Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
611/23.6JACBR.C1.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: CARLOS CAMPOS LOBO
Descritores: RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PREVENÇÃO GERAL
PREVENÇÃO ESPECIAL
DOLO DIRETO
IMPROCEDÊNCIA
Data do Acordão: 10/15/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I – Vem sendo entendimento pacífico e sedimentado que o recurso em matéria de pena, não é uma oportunidade para o tribunal ad quem fazer um novo juízo sobre a decisão em revista, sendo antes um meio de corrigir o que de menos próprio foi decidido pelo Tribunal recorrido e que sobreleve de todo o espetro decisório.

II - Em vista disso, necessário se torna que se invoquem razões que por algum modo delucidem uma questionável opção em matéria punitiva, não sendo imediatamente bastante a mera afirmação de que as penas são excessivas ou desproporcionais sem que se demonstre em concreto esse desequilíbrio.

III - O crime de homicídio, mormente em quadro envolvendo três vítimas, a par do crime de detenção de arma proibida, são dos crimes que mais causam alarme e intranquilidade no tecido social, com repulsa, indignação e até revolta na comunidade, assim reclamando e exigindo uma severa, efetiva e pronta censura, no que concerne à prevenção geral.

IV – Por outro lado, tendo o arguido agido com dolo direto, em contexto completamente inusitado, escolhendo e procurando uma situação de difícil capacidade de defesa e reação das vítimas, e até de total surpresa para as mesmas, e num assomo de muito intensa e inabalável resolução homicida, dirigindo-se passo a passo às três pessoas, contra elas disparando, sem o menor laivo / sinal de arrependimento ou de controlo dos seus impulsos de agressividade, é patente quadro de demanda de vigorosa e efetiva intervenção.

V – Assim, em latitude punitiva de pena única que se situa entre 7 e 19 anos e 5 meses de prisão, ainda que em causa homicídios na forma tentada, a penalidade fixada em 11 anos de prisão, nitidamente inferior à mediania possível – 13 anos, 2 meses e 15 dias de prisão – não padece de qualquer mácula e, por isso, não reclama intervenção.

Decisão Texto Integral:

Acordam em Conferência na 3ª Secção Criminal


I – Relatório

1.No processo 611/23.6JACBR da Comarca de Coimbra – Juízo Central Criminal de Coimbra - Juiz 2, figurando como arguido AA, divorciado, empresário, filho de BB e de CC, nascido a D.M.1967, natural da freguesia de ..., concelho de Coimbra, titular do Cartão de Cidadão n.º ....... 7, residente na Rua 1, atualmente preso, realizado o julgamento, foi proferido acórdão em 13 de dezembro de 2024, onde se decidiu, e para o que aqui releva:

- absolver o arguido AA da prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, que lhe era imputado relativamente a DD;

- absolver o arguido AA da prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, no que respeita às imputadas alíneas e) e j), do nº 2, do artigo 132º, do CPenal, sem prejuízo da sua condenação pela prática do imputado crime quanto às alíneas b) e i) relativamente a EE e à alínea i) quanto a FF e GG, todas alíneas do mesmo nº 2;

- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, nºs 1 e 2, 131º, e 132º, nº 2, alíneas b) e i), todos do CPenal, na pena de sete anos e seis meses de prisão, cometido sobre EE;

- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, nºs 1 e 2, 131º, e 132º, nº 2, alínea i), todos do CPenal, na pena de seis anos e seis meses de prisão, cometido sobre FF;

- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma tentada, de um crime de homicídio qualificado, previsto e punido pelos artigos 22º, 23º, nºs 1 e 2, 131º, e 132º, nº 2, alínea i), todos do CPenal, na pena de cinco anos e seis meses de prisão, cometido sobre GG;

- condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de detenção de arma proibida, na forma consumada, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, por referência aos artigos 2º, nº 3, alínea ad) 3º nºs 1 e 2 alínea v) e artigo 4.º do mesmo diploma, na pena de cinco meses de prisão;

- condenar o arguido AA, em cúmulo jurídico, nos termos do disposto no artigo 77º, nºs 1 e 2, do Código Penal, na pena única de treze anos de prisão efetiva.

2.Inconformado com o decidido, o arguido interpôs recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra que, por Acórdão proferido em 28 de maio de 2025, e no que aqui importa, decidiu:

- Determinar nos termos do disposto no artigo 380º, nº 2 do CPPenal, a correção o acórdão recorrido:

- passando a ler-se no ponto 82 dos factos provados “16 de Junho de 2023”, onde até agora se lia “16 de Julho de 2023”.

- passando a ler-se a fls. 73 do acórdão recorrido no primeiro parágrafo “- um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, na pessoa de FF (…)” e no segundo parágrafo “um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, na pessoa de GG (…)” “FF.

- Conceder parcial provimento ao recurso interposto pelo arguido AA do acórdão proferido nestes autos e consequentemente:

. Proceder à alteração da matéria de facto provada e não provada nos termos exarados no ponto III.3 deste acórdão.

. Reduzir a pena aplicada ao arguido pela prática em autoria material do crime de homicídio qualificado, previsto e punível pelos artigos 22º, 23º, nº 1 e 2, 131º, 132º, nº 2, als. b) e i) do CPenal, cometido sobre EE para 7 (sete) anos de prisão, mantendo-se as restantes penas parcelares fixadas.

. Operar novo cúmulo jurídico das penas parcelares e fixar a pena única em 11 (onze) anos de prisão efetiva.

