresentou resposta aos recursos não apresentando conclusões, mas, “pugna-se pela manutenção da decisão recorrida nos seus precisos termos por ter feito uma correta aplicação da Lei e do Direito e, consequentemente, pela improcedência do recurso.”

5. Neste Supremo o Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu o seu douto parecer, concluindo pela improcedência dos recursos.

6. Notificados os recorrentes não houve resposta.

Realizado o exame preliminar, colhidos os vistos, cumpre decidir.

II - Fundamentação

7. É pacífica a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça1 e da doutrina2 no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso que ainda seja possível conhecer.3

Da leitura dessas conclusões, os recorrentes colocam a este Supremo Tribunal, as seguintes questões:

o AA,

Medida concreta das penas em relação a ambos os crimes e suspensão na sua execução da pena única.

a BB

Qualificação jurídica do crime de tráfico de estupefacientes;

Medida da pena.

Vejamos, antes de mais, quais os factos que o Tribunal a quo deu como provados.

8. Estão provados os seguintes factos: (transcrição)

1. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos desde o início do ano de 2022 e até Maio de 2023, os arguidos AA e BB, na execução de um plano previamente delineado entre ambos e em comunhão de esforços, dedicaram-se ao transporte, doseamento, cedência e venda a terceiros de substâncias estupefacientes, concretamente de cocaína e heroína, a título lucrativo, vendendo tais produtos a indivíduos que os adquiriam para seu consumo.

2. Na concretização de tal desígnio, os arguidos AA e BB adquiriram, previamente, a indivíduo(s) não concretamente apurado(s) produto estupefaciente para ulterior revenda.

3. Assim, os arguidos, venderam quantidades não concretamente apuradas de produto estupefacientes, heroína e cocaína, nas freguesias de ..., ..., ..., ..., ... e ... do concelho de ... e ..., ..., ... e ... no concelho de ..., a vários consumidores,

Nomeadamente, a:

4. CC entre o ano de 2022 e Maio de 2023, sendo que em 2023, durante pelo menos dois meses adquiriu diariamente, dois “pacotes” de heroína pelo valor de 10€;

5. DD, pelo menos entre Fevereiro de 2023 e Maio de 2023, diariamente um “pacote” de heroína pelo valor de 10€.

6. EE, pelo menos entre Março de 2023 e Maio de 2023, adquiriu de forma esporádica uma “pedra” de cocaína pelo valor de 10€.

7. FF, pelo menos entre Março de 2023 e Maio de 2023, adquiriu em média de 300€ semanais, de produtos estupefacientes, nomeadamente heroína, que se destinava a ser entregue pelos arguidos aos seus trabalhadores.

8. GG, em Abril de 2023, com a periocidade de duas vezes por semana a quantidade de um “pacote” de heroína pelo valor de 5€ cada.

9. HH, desde Outubro ou Novembro de 2022 até Abril de 2023 com a periocidade de uma a duas vezes por semana a quantidade de um ou dois “pacotes” de heroína pelo valor de 5€ cada.

10. II, desde Junho de 2022 a Março de 2023 diariamente a quantidade de um “pacote” de heroína pelo valor de 10€ cada.

11. Os arguidos venderam quantidade não apurada de produto estupefaciente cocaína ao individuo JJ, em datas não concretamente apuradas, entre o Verão e o final do ano de 2022.

12. KK, entre finais de 2022 e início de 2023, duas vezes por semana a quantidade de uma ou duas “pedras” de cocaína pelo valor de 10 e 20€ respetivamente.

13. LL, entre finais de 2022 e Maio de 2023, à razão de três vezes por semana a quantidade de um “pacote” de heroína pelo valor de 10€ e por vezes uma “pedra” de cocaína pelo valor de 10€.

14. MM, entre início de 2023 e Maio de 2023 três a quatro vezes por semana a quantidade de um “pacote” de heroína pelo valor de 10€ cada:

15. NN, a solicitação de quem o arguido AA entregava dez “pacotes” de heroína, aquando as deslocações do mesmo para aquisição de produto à localidade do ..., pelo valor de 60€.

16. OO, entre início de 2023 e Maio de 2023, duas a três vezes por semana a quantidade de uma a duas “pedras” cocaína pelo valor de 10€ cada;

17. PP, entre início de 2023 e Maio de 2023, diariamente, um pacote de heroína, pelo valor de 10€ e, esporadicamente, uma “pedra” de cocaína;

18. QQ, no ano de 2022, pelo menos duas vezes a quantidade de uma “pedra” de cocaína pelo valor de 10€ e um “pacote” heroína pelo valor de 10€.

19. RR, desde pelo menos o início de 2022 a Maio de 2023, duas/três vezes por semana, a quantidade de um ou dois “pacotes” heroína pelo valor de 10€ e 20€ respetivamente.

20. SS em datas não apuradas, duas a três vezes por mês a quantidade de um “pacote” heroína pelo valor de 10€.

21. TT, desde pelo menos o início do ano de 2022 a Maio de 2023, adquiria diariamente a quantidade de dois ou três “pacotes” de heroína pelo valor de 20€ e 30€ e por vezes cocaína:

22. UU, pelo menos entre o Mês de Fevereiro e o mês de Maio de 2023, duas vezes por semana a quantidade de uma ou duas “pedras” de cocaína pelo valor de 10€ e 20€:

23. VV, entre o ano de 2021 e Maio de 2023, diariamente, a quantidade de um “pacote” de heroína pelo valor de 10€. No início de cada mês, este adquiria uma “pedra” de cocaína pelo valor de 10€:

24. Entre, pelo menos, Junho de 2022 e Março de 2023 os arguidos entregaram a WW mediante contrapartida monetária ou outra, quantidades não concretamente apuradas de produto estupefaciente

25. Os arguidos venderam mediante contrapartida monetária, em quantidades e por quantias não concretamente apuradas de produto estupefaciente a XX, nomeadamente, nos dias 03-06-2022, pelas 19:32 e 26-07-2022, pelas 20:40;

26. Em 03 de Junho de 2022, pelas 19:32, os arguidos na freguesia de ..., junto ao edifício da Cruz Vermelha, venderam mediante contrapartida monetária ou outra, em quantidades e por quantias não concretamente apuradas de produto estupefaciente a YY.

27. Em 27 de Fevereiro de 2023, pelas 16:14, os arguidos na rua do ..., junto ao Espaço Cidadão de ..., entregaram mediante contrapartida monetária ou outra, em quantidades e por quantias não concretamente apuradas de produto estupefaciente a pessoa não concretamente apurada que se deslocava na viatura com matrícula ..-CA-..;

28. Em 03 de Junho de 2022, pelas 19:10 os arguidos no exterior do estabelecimento “Café ...” freguesia de ..., entregaram mediante contrapartida monetária ou outra, quantidades não concretamente apuradas de produto estupefaciente a dois indivíduos de identidade não concretamente apurada;

29. Em 08 de Março de 2023, pelas 18:58, os arguidos na Estrada Municipal ...4, freguesia de ..., junto a Rua..., realizaram paragem e entregaram mediante contrapartida monetária ou outra, quantidades não concretamente apuradas de produto estupefaciente a individuo desconhecido.

