Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
499/08.7TCSNT-B.L1.S1
Nº Convencional: 6.ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: AÇÃO EXECUTIVA
ADMISSIBILIDADE DA REVISTA
Data do Acordão: 06/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO
Sumário :

O art. 854º do CPC impõe uma regra de condicionamento de acesso ao terceiro grau de jurisdição, de forma que, na acção executiva, não é admissível revista das decisões respeitantes à instância executiva (como a que se reservam para os «modos de pagamento» e «venda» em sede de execução para pagamento de quantia certa), reservando-se tal impugnação de último grau em regime ordinário apenas para as decisões respeitantes aos enxertos-incidentes declarativos contemplados na excepção legal, sem prejuízo de revista para os «casos em que é sempre admissível revista» (art. 629º, 2, CPC).

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 499/08.7TCSNT-B.L1.S1


Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção


Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


I) RELATÓRIO


1. A «Banco Espírito Santo, S.A.» intentou acção executiva para pagamento de quantia certa contra AA (devedora) e BB (fiadora), tendo por base o incumprimento de contrato de mútuo bancário para aquisição de habitação e de contrato de mútuo multiusos com garantias (hipoteca voluntária sobre imóvel e fiança), sendo o valor da execução € 122.182,92


Penhorado o respectivo imóvel/fracção autónoma (PE/3413/2008), foi decidida a venda do bem imóvel penhorado, mediante proposta em carta fechada, e, na diligência própria de venda com “abertura de propostas em carta fechada”, admitida a proposta de aquisição do Requerente e notificadas as Executadas para a entrega das chaves do imóvel objecto de adjudicação ao mandatário da Requerente.


2. Prosseguidos os termos do processo para a restante quantia exequenda, sem indicação de outros bens ou paga a demais quantia exequenda, foi suspensa e extinta a instância executiva, “pois não foram encontrados bens que pudessem ser vendidos para pagar a totalidade da dívida”, permanecendo em dívida o montante de € 98.430,00.


As Executadas foram notificados pelo Agente de Execução (AE) para o pagamento em 30 dias ou para aderir a um plano de pagamento, sob pena de inclusão na “lista pública de execuções” (art. 3º, 3, Portaria 313/2009, de 30/3), o que se verificou por “inexistência de bens”.


3. A Executada AA veio requerer a continuidade da posse do imóvel enquanto houvesse negociação com a «Novo Banco, S.A.» (sucessor da Requerente Executada) para a reaquisição do bem que fora sua propriedade.


Notificado, o AE veio informar que “as executadas foram notificadas, a 18/04/2011, para procederem à entrega das chaves ao mandatário da exequente, (…) desconhecendo o AE signatário se essa entrega foi feita, visto que nunca foi requerido pela exequente a entrega coerciva do imóvel”.


A «Nova Banco, S. A» veio requerer a renovação da instância para entrega coerciva do imóvel ao Exequente, uma vez que a Executada se tinha mantido, ilegítima e abusivamente, na posse do imóvel.


Foi proferido despacho (4/6/2020):


“Considerando que a execução está extinta, nada tenho a ordenar, não estando previsto o disposto no artigo 850º, do CPC, para o peticionado”.


4. Ulteriormente (19/4/2022), a Executada AA veio requerer a abstenção de abandono do imóvel adjudicado e impedimento de diligência (sem ordem judicila) de mudança da fechadura a cargo de entidade terceira.


Foi proferido despacho (21/4/2022):


“(…)


No âmbito do processo executivo, o legislador vem sendo coerente desde a aprovação da Lei n.º 1-A/2020, de 19/3, e subsequentes alterações quanto à protecção do devedor, especialmente nas situações em que esteja em causa a sua habitação própria e permanente e subsistência.


Assim, ficam suspensos os actos a realizar em sede de processo executivo com a concretização de diligências de entrega judicial de casa de morada de família, não distinguindo o legislador se se trata de morada de família dos executados ou de terceiros – n.º 7, al. b), 6º-E – Lei 13-B/2001.


Assim, atento o alegado pela executada, fica suspensa a diligência de entrega.”


5. O AE veio aos autos informar do desconhecimento de tal diligência por entidade terceira e requerer pronúncia sobre a diligência de entrega do imóvel a realizar oportunamente pelo AE.


Ulteriormente, após o despacho de 21/4/2022, considerando a revogação tácita da Lei 1-A/2020, requereu pronúncia sobre a diligência de entrega do imóvel adjudicado.


Foi proferido despacho pelo Juiz ... do Juízo de Execução ... no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste (23/2/2023):


“Compulsados os autos, entende o tribunal que a produção de efeitos da Lei 1-A/2020 (que prevê medidas excecionais e temporárias de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus SARS- CoV -2 e da doença COVID-19), é reportada à data da produção de efeitos do DL 10-A/2020, conforme art. 10º da Lei 1-A/2020, sendo que o DL 66-A/2022, de 30/09, revogou a maioria do corpo normativo estabelecido pelo DL 10-A/2020, de 13/03.