3. Discordando, recorreu o arguido para este STJ, sendo que da motivação apresentada, se retiram as seguintes conclusões: (transcrição)

1. Vem o presente recurso exclusivamente interposto da pena única de 11 anos de prisão, salvo o devido respeito ainda excessiva, devendo revogar-se a decisão sub judice, porque considerou, além do mais, mas erradamente, que a culpa do arguido era elevada (quando se provou que arguido actuou, ao invés, em manifesto estado de embriaguez, não ocorrido com esse propósito), e porque desconsiderou que o arguido, arrependido, e procurando reparar as consequências dos seus actos, já havia pago, além dos danos patrimoniais, também avultados danos não patrimoniais, por si causados, às vítimas (havia pago € 5.000,00 à lesada DD, € 99.000,00 ao lesado FF e € 45.000,00 ao lesado GG, agora todos já integralmente ressarcidos, conforme documentação entretanto obtida e que ora se junta), desfasando-se assim tal pena quer da globalidade dos factos quer da personalidade do agente.

2. Deverá assim tal pena ser substituída por outra que aplique pena de prisão única não superior a 9 anos de prisão, portanto bem mais próxima do limite mínimo da moldura do concurso de 7 anos de prisão, sendo essa medida bastante para se assegurarem as necessidades de prevenção exigíveis ao caso.

3. De facto, se o próprio Ministério Público junto do Tribunal de 1.ª instância entendia suficiente a condenação do arguido numa pena de prisão de 11 anos, crê-se que o Tribunal deveria ter considerado que essas necessidades também estarão suficientemente asseguradas com uma pena ainda inferior, além do mais porque o arguido foi, e bem, absolvido quer de um crime de homicídio qualificado na forma tentada, quer da imputação das alíneas e) e j) do n.º 2 do artigo 132.º do CP.

4. Foi assim violado, com a decisão em apreço, o artigo 77.º, n.º 1 do CP.

4.O Digno Ministério Público, junto do Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, respondendo e defendendo a improcedência do recurso, sem apresentar quaisquer conclusões, opina (…) fixou a pena do recorrente em 11 anos de prisão – numa moldura do concurso que se fixa entre o máximo de 19 anos e 5 meses de prisão e um mínimo de 7 anos de prisão -, num patamar abaixo do mediano, de forma equilibrada, usando um juízo prudencial adequado, ponderando devidamente, no essencial, o que consta a favor e contra o arguido, bem como recorte do caso concreto, sem que se anteveja necessidade de intervenção corretiva por parte desse Supremo Tribunal, denotando, a pena encontrada, um correto funcionamento do binómio culpa-prevenção e dos critérios orientadores da pena única, tendo também presentes os contributos de avalizada doutrina e jurisprudência sobre a matéria (…).

5. Subidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416º do CPPenal, emitiu parecer aderindo ao posicionamento tomado pelo Digno Ministério Público em 1ª instância, pugnando pela improcedência do recurso interposto pelo arguido, defendendo: (transcrição)1

(…)

o arguido juntou ao recurso dois documentos de quitação das quantias indemnizatórias arbitradas às vítimas HH (€ 75 000) e FF (€ 165 000).

Tais documentos (e os factos que deles se extraem) devem, no entanto, ser ignorados no julgamento do recurso.

Com efeito, segundo o artigo 165.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, os documentos devem ser juntos no decurso do inquérito ou da instrução e, não sendo isso possível, devem sê-lo até ao encerramento da audiência.

«Após o encerramento da audiência em primeira instância não é admissível a junção de documentos. Efectivamente a redacção do número 1 cinge-se aos ciclos processuais, e enquanto o processo se encontra na primeira instância, o que se compreende pois que, a partir do momento em que está fixada a matéria de facto, a admissão de um documento por pertinente implica que o recurso não verse integralmente sobre as provas produzidas que constituíram o meio de convicção do juiz de primeira instância, mas, também, sobre algo distinto que é o documento.

Caso pertinente, tal documento poderá ser analisado como fundamento de revisão de sentença» (…)

Quanto ao mais, acompanhamos a posição do Sr. procurador-geral adjunto no Tribunal da Relação de Coimbra.

A determinação da medida da pena única, dentro de uma moldura que tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal), deve ter em linha de conta o conjunto dos factos e a personalidade do agente (artigo 77.º, n.º 1, parte final, do Código Penal).

Para além deste critério especial, deve atender igualmente às exigências gerais da culpa e da prevenção e às circunstâncias relevantes para a sua caracterização (artigo 71.º, n.ºs 1 e 2, do Código Penal), reportados agora à globalidade dos crimes.

Como escreve o conselheiro Artur Rodrigues da Costa, a medida concreta da pena do concurso «é determinada, tal como na concretização da medida das penas singulares, em função da culpa e da prevenção, mas agora levando em conta um critério específico (…): a consideração em conjunto dos factos e da personalidade do arguido.

À visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidades unitária do agente» (O cúmulo jurídico na doutrina e na jurisprudência do STJ, Revista do Centro de Estudos Judiciários, 2016 – I, página 71).

Importa ainda não esquecer, em primeiro lugar, que a Constituição acolhe no artigo 18.º, n.º 2, «os princípios da necessidade e da proporcionalidade das penas e das medidas de segurança» e que, consequentemente, «por serem as sanções penais aquelas que, em geral, maiores sacrifícios impõem aos direitos fundamentais, devem ser evitadas, na existência e na medida, sempre que não se demonstre a sua necessidade» (acórdão n.º 3/2006 do Tribunal Constitucional, relatado pelo conselheiro Mário Torres), e em segundo lugar, «que não compete ao Supremo Tribunal de Justiça proceder a uma nova determinação da pena, mas apenas verificar o respeito pelos critérios legais na sua determinação e (…) a sua adequação e proporcionalidade (…), procedendo, se necessário, a uma intervenção corretiva» (acórdão de 28 de maio de 2025, processo 884/24.7T8VNG.S1, relatado pelo conselheiro José Luís Lopes da Mota).

