Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1997/11.0TYLSB-B.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RAIMUNDO QUEIRÓS
Descritores: INSOLVÊNCIA
ADMINISTRADOR DE INSOLVÊNCIA
CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
BEM IMÓVEL
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
PROMITENTE-COMPRADOR
CONSUMIDOR
Data do Acordão: 12/17/2019
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Área Temática:
DIREITO FALIMENTAR – DISPOSIÇÕES INTRODUTÓRIAS / DISPOSIÇÕES GERAIS / RECURSOS / EFEITOS DA DECLARAÇÃO DE INSOLVÊNCIA / EFEITOS SOBRE OS NEGÓCIOS EM CURSO / PROMESSA DE CONTRATO.
Doutrina:
- Calvão da Silva, Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Almedina, 5ª ed., p. 111 e ss.;
- Miguel Pestana de Vasconcelos, Cadernos de Direito Privado, n.º 33, Coimbra Editora, 2001, p. 3 e ss..
Legislação Nacional:
CÓDIGO DA INSOLVÊNCIA E DA RECUPERAÇÃO DE EMPRESAS (CRIE): - ARTIGOS 14.º, N.º 1 E 106.º.
Jurisprudência Nacional:
ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA:


- ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA N.º 4/2019, IN DR N.º 141/2019, SÉRIE I, DE 25-07-2019.
Sumário :

I- A qualidade de consumidor é uma condição essencial da atribuição do direito de retenção ao promitente-comprador que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador de insolvência.

II- O Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça nº 4/2019 uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos:

“Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para efeitos do disposto no Acórdão n.° 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”

III- Na esteira deste Acórdão, goza do direito de retenção, o promitente-comprador que destina o bem a uso particular (não profissional), que corresponde dominantemente ao sujeito que pretende adquirir habitação.

IV- De fora do conceito de “consumidor” ficam os promitentes-compradores que pretendem adquirir o bem para revenda, para o exercício de uma actividade profissional, ou lucrativa, como a locação, bem como, em princípio, as pessoas colectivas.

V- No caso dos autos, uma das fracções prometidas destinou-se ao arrendamento e a outra ficou afectada à residência do representante da sociedade autora.

VI- Estas finalidades não são identificáveis com o uso privado, pessoal, familiar ou doméstico subjacente ao conceito restrito de consumidor.

Decisão Texto Integral:

PROC. N.º 1997/11.0 TYLSB-B.L1.S1                                       

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


I. RELATÓRIO

Recorrente: AA

Recorrida: BANCO BB

1. Na sentença de verificação e graduação de créditos proferida na insolvência de "CC, Lda." decidiu-se reconhecer à credora reclamante "AA", um crédito "no montante de E 1.060.000,00, referente à devolução do sinal em dobro pelo não cumprimento de contrato promessa de compra e venda por esta celebrado com a Insolvente".

Foi ainda reconhecido à reclamante o direito de retenção sobre as fracções autónomas designadas pelas letras "E" e "U", ambas do prédio urbano sito na ..., freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 14290 da freguesia de ..., inscrito na matriz sob o artigo 23237, nos termos do artigo 759.° n.ºs 1 e 2, do Código Civil e Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.° 4/2014.

Consequentemente, o Tribunal graduou o referido crédito em primeiro lugar pelo produto da venda das fracções "E" e "U".

2. A credora reclamante "BANCO BB", inconformada com tal decisão, interpôs recurso de apelação, pugnando pela revogação da sentença.

3. Em 17.04.2018, o Tribunal da Relação de ... proferiu Acórdão do qual consta a seguinte decisão:

Pelo exposto acordam os Juízes do Tribunal da Relação de ... em julgar a apelação parcialmente procedente e, nessa medida:

1°- Altera-se o Ponto "3" da Graduação de créditos constante da Sentença recorrida, o qual passará a ter a seguinte redacção :

"3 — Pelo produto da venda das frações autónoma designada pelas letras "E" e "U", compostas de moradia de rés do chão, de tipologia T4, situadas em ..., freguesia e concelho de ..., distrito de ..., descritas na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 14290 e inscritas na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 23237:

- em primeiro lugar haverá que dar pagamento ao credor hipotecário — "BANCO BB" — até ao limite da garantia, já que se trata de uma garantia real (art° 686° n° 1 do Código Civil) ;

- em segundo lugar haverá que proceder ao pagamento, na proporção respectiva, aos créditos privilegiados da Fazenda Nacional e Instituto da Segurança Social, IP (art°s. 745° n° 2 e 747° n° 1, al. a), do Código Civil) ;

- em terceiro lugar haverá que dar pagamento ao credor "DD, S.A.", do crédito no montante de 51.000,00 €, atento o facto de se tratar de credor a requerimento de quem a situação de insolvência foi declarada (art° 98° n° 1 do C.I.R.E.) ;

- em quarto lugar, haverá que dar pagamento aos créditos comuns, que serão pagos na proporção respectiva (onde se inclui o crédito da "AA", no montante de 1.060.000 e)".

2°- No mais, confirma-se a Sentença recorrida”.

4.Inconformada com este Acórdão, a recorrente interpõe o presente recurso de revista, em que formula as conclusões que se seguem:

1. Como se decidiu em primeira instância: Uma interpretação restritiva do art. ° 759°, n. ° 2, ai. f), do Código Civil foi defendida por Pestana de Vasconcelos (in "Direito das Garantias", pág. 374, e "Cadernos de Direito Privado", n. ° 33, págs. 8 e 9) e foi reforçada pelo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.° 4/2014 que, por maioria (e com diversos voto de vencido), fixou jurisprudência no sentido de restringir ao promitente-comprador "consumidor" o direito de retenção conferido pelo art.° 759°, n.° 1, al. f), do Código Civil.

2.Posto isto, e recordando mais uma vez as regras do ónus da prova, não podemos deixar de referir que incumbia à Impugnante ter alegado factos atinentes à qualidade em que a AA interveio no contrato promessa celebrado com a Insolvente (art. ° 342° do Código Civil), o que esta manifestamente não fez.

3.Sendo certo que o facto de se tratar de uma empresa, ou de esta ter dado de arrendamento um dos imóveis objeto do contrato promessa celebrado por si só se mostra insuficiente para infirmar a qualidade de consumidora desta em face do disposto no art.° 2o, n.° 1, da Lei n, ° 24/96, de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor), republicada pela Lei n.°47/14, de 28.07.

4.Com efeito, nos termos do supra citado art.° 2o, n.° 1, "Considera-se consumidor todo aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de beneficias."

5.Em suma, não tendo a Impugnante alegado e demonstrado, como lhe incumbia, factos susceptíveis de negar a qualidade de consumidor à AA fica, assim, prejudicada a eventual possibilidade de, com base nesse elemento, se afastar a integração da posição da mesma na norma do art. ° 755°, n. ° 1, al. f), do Código Civil.

6. A questão de a ora recorrente ter ou não a qualidade de consumidora, nunca foi levantada ao longo do processo, não foi invocada em nenhum articulado e foi somente levantado nas alegações em primeira instância pelo Banco recorrido.

7. Da matéria de facto dada como provada, não resulta que a recorrente tenha uma atividade económica.

8. Assim da matéria de facto dada como provada e do que foi submetido a julgamento somente resulta que a recorrente é uma sociedade, que arrendou uma fracção por um ano, e que o seu representante pernoita, faz refeições recebe amigos recebe a correspondência na fracção designada pela Letra "E ".

9. Repetindo-se que: "Sendo certo que o facto de se tratar de uma empresa, ou de esta ter dado de arrendamento um dos imóveis objeto do contrato promessa celebrado por si só se mostra insuficiente para infirmar a qualidade de consumidora desta em face do disposto no art.° 2º, n.° 1, da Lei n.° 24/96, de 31.07 (Lei de Defesa do Consumidor), republicada pela Lei n. ° 47/14, de 28.07. "

10. Salvo o devido respeito sem qualquer outro facto do que aqueles que ficaram provados, e tendo em conta matéria alegada não se pode presumir sem mais que a ora recorrente é investidora.

11. Ora não se pode aceitar esta conclusão nem a decisão proferida, com base nesta presunção e nesta ideia.

12. O Banco recorrido não demonstrou nem alegou que a recorrida não tinha a qualidade de investidora

13. A ora recorrente não faz do arrendamento a sua atividade económica nem isso foi invocado e demonstrado, carecendo assim de prova desta qualidade.

14. Está em causa a certeza e segurança do direito, e o princípio da confiança, para quem celebrou um contrato promessa por escritura pública, registou, pagou IMT, não sendo admissível neste caso a interpretação restritiva doa art° 755 f) do CCivil.

15. Deve ser respeitada a garantia dada á eficácia real atribuída á promessa, artº 413 do CCivil e o princípio da publicidade dada pelo registo e bem assim os efeitos atribuídos à posse que foi conferida à recorrida atenta a norma imperativa que obriga ao cumprimento da promessa com efícácia Real e posse arts° 119 e 104 do CIRE.