Por outro lado, a situação de alerta provocada pelo coronavírus SARS não foi renovada pelo Governo a partir das 00:00 do dia 1 de outubro de 2022.


Acresce-se que a Lei 1-A/2020, na redação original, estabelecia que o regime processual excecional sobre prazos e diligências por decreto-lei poderia deixar de se aplicar (cf. art. 7º, 2), sendo que, entretanto, este preceito foi revogado pelo art. da Lei 16/2020, de 29/5.


Assim, considero que a vigência da Lei 1-A/2020 cessou por caducidade, não apenas porque deixou de existir a realidade que ela se destinava a regular (ou seja, a situação excecional da pandemia), como também porque a revogação deixou de ser a forma prevista para aquela lei deixar de vigorar.


Nestes termos, deverá entender-se que a Lei 1-A/2020 cessou a sua vigência por caducidade às 23h59m do dia 30 de setembro de 2022 (data em que cessou por caducidade a Resolução do Conselho de Ministros 73-A/2022, de 26/8), devendo considerar-se tacitamente revogada a dita lei, designadamente o Regime Processual Excecional e Transitório previsto no seu art. 6ºE.


Por todo o exposto, declaro cessada a suspensão da entrega do imóvel, ordenando a sua entrega, devendo, no entanto, ter-se presente o que se dispõe no art. 861º, nº 6, do Cód. Proc. Civil.


Desde já, se necessário, defere-se a requisição do auxílio da força pública para o acto”.


6. Inconformada, veio a Executada Apelante interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRP), que conduziu, primeiro, a ser proferido despacho pelo Senhor Juiz Desembargador com decisão singular de extinção da instância recursiva por inutilidade superveniente da lide, com devolução dos autos à 1.ª instância (art. 652º, 1, h), CPC) e, após Reclamação para a Conferência, a ser proferido acórdão (11/1/2024), no qual se indeferiu tal reclamação, mantendo-se o despacho reclamado.


7. Novamente sem se resignar, veio a Executada vencida interpor recurso de revista para o STJ, tendo por base os arts. 671º e ss do CPC, visando a revogação e a ordenação de apreciação da Apelação interposta.


Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.


8. Subidos os autos, foi proferido despacho pelo aqui Relator no âmbito e para os efeitos previstos no art. 655º, 1, ex vi art. 679º, do CPC, atenta a questão da inadmissibilidade do recurso.


Tal mereceu pronúncia da Recorrente, que reafirmou a necessidade de admissão do recurso para reapreciar a errada aplicação do disposto pelo art. 277º, c), do CPC em relação ao despacho proferido em 1.ª instância.





Foram colhidos os vistos nos termos legais.


Cumpre apreciar e decidir em conferência, enfrentando como questão prévia a admissibilidade do recurso.


II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS


Questão prévia da admissibilidade do recurso


9. O art. 652º, 5, b), do CPC permite «recorrer nos termos gerais» dos acórdãos proferidos em conferência.


10. O art. 854º do CPC prescreve:


«Sem prejuízo dos casos em que é sempre admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, apenas cabe revista, nos termos gerais, dos acórdãos da Relação proferidos em recurso nos procedimentos de liquidação não dependente de simples cálculo aritmético, de verificação e graduação de créditos e de oposição deduzida contra a execução.»


11. Desta norma resulta uma regra de condicionamento de acesso ao terceiro grau de jurisdição, de forma que, na acção executiva, não é admissível revista das decisões respeitantes à instância executiva (como a que se reservam para os «modos de pagamento» – arts. 795º-797º, CPC – e «venda» – arts. 811º e ss, em esp. 816º-829º, CPC – em sede de execução para pagamento de quantia certa – arts. 724º a 851º do CPC), reservando-se tal impugnação de último grau em regime ordinário apenas para as decisões respeitantes aos enxertos-incidentes declarativos contemplados na excepção legal (arts. 716º, 791º, 728º-734º, CPC), sem prejuízo de revista para os «casos em que é sempre admissível revista» (art. 629º, 2, CPC).


12. Perante a irrecorribilidade legal que afecta a presente impugnação, em referência ao despacho em 1.ª instância de 23/2/2023, a Recorrente não estribou a sua revista em qualquer das situações legalmente previstas no art. 629º, 2, do CPC, para fundar uma revista extraordinária que legitimasse a revista (art. 637º, 2, 1.ª parte, CPC) e ultrapassasse a irrecorribilidade-regra (v., por ex., recentemente, os Acs. do STJ de 17/10/2023, processo n.º 3141/07, e de 25/5/2023, processo n.º 2422/04).


É o suficiente para não podermos deixar de concluir pela manifesta inadmissibilidade do recurso.


III) DECISÃO


Pelo exposto, acorda-se em não tomar conhecimento do objecto do recurso.


Custas pela Recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.


STJ/Lisboa, 11 de Junho de 2024


Ricardo Costa (Relator)


Leonel Serôdio


Maria Olinda Garcia


SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).