No caso dos autos, a moldura penal do concurso tem o limite mínimo de 7 anos (pena parcelar mais elevada, correspondente ao crime de homicídio qualificado em que é vítima EE) e o limite máximo de 19 anos e 5 meses (e não de 19 anos e 4 meses como por manifesto lapso consta do último parágrafo da página 148 do acórdão recorrido).

(…)

grau de ilicitude do conjunto dos factos, que aqui damos por reproduzidos por razões de economia expositiva, considerando o modo de execução dos crimes de homicídio (surpreendendo e alvejando as vítimas sem motivo e de forma totalmente imprevista) e as características da arma utilizada para o efeito (espingarda caçadeira, semiautomática, de calibre 12, com sistema de percussão central e indireta, com um cano de alma lisa com o comprimento de 695 mm, municiada com cartuchos de calibre 12 com projétil único), é bastante elevado.

No quadro da culpa o arguido atuou com dolo direto e persistente, nomeadamente em relação à vítima EE, à data sua mulher, mas no momento dos acontecimentos, embora tivesse consciência da ilicitude da conduta e o seu processamento cognitivo se encontrasse minimamente preservado, a sua vontade mostrava-se diminuída devido ao estado de embriaguez.

As exigências de prevenção geral, à vista da natureza dos crimes e dos bens jurídicos afetados [a vida, bem jurídico supremo e inviolável (artigo 24.º, n.º 1, da Constituição), nos crimes de homicídio, considerados especialmente violentos (artigo 1.º, alínea l), do Código de Processo Penal), a ordem, a segurança e a tranquilidade públicas, no crime de detenção de arma proibida (cf. Artur Vargues, Comentário das Leis Penais Extravagantes, Volume I, Universidade Católica Editora, 2010, página 240)], são particularmente intensas. Como observa o Supremo Tribunal de Justiça a propósito dos crimes de homicídio, é «imperioso que a comunidade esteja certa de que as violações dos laços mais básicos de interacção social sejam penalizadas com adequada punição e, por tal forma, se tenha a noção de que a vida humana é um valor intocável» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de fevereiro de 2014, processo 168/11.0GCCUB.S1, relatado pelo conselheiro Santos Cabral).

Com impacto positivo nas necessidades de prevenção especial cabe destacar que o arguido não regista antecedentes criminais, manifestou arrependimento, tendo ressarcido duas das vítimas dos valores peticionados a título de danos patrimoniais, desenvolveu-se num meio familiar estável, apresenta hábitos de trabalho e beneficia de acompanhamento psicológico no estabelecimento prisional.

Na ponderação deste todo, estamos firmemente convictos de que a pena de 11 (onze) anos de prisão fixada pelo Tribunal da Relação de Coimbra, abaixo ainda do primeiro terço da moldura abstrata do concurso, amolda-se aos mencionados critérios e princípios estabelecidos no Código Penal (artigos 71.º, n.ºs 1 e 2, e 77.º, n.º 1, parte final) e emergentes da Constituição (artigo 18.º, n.º 2), não sendo, como tal, merecedora de correção.

O arguido respondeu, dando por reproduzido o posicionamento expresso no requerimento recursivo.

6. Efetuado o exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1.Questões a decidir

Face ao disposto no artigo 412º do CPPenal, considerando a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19 de outubro de 19952, bem como a doutrina dominante3, o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo da ponderação de questões de conhecimento oficioso que possam emergir4.

Posto isto, e vistas as conclusões do instrumento recursivo trazido pelo arguido recorrente, mostra-se como aspeto a decidir, a pena única imposta – seu quantum.

2. Apreciação

2.1. O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos: (transcrição – apenas os segmentos relevantes para apreciar as questões objeto de recurso)

1- O arguido AA e EE contraíram casamento em D de M de 1988, o qual foi dissolvido por divórcio decretado por sentença de 12 de Julho de 2023, transitada em julgado.

2- Em 01 de Maio de 2023, o arguido AA e EE eram sócios-gerentes da sociedade C..., Lda, com sede em ..., ..., em ....

3- No dia 01 de Maio de 2023, durante a tarde, EE reuniu-se com FF, GG e DD nas instalações daquela empresa C..., Lda, em ..., a fim de tratar de assuntos da “A...

4- Aquela associação tem por objectivo promover e organizar caminhadas e da qual aqueles integravam os órgãos sociais.

5- Pelas 18:00 horas, depois de terminada a reunião, dirigiram-se os quatro para a cozinha/refeitório, a fim de lancharem.

6- Nessa tarde, o arguido esteve, na zona da ..., num convívio com os seus companheiros de caça, no âmbito do qual ingeriu bebidas alcoólicas.

7- Por motivos não concretamente apurados, o arguido abandonou esse convívio e dirigiu-se, conduzindo o seu veículo, para a sede da referida empresa.

8- Por volta das 18:20 horas, o arguido AA surgiu à porta da divisão onde se encontravam as referidas pessoas.

9- O arguido AA permaneceu à porta da cozinha/refeitório da empresa durante menos de um minuto.

10- Nessa altura, EE apresentou o arguido aos presentes, com excepção de GG, que já era seu conhecido, tendo o arguido proferido poucas palavras e abandonado as instalações da empresa pouco depois.