16. O legislador quis atribuir maior eficácia e relevância ao efeito da promessa com eficácia real e posse.

17. Não faria sentido que nestas condições, se anulasse os efeitos da retenção caso o contrato não seja cumprido, como forma de garantir o recebimento do crédito.

18. A situação diverge da constante do Acórdão de uniformização 4/2014, antes de mais porque o Acórdão versa sobre um contrato promessa meramente obrigacional enquanto o caso dos autos versa sobre um contrato com eficácia real.

19. Deve ser reconhecido o direito de retenção a ora recorrente.

20. Fez-se incorrecta aplicação do artigo 755 e 755 n° 1 alínea f) do Civil”.

5. Em resposta, apresentou BANCO BB, as suas contra-alegações, pugnando pela inadmissibilidade do recurso ou, caso assim não se entenda, pela sua improcedência.

6. Respondeu o Ministério Público, pugnando pela inadmissibilidade do recurso ou pela sua improcedência.

II- Objecto do Recurso

Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do CPC), a questão a decidir, in casu, é uma única: saber se é aplicável ao caso o artigo 755.º, n.º 1, al. f), do CC, ou seja, se a recorrente goza de direito de retenção pelo crédito de que é titular.

III- FUNDAMENTAÇÃO
OS FACTOS
São os seguintes os factos que vêm provados no Acórdão recorrido:
1- A sociedade "CC Lda", foi declarada Insolvente, nos autos a que estes se mostram apensos, por Sentença proferida em 15/6/2012, devidamente transitada em julgado.
2- Foram reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência créditos à sociedade "AA", no montante de 1.060.000 E, referentes a devolução do sinal em dobro pelo não cumprimento de contrato promessa de compra e venda por esta celebrado com a Insolvente;
3- Foram reconhecidos pelo Sr. Administrador da Insolvência créditos a EE, no montante de 146.692,16 E, referentes a incumprimento de acordo de revogação de contrato promessa de compra e venda por este celebrado com a Insolvente.
4- A Insolvente e EE celebraram entre si o acordo cuja cópia se mostra junta a fls. 37 a 41 dos presentes autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, intitulado "Contrato de Promessa de Compra e Venda", datado de 21/4/2005, nos termos do qual a Insolvente declarou que "(..) promete vender ao segundo (.), a fração autónoma a designar por fração 308 — do tipo T4, no prédio em construção no lote de terreno designado por lote 16, destinado a construção, sito na ..., freguesia de ..., concelho de ..., que fazem parte do Empreendimento designado por "...", descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 1140, inscrito na matriz sob o artigo 3832 da freguesia de ..., concelho de ...".
5- Mais acordaram que "o preço estipulado para a compra e venda prometida é de 280.500,00 Euros (duzentos e oitenta mil e quinhentos euros) a pagar nos seguintes prazos e condições :
a. A título de Sinal e Princípio de Pagamento o segundo entregará à primeira, com a assinatura do presente Contrato a quantia de 20.000,00 euros (vinte mil euros), quantia da qual recebe quitação.
b. O remanescente do preço, ou seja, a quantia de 260.500,00 Euros (duzentos e sessenta mil e quinhentos euros) será paga no prazo máximo de 90 dias a contar da data da assinatura do presente contrato promessa (...)".
6- Mais acordaram que: "14 — A escritura de Compra e Venda será outorgada num Cartório Notarial de ... ou arredores logo que esteja concluído o edifício no qual a fracção se integra e se encontre em ordem toda a documentação para o referido efeito, o que se prevê possível até vinte e quatro meses após a licença de construção.

15 — Caso não seja possível a celebração da Escritura até à indicada data, a Primeira obriga-se a comunicar tal facto ao Segundo e indicar de imediato a data previsível de celebração da Escritura, que não poderá ser posterior ao final do ano de 2007.

18 — A escritura será marcada pela primeira Outorgante que avisará o Segundo para a seguinte morada : EE, Apartado ..., 0000 ... ; indicando a data, hora e local da sua celebração com pelo menos quinze dias de antecedência (..)".
7- A Insolvente, na qualidade de "Primeira Contraente", e representada pelo seu gerente FF, e EE, na qualidade de "Segundos Contraentes" celebraram entre si o acordo cuja cópia se mostra junta a fls. 42 a 43 dos presentes autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, datado de 19/5/2006, intitulado "Acordo de Revogação Contratual", com o seguinte teor :

"Os contraentes celebram entre si o acordo de revogação de um contrato promessa de compra e venda, nos seguintes termos :
1. Entre as partes foi celebrado um contrato de promessa cujo objecto é a fracção autónoma, designado por "308", tipo T4, com a área coberta de 160 m2 e descoberta de 70 m2, com parque de estacionamento duplo com os n°s. 32 e 33, e arrumo com o número 34, destinada a habitação, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal, sito na ..., designado por ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo 3832, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número mil cento e quarenta que se anexa ao presente Acordo.
2. Pelo presente acordo, ambas as partes declaram revogar o contrato de promessa acima referido, em virtude de o negócio não poder ser concretizado em prazo que corresponda ao interesse do segundo contraente.
3. Em compensação a primeira contraente assume a obrigação de entregar ao Segundo Contraente a quantia de 170.000,00 Euros, a título de compensação por danos e restituição de quantias recebidas, devendo esta quantia ser paga até ao final de 2006.

4. Para além da quantia acima referida, ambas as partes declaram não haver mais nada a receber (..)".
8- A sociedade "CC, Lda" obrigava-se com a intervenção de dois gerentes.
9- Por acordo celebrado em 17/1/2012, cuja cópia se mostra junta a fls. 94 a 102 dos presentes autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, entre a "CC, Lda", aí representada pelos seus dois gerentes — FF e GG — e a "BANCO HH do ... CRL", esta última procedeu ao pagamento a EE da quantia de 60.000 €, referente à dívida da primeira para com EE.
10- A sociedade "CC, Lda" e II, este último na qualidade de "Procurador, em representação da sociedade de direito estrangeiro "AA'' celebraram entre si o acordo cuja cópia se mostra junta a fls. 25 a 29 dos presentes autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, intitulado "Contrato-Promessa de Compra e Venda com Eficácia Real", datado de 23/3/2011, nos termos do qual a primeira declarou ser "dona e legítima possuidora dos seguintes imóveis
1) Fracção autónoma designada pela letra "E" correspondente à moradia unifamiliar V quatro — porta número cinco, destinada a habitação, com alpendre para estacionamento e logradouro com piscina junto ao alçado sul, com o valor patrimonial de 193.960,00E ;
2) Fracção autónoma designada pela letra "U" correspondente à moradia unifamiliar V quatro — porta número vinte, destinada a habitação, com alpendre para estacionamento e logradouro com piscina junto ao alçado sul, com o valor patrimonial de 186.150E ; ambas do prédio urbano situado em ..., na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número catorze mil duzentos e noventa — da freguesia de ..., ali registada a aquisição a favor da sociedade vendedora pela inscrição Apresentação vinte e nove, de catorze de Dezembro de dois mil e sete, afecto ao regime de propriedade horizontal pela inscrição Apresentação dois mil e duzentos e vinte e seis, de vinte e cinco de Maio de dois mil e dez, inscrito na matriz sob o artigo 23237 (…)".
11- Mais declarou a sociedade "CC, Lda", no acordo descrito em 10., que "promete vender, livres de quaisquer ónus, encargos ou responsabilidades, à sociedade representada pelo segundo outorgante, pelo preço global de Quinhentos e Noventa Mil Euros, que confessa já ter recebido para a sua representada quinhentos e trinta mil euros, a título de sinal e princípio de pagamento, as fracções autónomas supra identificadas, sendo trezentos mil euros o preço da fração "E", tendo já recebido duzentos e setenta mil euros, e duzentos e noventa mil euros o preço da fração "'U", tendo já recebido duzentos e sessenta mil euros".
12- Nesse mesmo acordo declarou, ainda, II : "Que, promete comprar, em nome da sociedade sua representada as identificadas fracções autónomas, aceitando o presente contrato.

Pelos Primeiros e Segundo Outorgantes nas qualidades invocadas, mais foi dito :

Que atribuem a este contrato eficácia real, e que cabe à sociedade promitente vendedora marcar a respectiva escritura pública de compra e venda no prazo de vinte e quatro meses a contar do dia vinte e oito de Fevereiro de dois mil e onze ;

Mais declararam os Outorgantes :

Que a posse dos imóveis foi conferida à sociedade representada do segundo outorgante com a entrega das chaves dos imóveis, podendo a promitente compradora usufruir das fracções e requerer o fornecimento de água e electricidade em seu nome".
13- A "AA" celebrou acordo de fornecimento de energia eléctrica relativamente aos imóveis descritos em 10.
14- A "AA" celebrou acordo de fornecimento de água e saneamento de águas residuais relativamente aos imóveis descritos em 10.
15- II, "na qualidade de procurador, em representação da sociedade de direito estrangeiro, "AA' e JJ celebraram entre si o acordo cuja cópia se mostra junta a fls. 83 a 86 dos presentes autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, intitulado "Contrato de Arrendamento Urbano para Habitação com Duração Determinada", datado de 24/8/2012, nos termos do qual a primeira deu "de arrendamento (..) a JJ (..) que aceita, a fracção autónoma "U", sita no prédio urbano sito na ..., na freguesia e concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o n° 14290 e inscrito na matriz sob o artigo 23237, em perfeito estado de habitação".