30. Em 13 de Março de 2023, pelas 20:09, os arguidos na Rua ..., junto a zona comercial de ..., entregaram mediante contrapartida monetária ou outra, quantidades não concretamente apuradas de produto estupefaciente a individuo desconhecido.

31. Em 16 de Março de 2023, pelas 18:03, os arguidos na ..., freguesia de ..., junto as Escolas, entregaram mediante contrapartida monetária ou outra, quantidades não concretamente apuradas de produto estupefaciente a individuo desconhecido;

32. No dia 16 de Maio de 2023, pelas 16:18, os arguidos saíram da residência na viatura de matrícula ..-XL-.. e deslocaram-se ao ..., localidade de ..., onde adquiriram o produto estupefaciente (que veio a ser apreendido) e regressaram à habitação.

33. Ao chegarem à sua residência, sita na Urbanização da ..., ... – ..., pelas 18:29, no momento em que estacionaram a viatura foram abordados por militares da G.N.R., tendo sido encontrado a apreendido, na posse dos arguidos:

- Um telemóvel SAMSUNG A13 com 1 cartão SIM da operadora NOS inserido.

-Um pequeno saco hermético com “porta cartões”, 3 da Vodafone, 2 da NOS, 2 da UZO e 1 da MEO, todos já sem o respetivo cartão SIM;

- Um saco com 66 “pedras” de um produto estupefaciente Cocaína (Éster metílico), com o peso de 9,652 g com grau de pureza de 73,1% correspondente a 235 doses

- Um “pacote” de um produto estupefaciente Heroína, com o peso bruto total de 0,169 g; (cfr. Exame Pericial fls. 372 a 374)

- Cento e quinze euros em numerário;

- Um telemóvel SAMSUNG A21S com cartão SIM da NOS inserido, contato ...64.

- Um telemóvel ALCATEL com dois cartões SIM inseridos, da MEO e da USO.

No interior da viatura do arguido:

Uma soqueira de cor preta, com fio na zona do punho;

No interior da habitação:

Na sala de estar/cozinha:

- Um telemóvel F2 com um cartão SIM da UZO inserido;

- Seiscentos e sessenta euros em numerário (€660);

- Uma balança de precisão digital.

- Um tablet “EZEE TAB, ...2-S.

- Um pedaço de uma substância de cor castanha, tratando-se de Canábis (resina) vulgo Haxixe, com o peso de 1,093 (g) com THC de 2,6% suficiente para <1 dose.

No quarto da filha, ZZ:

- Um saco com catorze “pacotes” de produto estupefaciente Heroína, com o peso de 6,175 g com grau de pureza 13,2% suficiente para 8 doses;

No quarto do casal:

– Uma balança de precisão digital.

– Mil setecentos e vinte euros em numerário (1.725€).

– No interior de uma bolsa/estojo azul, 28 sacos herméticos de tamanho pequeno, novos e 3 de tamanho médio.

– Uma câmara de vídeo vigilância, marca TP-LINK, cor branca, em pleno funcionamento e que se encontrava direcionada para as imediações da residência, contendo no seu interior um cartão de memória marca “Sandisk”, com 32GB de capacidade.

34. Os arguidos deslocavam-se regularmente à localidade do ..., inicialmente ao bairro da ... e posteriormente à zona de ..., para adquirirem heroína e cocaína que depois revendiam nas freguesias dos Concelhos de ... e ..., o que acontecia com frequência não concretamente apurada, designadamente como aconteceu:

- No dia 27-02-2023, pelas 16:46;

- No dia 08-03-2023, pelas 16:14;

- No dia 09-03-2023, pelas 15:39;

- No dia 13-03-2023, pelas 15:57;

- No dia 15-03-2023, pelas 15:39;

35. Sempre utilizando o veículo de marca Peugeot, modelo ..., matrícula ..-XL-...

36. As compras de estupefaciente dos arguidos, no ..., eram feitas à razão de 5€ cada pedra de cocaína e 5€ cada pacote de heroína.

37. O produto estupefaciente assim adquirido pelos arguidos era depois revendido junto dos consumidores/compradores pelos valores supra referidos;

38. Para encomenda e entrega do produto estupefaciente aos clientes/consumidores das freguesias dos concelhos de ... e ..., os arguidos eram contactados geralmente por telefone, através de chamadas, para os números por estes fornecidos.

39. As entregas eram habitualmente feitas em local a combinar entre os arguidos e os seus clientes, que por norma era realizada nas proximidades das residências dos clientes, bem como locais que estes frequentavam (estabelecimentos).

40. Para as deslocações necessárias à realização das entregas do produto estupefaciente, os arguidos utilizavam o veículo Peugeot ... de matrícula ..-XL-.., que por vezes também era utilizada para a realização concreta da transação, ou seja, os clientes entravam no veículo ocupando o banco traseiro, era realizada uma pequena deslocação durante a qual se efetivava a transação e seguidamente os clientes ausentavam-se da viatura.

41. A actividade de venda de produtos estupefacientes constitui a principal fonte de receita do arguido AA, da qual fazia o seu modo de vida.

42. Os arguidos, sem que para tanto estivessem autorizados, destinavam as substâncias estupefacientes que lhe foram apreendidas, em execução de um plano conjunto, à venda a terceiros, mediante contrapartida monetária ou outra.

43. Os arguidos conheciam a natureza das aludidas substâncias estupefacientes que detinham, adquiriam e vendiam e sabiam que a aquisição, detenção, transporte, venda e cedência a terceiros de tais produtos é proibida e punida por lei, actuando com o propósito concretizado de obter, com tal actividade, lucro monetário.

44. As quantias monetárias em referência apreendidas aos arguidos foram obtidas como contrapartida da venda a terceiros de heroína e cocaína;

45. O arguido AA detinha a soqueira, nas circunstância de tempo e lugar descritas em 5., na sua posse desde data não apurada, fazendo-o de forma livre, e sendo conhecedor das características daquele objecto, não obstante saber que não lhe era permitido ter a dita na sua posse, sabendo que assim detinha aquele objecto fora das condições legais e que constituía crime, e, mesmo assim, continuou com o mesmo na sua posse, o que quis e representou, sabendo ainda do carácter proibido e criminal da sua condutas e, mesmo assim, não deixou de o fazer.

46. Os arguidos agiram conjunta, deliberada, livre, concertada e conscientemente, muito embora conhecessem a ilicitude das substâncias que vendiam, bem sabendo o carácter proibido e criminalmente punível das suas condutas.

Mais se provou:

47. A câmara de vigilância apreendida era usada, pelos arguidos, para detectar a presença de potenciais concorrentes no tráfico que lhes quisessem fazer mal;

48. A soqueira apreendida ao arguido era detida pelo mesmo para se defender de eventuais agressões, durante a sua actividade de tráfico;

49. A arguida BB decidiu dedicar-se à actividade de tráfico com vista a que o arguido obtivesse rendimentos para o seu consumo e evitar que o mesmo gastasse o seu rendimento do trabalho;

Das condições de vida do arguido AA e seus antecedentes criminais

50. No período dos factos de que está acusado, AA encontrava-se a residir na morada suprarreferida, que partilhava com a companheira, BB e os dois filhos desta, de ... (estudante) e ... anos de idade (...), situação que pretende retomar.

