Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1366/18.1T8AGD-B.P1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: FERNANDO BAPTISTA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
PAGAMENTO EM PRESTAÇÕES
FIADOR
PERDA DO BENEFÍCIO DO PRAZO
INTERPELAÇÃO ADMONITÓRIA
CITAÇÃO
MORA DO DEVEDOR
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
FACULDADE JURÍDICA
LIBERDADE CONTRATUAL
BOA FÉ
DEVER ACESSÓRIO
INSOLVÊNCIA
DEVEDOR
Data do Acordão: 03/11/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. O desencadeamento do vencimento antecipado de todas as prestações a que se alude no artº 781º do CC é uma faculdade do credor (é ele quem decide se quer, ou não, continuar sujeito aos prazos de escalonadamente estabelecidos de vencimento das prestações), pelo que só a tornará efectiva, querendo e por via da interpelação do devedor.

II. A perda do benefício do prazo não se estende aos fiadores, salvo se, na relação contratual havida e onde se estipulou a obrigação de fiança, se tiver estipulado (ao abrigo do princípio da liberdade contratual ou da autonomia da vontade ínsito no 405º do CC), de forma expressa e clara, que aquela perda também os vinculava.

III. Assim, não havendo estipulação contratual em contrário, devem os fiadores ser interpelados para lhes poder ser exigido o pagamento da totalidade das prestações e demais em dívida nos termos constantes do contrato de mútuo celebrado com o devedor principal – ou seja, para, querendo, porem termo à mora, a fim de obviarem ao vencimento antecipado das prestações.

IV. Aliás, a necessidade daquela interpelação prévia dos fiadores já resultava do princípio (geral) da boa fé contratual, o qual se desentranha numa série interminável de deveres secundários de prestação e, principalmente, de deveres acessórios de conduta que recaem por igual sobre ambos os sujeitos da relação creditória (assentando, essencialmente, no princípio (cláusula geral) de que as pessoas devem ter um certo comportamento honesto, correcto, leal, nomeadamente no exercício dos direitos e deveres, não defraudando a legítima confiança ou expectativa dos outros).

V. A ausência de comunicação/interpelação aos fiadores não afasta, porém, a relevância da posterior citação destes para a execução, considerando-se realizada a necessária interpelação admonitória dos fiadores com essa citação, dessa forma afastando a regra do artigo 782.º e fazendo funcionar o regime do artigo 781.º, com exigibilidade, a partir da citação, de todas as prestações em dívida e devidas até ao final dos prazos dos contratos, contando-se os juros moratórios, apenas, a partir daí.

VI. Situação esta que se não altera pelo facto de o devedor ter sido declarado insolvente após a citação do fiador na execução.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça, Segunda Secção Cível.



I – RELATÓRIO


Nos autos de execução a que se reportam os autos supra identificados, movidos pela Caixa Geral de Depósitos, S.A., vieram os executados AA e BB deduzir embargos de executado.

Alegaram, em suma, que não tiveram conhecimento de que a mutuária deixou de cumprir com as prestações de reembolso e não foram interpelados para cumprir.

Assim, dada a falta de interpelação e de comunicação resolutiva, é inexigível a obrigação exequenda, e a pretensão da exequente é “proibida” pelo disposto no art. 782.º do Código Civil.

Admitidos os embargos, a exequente contestou, alegando, em síntese, que os contratos dados à execução são títulos executivos válidos e que, por força do clausulado no contrato celebrado, se deve considerar antecipadamente vencida toda a dívida, podendo exigir o seu imediato pagamento no caso de incumprimento, pela devedora ou por qualquer dos restantes obrigados, de qualquer obrigação decorrente do contrato.

Acrescenta que, tendo presente as regras da fiança, basta a interpelação na pessoa do devedor, e não do fiador, pelo que a dívida é, assim, exigível. O fiador renunciou ao benefício da excussão prévia e assumiu-se como principal pagador da obrigação, pelo que, também quanto a este, todas as prestações se venceram no momento em que se deu o incumprimento de uma prestação.