Mais acordaram que : "(...) Cláusula 2ª

1 — O presente arrendamento urbano para fim habitacional, é realizado pelo prazo de 1 (um) ano, renovável, tendo o seu começo a 24 de Agosto de 2012 e o seu termo a 23 de Agosto de 2013.

2 — O Senhorio pode impedir a renovação automática, mediante a comunicação ao Inquilino, com a antecedência mínima de 2 meses do termo do contrato, através de carta registada, com aviso de recepção e expedida para a morada do inquilino.

Cláusula 3ª

1 — O local arrendado destina-se à habitação pelo inquilino.

2 — O Inquilino não pode dar qualquer outro fim ou uso ao local arrendado.

3 — Encontra-se expressamente vedado ao Inquilino, proceder à sublocação ou cedência, onerosa ou gratuita, total ou parcial, do local arrendado, sem a prévia autorização do Senhorio.

Cláusula 4°

1 — A renda mensal é de € 800,00 (oitocentos euros) e vence no dia 1 (um) do mês anterior ao qual disser respeito.

2 — Com a assinatura deste contrato, vence-se de imediato 1 (uma) renda e um mês de caução, que juntas perfazem a quantia de E 1.600,00 (mil e seiscentos euros)".
16- II pernoita, faz refeições, recebe amigos e recebe correspondência na fração autónoma designada pela letra "E" identificada no Facto 10..
17- Mostram-se apreendidos nos autos os seguintes bens :
a. Fração autónoma designada pela letra "A", composta de moradia de rés-do-chão, de tipologia T4, situada em ..., freguesia e concelho de ..., distrito de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 14290 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 23237 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 158 a 163 do Apenso F).
b. Fração autónoma designada pela letra "C", composta de moradia de rés-do-chão, de tipologia T4, situada em ..., freguesia e concelho de ..., distrito de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 14290 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 23237 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 158 a 162 e 164 do Apenso F).
c. Fração autónoma designada pela letra "E", composta de moradia de rés do chão, de tipologia T4, situada em ..., freguesia e concelho de ..., distrito de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 14290 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 23237 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 158 a 162 e 165 do Apenso F).
d. Fração autónoma designada pela letra "F", composta de moradia de rés-do-chão, de tipologia T4, situada em ..., freguesia e concelho de ..., distrito de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 14290 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 23237 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 158 a 162 e 166 do Apenso F).
e. Fração autónoma designada pela letra "U", composta de moradia de rés do chão, de tipologia T4, situada em ..., freguesia e concelho de ..., distrito de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 14290 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 23237 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 158 a 162 e 168 do Apenso F).
f. Fração autónoma designada pela letra "E", destinada a comércio, composta por piso zero — espaço comercial identificado pelo número um, situada na Urbanização ..., lote 16, freguesia de ... (...), concelho de ..., distrito de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 1140 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 8336 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 169 a 175 do Apenso F).
g. Fração autónoma designada pela letra "H", destinada a comércio, composta por piso zero — espaço comercial identificado pelo número quatro, situada na Urbanização ..., lote 00, freguesia de ... (...), concelho de ..., distrito de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 1140 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 8336 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 169 a 173 e 178 a 179 do Apenso F).
h. Fração autónoma designada pela letra "B", destinada a comércio, sita no piso zero, correspondente ao rés do chão identificado por L2, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 0, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 a 187 do Apenso F).
i. Fração autónoma designada pela letra "C", destinada a comércio, sita no piso zero, correspondente ao rés do chão identificado por L0, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 1, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 e 188 do Apenso F).
j. Fração autónoma designada pela letra "D", destinada a comércio, sita no piso zero, correspondente ao rés do chão identificado por L4, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 0, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 e 189 do Apenso F).
k. Fração autónoma designada pela letra "E", destinada a habitação, sita no piso um, correspondente ao T2 identificado pela letra A, com um lugar de estacionamento na cave identificado por E5 e no desvão do telhado o arrumo identificado por Al, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 0, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 e 190 do Apenso F).
l. Fração autónoma designada pela letra "F", destinada a habitação, sita no piso um, correspondente ao T2 identificado pela letra B, com um lugar de estacionamento na cave identificado por E4 e no desvão do telhado o arrumo identificado por A2, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 0, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 e 191 do Apenso F).
m. Fração autónoma designada pela letra "G", destinada a habitação, sita no piso um, correspondente ao T3 identificado pela letra A, com um lugar de estacionamento na cave identificado por E6 e no desvão do telhado o arrumo identificado por A9, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 0, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 e 192 do Apenso F).
n. Fração autónoma designada pela letra "H", destinada a habitação, sita no piso dois, correspondente ao T2 identificado pela letra A, com um lugar de estacionamento na cave identificado por E 11 e no desvão do telhado o arrumo identificado por A4, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 0, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 e 193 do Apenso F).
o. Fração autónoma designada pela letra "I", destinada a habitação, sita no piso dois, correspondente ao T2, identificado pela letra B, com um lugar de estacionamento na cave identificado por E9 e no desvão do telhado o arrumo identificado por A5, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 0, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 e 194 do Apenso F).
p. Fração autónoma designada pela letra "J", destinada a habitação, sita no piso dois, correspondente ao T3 identificado pela letra A, com um lugar de estacionamento na cave identificado por El e no desvão do telhado o arrumo identificado por A3, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 0, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 e 195 do Apenso F).
q. Fração autónoma designada pela letra "L", destinada a habitação, sita no piso três, correspondente ao T2 identificado pela letra A, com um lugar de estacionamento na cave 13 identificado por E8 e no desvão do telhado o arrumo identificado por A7, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 0, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 e 196 do Apenso F).
r. Fração autónoma designada pela letra "M", destinada a habitação, sita no piso três, correspondente ao T2, identificado pela letra B, com um lugar de estacionamento na cave identificado por E7 e no desvão do telhado o arrumo identificado por A8, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 1, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 e 197 do Apenso F).
s. Fração autónoma designada pela letra "N", destinada a habitação, sita no piso três, correspondente ao T3 identificado pela letra A, com um lugar de estacionamento na cave identificado por E2 e E3 e no desvão do telhado o arrumo identificado por A6, sito na Quinta ..., ..., ..., Lote 0, na Rua ..., n° 00, freguesia e concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 2949 e inscrita na matriz predial urbana da aludida freguesia sob o artigo 5963 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 3 e certidão de fls. 186 e 198 do Apenso F).
t. Fração autónoma designada pela letra "AT", rés do chão, loja 00, sita na Rua ..., n°s. ... e Rua ..., n°s. ..., freguesia do ..., concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 145 e inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo 1102 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 8 e 23 e certidão de fls. 114 a 120 e 124 a 126 do Apenso F).
u. Fração autónoma designada pela letra "AZ", rés do chão, loja 00, sita na Rua ..., n°s. ... e Rua ..., nos. ..., freguesia do ..., concelho de ..., descrita na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 145 e inscrito na matriz predial urbana da dita freguesia sob o artigo 1102 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 8 e 23 e certidão de fls. 114 a 123 do Apenso F).
v. Fração autónoma designada pela letra "EV" correspondente à loja n° 00 sita no 4° piso da Rua ..., n° ..., freguesia de ..., concelho da ..., descrita na 2a Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 30 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 329 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 9A e certidão de fls. 10 a 11 do Apenso F).
w. Fração autónoma designada pela letra "EX" correspondente à loja n° 00 sita no 4° piso da Rua ..., n° ..., freguesia de ..., concelho da ..., descrita na 2a Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 30 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 329 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 9A e certidão de fls. 14 a 15 do Apenso F).

x. Fração autónoma designada pela letra "FB" correspondente à loja n° 00 sita no 4° piso da Rua ..., n° ..., freguesia de ..., concelho da ..., descrita na 2a Conservatória do Registo Predial de ... sob o n° 30 e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 329 (cfr. Auto de apreensão constante de fls. 9A e certidão de fls. 18 a 19 do Apenso F).

IV- O DIREITO

Antes de apreciar o objecto do recurso, importa apreciar da sua admissibilidade.

Como tem sido recorrentemente afirmado em Acórdãos desta 6.ª Secção e constitui posição estabilizada no Supremo Tribunal de Justiça[1], o disposto no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE restringe-se aos recursos interpostos no âmbito do processo de insolvência (maxime sentença de declaração de insolvência) e do incidente de embargos à sentença da declaração de insolvência, não se aplicando à generalidade dos apensos do processo de insolvência. Estando em causa um apenso de verificação e graduação de créditos, ao presente recurso aplica-se, não o regime especial do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, mas o regime recursivo geral, pelo que o recurso é admissível à luz do artigo 671.º, n.º 1, do CPC.

Dito isto, passa-se à apreciação do objecto da revista.