51. A sua progenitora reside, ainda, no mesmo local, e tem à sua guarda uma filha do arguido, atualmente com ... anos de idade, fruto de um relacionamento anterior.

52. Trata-se de um apartamento de tipologia T3, com condições de habitabilidade, com renda social, inserido num bairro conotado com o tráfico de estupefacientes e atividades a esta problemática associadas, e com relações de vizinhança com alguma proximidade.

53. AA mantinha-se profissionalmente inativo e mantinha consumos regulares de estupefacientes (heroína e cocaína), apesar de continuar em acompanhamento no CRI – ... onde integrava o programa de substituição de opiáceos por metadona.

54. O seu quotidiano era exclusivamente orientado para estratégias que lhe garantissem os consumos diários de estupefacientes e fazia-se acompanhar por pares com problemática idêntica à sua e frequentava locais relacionados com a mesma.

55. Depois de ter sido aplicada a medida de coação de prisão preventiva a AA no âmbito do presente processo, o tribunal ponderou uma eventual alteração do seu estatuto coativo para a obrigação de permanência em comunidade terapêutica, mas o arguido na altura rejeitou. No entanto, atualmente

56. AA referiu estar disponível para ingressar na Comunidade Terapêutica Projeto Homem.

57. No futuro, AA pretende regressar ao agregado constituído – companheira e filhos desta, bem como para a beira da sua mãe, sua vizinha, pretensão corroborada por estes familiares que manifestam disponibilidade para o acolher e apoiar.

58. O filho mais velho do arguido, fruto do seu casamento, e atualmente com ... anos, efetuou uma aproximação ao arguido iniciando visitas no estabelecimento prisional de ....

59. A situação económica do agregado foi-nos caracterizada como sendo modesta e alicerçada no salário da sua companheira – € 820,00, enquanto funcionária de limpeza no Hospital de ..., e no valor de € 200,00, que corresponde ao valor mensal da contribuição do filho mais velho da companheira para as despesas domésticas.

60. Com uma renda com a habitação de 4,19€, assumem como despesas fixas o pagamento de água, luz, telecomunicações e gás num total de cerca de 250,00€/mês.

61. Como perspetiva de futuro, pretende efetuar tratamento à sua problemática aditiva, manter-se abstinente, e retomar o seu percurso laboral e reconquistar a sua autonomização pessoal.

62. Apesar de no momento não ter perspetivas de trabalho, acredita que com o apoio de antigas entidades patronais e amigos que deixou em Barcelona, onde trabalhou durante cerca de sete anos, poderá conseguir colocação laboral.

63. No meio de residência a existência do presente processo é do conhecimento de toda a comunidade.

64. É descrito como um indivíduo educado e a sua problemática aditiva é do conhecimento da vizinhança.

65. O processo de socialização do arguido decorreu junto do seu agregado familiar de origem, sendo o mais velho de três descendentes, numa dinâmica funcional e equilibrada até ao falecimento da irmã do arguido aos 16 anos de idade, acontecimento trágico que abalou a relação dos pais e esteve na origem no divórcio do casal.

66. O seu agregado vivia de forma modesta, mas sem constrangimentos de maior.

67. Os rendimentos familiares provinham essencialmente da atividade de ambos os progenitores, ....

68. O arguido iniciou a frequência do sistema de ensino em idade regular, tendo concluído o 6º ano de escolaridade após várias reprovações, aos 15 anos de idade.

69. AA indica ter iniciado seu percurso profissional com 15 anos de idade como operário na construção civil, atividade que manteve apenas por alguns meses.

70. Aos 16 anos iniciou os consumos de heroína e cocaína com repercussões na sua atividade laboral.

71. Inscreveu-se no CRI – ... onde efetuou vários tratamentos, mas de forma pontual e por curtos períodos de tempo, pelo que o número de tratamentos correspondia a igual número de recaídas nos consumos ativos de estupefacientes.

72. Revelou pouco comprometimento com os processos terapêuticos, com recurso a medicação de substituição (Subtex) que mantinha durante longos períodos.

73. Trabalhou depois no setor da construção civil como serralheiro em várias empresas do setor, desenvolvendo esta atividade de forma mais regular tanto em Portugal como em França e em Barcelona, cidade onde viveu e trabalhou durante sete anos consecutivos.

74. Refere ter regressado de Barcelona em 2014, intercalando períodos de atividade laboral exercida de forma precária e sem vínculo formal, com períodos de desemprego.

75. Decidiu emigrar para a Alemanha em 2016 onde trabalhou como funcionário de uma empresa portuguesa como soldador.

76. Vinha a Portugal de dois em dois meses, situação que manteve até 2020.

77. Foi neste ano que o pai de AA adoeceu com gravidade tornando-se então cuidador deste familiar até ao seu falecimento, em 2021.

78. Retomou os consumos neste ano que manteve até à data da sua prisão no âmbito do presente processo.

79. AA contraiu casamento com cerca de 20 anos de idade, na constância do qual nasceu o seu filho mais velho, atualmente com ... anos de idade.

80. Assumiu-se como um pai ausente relativamente ao processo educativo deste filho, apesar de assinalar uma reaproximação recente com o filho.

81. Durante a sua permanência em Barcelona iniciou nova relação afetiva, com união de facto, durante a qual nasceu a sua segunda filha, atualmente com ... anos de idade e a residir com a avó paterna no Bairro ..., ....

82. Seguiu-se um novo relacionamento afetivo iniciado em 2017 com BB, atual companheira e arguida no presente processo.

83. O arguido contextualiza o presente processo judicial penal na fase ativa dos consumos de estupefacientes e no acompanhamento de pares relacionados com a problemática aditiva.

84. Adota um discurso de desculpabilização, tendencialmente defensivo e pouco desenvolvido sobre a acusação que lhe é dirigida, impregnado, no entanto, de algum sentimento de preocupação face ao desfecho.

85. Parece revelar, ainda que em abstrato, capacidade de reconhecimento da ilicitude do comportamento reportado nos presentes autos, e parece ter interiorizadas as noções do dano e de vítima.

86. AA apresenta estabilização e compensação física, assumindo-se como abstinente aos consumos com acompanhamento pelos serviços clínicos do estabelecimento prisional e encaminhamento para o CRI – ... onde referiu ter agendada uma outra consulta.

87. Está a frequentar as sessões do “Projeto Homem” no interior do Estabelecimento Prisional desde agosto de 2023.

88. Neste momento, verbaliza vontade em dar continuidade ao período de abstinência que refere manter, e disponibilizou-se a efetuar tratamento à sua problemática aditiva na comunidade terapêutica “Projeto Homem”, em ....

89. Recebe visitas semanais da sua companheira e seu filho mais velho.

90. AA continua a beneficiar do apoio dos familiares mais próximos, designadamente da sua progenitora e atual companheira.