11- Cerca das 18:34 horas, EE, FF, GG e DD saíram igualmente da empresa e dirigiram-se às respectivas viaturas, a fim de abandonarem o local.

12- FF e DD encaminharam-se para a viatura de marca Volvo, com a matrícula V1, propriedade daquele, que se encontrava estacionada na berma da estrada, fora das instalações da empresa e de frente para o portão.

13- FF sentou-se no lugar do condutor e DD no lugar de passageiro do banco da frente.

14- GG seguiu para a sua viatura de marca Smart, com a matrícula V2, que se encontrava estacionada na berma da estrada, imediatamente atrás do veículo de marca Volvo, mas com a frente virada para a estrada.

15- Por sua vez, EE dirigiu-se à viatura de marca Hyundai, com a matrícula V3 que estava aparcada no pátio exterior das instalações da empresa.

16- Nessa altura, cerca das 18:36 horas, o arguido AA regressou ao local, conduzindo a viatura de marca Ford, modelo Transit, com a matrícula V4.

17-Ali chegado, o arguido estacionou aquele veículo na berma, fora das instalações da empresa e junto ao veículo de marca Smart.

18- O arguido AA trazia consigo uma espingarda caçadeira, semiautomática, de calibre 12, da marca Benelli, modelo Raffaello 121, com o número de série F100740, com sistema de percussão central e indirecta, com um cano de alma lisa com o comprimento de 695mm, municiada com cartuchos de calibre 12 com projéctil único.

19- O arguido tinha ido buscar aquela arma à sua residência, que dista cerca de 3 kms do local, com o intuito de tirar a vida a GG, a FF e à esposa EE.

20- Já depois de GG ter iniciado a condução do veículo Smart para inverter o seu sentido de marcha, o arguido AA saiu repentinamente da sua viatura empunhando aquela espingarda.

21- Acto seguido, o arguido dirigiu-se ao veículo conduzido por GG e, sem que nada o fizesse prever e sem que aquele o visse, efectuou dois disparos em direcção do tronco de GG, estilhaçando os vidros laterais do veículo.

22- Um dos projécteis atingiu GG de raspão na zona do peito do lado direito e o outro atingiu-o no braço esquerdo, provocando-lhe uma ferida incisa com fractura exposta do rádio esquerdo a nível proximal e exposição óssea, com perda hemática.

23- De seguida, o arguido AA avançou em direcção à traseira da viatura de marca Volvo.

24- Logo, sem que nada o fizesse prever e surpreendendo-o pela retaguarda, o arguido apontou a espingarda caçadeira em direcção a FF e efectuou um disparo na direcção do mesmo.

25- O projéctil assim disparado pelo arguido entrou pelo vidro traseiro da viatura Volvo, atingiu o encosto de cabeça do banco do lado direito do condutor e, por sua vez, atingiu a face e a região ocular do lado direito de FF, que nesse momento se tinha virado para trás alertado pelo barulho dos primeiros disparos, provocando-lhe uma hemorragia.

26- Esse projéctil depois saiu pelo pára-brisas, indo atingir o portão principal de acesso ao recinto da empresa e posteriormente a parte inferior da porta lateral frontal do veículo Hyundai, onde já se encontrava EE, sentada no banco do condutor.

27- De seguida, em passo firme, o arguido AA dirigiu-se às instalações da referida empresa, verbalizando “agora é que vais ver”, sempre empunhando a espingarda caçadeira.

28- Acto contínuo, o arguido apontou a arma em direcção a EE, que se encontrava sentada no banco do condutor do veículo de marca Hyundai e efectuou, pelo menos, dois disparos com a espingarda na direcção da mesma, designadamente à sua cabeça.

29- Um dos disparos atingiu EE na zona retroauricular esquerda, tendo o projéctil perfurado o lado direito do pára-brisas do veículo, ficando alojado no encosto de cabeça do referido banco do condutor.

30- No segundo disparo, o projéctil passou a menos de um metro da viatura onde estava EE e atingiu uma estrutura de vidro que se encontrava entre o veículo e a parede da empresa, fazendo ricochete na parede.

31- EE conseguiu sair da viatura e tentou fugir pela parte traseira do Hyundai.

(…)5

33- Sem interromper a marcha, o arguido AA perseguiu EE, alcançando-a nas traseiras do Hyundai.

34- Tendo ficado sem munições, o arguido levantou a espingarda no ar com as duas mãos e desferiu, com a mesma, duas fortes pancadas na cabeça de EE, atingindo-a na nuca e na região parietal do lado esquerdo, tendo esta caído inanimada no chão.

35- Durante o ataque, EE levantou o braço esquerdo para se tentar defender.

36- Logo após e vendo que EE se encontrava inconsciente, o arguido colocou-se em fuga.

37- O arguido abandonou o local na referida viatura Ford e dirigiu-se para a sua residência, sita na Rua 1.

38- Chegado ao logradouro da sua casa, o arguido efectuou um disparo sobre si próprio.

39- O arguido permaneceu ferido até à chegada da filha II, que providenciou por socorro.

40- Nesse dia, no interior da residência do arguido, foi encontrada uma mensagem manuscrita por AA em duas folhas de papel, na qual o mesmo pedia perdão aos filhos e apelidava a esposa de vigarista.

41- EE, GG e FF foram socorridos no local e transportados ao Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, aí sendo assistidos clinicamente de urgência.

42- Em consequência directa das condutas do arguido acima descritas, GG sofreu dores, uma ferida na zona do peito do lado direito e uma ferida incisa com fractura exposta do rádio esquerdo a nível proximal e exposição óssea, com perda hemática abundante.