No caso dos autos estamos perante um contrato-promessa bilateral de compra e venda tendo por objecto mediato duas fracções autónomas, prometidos comprar a uma sociedade que as prometeu vender, tendo havido “traditio” antes da celebração do contrato prometido, e ao qual as partes atribuíram eficácia real.

Estabelece a este título o art° 413° do Código Civil, no seu n° 1, que “à promessa de transmissão ou constituição de direitos reais sobre imóveis, ou móveis sujeitos a registo, podem as partes atribuir eficácia real, mediante declaração expressa e inscrição no registo”. Por sua vez, o n° 2 do mesmo normativo preceitua que “deve constar de escritura pública a promessa a que as partes atribuam eficácia real; porém, quando a lei não exija essa forma para o contrato prometido, é bastante documento particular com reconhecimento da assinatura da parte que se vincula ou de ambas, consoante se trate de contrato-promessa unilateral ou bilateral”.

Ora, no caso em apreço, o contrato promessa foi celebrado por escritura pública, no mesmo existe uma declaração expressa das partes no sentido de atribuição de eficácia real ao contrato e foram inscritos no registo os direitos emergentes da promessa.

Sucede que, ao tempo da declaração de insolvência da promitente vendedora era um negócio em curso, porque ainda não estava cumprido, nem definitivamente incumprido.

O princípio geral quanto aos negócios bilaterais ainda não cumpridos, à data da declaração de insolvência, é que o cumprimento fica suspenso até que o administrador da insolvência declare optar pela execução ou recusar o cumprimento (cf. art° 102° n° 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (C.I.R.E.).

Compete, assim, ao administrador da insolvência, no interesse dos credores do insolvente, decidir se é mais vantajoso o cumprimento ou incumprimento, sendo que o interesse que emerge como principal é o da protecção dos credores afectados com a declaração de insolvência.[2]

Daí os poderes latos conferidos ao administrador da insolvência que se manifestam na decisão de cumprir ou não cumprir os contratos, onde a lei insolvencial lhe dá essa opção.

No entanto, no caso em apreço estamos perante um contrato promessa com eficácia real e  no qual houve “traditio” a favor do promitemte comprador, situação que é expressamente regulada pelo C.I.R.E.

Com efeito, o art° 106° do C.I.R.E. que se refere à promessa de contrato, estatui no seu n° 1 :

"1 -No caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador".

E acrescenta o n° 2 do preceito que :

"2 -A recusa de cumprimento de contrato-promessa de compra e venda pelo administrador da insolvência é aplicável o disposto no n° 5 do artigo 104°, com as necessárias adaptações, quer a insolvência respeite ao promitente-comprador quer ao promitente-vendedor”.

O C.I.R.E. prevê a hipotese de ao contrato-promessa ter sido atribuída eficácia real e ter havido "traditio" (art° 106° n° 1 do C.I.R.E.), estabelecendo que o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento, tendo que outorgar o contrato prometido, o que se compreende, considerando a eficácia "erga omnes" do contrato (art° 413° do Código Civil) e o facto de a isso acrescer a "traditio", tal implica um grau de estabilidade e solidez da posse do promitente-comprador e uma sua expectativa fortemente tutelada juridicamente a justificar a imposição do cumprimento.

Apenas quando falha algum dos três requisitos exigidos pelo n.º 1, ou seja, nos casos, regulados no n.º 2 do artigo 106.º do CIRE, em que o contrato-promessa não tem eficácia real ou, tendo o contrato-promessa eficácia real, não houve tradição da coisa ou, tendo havido tradição, o insolvente não é o promitente-vendedor, não está o administrador da insolvência impedido de usar o poder potestativo previsto no artigo 102.º, n.º 1, do CIRE[3] e de recusar o cumprimento do contrato-promessa (artigo 106.º, n.º 1, a contrario, do CIRE)[4].

Porém, no caso "sub judice" o próprio administrador da insolvência, em desrespeito pela lei, declarou, aquando da Tentativa de Conciliação (ver Acta de fls. 136) que "não vai cumprir o contrato de promessa celebrado entre CC, Lda e a AA, Lda".

Que consequências extrair desta posição ?

Tendo a recusa de cumprimento sido anunciada pelo administrador da insolvência, cabia à Recorrente reagir contra esta posição invocando, para o efeito, o disposto no nº 1 do artº 106º do C.I.R.E. Com efeito, em face do incumprimento do administrador, e uma vez verificados os requisitos deste dispositivo legal, a Recorrente poderia lançar mão da execução específica do contrato de harmonia com o estatuído nos artsº 827º, 830º e 442º, nº 3 todos do Código Civil. Na verdade, neste caso, sendo atribuída eficácia real à promessa de compra e venda, o beneficiário da mesma passa a ter uma posição fortalecida face ao promitente vendedor e a terceiros; para uns será um verdadeiro direito real de aquisição e, para outros, um direito de crédito com um regime especial de oponibilidade em relação a terceiros, depois de registado[5]. Este direito da Recorrente a ver celebrado o contrato de compra e venda das fracções prometidas, não se trata de um direito de crédito pecuniário, mas antes de um direito a uma prestação de facto infungível, não passível de ser graduado no âmbito do processo de insolvência.

Todavia, a Recorrente renunciou (tacitamente) à garantia real de que dispunha de exigir o cumprimento do contrato, optando, pela via da reclamação do seu crédito como crédito pecuniário sobre a insolvência, garantido por um direito de retenção. Deste modo, ao renunciar a esta garantia, jamais a Recorrente poderá invocar a eficácia real do contrato para daí extrair benefícios ou outras garantias. Isto é, renunciando a essa garantia o seu crédito pecuniário reclamado sobre a insolvência ficará sujeito às regras gerais de classificação estabelecidas no artº 47º, nº 4 do CIRE[6].

Por isso a única questão ainda em aberto e sobre a qual este Supremo Tribunal tem de se pronunciar diz respeito apenas à classificação do crédito da insolvência e, portanto, à sua graduação.

Trata-se, em suma, de decidir em que classe de créditos da insolvência deve ser integrado o presente crédito. No caso de se concluir que beneficia de direito de retenção, ele será um crédito garantido e o seu pagamento obedecerá a certas regras; no caso contrário, ele será um crédito comum, devendo o seu pagamento seguir outros termos.

O direito de retenção confere ao credor que tem em seu poder certa coisa pertencente ao devedor, não só a faculdade de se recusar a entregá-la enquanto o devedor não cumprir, como ainda a de executar a coisa e pagar-se à custa dela com preferência sobre os demais credores[7].

Vejamos, então, se, para efeitos de graduação de tal crédito, pode a Recorrente (enquanto promitente compradora) invocar o direito de retenção nos termos do art° 755° n° 1, al. f) do Código Civil.

Nos termos deste preceito, goza de direito de retenção “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art° 442°".

Desde já importa sublinhar, como ponto prévio, que, no casos dos autos, a Recorrente, para beneficiar do direito de retençao relativamente ao seu crédito, terá de posuir a qualidade de “consumidor” tal como ela veio a ser consagrado nos AUJs 4/2014 e 4/2019. É certo que ambos os AUJs se reportam à situaçao em que o contrato prometido tem eficácia meramente obrigacional. Nem de outro modo poderia ser, já que, quando o contrato prometido tem eficácia real, o promitente comprador pode sempre exigir o seu cumprimento, o que o dispensa de reclamar o seu crédito na insolvência.

Todavia, como referimos, não tendo a Recorrente exigido cumprimento do contrato, não poderá agora invocar essa eficácia real, tendo de se submeter aos requisitos fixados no AUJ 4/2014 (nomedamente a qualidade de “consumidor”) que transpôs para o direito insolvencial o direito de retenção. Aliás, só com a referida restrição (consumidor) podem ter cabimento a ratio e teleologia convocadas para a aplicaçao dos correspondentes preceitos legais do direito de retençao no âmbito do direito insolvencial.   

Como é sabido, a aplicação do direito de retenção no âmbito do processo de insolvência suscitou diversos problemas, sem que se lograsse obter consenso doutrinário e dando origem a decisões jurisprudenciais divergentes.

Reconhecendo a controvérsia instalada e a dispersão das decisões dos nossos Tribunais, veio o S.T.J. a proferir o Acórdão Uniformizador 4/2014, de 20/3 (publicado no DR, 1-Série de 19/5/2014), fixando a seguinte jurisprudência: "No âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com "traditio", devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos estatuídos no art° 755°, n° 1, al. f) do Código Civil".

Com a publicação do Acórdão n.° 4/2014, os diferentes entendimentos quanto ao alcance da solução não ficaram pacificados.

Parte da doutrina continuou a defender uma solução mais ampla, quanto ao âmbito de aplicação do direito de retenção do promitente-comprador.

No que concerne à jurisprudência, o Supremo Tribunal de Justiça, posterior àquele acórdão, pronunciou-se no sentido de um conceito restrito de consumidor, do qual ficavam excluídos aqueles que destinassem o imóvel a um fim profissional, vindo, depois, a admitir também o conceito de consumidor num sentido amplo, no qual cabe a hipótese de o bem prometido comprar, e objecto de traditio, ser destinado ao exercício de uma actividade profissional.