91. O arguido apresenta uma atitude de vitimização, mas revela capacidades para formular juízos críticos adequados relativamente ao seu comportamento.

Das condições de vida da arguida BB e seus antecedentes criminais

92. BB é a terceira de seis descendentes de um casal de modesta condição socioeconómica, residente na freguesia de ..., concelho de ....

93. A arguida retrata uma vivência familiar positiva, pese embora o consumo excessivo de bebidas alcoólicas por parte do progenitor.

94. A arguida frequentou o ensino escolar, integrando a escolaridade obrigatória em idade regular, tendo concluído o 4º ano de escolaridade por volta dos 12/13 anos devido a dificuldades de aprendizagem.

95. Teria cerca de 15 anos de idade quando iniciou atividade profissional numa empresa do setor têxtil onde trabalhou cerca de 10 anos.

96. Após esta experiência, trabalhou em empresa do mesmo setor por um período de cerca de 15/20 anos.

97. Em 2001 a arguida despediu-se da empresa onde laborava segundo refere, por influência do ex-companheiro.

98. Manteve situação de inatividade laboral desde este período e até ao ano de 2020.

99. BB contraiu matrimónio em 2000, tendo dois descendentes nascidos desta relação, atualmente com ... e ... anos de idade.

100. Nessa altura, o agregado subsistia da prestação mensal de desemprego da arguida e num momento posterior do RSI da mesma, assim como do vencimento do companheiro, que trabalhava em Espanha no setor da construção civil.

101. Essa relação perdurou até ao ano de 2010;

102. À data dos factos pelos quais vem acusada, BB residia com os seus filhos e com o companheiro, o aqui também arguido, AA, na freguesia de ....

103. Este agregado residia, assim como na atualidade, em apartamento de habitação social, de tipologia 3, com condições de habitabilidade, inserido em zona conotada com problemáticas sociais e criminais.

104. A arguida exercia atividade laboral, a mesma que mantém, na empresa “...” exercendo as suas funções no Hospital de ..., desde o ano de 2020, auferindo o salário mínimo nacional.

105. O companheiro encontrava-se desempregado e numa fase ativa de consumo de heroína e cocaína.

106. Ambos os descendentes estudavam.

107. Presentemente BB mantém residência junto do agregado composto pelos dois descendentes, de ... e ... anos de idade.

108. O filho trabalha como operário têxtil e a filha é estudante.

109. Presentemente, a arguida BB aufere € 820 mensais, sendo descrita uma situação económica de gestão contida, mas suficiente para o sustento do agregado.

110. A arguida conta também com a contribuição do descendente no valor de € 200 mensais, para fazer face às despesas domésticas.

111. As despesas domésticas com o pagamento de água, luz e serviço de televisão e internet totalizam o valor mensal aproximado de € 120;

112. O valor da renda é de € 4,19.

113. As restantes despesas prendem-se com a compra de bens essenciais de alimentação.

114. Afirma que o seu tempo é ocupado com a atividade laboral e nas idas ao café, não mantendo participação em atividades de caráter cívico ou associativo.

115. Na comunidade goza de uma imagem integrada e discreta, sendo descrita como uma pessoa afável e educada.

116. Ao nível familiar beneficia de uma imagem positiva, sendo descrita como uma pessoa simples e tranquila.

117. Tem boa relação com todos os irmãos, com os quais mantém laços de apoio e suporte.

118. O presente processo é conhecido da comunidade, mas não se detetam quaisquer indicadores de rejeição.

119. A sua imagem social é considerada ajustada.

120. A arguida revela preocupação com eventual condenação e o possível impacto da mesma na vida dos descendentes, denotando ansiedade face à conclusão do mesmo. (fim de transcrição)

9. Apreciando

9.1 Qualificação jurídica do crime de tráfico de estupefacientes

A arguida BB foi acusada e condenada pela prática, em coautoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes, do artigo 21º n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência às tabelas I-A e I-B, anexas.

A recorrente entende que a factualidade dada por provada, apenas integra a prática pela mesma de um crime de tráfico de menor gravidade previsto no artigo 25.º, al. a) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01.

Vejamos.

Em matéria de tráfico de estupefacientes, o crime base está previsto no artigo 21º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, sob a epígrafe “Tráfico e outras actividades ilícitas”, nos termos do qual, “quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas Tabelas I a III é punido com prisão de 4 a 12 anos”, constando a heroína da Tabela I-A anexa.

Por sua vez o artigo 25º, sob a epígrafe “Tráfico de menor gravidade”, estatui que “…se, nos casos dos artigos 21.º e 22.º, a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da acção, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações, a pena é de:

a) Prisão de um a cinco anos, se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI”.

A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, em matéria de tráfico de estupefacientes, tem assentado, genericamente, no seguinte entendimento: “O DL 15/93, de 22 de Janeiro, desenhou um tipo base ou fundamental de tráfico de estupefacientes – o descrito no seu artº 21º –, ao qual aditou certas circunstâncias atinentes à ilicitude que agravam – artº 24º – ou atenuam – artº 25º – a punição prevista para o crime matricial. O primeiro, destinado a cobrir os casos de média e grande dimensão; o segundo, para prevenir os casos de excepcional gravidade; o terceiro, para combater os de pequena gravidade, o pequeno tráfico de rua.

As modalidades da acção são, em qualquer dos casos, as mesmas, as descritas no tipo base. A diferenciação entre eles faz-se a partir do mesmo tipo base, tendo em consideração o concreto grau da ilicitude da conduta ajuizada.4

A este propósito, expendeu-se no acórdão deste Supremo Tribunal, de 8 de Janeiro de 1997, “… o Decreto-Lei n. 15/93 não seguiu a técnica usada no artigo 24 do Decreto-Lei 430/83, que aludia a "quantidades diminutas" e que as defendia como as que "não excedem o necessário para o consumo individual durante 1 dia".

Presentemente, a intenção político-legislativa é a de permitir ao julgador distinguir os casos de tráfico importante e significativo, do tráfico menor, que apesar de tudo não pode ser aligeirado de modo a esquecer-se o papel essencial que os "dealers" de rua representam na cadeia do grande tráfico, havendo assim que deixar uma válvula de segurança para que situações efectivas de menor gravidade não sejam tratadas com penas desproporcionadas ou que, ao invés, se force ou use indevidamente uma atenuante especial. E quanto ao problema da necessidade ou não da verificação cumulativa das circunstâncias enunciadas no preceito, tem-se dito que, diferentemente do que sucede com a lei italiana, tal enumeração não é taxativa, o que significará que outras circunstâncias podem ser atendidas em ordem a considerar o tráfico de gravidade diminuída. "Aquelas, porém, não devem deixar de ser ponderadas, e tal como a jurisprudência italiana, numa apreciação complexiva, diríamos finalística, isto é, dirigida à obtenção de um resultado final, qual seja o de saber se objectivamente a ilicitude da acção é de relevo menor que a tipificada para os dois artigos anteriores" (Sobre o exposto, cfr. a obra "Droga e Direito" de A. G. Lourenço Martins, Aequitas/Edição Notícias, páginas 146 e seguintes).5

Ainda sobre a distinção entre o crime de tráfico e o tráfico de menor gravidade, escreveu-se no acórdão deste Supremo Tribunal de 22 de Março de 2006, “… Trata-se, como é entendido na jurisprudência e na doutrina (v. g., o acórdão deste Supremo Tribunal, cit. de 1 de Março de 2001, com extensa indicação de referências jurisprudenciais) de um tipo privilegiado em razão do grau de ilicitude em relação do tipo fundamental de artigo 21º. Pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre «consideravelmente diminuída» em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, e a qualidade ou a quantidade dos produtos.