43- GG foi submetido a cirurgia no dia 2 de Maio de 2023, tendo ficado internado até ao dia 12 de Maio de 2023.

44- Nessa data, GG teve alta hospitalar, continuando a ser seguido em consulta de ortopedia, apresentando pseudartrose o braço esquerdo por insuficiência óssea e paralisia do nervo radial.

45- Em consequência directa das condutas do arguido acima descritas, FF sofreu dores e um esfacelo da hemiface direita, com envolvimento do globo ocular, da pálpebra inferior direita e da região malar, ferida em toda a extensão da pálpebra inferior direita com perda de substância e ferida do globo ocular direito na região límbica temporal, que lhe determinou a perda do globo ocular direito.

46- FF apresentava fracturas orbitárias múltiplas das paredes da órbita direita com múltipla fragmentação do pavimento orbitário e parede lateral, com perfuração do globo ocular direito e hemorragia intra-orbitárias e intra e extra-cónicas com proptose e hematoma da região malar homolateral, prolongando-se para a fossa posterior direita associada a múltiplas fracturas da arcada zigomática e paredes do seio maxilar homolateral, fracturas múltiplas fossos próprios do nariz e fractura do ramo da mandíbula à direita.

47- FF foi submetido a cirurgia no dia 1 de Maio de 2023, tendo ficado internado até ao dia 10 de Maio de 2023.

48- FF foi novamente intervencionado cirurgicamente em 12 de Julho de 2023 para evisceração do globo ocular direito e colocação de implante, continuado a ser avaliado em consultas de cirurgia maxilo-facial e oftalmologia, tendo perdido o globo ocular direito e perdido total e irreversivelmente a função visual a nível do olho direito, sofrido lesão complexa da pálpebra inferior direita.

49- Em 7 de Dezembro de 2023, FF apresentava perda de volume ósseo e de tecidos moles da região malar e periorbitária à direita, a condicionar assimetria facial, com perda de sensibilidade do território do nervo infraorbitário.

50- Na sequência das condutas do arguido, EE sofreu dores, traumatismo crânio-encefálico grave, com perda de consciência, designadamente ferida craniana temporoparietal esquerda estreada, fractura com afundamento ósseo na região parietal esquerda e lesão dural, com contusão cerebral, subaracnóide e coleções gasosas, assim como uma fractura dos ossos do antebraço esquerdo.

51- Em resultado de tais lesões, EE foi submetida a uma intervenção cirúrgica de urgência, no dia 1 de Maio de 2023, de cranioplastia de defeito ósseo com recurso a malha de titânio, ficando internada até ao dia 5 de Maio de 2023.

52- No dia 16 de Maio de 2023, EE foi intervencionada cirurgicamente ao antebraço esquerdo, tendo estado internada até ao dia 18 de Maio de 2023, continuando a ser seguida em consultas de ortopedia e neurocirurgia.

53- No dia 4 de Maio de 2023, cerca das 17h00, o arguido detinha no interior da sua residência, em ..., acondicionadas em cofre, quatro carabinas, quinze espingardas caçadeiras, uma espingarda de ar comprimido e diversas munições.

54- As armas carabinas e espingardas em causa constam registadas/manifestadas em seu nome, sendo o arguido titular de licença de uso e porte de arma das classes C e D.

55- O arguido detinha ainda nesse cofre uma caixa, contendo cinco cartuchos zagalote de 9 bagos, da marca RIO, de classe A.

56- O arguido não possuía qualquer licença para a detenção desses cinco cartuchos zagalote.

57- Ao disparar das formas descritas aquela espingarda caçadeira, na direcção de GG, FF e da esposa EE, designadamente à cabeça e tronco, em zonas que alojam órgãos vitais e ao desferir as fortes pancadas na zona da nuca e cabeça de EE, o arguido agiu de forma livre e voluntária, com o propósito de atentar contra a vida de FF, GG e EE.

58- O arguido sabia que aqueles disparos da espingarda caçadeira (tal como as pancadas na cabeça de EE), dirigidos a zonas vitais eram aptos a lhes causar morte, o que representou, mas não conseguiu por motivos alheios à sua vontade, designadamente face à pronta assistência médica prestada aos ofendidos.

59- O arguido actuou de forma súbita e inclusive pela retaguarda, de modo a diminuir as possibilidades de defesa das vítimas e dirigindo-se individualmente a cada um, indiferente ao sofrimento e temor que causava.

60- O arguido actuou ainda de forma livre, com o propósito de deter e guardar na sua habitação os cartuchos zagalote apreendidos, conhecendo a natureza e características de tais objectos, não podendo deter os mesmos e bem sabendo que não estava autorizado a fazê-lo, uma vez que não era titular de qualquer licença, o que representou.

61- O arguido sabia que aquelas suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

62- À data da prática dos factos, embora o arguido tivesse consciência da ilicitude do seu comportamento criminal e o processamento cognitivo minimamente conservado, a sua capacidade para se abster de o fazer, a sua vontade, encontrava-se diminuída em razão do seu estado de embriaguez.

63- O arguido pagou aos demandantes todos os valores peticionados a título de danos patrimoniais, sendo 1.185,92 euros a GG, 4.217,18 euros a FF e 14.140,03 euros à “Unidade de Saúde Local de Coimbra, E.P.E.”.

64- O arguido manifesta arrependimento.

65- No registo criminal do arguido nada consta.

66- AA nasceu a D.M.1967, em Coimbra, sendo o quarto de sete filhos de uma família que sempre viveu em ...; apesar de algumas dificuldades socioeconómicas, o ambiente familiar era bom, mantendo um relacionamento próximo com os irmãos e os sobrinhos; os pais já faleceram.