Porém, a questão, hoje, encontra-se solucionada pela prolação do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência nº 4/2019, publicado no Diário da Republica nº 141/2019, Série I, de 25/07/2019.

Este acórdão uniformizou a jurisprudência nos seguintes termos:

“Na graduação de créditos em insolvência, apenas tem a qualidade de consumidor, para efeitos do disposto no Acórdão n.° 4 de 2014 do Supremo Tribunal de Justiça, o promitente-comprador que destina o imóvel, objeto de traditio, a uso particular, ou seja, não o compra para revenda nem o afeta a uma atividade profissional ou lucrativa”

O acórdão uniformizador nº 4/2019, como nele se consagra, veio a adoptar “um conceito restrito de “consumidor” que incorpore as notas tipológicas consagradas no artº 2º, nº 1 da Lei de Defesa do Consumidor (Lei nº 24/96, de 31/07)”. Sendo que esta Lei consagra uma noção de consumidor que se apresenta com vocação de aplicação supletiva, sempre que o conceito não seja especificamente formulado por outro diploma para determinada área temática. Dispõe o art. 2.°, n° 1, deste diploma: ‘’Considera-se consumidor todo aquele e a quem, sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma atividade económica que vise a obtenção de benefícios’’.

Este conceito de consumidor está em sintonia com os diplomas normativos que têm como fonte o direito comunitário -DL 67/2003 de 8/4, que transpôs para o direito interno a Directiva nº 1999/44/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de Maio, alterado pelo DL 84/2008 de 21/4, que aditou o artigo Iº-B em cuja alínea a) se remete para o conceito de consumidor, previsto no citado artigo 2º, nº 1 da Lei nº 24/96 de 31/7 e Decreto-Lei 24/2014 de 14/2, que transpôs para o direito interno a Directiva nº 2011/83/EU do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25/10/2011-, que no seu artigo 3º define como consumidor, para efeitos daquele diploma, “a pessoa singular que atue com fins que não se integrem no âmbito da sua actividade comercial, industrial, artesanal ou profissional”. 

 Assim, na esteira do acórdão nº 4/2019, goza do direito de retenção, o promitente-comprador que destina o bem a uso particular (não profissional), o que, nas próprias palavras do acórdão, “corresponde dominantemente ao sujeito que pretende adquirir habitação”. De fora do conceito de “consumidor” ficam os promitentes-compradores que pretendem adquirir o bem para revenda, para o exercício de uma actividade profissional, ou lucrativa, como a locação.[8]

Por outro lado, como questão conexa, importa também saber se no conceito de “consumidor” devem caber as pessoas colectivas.

Sobre este tema, Calvão da Silva[9] defendeu que …” a letra da lei [Lei de Defesa do Consumidor] não especifica que o consumidor seja uma pessoa física ou pessoa singular. Normalmente, porém, a doutrina e as Directivas comunitárias excluem as pessoas colectivas ou pessoas morais. E cremos ser esta também a melhor interpretação do nº 1 do art. 2º da Lei nº 24/96: todo aquele que adquira bens ou serviços destinados a uso não profissional – ao seu uso privado, pessoal, familiar ou doméstico, portanto, por oposição a uso profissional – será uma pessoa singular, com as pessoas colectivas a adquirirem os bens ou os serviços no âmbito da sua capacidade, segundo o princípio da especialidade do escopo, para a prossecução dos seus fins, actividades ou objectos profissionais (art. 160° do Código Civil e art. 6° do Código das Sociedades Comerciais)”. Acrescentando que está subjacente à dita Lei a “ideia básica do consumidor como parte fraca, leiga, profana, a parte débil economicamente ou menos preparada tecnicamente de uma relação de consumo concluída com um contraente profissional, uma empresa”. Concluindo que «nos termos do nº 1 do art. 2º da Lei nº 24/96, deve considerar-se “consumidor todo aquele (pessoa singular) a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados (exclusivamente) a uso não profissional (…)».

No mesmo entendimento, Miguel Pestana de Vasconcelos[10] sustenta que é ponderada e equilibrada, devendo orientar o intérprete na concretização do consumidor para este efeito, a definição resultante dos artigos 10.º n.º l e 11.°, n.ºs 1 e 2 do anteprojecto do Código do Consumidor. Assim, será consumidor a pessoa singular que actue para a prossecução de fins alheios ao âmbito de uma actividade profissional.[11]

Na linha deste pensamento, seguiu o já citado acórdão de 17/10/2019 deste STJ, processo 1012/15, Relator José Rainho, ao afirmar que «o ponto de vista destes dois autores parece dever ser acolhido, de sorte que apenas as pessoas singulares poderão ser havidas, pelo menos em princípio, como consumidores, nos termos e para os efeitos em presença. De resto, em vária outra legislação tendente à proteção do consumidor (por exemplo, nos casos dos Decretos-Leis n.°s 133/2009 [contratos de crédito aos consumidores], 74-A/2017 [regime dos contratos de crédito relativos a imóveis], 57/2008 [práticas comerciais enganosas] e 24/2014 [contratos celebrados à distância] a lei confina declaradamente a qualidade de consumidor às pessoas singulares. E segundo se informa na Revista de Direito da Insolvência, nº 2, pp. 136 e 137, a nível internacional a generalidade dos diplomas europeus respeitantes ao direito do consumo define consumidor como ‘’pessoa singular que atua com fins alheios às suas atividades comerciais ou profissionais “».

Vejamos agora se, perante estes princípios, o entendimento dos referidos AUJs e a factualidade provada, a Recorrente goza da qualidade de consumidor.

Desde logo, sendo a Recorrente uma sociedade de investimento, com sede nos Estados Unidos da América, e integrando-se a pretendida aquisição no exercício da sua actividade comercial, não poderá ser tida como consumidor.

Por outro lado, resulta do probatório (factos 15 e 16) que, no exercício dessa actividade comercial a Recorrente arrendou a fracção autónoma prometida (U) a JJ para a sua habitação própria e a fracção prometida (E) passou a ser fruída pelo seu legal representante, II.

Estes factos evidenciam que existe uma forte conexão entre a prometida aquisição das fracções e a actividade da sociedade, não podendo por isso, afirmar-se que as fracções se destinaram a uso não profissional ou alheio ao exercício da actividade comercial da Recorrente.

Com feito ao arrendar a fracção (U) está claramente demonstrada a finalidade comercial da aquisição prometida. E também ao alocar a fracção (E) à residência do seu legal representante, “essa afectação não deixa de traduzir satisfação de um interesse societário da própria empresa, o que não se compagina com um mero uso privado ou um uso não profissional da coisa objecto do contrato prometido.”[12] Com efeito, esta afectação visou satisfazer um interesse funcional, organizacional e empresarial da  sociedade, não identificável com o uso privado, pessoal, familiar ou doméstico subjacente ao conceito restrito de consumidor, adoptado pelo AUJ 4/2019.

Por outro lado, mesmo a admitir a posição daqueles que entendem que o conceito de consumidor se pode estender às pessoas colectivas nos casos concretos em que estas por debilidade económica ou insuficiência de informação, por razões de equidade merecem a tutela do direito do consumo,[13]  o certo é que não ficou minimamente demonstrado que a Recorrente se encontrava numa situação de debilidade, fraqueza, vulnerabilidade, ou carente de tutela que é pressuposto do conceito de “consumidor”.

Deste modo, não existe fundamento para a Recorrente ser considerada “consumidor” e que se lhe estenda o respectivo regime. E, como vimos, a qualidade de consumidor é uma condição essencial da atribuição do direito de retenção ao promitente comprador que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador de insolvência. E sendo qualidade de consumidor elemento constitutivo essencial dessa garantia real (direito de retenção), impõe-se ao credor que dela se pretenda prevalecer, o cumprimento do ónus de alegação e prova dos factos em que a mesma se consubstancia, facto que a Recorrente não logrou demonstrar.

          V- DECISÃO

Pelo exposto, nega-se provimento à revista, mantendo-se integralmente o acórdão recorrido.

Custas pela Recorrente

Lisboa, 17 de Dezembro de 2019

Raimundo Queirós - Relator por vencimento

Ricardo Costa

Catarina Serra (vencida) - Vencida nos termos da declaração de voto que junto.

Sumário:

_______________________________________________________

                                                           *

Declaração de voto de vencida

Como relatora, teria concedido provimento à revista e revogado o Acórdão recorrido, com a fundamentação de direito constante do projecto de Acórdão que elaborei e que de seguida se transcreve:

“Antes de apreciar o objecto do recurso, deixa-se uma primeira nota quanto à sua admissibilidade.

Como tem sido recorrentemente afirmado em Acórdãos desta 6.ª Secção e constitui posição estabilizada no Supremo Tribunal de Justiça[1], o disposto no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE restringe-se aos recursos interpostos no âmbito do processo de insolvência (maxime sentença de declaração de insolvência) e do incidente de embargos à sentença da declaração de insolvência, não se aplicando à generalidade dos apensos do processo de insolvência. Estando em causa um apenso de verificação e graduação de créditos, ao presente recurso aplica-se, não o regime especial do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, mas o regime recursivo geral, pelo que o recurso é admissível à luz do artigo 671.º, n.º 1, do CPC.