A essência da distinção entre os tipos fundamental e privilegiado reverte, assim, ao nível exclusivo da ilicitude do facto (consideravelmente diminuída), mediada por um conjunto de circunstâncias objectivas que se revelem em concreto, e que devam ser conjuntamente valoradas por referência à matriz subjacente à enumeração exemplificativa contida na lei, e significativas para a conclusão (rectius, para a revelação externa) quanto à existência da considerável diminuição da ilicitude pressuposta no tipo fundamental, cuja gravidade bem evidente está traduzida na moldura das penas que lhe corresponde. Os critérios de proporcionalidade que devem estar pressupostos na definição das penas, constituem, também, um padrão de referência na densificação da noção, com alargados espaços de indeterminação, de «considerável diminuição de ilicitude.”6

Ainda a este propósito, escreveu-se no recente acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17 de Janeiro de 2024, “O crime de tráfico de menor gravidade p. e p. pelo art. 25.º do DL n.º 15/93, de 22/01, representa, em relação ao tipo fundamental, um crime privilegiado de tráfico de estupefacientes, em função da menor ilicitude do facto, tendo em conta, nomeadamente, os meios utilizados, a modalidade e as circunstâncias da ação e a qualidade ou a quantidade do produto estupefaciente. Em regra, está associado à atividade do dealer de rua, do pequeno traficante. (…) A menor ilicitude terá, neste contexto, de resultar de uma avaliação global da situação de facto.”7

Tendo em conta estes ensinamentos jurisprudenciais e os factos dados por provados, é manifesto não estarmos, no caso dos autos, em presença de uma situação em que a “ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída”.

Na verdade, resulta dos factos provados que a arguida BB actuou “em execução de plano conjunto e comunhão de esforços” e “concertadamente” na prática dos factos dados como provados (cfr. pontos 1.1, 1.42, 1.44 dos factos provados), tendo vendido entre 2022 e Maio de 2023, em várias freguesias dos concelhos de ... e ... produtos estupefacientes (cfr. pontos 1.2 e 1.4) a vários consumidores, várias vezes por semana, em média 3 vezes a cada um deles, 23 dos quais identificados (cfr. pontos 1.5 a 1.26) e 5 não identificados (cfr. pontos 1.27 a 1.31), tendo efectuado pelo menos 3 compras por grosso de produtos estupefacientes (cfr. ponto 1.34) e apreendidas, na sua residência e do coarguido produtos estupefacientes, dinheiro (€2.500,00), duas balanças de precisão digitais e sacos para partir e embalar o produto estupefaciente, o que manifestamente não se pode enquadrar no conceito legal de “ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída”, ao nível dos meios utilizados, modalidade ou circunstâncias da acção, qualidade ou quantidade das substâncias.

Estamos em presença de tráfico de média dimensão, com algum nível de organização (deslocação ao ... e compra em média quantidade) e posteriormente preparação, partição, embalagem do produto e revenda a dezenas de consumidores na zona de residência da arguida e seu companheiro, utilizando para tanto uma viatura e vários telemóveis para efectuar os contactos.

Tudo isto enquanto imagem global dos factos, não demonstra, nem sequer indicia, uma menor ilicitude. Pelo contrário, toda a factualidade aponta para o crime de tráfico base, pelo que bem andou o tribunal coletivo em ter condenado a arguida e coarguido pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes previsto no artigo 21.º n.º 1, do citado Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01.

Assim, não se mostra consideravelmente diminuída a ilicitude da conduta da recorrente, improcedendo a pretendida alteração da qualificação jurídica.

9.3 Medida das penas

Ambos arguidos reclamam da medida das penas concretas em que foram condenados, peticionando ainda o AA a condenação em pena de multa, em relação ao crime de detenção de arma proibida e a suspensão de execução da pena única.

Analisemos, então, as penas aplicadas aos arguidos e a sua adequação e proporcionalidade, em função dos factos anteriormente elencados e os seus graus de culpa.

Em sede de medida da pena, o legislador estatui como parâmetros de determinação da mesma que deve ser fixada - “(…) dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” visando a aplicação das penas “(…) a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade; em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa” e levando ainda em conta “(…) todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele (…)” considerando, nomeadamente, os factores de determinação da pena a que se referem as várias alíneas do n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal (artigos 71º, nº1 e nº2 e 40º, nº1 e nº2) do mesmo código.

A densificação jurisprudencial destes critérios tem sido feita, por este Supremo Tribunal de Justiça, de modo a considerar e ponderar o equilíbrio entre “exigências de prevenção geral”, a “tutela dos respectivos bens jurídicos”, a “socialização do agente” e o seu grau de culpa, enquanto limite da pena.

Como refere este Supremo Tribunal de Justiça, ponderando os referidos equilíbrios, “(...) Na graduação da pena deve olhar-se para as funções de prevenção geral e especial das penas, mas sem perder de vista a culpa do agente”,8 ou “(...) a pena, no mínimo, deve corresponder às exigências e necessidades de prevenção geral, de modo a que a sociedade continue a acreditar na validade da norma punitiva; no máximo, não deve exceder a medida da culpa, sob pena de degradar a condição e dignidade humana do agente; e, em concreto, situando-se entre aquele mínimo e este máximo, deve ser individualizada no quantum necessário e suficiente para assegurar a reintegração do agente na sociedade, com respeito pelo mínimo ético a todo exigível”9.

Ao nível doutrinal, refere Figueiredo Dias que a medida da pena "(...) há-de ser dada pela medida da necessidade de tutela dos bens jurídicos face ao caso concreto (...) a protecção de bens jurídicos assume um significado prospectivo, que se traduz na tutela das expectativas da comunidade na manutenção da vigência da norma infringida".10

No mesmo sentido, Fernanda Palma considera que, “(…) A protecção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos – prevenção geral negativa, incentivar a convicção de que as normais penais violadas são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos – prevenção geral positiva. A protecção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial. Por outro lado, a reintegração do agente significa a prevenção especial na escolha da pena ou na execução da pena. E, finalmente, a retribuição não é exigida necessariamente pela protecção de bens jurídicos. A pena como censura da vontade ou da decisão contrária ao direito pode ser desnecessária, segundo critérios preventivos especiais, ou ineficaz para a realização da prevenção geral”.11