67- No seu percurso escolar, o arguido reprovou 2 vezes, na 1ª classe e no 1º ano do ciclo, tendo saído da escola, com cerca de 12/13 anos para ir trabalhar; já em adulto, frequentou o programa das “Novas Oportunidades”, que lhe deu equivalência ao 11º ano.

68- Quando saiu da escola, AA começou a trabalhar como servente de ..., acompanhando o pai, mas sem receber ordenado.

69- Aos 16 anos de idade, foi trabalhar numa empresa, na construção de auto-estradas e dava parte do seu salário à mãe para as despesas domésticas.

70- Passado pouco tempo, na fase em que conheceu a esposa, AA começou a trabalhar na oficina de ... do pai de EE.

71- Entretanto, EE engravidou e casaram-se, ficando o arguido a trabalhar com o sogro.

72- Quando o sogro adoeceu, o arguido assumiu um papel mais relevante na empresa e, após o falecimento daquele, em 1999, este e a esposa herdaram o negócio, que mantiveram até ao divórcio.

73- Em relação à sua vida afectiva, o arguido só teve uma namorada, com quem casou.

74- Deste relacionamento com EE, nasceram um filho e uma filha, ambos já com vidas autónomas.

75- O divórcio, amigável, solicitado pela esposa, aconteceu após a ocorrência dos factos supra descritos.

76- O arguido sente-se triste e magoado porque a filha deixou de se relacionar com ele, após o sucedido; o filho continua a visitá-lo e a dar-lhe algum apoio.

77- Nos seus tempos livres, o arguido ocupava-se com pequenos trabalhos de agricultura e gostava de ir à caça.

78- O arguido começou a caçar aos 23 anos de idade, após ter tirado a carta de caçador; das caçadeiras e carabinas que possui, algumas foram adquiridas por si e outras foram “dadas pelos velhotes, que tinham deixado de caçar” e que ele mandava restaurar; gostava especialmente de fazer esperas ao Javali.

79- O arguido detinha as armas guardadas, descarregadas, e com as chaves escondidas e as munições eram guardadas à parte.

80- No final de 2022, deixou de ir caçar com tanta frequência, pois sentia-se mais cansado e afastou-se dos amigos; andava sobrecarregado com o trabalho, muito cansado, não dormia bem; pensava que no Verão ia melhorar, como já sucedido em anos anteriores, pelo que não foi ao médico.

81- Em termos de consumo de bebidas alcoólicas bebia 3 a 4 copos de vinho, quando ia ter com clientes ou quando estes lá iam pagar algum serviço, e, por vezes, 1 ou 2 copos ao almoço, no fim-de-semana; em convívio com os amigos ou em festas é que, por norma, bebia mais vinho e também cerveja.

82- O arguido está preso preventivamente, desde 16 de Junho de 20236, à ordem do presente processo, no estabelecimento prisional de Aveiro, evidenciando esforços de adaptação e desenvolvimento pessoal.

83- No estabelecimento prisional, o arguido desempenha funções laborais, como 1º ajudante no sector da manutenção das instalações, desde 04.09.2023, com excelente desempenho, mantendo comportamento adequado, cordial e respeitador das normas e deveres institucionais, sem registo de infracções disciplinares; tem beneficiado de acompanhamento psicológico.

(…)

Factos não provados

Nenhuns outros factos relevantes para a discussão da causa se provaram em audiência de julgamento, nomeadamente não ficou demonstrado que:

I- pretendeu tirar a vida à esposa, a GG e a FF por ter ficado desagradado com a referida reunião;

II- o arguido não atingiu DD por esta se ter desviado (de facto, o arguido não disparou na direcção dela);

III- DD só não foi atingida porque se baixou no momento do disparo;

IV- o arguido apontou a espingarda caçadeira em direcção a DD;

V- o arguido efectuou um disparo na direcção de DD;

VI- o arguido admitiu como possível tirar a vida a DD, nem que se tenha conformado com tal possibilidade;

VII- tenha havido um segundo disparo contra a viatura de FF.

32- Então, o arguido efectuou mais um disparo na direcção da parte superior do corpo daquela, mas não a atingiu, tendo o projéctil atingido o portão da garagem do armazém7.

2.2. A decidir

O arguido recorrente, como se deixou expresso, pretende apenas sindicar a pena única que lhe foi imposta na decorrência do recurso interposto para o Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.

Nesse ensejo, enuncia (…) considerou, além do mais, mas erradamente, que a culpa do arguido era elevada (quando se provou que arguido actuou, ao invés, em manifesto estado de embriaguez, não ocorrido com esse propósito), e porque desconsiderou que o arguido, arrependido, e procurando reparar as consequências dos seus actos, já havia pago, além dos danos patrimoniais, também avultados danos não patrimoniais, por si causados, às vítimas (havia pago € 5.000,00 à lesada DD, € 99.000,00 ao lesado FF e € 45.000,00 ao lesado GG, agora todos já integralmente ressarcidos, conforme documentação entretanto obtida e que ora se junta).