Caso assim se não entenda, com a citação para os presentes autos sempre ocorreu a interpelação para pagamento da dívida, sendo esta exigível.

Acrescenta que a mutuária foi declarada insolvente, daí tendo a contestante direito de considerar incumpridos os contratos e exigir, em mora, todo o seu crédito.

Foi deferido o (requerido) efeito suspensivo da execução e dispensada a realização da audiência prévia, depois de ouvidas as partes e, de seguida, foi proferido saneador-sentença que julgou procedentes os embargos e declarou extinta a execução.

Inconformada, a exequente apelou, pedindo a revogação da sentença “por outra que julgue os embargos deduzidos totalmente improcedentes ou, quando muito, parcialmente procedentes, determinando-se o prosseguimento dos autos para cobrança do capital em
dívida, juros remuneratórios, acrescido dos respetivos juros de mora desde a citação, bem como das despesas e comissões peticionadas”.


Em acórdão, decidiu o Tribunal da Relação do Porto:

1. Julgar os embargos deduzidos pelos executados apenas procedentes no que respeita aos juros moratórios peticionados até à sua citação (não sendo exigíveis os juros que foram peticionados até à data da citação), mais se determinando o prosseguimento da execução após liquidação da dívida, atendendo ao ali decidido e ao facto referido em L) dos factos provados.

2. Determinar o prosseguimento dos embargos, a fim de se proceder ao apuramento do concreto montante do capital em dívida “nos termos que se deixaram expostos em 8, supra”.

Inconformados com o assim decidido pela Relação, vieram os embargantes AA e BB apresentar recurso de revista, apresentando (extensas) conclusões[1], nas quais, em súmula, suscitam o seguinte:

-  Do artº 781º do CC resulta a mera exigibilidade das prestações e não o vencimento automático que só ocorrerá após a inerente e necessária interpelação.

- Não tendo ocorrido interpelação admonitória dos Fiadores, não pode a mesma considerar-se realizada através da citação para a execução, porque esta não visa pôr termo à mora ou impedir a resolução do contrato, pelo que a citação para a execução não se mostra idónea ao afastamento da regra do artigo 782.º e fazer funcionar o regime do artigo 781.º, ambos do C.C, com vencimento da totalidade das prestações.

- Assim, salvo estipulação contratual em sentido diverso, a perda do benefício do prazo, instituída no artigo 781º do CC, não se estende aos co-obrigados do devedor, entre os quais se incluem os Fiadores, nos termos do estatuído no artigo 782º do CC, pelo que, querendo agir contra estes, o credor terá de aguardar o momento em que a obrigação normalmente se venceria.

- Ora, tendo os Embargantes a qualidade de Fiadores e não tendo existido perda do benefício do prazo nem sido efectuada a sua interpelação admonitória, apenas lhe são exigíveis as prestações vencidas e não pagas à data da propositura da execução.

- Para o apuramento do concreto montante de capital em dívida, importa que seja apurado o valor do capital já pago por via das prestações anteriormente efetuadas, bem como pela imputação, a esse título, do valor atribuído à credora com a adjudicação e as demais quantias por esta recebidas no âmbito da insolvência onde reclamou os seus créditos, em ordem a calcular, então, o montante do capital remanescente.

- Sem tal liquidação, e sem a realização da interpelação admonitória dos fiadores, não lhes pode ser exigida a totalidade do montante que se encontra em dívida acrescida de juros moratórios, despesas e comissões como foi determinado na decisão recorrida.

- Mesmo que se considere que a citação para a execução constitui interpelação para pagamento, não assiste à Exequente o direito a exigir do mesmo o pagamento da totalidade das prestações “em dívida”, mas apenas das já vencidas e não pagas até à data da instauração da execução, e sem a contabilização dos juros moratórios, despesas e comissões a que estes não deram origem/azo.

Pois, encontrando-se ainda ilíquido o eventual capital em dívida, e não tendo os Embargantes sido interpelados para cumprir, estes não estão em mora e desta forma não podem ser responsabilizados por juros moratórios, despesas e comissões a que o incumprimento do devedor principal tenha dado origem.