Ainda, no mesmo sentido, Anabela Rodrigues considera também que a finalidade essencial e primordial da aplicação da pena reside na prevenção geral, o que significa “que a pena deve ser medida basicamente de acordo com a necessidade de tutela de bens jurídicos que se exprime no caso concreto...alcançando-se mediante a estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada (…)”. Acrescenta a autora, que a prevenção especial se traduz na “(…) necessidade de socialização do agente, embora no sentido, modesto, mas realista, de o preparar para no futuro não cometer outros crimes”, sendo certo que ambas são balizadas pela culpa “ (…) a desempenhar o papel de limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações preventivas (…) Sendo a pena efectivamente medida pela prevenção geral, ela deve respeitar o limite da culpa e, assim, preservar a dignidade humana do condenado”.12

Neste mesmo sentido, Figueiredo Dias considera, “(…) culpa e prevenção são assim dois termos do binómio com auxílio do qual há-de ser construído o modelo da medida da pena ( em sentido estrito ou de determinação concreta da pena”)13, acrescentando, “ (…) comete à culpa a função (única, mas nem por isso menos decisiva) de determinar o limite máximo e inultrapassável da pena; à prevenção geral (de integração) a função de fornecer uma «moldura de prevenção», cujo limite máximo é dado pela medida ótima de tutela dos bens jurídicos - dentro do que é consentido pela culpa - e cujo limite mínimo é fornecido pelas exigências irrenunciáveis de defesa do ordenamento jurídico; e à prevenção especial a função de encontrar o quantum exacto de pena, dentro da referida «moldura de prevenção», que melhor sirva as exigências de socialização (ou, em casos particulares, de advertência ou de segurança) do delinquente».14

Enunciados os grandes princípios jurisprudenciais e doutrinais em matéria de medida da pena vejamos, antes de mais, o pensamento do Tribunal recorrido nesta matéria.

O Tribunal recorrido, na interpretação destes mesmos preceitos legais, considerou, no que respeita à medida da concreta das penas, o seguinte: (transcrição)

«4.2. Da escolha e medida da pena

4.2.1. Da escolha da pena (crime de detenção de arma proibida)

Uma vez que à prática do crime de detenção de arma proibida são aplicáveis, alternativamente, as penas de prisão e de multa - pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias - impõe-se como primeira tarefa deste tribunal a escolha da pena.

Sobre ela, dispõe o artigo 70.º do Código Penal: “Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

Finalidade das penas é a prevenção, na sua dupla vertente de prevenção geral e prevenção especial, como refere o artigo 40.º do Código Penal: “A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.” Ultrapassada definitivamente, há muito, a perspectiva retributiva dos fins das penas, só aquelas finalidades são hoje, para o aplicador, verdadeiramente operativas na escolha da pena.

Há, agora, que aplicar os critérios expostos ao caso dos autos.

As exigências de prevenção geral são de relevo: na verdade, tem sido sucessivamente alvo de nota dos Relatórios Anuais de Segurança Interna do SIS (disponíveis para consulta em www.portugal.gov.pt) o aumento do número armas ilegais apreendidas e de crimes praticados com armas, estimando-se que em Portugal existam entre 1 a 1,5 milhões de armas ilegais.

Pelo lado das necessidades de prevenção especial, elas são pelo menos de nível médio, já que o arguido, não obstante não ter antecedentes criminais, dedicava-se também, na altura em que praticou este crime de detenção de arma proibida, à actividade de tráfico de estupefacientes, fazendo-se acompanhar da referida arma para eventuais situações surgidas nessa actividade, conforme também se apurou.

Conjugadas as referidas circunstâncias, cremos que a pena a aplicar ao arguido deverá ser uma pena de prisão.

4.2.2. Da medida das penas de prisão

O crime de tráfico praticado pelos arguidos, AA e BB, é punido com pena de quatro a doze anos de prisão (cfr. art. 21º, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro).

O crime de detenção de arma proibida praticado pelo arguido AA é punido com pena de prisão de 1 mês a 4 anos (cfr. art. 86º, n.º 1, al. d), do RJAM).


*


A pena concreta a aplicar será determinada, dentro das molduras referidas, em função da culpa do arguido enquanto limite máximo da punição, e ainda das exigências de prevenção, geral e especial, postas pelo caso em apreço.

No que toca ao crime de detenção de arma proibida, dão-se por reproduzidas as considerações supra tecidas acerca das necessidades de prevenção geral e especial, a propósito da escolha da pena.

No que toca ao crime de tráfico de estupefacientes, as necessidades de prevenção geral mostram-se muito elevadas, atendendo, desde logo, ao alarme social que este tipo de crime desencadeia e que demanda uma efectiva e eficaz punição por forma a restabelecer a confiança geral na validade da norma violada e ainda às consequências verdadeiramente destruidoras deste tipo de criminalidade pelos riscos que comporta para bens e valores fundamentais como a saúde física e psíquica dos destinatários de tal actividade, quer pelas rupturas familiares e fracturas na coesão social que provocam.

No que toca às necessidade de prevenção especial elas mostram-se baixas para a arguida BB, que não tem antecedentes criminais, está social e familiarmente inserida, trabalhando e vivendo, desde a detenção do arguido AA, sem qualquer ligação ao mundo da droga, já que, além do mais, sequer é consumidora de tais produtos.

No que toca às necessidades de prevenção relativamente ao arguido AA, elas situam-se pelo menos num nível médio, não obstante a ausência de antecedentes criminais do mesmo. De facto, é longo o seu histórico de adição (consome estupefacientes desde os 16 anos), de tratamentos e recaídas, tendo a última levado o arguido ao tráfico de cocaína e heroína, para sustentar o seu vício e a sua vida em geral. Note-se que o arguido não trabalhava, à data dos factos e não tem, por ora, qualquer perspectiva de trabalho, o que revela a sua frágil inserção social e a necessidade de intervenção a esse nível.

Tomando em conta estas considerações, irá ainda o tribunal atender a todas as concretas circunstâncias que, no caso, não fazendo parte do tipo legal, deponham contra ou a favor dos arguidos (art. 71º n.º 2 do Código Penal), designadamente:

- o grau de ilicitude do facto, ou seja, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação de deveres impostos ao agente [ há que ponderar, no que ao crime de tráfico respeita, que os arguidos vendiam heroína e cocaína, duas das drogas consideradas “pesadas” por terem um potencial aditivo elevadíssimo e serem verdadeiramente catastróficas as consequências derivadas do seu consumo, quer ao nível da saúde dos consumidores, quer ao nível do impacto que tais consumos têm ao nível da inserção social dos mesmos; pondera-se, de todo o modo, que a actividade dos arguidos não era de grande monta, quer no que respeita à área abrangida quer ao nível das quantidades transacionadas e aos montantes auferidos]; quanto ao crime de detenção de arma proibida, a ilicitude mostra-se mediana: por um lado, o tipo de arma detida pelo arguido não se mostra das mais letais, dentro do espectro consentido pelo tipo, onde estão incluídas, por exemplo, facas de abertura automática; por outro lado, há que considerar que o arguido a detinha no seu carro, admitindo que ali a tinha para a usar, caso se mostrasse necessário, no âmbito da sua actividade de tráfico;

- a intensidade do dolo ou negligência [o dolo foi directo, em todas as condutas descritas];