Dito isto, passa-se à apreciação do objecto da revista.

O caso sub judice é fácil de compreender e de reconduzir a uma disciplina legal.

Tendo em conta os factos provados, em especial os indicados sob os números 10 a 12 da decisão sobre a matéria de facto, aquilo que está em causa é, numa palavra, os efeitos do incumprimento de contrato-promessa de compra e venda com eficácia real, tendo havido traditio, na hipótese de insolvência do promitente-vendedor.

A hipótese está claramente regulada no artigo 106.º, nº 1, do CIRE. Dispõe-se aí: “[n]o caso de insolvência do promitente-vendedor, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento de contrato-promessa com eficácia real, se já tiver havido tradição da coisa a favor do promitente-comprador”.

Como é visível, no n.º 1 do artigo 106.º do CIRE estão previstos os casos, como o dos autos, em que o contrato-promessa tem eficácia real, houve tradição da coisa objecto do contrato prometido e o insolvente é o promitente-vendedor. Nestes casos, em desvio ao princípio geral mas sempre ao abrigo da ressalva contidos no n.º 1 do artigo 102.º do CIRE, o administrador da insolvência não pode recusar o cumprimento do contrato-promessa.

Apenas quando falha algum dos três requisitos exigidos pelo n.º 1, ou seja, nos casos, regulados no n.º 2 do artigo 106.º do CIRE, em que o contrato-promessa não tem eficácia real ou, tendo o contrato-promessa eficácia real, não houve tradição da coisa ou, tendo havido tradição, o insolvente não é o promitente-vendedor, não está o administrador da insolvência impedido de usar o poder potestativo previsto no artigo 102.º, n.º 1, do CIRE[2] e de recusar o cumprimento do contrato-promessa (artigo 106.º, n.º 1, a contrario, do CIRE). É esta a única interpretação possível em face do texto legal e também aquela que vem sendo sustentada pela doutrina dominante[3].

Ora, no caso sub judice, o administrador da insolvência declarou expressamente a sua recusa em cumprir, desrespeitando, ostensivamente, o que resulta da lei.

Tendo a recusa de cumprimento sido anunciada pelo administrador da insolvência, cabia a este, sem necessidade de reclamação, tomar a iniciativa de o pagar nos termos previstos para o pagamento dos créditos sobre a massa.

Quer dizer: o crédito da recorrente deveria ter sido reconduzido ao artigo 51.º, n.º 1, al. e), do CIRE e classificado como crédito sobre a massa[4].

Recorde-se que este preceito determina: “[s]alvo preceito expresso em contrário, são dívidas da massa insolvente, além de outras como tal qualificadas neste Código (…) qualquer dívida resultante de contrato bilateral cujo cumprimento não possa ser recusado pelo administrador da insolvência”.

Acontece que o crédito foi classificado na sentença de verificação de créditos como crédito sobre a insolvência.

As consequências da classificação como crédito sobre a massa / dívida da massa ou como crédito sobre a insolvência / dívida da insolvência[5] não são despiciendas. Os primeiros desfrutam de um tratamento especial (privilegiado), estabelecendo o artigo 46.º, n.º 1, do CIRE que o pagamento dos primeiros tem prioridade sobre o pagamento dos segundos[6].

Mais precisamente, o pagamento dos créditos sobre a massa processa-se de acordo com o artigo 172.º do CIRE. Antes do pagamento dos créditos sobre a insolvência, deduz-se da massa insolvente os bens ou direitos necessários, efectiva ou previsivelmente, ao pagamento dos créditos sobre a massa (cfr. artigo 172.º, n.º 1, do CIRE). Estes são imputados aos rendimentos da massa e, quanto ao excedente, na devida proporção, ao produto de cada bem, móvel ou imóvel, mas a imputação não pode exceder dez por cento do produto de bens objecto de garantias reais, salvo na medida do indispensável à satisfação integral dos créditos sobre a massa ou do que não prejudique a satisfação integral dos créditos garantidos (cfr. artigo 172.º, n.º 2, do CIRE). O pagamento tem lugar nas datas dos respectivos vencimentos, independentemente do estado do processo (cfr. artigo 172.º, n.º 3, do CIRE), o que – deve salientar-se – deixa os credores da massa numa posição particularmente confortável, uma vez que os dispensa do ónus da reclamação.

Quanto aos créditos sobre a insolvência, o seu tratamento depende da sua classificação como créditos garantidos, privilegiados, subordinados ou comuns (cfr. artigo 47.º, n.º 4, do CIRE). Ver-se-á esta disciplina, em pormenor, adiante.

Para o que agora interessa, a verdade é que não foi suscitada, no recurso de apelação, nenhuma questão quanto à decisão de classificação do crédito como crédito da insolvência e, assim sendo, esta parte da sentença transitou em julgado, não podendo mais ser posta em causa.

O único problema ainda em aberto e sobre a qual este Supremo Tribunal tem o poder (e o dever) de se pronunciar diz respeito apenas à classificação do crédito da insolvência e, portanto, à sua graduação.

Trata-se, em suma, de decidir em que classe de créditos da insolvência deve ser integrado o presente crédito. No caso de se concluir que beneficia de direito de retenção, ele será um crédito garantido e o seu pagamento obedecerá a certas regras; no caso contrário, ele será um crédito comum, devendo o seu pagamento seguir outros termos. Veja-se, então.

Como se disse, a disciplina do contrato-promessa no caso de insolvência do promitente-comprador está contida no artigo 106.º do CIRE, regulando-se no seu n.º 1 os casos em que o contrato-promessa tem eficácia real, houve tradição da coisa objecto do contrato prometido e no n.º 2 os casos restantes.

No que respeita às soluções dispostas para cada uma das hipóteses, pode dizer-se, brevemente, que não é por acaso que a lei da insolvência trata de forma distinta as promessas com eficácia real e as promessas com eficácia obrigacional, salvaguardando as primeiras dos efeitos da insolvência do promitente-vendedor mas não as segundas.

A impossibilidade de recusa de cumprimento no primeiro caso é uma consequência normal da eficácia real ou erga omnes da obrigação. De acordo com o artigo 831.º do CPC, quando o contrato-promessa tenha eficácia real, existe a possibilidade de o promitente-comprador fazer valer, na acção executiva, a faculdade de adquirir o bem objecto do contrato prometido. Se isto é assim na venda executiva e o bem penhorado deve ser vendido directamente ao promitente-adquirente que tenha intenção de exercer o seu direito à execução específica do contrato prometido, também deve ser assim no contexto da insolvência.

Nada disto é susceptível de apanhar desprevenidos os restantes credores do insolvente: se não sabiam daquela tutela acrescida, deviam saber; o registo visa, justamente, atribuir estabilidade e cognoscibilidade às situações jurídicas. Não pode, pois, convocar-se, em seu favor, o princípio da segurança jurídica.

Voltando ao caso dos autos, é ponto assente que o contrato-promessa celebrado entre a recorrente (promitente-compradora) e a sociedade insolvente (promitente-vendedora) tem eficácia real e ainda que houve traditio da coisa prometida vender.

Verificando-se, como se verificam, estes os pressupostos – os pressupostos legalmente fixados para a tutela reforçada dos promitentes-compradores –, existe incumprimento ilícito por parte do administrador da insolvente, podendo a recorrente ter-se arrogado um crédito sobre a massa, nos termos dos artigos 106.º, n.º 1, e 51.º, n.º 1, al. e), do CIRE. Reclamou, porém, o crédito e reclamou o crédito como crédito garantido por um direito de retenção. Quid juris?

É possível entender-se que a reclamação, nestes termos, do crédito corresponde a uma renúncia (tácita) à tutela máxima legalmente prevista. Mas esta renúncia não coloca – não tem de colocar – a recorrente exactamente na situação em que estaria se a promessa tivesse eficácia meramente obrigacional. Por outras palavras: para a solução jurídica a encontrar por este Tribunal não pode ser indiferente que, além de ter havido tradição da coisa, as partes tenham atribuído à promessa eficácia real.