- Tendo a Exequente já recebido o montante de € 114.750,00 (cento e catorze mil setecentos e cinquenta euros) pela adjudicação do imóvel hipotecado, conforme factos assentes em L) (após a correção ordenada), ao que acresce agora o montante de € 9.412,39 (nove mil quatrocentos e doze euros e trinta e nove cêntimos) que recebeu após o rateio efetuado na insolvência, verifica-se que na totalidade a Exequente recebeu uma quantia que excede os valores a que teria direito a receber até à data, caso fosse cumprido o calendário de pagamento de capital e juros inicialmente acordado, o que, também por aqui, conduz à extinção da presente execução.

Finalizam os Recorrentes, pedindo que seja “concedido provimento ao presente Recurso, e em consequência revogada a decisão recorrida na parte aqui questionada, assim se fazendo a costumada

Justiça”.

Contra-alegou a Exequente, CAIXA GERAL DE DEPÓSITOS, S.A., concluindo pela confirmação da decisão da Relação.


Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


*

II – Delimitação do objecto do recurso

Considerando que o objecto do recurso (o “thema decidendum”) é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, atento o estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 663º nº 2, 608º nº 2, 635º nº 4 e 639º nºs 1 e 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), as questões a decidir são:

1. Se a perda do benefício do prazo, instituída no artigo 781º do CC, não se estende aos Fiadores, salvo estipulação contratual em sentido contrário e se para poder ser exigido aos fiadores o pagamento resultante do vencimento antecipado de todas as prestações (a totalidade do montante que se encontra em dívida acrescida de juros moratórios, despesas e comissões), por incumprimento por parte do devedor de uma delas, é exigida a sua interpelação e, outrossim, o prévio apuramento/liquidação do concreto montante de capital em dívida.

2. Se a interpelação admonitória dos Fiadores pode considerar-se realizada com a citação para a execução e se esta é bastante para afastar a regra do artigo 782.º, fazendo funcionar o regime do artigo 781.º, ambos do C.C, com vencimento da totalidade das prestações.

3. Se, caso se considere que a citação para a execução constitui interpelação para pagamento, mesmo assim, não assiste à Exequente o direito a exigir o pagamento da totalidade das prestações “em dívida”, mas apenas das já vencidas e não pagas até à data da instauração da execução, e sem a contabilização dos juros moratórios, despesas e comissões.

4. Se, face aos montantes já recebidos pela Exequente (pela adjudicação do imóvel hipotecado e o rateio efetuado na insolvência), deve considerar-se extinta a execução.

III - Fundamentação

III. 1. É a seguinte a matéria de facto provada (na 1ª instância, sem impugnação em recurso):

A - No exercício da sua atividade creditícia, a exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A. celebrou com CC, um Contrato de Compra e Venda com Mútuo com Hipoteca e Fiança, no montante de 127.500,00€, formalizado por escritura pública de 11 de agosto de 2006.

B - Contrato esse em que os embargantes AA e BB e demais fiador declararam o seguinte: “Que se responsabilizam como fiadores e principais pagadores por tudo quanto venha a ser devido à Caixa em consequência do empréstimo aqui titulado dando, desde já, o seu acordo a quaisquer modificações da taxa de juro e bem assim às alterações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre o Banco e a parte devedora, renunciando ao benefício da excussão prévia e aceitando que a estipulação relativa ao extrato da conta e aos documentos de débito seja também aplicável à fiança, e que também conhecem perfeitamente o conteúdo do referido documento complementar, pelo que é dispensada a sua leitura.”