- os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram [o arguido AA é toxicodependente e não tinha actividade laboral, tendo a actividade de tráfico por si empreendida o objectivo principal de angariar fundos para o seu próprio consumo e para suportar as demais despesas do seu quotidiano; quanto à arguida BB, ficou provado que, pelo menos parte da sua motivação para a prática deste crime foi evitar que o arguido AA gastasse o dinheiro do agregado na droga, dotando-o, assim de rendimentos para tal efeito, motivação que embora não justifique, de forma alguma a sua conduta, permite pelo menos enquadrá-la e compreendê-la, no quadro de uma vida partilhada com um toxicodependente];

- as condições pessoais do agente e a sua situação económica [a arguida BB é pessoa inserida a nível social e laboral e dispõe de apoio familiar, nomeadamente, dos seus filhos; o arguido AA é consumidor de produtos estupefaciente desde os 16 anos, não trabalhava à data dos factos, vivendo apenas do tráfico, para obter rendimentos para o consumo e para as demais despesas da sua vida quotidiana; apresenta um discurso muito desresponsabilizador das suas condutas, apontando toda e qualquer circunstância externa como motivo para o consumo e para o tráfico, o que não podemos deixar de considerar como agravante; a arguida BB, por seu turno, tomou responsabilidade pelas suas acções que considerou erradas, sem nunca as atribuir a terceiros, nomeadamente, ao arguido – por quem aparentemente passou a dedicar-se a esta actividade ilícita, o que terá de a favorecer; esta arguida trabalha e sempre trabalhou, mesmo quando se dedicou à prática do crime de tráfico, circunstância que também a favorecerá;

- a conduta anterior ao facto e posterior a este [os arguidos não têm antecedentes criminais; confessaram grande parte dos factos que lhes foram imputados, confissão essa que assumiu relevo para a prova, devendo por isso ser considerada como factor atenuante];

- a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena [nada de relevante se apurou a este propósito a respeito de qualquer um dos arguidos].

Tendo em conta estes dados, julgam-se ajustadas as seguintes penas:

- 5 anos de prisão para o arguido AA, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes;

- 6 meses de prisão para o arguido AA, pela prática do crime de detenção de arma proibida;

- 4 anos e 8 meses de prisão, para a arguida BB, pela prática do crime de tráfico de estupefacientes. (fim de transcrição)

Feito este enquadramento e a transcrição da argumentação expendida no douto acórdão em sede de medida da pena, analisemos as pretensões dos recorrentes.

Como se pode ver desta transcrição, o Tribunal a quo, no que respeita à opção pela pena de prisão em detrimento da pena de multa, em relação ao crime de detenção de arma proibida, por parte do arguido AA, assentou num juízo de prevenção geral e ainda na ponderação de a detenção da arma ser detida num contexto de defesa em actos ilícitos que o arguido estava a praticar (tráfico de estupefacientes).

A circunstância de a arma ser detida numa perspectiva de defesa de eventuais agressões, só seria relevante se essa defesa decorresse de actividades licitas. Não atenua a culpa o facto de o recorrente usar a arma para sua defesa em práticas de actos ilícitos. A mera detenção de arma para defesa apenas atenua a culpa em situações de normalidade de vida.

Não faz sentido, nem pode ser valorado favoravelmente, a criação do risco pelo arguido ao praticar actividades ilícitas e depois deter uma arma para minorar o risco por si próprio criado. Admitir este raciocínio estava encontrada a fórmula para justificar, do ponto de vista da culpa, a detenção de armas em actividades criminosas.

Perante tudo isto, é manifesto que a opção por uma pena de multa, num contexto de detenção de arma proibida em actividades criminosas, ainda que para efeitos de defesa, não satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, exigidas pelo artigo 70º do Código Penal.

Bem andou o Tribunal a quo, pelas razões que explanou, ao optar por uma pena de prisão, a qual, mesmo na dosimetria, nenhuma censura merece a este Supremo Tribunal.

No que respeita às demais penas aplicadas, em relação ao crime de tráfico de estupefacientes praticados por ambos os arguidos, também não merecem qualquer censura.

Na verdade, o Tribunal recorrido ponderou e bem, o dolo directo com que os arguidos actuaram, o elevado grau de ilicitude manifestado no tipo de estupefacientes traficados e a modalidade de acção ser a venda, a dispersão geográfica do tráfico, o número de vendas a consumidores, os lucros obtidos e ainda as condições pessoais dos arguidos, bem como a ausência de antecedentes criminais.

Importa ainda salientar as fortes exigências de prevenção geral neste tipo de crime, dado o seu elevado número15 e o forte contributo para o sentimento de insegurança, já que o mesmo potencia, por força da dependência que a droga cria nos consumidores, um outro vasto conjunto de crimes associados, nomeadamente crimes contra o património, para os compradores poderem sustentar o vício.

A circunstância de o arguido AA ser também consumidor, não pode ser considerado como circunstância atenuante, como parece resultar das suas conclusões de recurso, porquanto esse facto não o impediu de vender a outros consumidores, mesmos sabendo, por experiência própria, os efeitos nefastos para a saúde dos mesmos.

Perante a factualidade dada como provada e tendo em conta o que fica referido anteriormente, as fortes exigências de prevenção geral e ainda os efeitos nefastos que o tráfico de estupefacientes acarreta para a saúde pública, não podemos deixar de concordar com o Tribunal recorrido sobre o elevado grau de culpa dos arguidos.

Assim, as penas aplicadas aos recorrentes AA e BB pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, afiguram-se proporcionais à gravidade dos factos e à culpa dos mesmos e mostra-se necessárias para satisfazer as acentuadas necessidades de prevenção geral acima assinaladas, só assim se protegendo de forma eficaz e bastante as expectativas da comunidade quanto à revalidação das normas jurídico-penais violadas. A comunidade não perceberia que uma actividade de tráfico de estupefacientes, com a dimensão média como aquela que foi dada por provada, tivesse uma censura penal próxima do limite mínimo da pena abstractamente estabelecida. A verificar-se, mesmo perante arguidos primários, seria uma denegação dos valores protegidos pela norma legal.

Apesar de serem mantidas as penas parcelares em que o recorrente AA foi condenado, não deixaremos de tecer umas breves considerações sobre o cúmulo jurídico.

A este propósito, escreveu-se não douto acórdão recorrido: (transcrição)

4.3. Do cúmulo jurídico de penas (arguido AA)

Nos termos do n.º 1 do artigo 77.º do Código Penal, “quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa pena única”.

À punição do concurso procede-se através de uma operação de cúmulo jurídico, partindo de todas as condenações singulares (cfr. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 285), daí prosseguindo para a determinação de uma moldura penal do concurso, dentro dos limites da qual se encontrará, finalmente, em função das exigências gerais da culpa e de prevenção e tendo em consideração os factos e a personalidade do agente globalmente apreciados, a medida da pena conjunta concretamente aplicável.

Cumulam-se penas da mesma natureza, ou seja, no caso dos autos cumular-se-ão as penas de prisão principais.