Ora, mais uma vez, a classificação do crédito como crédito garantido por direito de retenção ou como crédito comum não é inconsequente. Existem diferenças consideráveis quanto à forma e ao momento do pagamento de cada uma das classes, das quais resulta claramente o tratamento privilegiado da primeira.
A classe dos créditos garantidos integra os créditos que beneficiam de garantias reais sobre os bens integrantes da massa insolvente, excluídos os privilégios creditórios gerais [cfr. artigo 47.º, n.º 4, al. a), do CIRE]. Eles são pagos exclusivamente quando estiverem verificados por sentença transitada em julgado (cfr. artigo 173.º do CIRE), decorrendo da disciplina legal uma manifesta intenção do legislador de compensar os respectivos titulares pelo atraso na venda dos bens onerados[7] e pela eventual desvalorização que daí resulte ou pela utilização dos bens em proveito da massa insolvente.
Mais explicitamente, os créditos garantidos são pagos logo que é liquidado o bem onerado com a garantia real, pelo valor da liquidação, abatidas as respectivas despesas e as imputações devidas pelos créditos sobre a massa (cfr. artigo 174.º, n.º 1, do CIRE), que, como se disse, em regra, podem, no máximo, ascender a dez por cento do produto do bem (cfr. artigo 172.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE). Não ficando integralmente pagos, são os respectivos saldos incluídos entre os créditos comuns, em substituição dos saldos estimados, ou seja, o credor garantido concorre nos rateios sucessivos (parciais e final) em igualdade com os credores comuns (cfr. artigo 174.º, n.º 1, do CIRE). Nos rateios parciais que se realizarem antes da venda do bem onerado com a garantia, os créditos garantidos não são pagos, mas o seu saldo estimado é atendido, ficando em depósito o valor que lhe corresponde em cada rateio até à confirmação do saldo efectivo (cfr. artigo 174.º, n.º 2, do CIRE) [8].
Em contrapartida, a classe (residual) dos créditos comuns integra os créditos que não se reconduzem a nenhuma das outras classes [cfr. artigo 47.º, n.º 4, al. c), do CIRE]. São créditos comuns os créditos que não possam ser qualificados nem positivamente (como garantidos ou privilegiados) nem negativamente (como subordinados). São, muito simplesmente, pagos na proporção dos respectivos montantes, se a massa for insuficiente para a satisfação integral (cfr. artigo 176.º do CIRE) [9].
Tendo a recorrente renunciado à solução especialmente prevista na lei da insolvência, que consigna uma tutela especial para os promitentes-compradores no caso de insolvência do promitente-vendedor, pode e deve adoptar-se a solução disposta na lei civil, ou seja, no artigo 442.º, n.º 2, do CC. De acordo com esta norma, quando haja incumprimento e este incumprimento seja ilícito e imputável ao devedor, a outra parte tem o direito de optar pela restituição do sinal em dobro.
Sendo ponto assente que a recorrente é titular do direito à restituição do sinal em dobro pois que se verificam os requisitos exigidos por aquela norma, dúvidas não há de que também se verificam os requisitos exigidos pelo artigo 755.º, n.º 1, al. f), do CC, isto é, de que houve “tradição da coisa objecto a que se refere o contrato prometido” e o crédito resulta do “não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 442.º”. Não resta, pois, senão concluir que a recorrente goza do direito de retenção por aquele seu crédito – que este crédito é um crédito garantido por direito de retenção.
Ao contrário daquilo que seria de pensar, não faz falta, neste contexto, discutir a qualidade de consumidor. Quer dizer: se a recorrente é ou não consumidor é completamente irrelevante para efeitos da decisão.
É certo que o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, de 20 de Março[10], erige a qualidade de consumidor em pressuposto do direito de retenção, rectius: em pressuposto da aplicabilidade da norma do artigo 755.º, n.º 1, al. f), do CC. Mas isso apenas quando esteja em causa um contrato-promessa com eficácia meramente obrigacional e tendo em vista, justamente, a intenção de reforçar, quando haja traditio, a tutela de certo tipo de promitentes-compradores (consumidores) em contratos-promessa com eficácia meramente obrigacional[11].
Confirmando que a interpretação restritiva do artigo 755.º, n.º 1, al. f), do CC não tem carácter geral, não alcançando, portanto, situações não abrangidas por aquele Acórdão de Uniformização, vejam-se os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 29.07.2016, Proc. 6193/13.0TBBRG-H.G1.S1, de 27.04.2017, Proc. 44/14.5T8VIS-B.C1.S1, e de 9.01.2018, Proc. 212/14.0T8OLH-AB.E1.S1, todos desta 6.ª Secção[12].
Merece particular destaque o último aresto, também pela referência que faz aos primeiros. Diz-se aí: “deve ser aplicado o regime que decorre dos arts. 442º, nº 2, e 755º, nº 1, al. f), do CC (…). Questão que pode colocar-se é se, mesmo assim, na aplicação desse regime, o direito de retenção aí reconhecido ao promitente comprador depende de este ter a qualidade de consumidor, como se exigiu para o caso tratado no aludido Acórdão Uniformizador. Crê-se que não [Neste sentido o Acórdão do STJ de 27.04.2017 (com o mesmo relator deste), que passa a acompanhar-se]. Desde logo, por tal entendimento não encontrar qualquer apoio na letra da lei; nem o espírito da lei aponta também nesse sentido restritivo. Afirma-se, com efeito, no Preâmbulo do DL 379/86, de 11/11, que, ao conceder-se ao beneficiário da promessa o direito de retenção, se pensou 'directamente no contrato-promessa de compra e venda de edifícios ou de fracções autónomas', mas logo se acrescentou que 'nenhum motivo justifica, todavia, que o instituto se confine a tão estreitos limites'. O art. 755º, nº 1, al. f) do CC exige apenas a traditio da coisa, como situação socialmente atendível, por criar legitimamente ao beneficiário da promessa uma 'confiança mais forte na estabilidade ou concretização do negócio', o que justifica que lhe corresponda um acréscimo de segurança e, assim, uma tutela reforçada. Pretendeu o legislador atribuir prioridade, através da concessão do direito de retenção, à tutela dos promitentes-compradores em geral, mormente nos casos em que estes se confrontam com as instituições de crédito, que beneficiam de hipoteca. Este conflito foi especialmente (e expressamente) ponderado, entendendo-se ser razoável atribuir aquela prioridade aos particulares, sem qualquer restrição. Neste contexto, como parece evidente, se houvesse intenção de restringir o direito de retenção ao promitente-comprador, que simultaneamente tivesse a qualidade de consumidor, isso não deixaria de ser afirmado expressamente. Sobre o aludido requisito, afirmou-se no Acórdão do STJ de 29.07.2016: 'A aplicação do artigo 755.º n.º 1 alínea f) não depende de o promitente-comprador ser ou não um consumidor e a circunstância de o legislador se referir à tutela dos consumidores no preâmbulo do diploma que consagrou o direito de retenção não é decisiva e não justifica a interpretação restritiva proposta por um sector da doutrina: o legislador pode ter tomado a parte pelo todo e ter-se limitado a referir uma das situações socialmente mais relevantes. No entanto qualquer situação de detenção pelo promitente-comprador, mesmo que este não seja consumidor, pode, pela sua frequência e importância ao nível da consciência social, servir de fundamento para o direito de retenção. O legislador terá sido sensível à grande repercussão do contrato-promessa como um passo muito frequente no iter negocial que conduz à transmissão da propriedade – sendo que, de resto, o contrato-promessa pode estar associado a uma execução específica e em certos casos o promitente-comprador é mesmo um possuidor”'.
Em síntese, pelo crédito que já lhe foi reconhecido, a recorrente goza do direito de retenção, devendo o crédito assim garantido ser graduado em conformidade”.

Como resulta claramente do excerto reproduzido, o meu entendimento sobre a questão em apreço nos autos é, salvo o devido respeito, claramente distinto do entendimento que agora obteve vencimento por maioria, razão pela qual votei vencida.

Cabe um ulterior esclarecimento a propósito do conceito de tradição da coisa: ele abrange, evidentemente, todas as modalidades de transmissão da posse admitidas no nosso sistema jurídico e, designadamente, no caso de o beneficiário ser uma sociedade comercial ou outra pessoa jurídica, a transmissão material (directa ou à distância) ou simbólica (por entrega das chaves ou documental) ao respectivo administrador ou representante legal[13].

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LISBOA, 17 de Dezembro de 2019

Catarina Serra

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[1] Cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2016, Proc. 106/13.6TYVNG-B.P1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[2] Cfr. sobre este direito potestativo do administrador da insolvência, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Coimbra. Almedina, 2018, pp- 227 e s.
[3] Cfr., expressamente neste sentido, para alguns exemplos, João Calvão da Silva, Sinal e contrato promessa, Coimbra, Almedina, 2017 (14.ª edição), p. 147, Luís Carvalho Fernandes / João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado. Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, Lisboa, Quid Juris, 2015 (3.ª edição), pp. 471-472, José Lebre de Freitas, “Aplicação do tempo do artigo 164.º-A do Código da Falência – Anotação ao Ac. do STJ de 9.5.2006, Rev. 827/06”, in: Cadernos de Direito Privado, 2006, n.º 16, pág. 65 (nota 8), Nuno Manuel Pinto Oliveira / Catarina Serra, “Insolvência e contrato-promessa — os efeitos da insolvência sobre o contrato-promessa com eficácia obrigacional”, in: Revista da Ordem dos Advogados, 2010, I/II, pp. 393 e s., Nuno Manuel Pinto Oliveira, “Efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso: em busca dos princípios perdidos”, in: Catarina Serra (coord.), I Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2013, p. 211, Gisela César, Os efeitos da insolvência sobre o contrato-promessa em curso – Em particular o contrato-promessa sinalizado no caso de insolvência do promitente-vendedor, Coimbra, Almedina, 2017 (2.ª edição), pp. 138 e s., Margarida Costa Andrade / Afonso Patrão, “A posição jurídica do beneficiário da promessa de alienação no caso de insolvência do promitente-vendedor – Comentário ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, de 19 de Maio”, in: Julgar online, Setembro de 2016, pp. 3-4. Alexandre de Soveral Martins, Um Curso de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2016 (2.ª edição), p. 184-185, Filipe Albuquerque Matos, “Os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso”, in: Catarina Serra (coord.), IV Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2017, p. 43 e pp. 56-57, e Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, cit., pp. 234-235.
[4] Cfr., no mesmo sentido, Nuno Manuel Pinto Oliveira, “A qualificação do crédito resultante da não execução de contrato-promessa”, in: Catarina Serra (coord.), III Congresso de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2015, p. 134.