Olhando à decisão em dissídio, e neste segmento, pode ler-se (…) Estão em causa três crimes de homicídio qualificado na forma tentada praticados nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar e um crime de detenção de arma proibida também cometido na mesma circunstância de tempo (…) as exigências de prevenção geral decorrentes da globalidade dos factos que se apreciam são elevadas, tendo em conta os concretos bens jurídicos violados e a danosidade social inerente, sendo premente o sentimento da comunidade em face dos crimes em apreço (…) o arguido não tem antecedentes criminais e teve um percurso de vida pautado por uma integração social e atuou num quadro de vontade diminuída por força da embriaguez (…) Está atualmente em reclusão (…) em conta os bens jurídicos protegidos, com particular realce para aquele que constitui o bem jurídico máximo que é a vida, e ponderando a avaliação do ilícito global perpetrado, e a sua relação com a personalidade do arguido, reconhece-se que o conjunto dos factos evidencia aqui um ilícito global já algo desvalioso, e a culpa do arguido é elevada (…) a pena única demonstre adequação, justeza, e proporcionalidade, entre a avaliação conjunta daqueles dois fatores - a gravidade do ilícito que resulta da prática dos quatro crimes cujas penas estão em concurso e o percurso de vida do arguido - tendo em conta os princípios da necessidade da pena e da proibição de excesso (…) fazendo apelo aos critérios de compressão acima referidos cremos que a pena única que se mostra proporcional e adequada é a de 11 (onze) anos - que se situa um pouco abaixo da soma de um terço das remanescentes penas parcelares ao limite mínimo da moldura penal - pena esta ainda capaz de dar satisfação às exigências de prevenção, quer geral, quer especial que a situação presente impõe.

Retenha-se, prontamente, que vem sendo entendimento pacífico e sedimentado que o recurso em matéria de pena, não é uma oportunidade para o tribunal ad quem fazer um novo juízo sobre a decisão em revista, sendo antes um meio de corrigir o que de menos próprio foi decidido pelo Tribunal recorrido e que sobreleve de todo o espetro decisório.

Em vista disso, necessário se torna que se invoquem razões que por algum modo delucidem uma questionável opção em matéria punitiva, não sendo imediatamente bastante a mera afirmação de que as penas são excessivas ou desproporcionais sem que se demonstre em concreto esse desequilíbrio.

Verdadeiramente, tanto quanto se crê, há muito que a doutrina e a jurisprudência se mostram firmadas, no sentido de que em sede de medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico, apontando para que a intervenção do tribunal de recurso, se deve cingir à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e regularidade que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstrata determinada na lei, sendo que observados os critérios globais insertos no artigo 71º do CPenal, a margem do julgador dificilmente pode ser sindicável8.

Nessa senda, o exame da concreta medida da pena estabelecida, suscitado pela via recursiva, não deve afastar-se desta, senão, quando haja de prevenir-se e emendar-se a fixação de um determinado quantum em derrogação dos princípios e regras pertinentes, cumprindo precaver (desde logo à míngua da imediação e da oralidade de que beneficiou o Tribunal a quo) qualquer abusiva fixação de uma concreta pena que ainda se revele congruente, proporcional, justa e acertada9.

Por seu turno, e pretendendo-se por em crise a pena única aplicada, importa sublinhar que ao que se entende, esta deve formar-se mediante uma valoração completa da personalidade do agente e das diversas penas parcelares, sendo por isso necessário que se obtenha uma visão integrada dos factos, a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto, a maior ou menor autonomia, a frequência da comissão dos delitos, a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão, bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento10.

Impõe-se o equacionar, em conjunto, a pessoa do autor e os delitos individuais, de modo que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível mas deve sempre refletir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência, sendo que na valoração da personalidade do agente deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delitos ocasionais sem relação entre si11.

Releva, ainda, a ponderação do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)12.

Toda esta métrica, reclama, por isso, que se fundamente a opção a tomar, por forma a que a medida da pena do concurso não surja como fruto de um ato intuitivo – da «arte» do juiz – ou puramente mecânico e, portanto, arbitrário, pese embora aqui, o dever de fundamentação não assuma nem o rigor nem a extensão dimanados do artigo 71º, podendo, todavia, os fatores enumerados no nº 2 deste inciso servir de mote enformador.

Surge como irrefragável, crê-se, que in casu se está ante quadro de gravidade notória, onde se atentou contra a vida humana, supremo e mais valioso bem do indivíduo13 e igualmente um bem da coletividade e do Estado, sendo que estão em causa três vítimas.

Este quadro, em termos de prevenção geral, reclama e exige uma severa, efetiva e pronta censura.

Com efeito, o crime de homicídio – reitere-se, três no caso em apreço -, a par do crime de detenção de arma proibida, são dos crimes que mais causam alarme e intranquilidade no tecido social, com repulsa, indignação e até revolta na comunidade14.

Por outra banda, e agora em termos de prevenção especial, tal como o notado pelo tribunal recorrido, o arguido agiu com dolo direto, em contexto completamente inusitado, escolhendo e procurando uma situação de difícil capacidade de defesa e reação das vítimas, e até de total surpresa para as mesmas, e num assomo de muito intensa e inabalável resolução homicida – dirigindo-se passo a passo às três pessoas, contra elas disparando, sem o menor laivo / sinal de arrependimento ou de controlo dos seus impulsos de agressividade.

Todos estes contornos, claramente que exibem quadro de demanda de vigorosa e efetiva intervenção.

A alegada circunstância de o arguido estar alcoolizado, situação em que o mesmo voluntariamente se colocou – tanto quanto se pensa -, salvo melhor e mais avisada opinião, não pode apagar toda a gravidade do seu agir e estar.

Diga-se, também, que a nota trazida de ter procedido ao pagamento das quantias respeitantes às indenizações arbitradas a duas das vítimas, dever que se lhe impunha por força da condenação de que foi alvo, sendo aspeto de tom positivo, não afasta toda a dimensão da notória criticável e censurável conduta tida e que a tal conduziu.