Para a determinação da medida da pena importa considerar, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (cfr. artigo 77.º, n.º 1, in fine, do Código Penal), factores a que já se fez referência a propósito da determinação da medida concreta da pena, mas agora vistos a outra luz. Determinante é uma ponderação global dos referidos factos, pesados à luz dos critérios gerais enunciados no artigo 71.º, do Código Penal (aos quais se recorreu já para determinação das penas singulares), sem que tal importe uma violação do princípio da proibição da dupla valoração no momento da determinação da medida concreta no concurso de crimes, pois, voltando a Figueiredo Dias, “aquilo que à primeira vista poderá parecer o mesmo facto concreto, verdadeiramente não o será consoante seja referido a um dos factos singulares ou ao conjunto deles: neste medida não haverá que invocar a proibição da dupla incriminação” e “na avaliação da personalidade – unitária – do agente revelará, entretanto, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência criminosa ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante da moldura penal conjunta” (ob. cit., pág. 291). Este entendimento encontra ecos na jurisprudência, que tem entendido que “o que releva e interessa considerar é, sobretudo, a globalidade dos factos em interligação com a personalidade do agente, de forma a aquilatar-se, fundamentalmente, se o conjunto dos factos traduz uma personalidade propensa ao crime ou é, antes, a expressão de uma pluriocasionalidade, que não encontra a sua razão de ser na personalidade do arguido” (cfr. acórdão de 03.10.2007, proferido no processo n.º 07P2576, na base de dados da DGSI).

A moldura da pena única do concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, num máximo de 25 anos tratando-se de pena de prisão e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código de Processo Penal), pelo que, no caso em apreço, a pena única concreta a aplicar terá como limite máximo 5 anos e 6 meses de prisão e como limite mínimo, 5 anos de prisão.

Numa visão global dos comportamentos, a actuação do arguido apreciada, no seu conjunto, revela uma personalidade algo desvaliosa, já que não só se dedicava ao tráfico de droga, como se munia de uma arma – embora de uma arma com um potencial de agressão não muito elevado - para o que desse e viesse, como resulta provado. Nota-se, ainda, que o arguido ofendeu com as suas condutas bens jurídicos diversos como a saúde, a integridade física, a segurança das pessoas, etc.

Considerando a imagem global dos factos praticados pelo arguido, entende-se adequada a pena única de 5 anos e 2 meses de prisão. (fim de transcrição)

Vejamos.

O artigo 77º, nº 1 do Código Penal, sobre as regras da punição do concurso, estatui “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.

Acrescenta o n.º 2, “A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes”.

No cúmulo jurídico, como resulta do nº1 do preceito, deverá ter-se em conta o conjunto dos factos e a gravidade dos mesmos ou, na expressão do legislador, são “considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

Como refere este Supremo Tribunal de Justiça, no seu acórdão de 05 de Junho de 2012, a “ pena única deve ser encontrada a partir do conjunto dos factos e da personalidade do agente, tendo-se em atenção se os factos delituosos em concurso são expressão de uma inclinação criminosa ou apenas constituem delitos ocasionais sem relação ente si, mas sem esquecer a dimensão da ilicitude do conjunto dos factos e a conexão entre eles existente, bem como o efeito da pena sobre o comportamento futuro do delinquente. (…) Com a pena conjunta pretende-se sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e da gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda considerar, em conjunto (e não unitariamente), os factos e a personalidade do agente.”1617

Importa, pois, saber se estamos em presença de ilícitos pluriocasionais, temporalmente circunscritos ou, pelo contrário em presença da prática de crimes de modo recorrente.

No caso em apreço, atento o percurso de vida e as condições pessoais e familiares do arguido, é manifesto estarmos em presença da primeira situação, apontando essas mesmas condições para perspectivas futuras positivas de reintegração. É esta perspectiva global (numa lógica de prevenção geral) e de personalidade do agente (numa lógica de prevenção especial) que é, em matéria de cúmulo jurídico, o elemento agregador da pena única a fixar.

A partir da pena parcelar mais grave, a pena única será mais ou menos agravada em função da perspectiva global do facto e da personalidade do agente, tendo sempre como limite a sua culpa e a preservação do princípio da proporcionalidade.

Assim, tendo em consideração, que a pena única deve ser encontrada tendo em conta a gravidade global do comportamento delituoso do arguido, pois tem de ser considerado e ponderado um conjunto dos factos e a sua personalidade “como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado”, entendemos que a pena conjunta aplicada ao mesmo é adequada e proporcional à sua culpa, não merecendo a intervenção correctiva deste Supremo Tribunal de Justiça.

Improcede, assim, a reclamada redução da pena única.

Mantendo-se a pena conjunta, fica prejudicada a reclamada suspensão de execução da mesma, por ser legalmente inadmissível.

Em resumo, improcedem ambos os recursos.

III - Decisão

Pelo exposto, acordam no Supremo Tribunal de Justiça, 3ª Secção Criminal, em julgar improcedentes os recursos interpostos pelos arguidos AA e BB e, em consequência, confirmar a decisão recorrida.

Custas pelos recorrentes, fixando-se a taxa de justiça, por cada um deles, em 5 (cinco) UC’s - artigo 513.º, n. º1 do Código de Processo Penal e artigo 8º n.º 9 e tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais). :

Lisboa, 31 de Outubro de 2024.

Antero Luís (Relator)

Horácio Correia Pinto (1º Adjunto)

José Carreto (2º Adjunto)

_______


1. Neste sentido e por todos, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 20/09/2006, proferido no Proc. Nº O6P2267.

2. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág.335; Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., Rei dos Livros, 2011, pág.113.

3. Acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 de 19/10 /1995, publicado no DR/I 28/12/1995.

4. Acórdão de 4/06/2014, Proc. 3/12.2GALLE.S1 in www.dgsi.pt

5. Proc. nº 048516, disponível em www.dgsi.pt

6. Proc. Nº 06P664, disponível em www.dgsi.pt

7. Proc. Nº 542/20.1T9STB.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt

8. Sumário do acórdão de 31-01-2012, Proc. Nº 8/11.0PBRGR.L1.S

9. Ac. STJ de 22-09-2004, Proc. n.º 1636/04 - 3.ª ambos in www.dgsi.pt

  No mesmo sentido, Prof. Figueiredo Dias (“O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187).

10. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime - Noticias Editorial, pág. 227).

11. As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva” in “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, 1998, AAFDL, pág. 25-51 e in “Casos e Materiais de Direito Penal”, 2000, Almedina, pág. 31-51.

12. A Determinação da Medida da Pena Privativa de Liberdade", Coimbra Editora, pág. 570 e seguintes).

13. Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, pág. 214.

14. Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, 2.º a 4.º, Abril-Dezembro de 1993, pág. 186 e 187,

15. Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) 2023, verificou-se, nesse ano, um aumento de 19,4% na criminalidade conexa com tráfico e consumo de estupefacientes, correspondente a 9276 crimes, disponível em https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.

16. Proc. nº 202/05.3GBSXL.L1.S1, disponível em: www.dgsi.pt

17. Neste sentido também, Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 421e segs.