[5] Os créditos sobre a insolvência são definidos no artigo 47.º, n.º 1, do CIRE como os créditos de natureza patrimonial sobre o insolvente ou garantidos por bens integrantes da massa insolvente cujo fundamento seja anterior à data da declaração de insolvência, qualquer que seja a nacionalidade ou o domicílio dos seus titulares. Quanto aos créditos sobre a massa não existe uma definição em sentido próprio. Para adquirir uma noção deve atender-se ao disposto naquele artigo 51.º, n.º 1, do CIRE, que apresenta uma enumeração não taxativa de dívidas da massa (“além de outras como tal qualificadas neste Código”) e ter em atenção os casos dispersos regulados na lei. Entre estes destacam-se o direito da contraparte do insolvente à contraprestação (só) no que exceda o valor do que seria apurado no caso de o administrador da insolvência recusado do cumprimento do contrato (cfr. artigo 103.º, n.º 3, do CIRE), o direito da contraparte do insolvente à contraprestação em dívida (só) no caso de o cumprimento da prestação ser imposto ao insolvente por contrato e não recusando o administrador esse cumprimento (cfr. artigo 103.º, n.º 5, do CIRE), a remuneração e o reembolso das despesas do mandatário (só) quando estas resultem da realização, por este, de actos necessários para evitar prejuízos previsíveis para a massa insolvente e até que o administrador da insolvência tome as devidas precauções (cfr. artigo 110.º, n.º 3, do CIRE), a obrigação de restituição pela massa do valor correspondente ao objecto prestado por terceiro (só) na medida do respectivo enriquecimento à data da declaração de insolvência (cfr. artigo 126.º, n.º 5, do CIRE).
[6] Cfr., sobre a classificação dos créditos como créditos sobre a massa e como créditos sobre a insolvência, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, cit., pp. 65 e s.
[7] Este só pode ter lugar após a realização da assembleia de apreciação do relatório ou, caso não seja designado dia para a sua realização, nos termos da al. n) do n.º 1 do artigo 36.º do CIRE, depois de decorridos quarenta e cinco dias sobre a prolação da sentença de declaração de insolvência (cfr. artigo 36.º, n.º 4 do CIRE)
[8] Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, cit., p. 68 e p. 292.
[9] Cfr. Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, cit., p. 76 e p. 294
[10] Cfr. Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, de 20 de Março, Proc. 92/05.6TYVNG-M.P1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).

[11] Leia-se o respectivo segmento uniformizador: “[n]o âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência goza do direito de retenção nos termos do estatuído no art. 755.º, n.º 1, alínea f), do Código Civil”.
[12] Todos disponíveis em http://www.dgsi.pt.
[13] Para a apresentação das modalidades de tradição (traditio ou entrega) real no sistema jurídico português veja-se, seguindo a terminologia de Orlando de Carvalho, Vassalo de Abreu, “Uma relectio sobre a acessão da posse (artigo 1256.º do Código Civil)”, in: AA.VV., Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais – Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, volume II – Varia, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, pp. 146 e s.

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[1] Cfr., por todos, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18.10.2016, Proc. 106/13.6TYVNG-B.P1.S1 (disponível em http://www.dgsi.pt).
[2] Neste sentido, cf. Acórdão do S.T.J. de 14/6/2011, disponível em www.dgsi.pt).

[3] Cfr. sobre este direito potestativo do administrador da insolvência, Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, Coimbra. Almedina, 2018, pp- 227 e s.
[4] V., sobre esta interpretação, sustentada pela doutrina dominante, e também para alguns exemplos, JOÃO CALVÃO DA SILVA, Sinal e contrato promessa, Coimbra, Almedina, 2017, 14.ª edição, p. 147, LUÍS CARVALHO FERNANDES/JOÃO LABAREDA, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado. Sistema de Recuperação de Empresas por Via Extrajudicial (SIREVE) Anotado. Legislação Complementar, ..., Quid Juris, 2015, 3.ª edição, pp. 471-472, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, “Aplicação do tempo do artigo 164.º-A do Código da Falência – Anotação ao Ac. do STJ de 9.5.2006, Rev. 827/06”, Cadernos de Direito Privado, 2006, n.º 16, pág. 65, nt. 8, NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA / CATARINA SERRA, “Insolvência e contrato-promessa – Os efeitos da insolvência sobre o contrato-promessa com eficácia obrigacional”, Revista da Ordem dos Advogados, 2010, I/II, pp. 393 e s., NUNO MANUEL PINTO OLIVEIRA, “Efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso: em busca dos princípios perdidos”, I Congresso de Direito da Insolvência, coord.: Catarina Serra, Coimbra, Almedina, 2013, p. 211, GISELA CÉSAR, Os efeitos da insolvência sobre o contrato-promessa em curso – Em particular o contrato-promessa sinalizado no caso de insolvência do promitente-vendedor, Coimbra, Almedina, 2017, 2.ª edição, pp. 138 e ss., MARGARIDA COSTA ANDRADE / AFONSO PATRÃO,“A posição jurídica do beneficiário da promessa de alienação no caso de insolvência do promitente-vendedor – Comentário ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 4/2014, de 19 de Maio”, Julgar online, Setembro de 2016, pp. 3-4, ALEXANDRE DE SOVERAL MARTINS, Um Curso de Direito da Insolvência, Coimbra, Almedina, 2016, 2.ª edição, p. 184-185, FILIPE ALBUQUERQUE MATOS, “Os efeitos da declaração de insolvência sobre os negócios em curso”, IV Congresso de Direito da Insolvência, coord.: Catarina Serra, Coimbra, Almedina, 2017, p. 43 e pp. 56-57, e CATARINA SERRA, Lições de Direito da Insolvência cit., pp. 234-235.

[5] Sobre as várias posições em causa, cfr. Menezes Leitão, Direito das Obrigações, Almedina, 2015,  p. 243/244.
[6] O crédito foi classificado na sentença de verificação de créditos como “crédito sobre a insolvência”. Sem prejuízo de se poder considerar que estamos perante um “crédito sobre a massa”, nos termos do art. 51º, nº 1, al. e), e as consequências de diferente classificação não serem despiciendas, o certo é que não foi suscitada, no recurso de apelação, nenhuma questão quanto à decisão de classificação do crédito como crédito da insolvência e, assim sendo, esta parte da sentença transitou em julgado, não podendo mais ser posta em causa.


[7] Cf. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), Coimbra  Editora, Coimbra, 1987, 4.ª edição, comentário ao art. 754°.
[8] Neste mesmo entendimento, em acórdãos proferidos posteriormente à prolação do AUJ 4/2019, vide: acórdãos de 2-04-2019 e de 9-04-2019, processo nºs 822/14 e 872/10, 6ª Secção, Relatora Graça Amaral, de 17/10/2019, processo 1012/15, 6ª secção, Relator José Rainho, disponíveis em www.dgsi.pt.
[9] Compra e Venda de Coisas Defeituosas, Almedina, 5ª ed., pp. 111 e seguintes
[10] Cadernos de Direito Privado, n.º 33, Coimbra Editora, 2001, pp. 3 e seguintes
[11] No entanto, este Autor admite o alargamento do conceito de consumidor, em certos casos, às pessoas colectivas, se provarem que não dispõem nem deveriam dispor de competência especifica para a transacção em causa e desde que a solução se mostre de acordo com a equidade, só tutelando quem efectivamente é carente de tutela.
[12] Nas palavras do citado acórdão do STJ, p. 1012/15, que se debruçou sobre caso idêntico: “Todavia, ao alocar a fração prometida comprar à residência do seu gerente, essa afetação não deixa de traduzir a satisfação de um interesse societário da própria empresa, o que não se compagina com um mero uso privado ou um uso não profissional da coisa objeto do contrato prometido.
Exatamente como se significa nesta passagem, o fim visado com o contrato-promessa em presença, embora não se identifique, na aparência ou diretamente, com o objeto social da sociedade Recorrente, tem, contudo, a ver com a atividade profissional da sociedade.”
[13] Neste sentido, Miguel Pestana deVasconcelos, ob. cit. pp. 3 e ss e acórdãos deste Tribunal de 13-07-2017, p. 1594/14 e de 29/10, p. 3975/16, ambos como Relator Pinto de Almeida, in www.dgsi.pt.