Nessa senda, partindo de todo este configurado, a par da circunstância de não exibir antecedentes criminais, demonstrar capacidade crítica em relação aos comportamentos que tomou, ao facto de em meio prisional se mover de acordo com as regras fixadas, a pena de 11 anos de prisão imposta, assume-se justa, adequada e proporcional.

Com efeito em latitude que situa entre 7 e 19 anos e 5 meses de prisão, a penalidade fixada nitidamente inferior à mediania possível – 13 anos, 2 meses e 15 dias de prisão – não padece de qualquer mácula e, por isso, não reclama intervenção.

III - Dispositivo

Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal, deste Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA e, em consequência, mantém-se o decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.


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Custas a cargo do arguido, fixando-se a Taxa de Justiça em 5 (cinco) UC - artigos 513º, nº 1 do CPPenal e artigo 8º, por referência à Tabela III Anexa, do RCP.

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Comunique de IMEDIATO, enviando cópia do presente acórdão.

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O Acórdão foi processado em computador e elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artigo 94º, nº 2, do CPPenal), sendo assinado pelo próprio, pelo Senhor Juiz Conselheiro Adjunto e pela Senhora Juíza Conselheira Adjunta.

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Supremo Tribunal de Justiça, 15 de outubro de 2025

Carlos de Campos Lobo (Relator)

António Augusto Manso (1º Adjunto)

Maria Margarida Ramos de Almeida (2ª Adjunta)

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1. Consigna-se que apenas se transcrevem as partes do texto que não constituem a reprodução dos diversos articulados existentes e já referidos no Relatório e, bem assim, excertos do Acórdão propalado e que, em momento oportuno, e se necessário, se referirão.

2. Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.

3. SILVA, Germano Marques da, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, Universidade Católica Editora, p. 335; SIMAS SANTOS, Manuel e LEAL-HENRIQUES, Manuel, Recursos Penais, 8ª edição, 2011, Rei dos Livros, p. 113.

4. Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do STJ, de 12/09/2007, proferido no Processo nº 07P2583, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria, disponível em www.dgsi.pt.

5. O facto aqui constante, por força do decidido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra, passou a contar do elenco dos factos não provados.

6. Correção de lapso levada a cabo pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra.

7. Alteração decorrente da decisão do Venerando tribunal da Relação de Coimbra.

8. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 11/04/2024, proferido no Processo nº 2/23.9GBTMR.S1 (…) em conformidade com a jurisprudência uniforme do STJ no sentido da abstenção de princípio do tribunal de recurso na definição do quantum concreto das penas fixadas em tais circunstâncias, por não se verificar qualquer desvio daqueles critérios e parâmetros de que resulte uma situação de injustiça das penas, por desproporcionalidade ou desnecessidade -, de 18/05/2022, proferido no Processo nº 1537/20.0GLSNT.L1.S1 – (…) A sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” -, de 19/06/2019, proferido no Processo nº 763/17.4JALRA.C1.S1- (…) justifica-se uma intervenção correctiva quanto à pena aplicada ao arguido, reduzindo-se a pena de (…) para (…) que entendemos adequada e justa e proporcional e que satisfaz as exigências de prevenção, respeitando a medida da culpa - , disponíveis em www.dgsi.pt.

9. Neste sentido, o Acórdão do STJ de 27/05/2009, proferido no Processo nº 09P0484, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler (…) no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada.

10. Neste sentido, o Acórdão do STJ de 28/4/2010, proferido no Processo 4/06.0GACCH.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt. - I - Fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade». A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos, ou seja, a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia; a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a receptividade à pena pelo agente deve ser objecto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.

  II - Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

  III - A substituição daquela operação valorativa por um processo de índole essencialmente aritmética de fracções e somas torna-se incompatível com a natureza própria da segunda fase do processo. Com efeito, fazer contas indica voltar às penas já medidas, ao passo que o sistema parece exigir um regresso aos próprios factos. Dito de outro modo, e como refere Cláudia Santos (RPDC, Ano 16.º, pg. 154 e ss.), as operações aritméticas podem fazer-se com números, não com valorações autónomas.

  IV - Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência. Igualmente deve ser expressa a determinação da tendência para a actividade criminosa revelada pelo número de infracções, pela sua perduração no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade.

  V - Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio, pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade que deve ser ponderado.

11. Neste sentido, o Acórdão do STJ, de 27/05/2015, proferido no Processo nº 173/08.4PFSNT-C.S1.

  Ainda o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 20/01/2010, proferido no Processo nº 561/08.6GBAGD.C1, onde se pode ler Perante o concurso de penas há que atender ao conjunto de todos os factos cometidos ao arguido, de modo a surpreenderem-se, ou não, conexões entre os diversos comportamentos ajuizados, vistos na sua dimensão e expressão global, tendo em conta o que ressalta do contexto factual narrado, e considerar o fio condutor presente na repetição criminosa (…), disponíveis em www.dgsi.pt.

12. Neste sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo, ibidem, p. 292.

13. Neste sentido, entre outros, o Acórdão do STJ, de 15/12/2021, proferido no Processo nº 1634/20.2JABRG.G1.S1 - (…) A vida é o mais valioso dos direitos individuais. Sem a vida nenhum outro direito existe que a pessoa, ela mesma, por si própria, possa usufruir (…), disponível em www.dgsi.pt.

14. Neste sentido, entre outros, o Acórdão do STJ, de 15/05/2025, proferido no Processo nº 587/23.0T9PNI.S1 - (…) São ainda de ponderar as elevadas razões de prevenção geral, pois que os crimes de homicídio são dos crimes que causam mais alarme e intranquilidade no tecido social, com repulsa e indignação na comunidade (…) – disponível em www.dgsi.pt.