C - A cláusula 15.ª do documento complementar da escritura referenciada em A), com a epígrafe “Incumprimento/Exigibilidade Antecipada” prevê o seguinte:

“1 - A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o imediato pagamento no caso de, designadamente: a) Incumprimento pela parte devedora ou por qualquer dos restantes contratantes de qualquer obrigação decorrente deste contrato; b) Incumprimento pela parte devedora de quaisquer obrigações decorrentes de outros contratos celebrados ou a celebrar com a Caixa ou com empresas que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo; c) Venda, permuta, arrendamento ou qualquer outra forma de alienação ou oneração, sem o prévio acordo, escrito, da Caixa, dos bens que sejam ou venham a ser dados em garantia das obrigações emergentes do presente contrato e, bem assim, a sua desvalorização que não resulte de uso corrente; d) Propositura contra a parte devedora de qualquer execução, arresto, arrolamento ou qualquer outra providência judicial ou administrativa que implique limitação da livre disponibilidade dos seus bens; e) Insolvência de qualquer dos devedores, ainda que não judicialmente declarada, ou diminuição das garantias do crédito. 2 - Caso ocorra qualquer das situações referidas no número anterior, a Caixa fica com o direito de considerar imediatamente vencidas e exigíveis quaisquer obrigações da parte devedora emergentes de outros contratos com ela celebrados.”

D - Para garantia do cumprimento das obrigações emergentes do contrato referenciado em A), foi constituída hipoteca sobre o prédio urbano sito em alto de ..., freguesia e concelho de ..,   inscrito na matriz sob o artigo …  e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ….

E - No exercício da sua atividade creditícia, a exequente Caixa Geral de Depósitos, S.A. celebrou em 11 de agosto de 2006, com CC, um Contrato de Mútuo com Hipoteca e Fiança, no montante de 10.000,00€.

F - Contrato esse em que os embargantes figuram na qualidade de fiadores.

G - A cláusula 12.ª do contrato em causa, com a epígrafe “Garantia e Fiança”, prevê o seguinte: “Os terceiros outorgantes responsabilizam-se solidariamente com os segundos como seus fiadores e principais pagadores pelo pagamento de tudo o que vier a ser devido à Caixa em consequência deste contrato e dão desde já o seu acordo a todas e quaisquer modificações de prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a Caixa e, bem assim, às alterações da taxa de juro permitidas por este contrato, renunciando-se ao benefício da excussão prévia e aceitando que a estipulação relativa ao extrato da conta e aos documentos de débito seja também aplicável à fiança.”

H - A cláusula 15.ª do contrato referenciado em E), com a epígrafe “Incumprimento /Exigibilidade Antecipada” prevê o seguinte:

“1 - A Caixa poderá considerar antecipadamente vencida toda a dívida e exigir o imediato pagamento no caso de, designadamente: a) Incumprimento pela parte devedora ou por qualquer dos restantes contratantes de qualquer obrigação decorrente deste contrato; b) Incumprimento pela parte devedora de quaisquer obrigações decorrentes de outros contratos celebrados ou a celebrar com a Caixa ou com empresas que com ela se encontrem em relação de domínio ou de grupo; c) Venda, permuta, arrendamento ou qualquer outra forma de alienação ou oneração, sem o prévio acordo, escrito, da Caixa, dos bens que sejam ou venham a ser dados em garantia das obrigações emergentes do presente contrato e, bem assim, a sua desvalorização que não resulte de uso corrente; d) Propositura contra a parte devedora de qualquer execução, arresto, arrolamento ou qualquer outra providência judicial ou administrativa que implique limitação da livre disponibilidade dos seus bens; e) Insolvência de qualquer dos devedores, ainda que não judicialmente declarada, ou diminuição das garantias do crédito. 2 - Caso ocorra qualquer das situações referidas no número anterior, a Caixa fica com o direito de considerar imediatamente vencidas e exigíveis quaisquer obrigações da parte devedora emergentes de outros contratos com ela celebrados.”

I - Para garantia do cumprimento das obrigações emergentes do contrato referenciado em A), foi constituída hipoteca sobre o prédio urbano sito em alto de ..., freguesia e concelho de  ...,   inscrito na matriz sob o artigo …  e descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º ….

J - A partir de 11.09.2011, a mutuária deixou de efetuar o pagamento das prestações a que se havia obrigado pelos contratos supra referenciados.

K - A mutuária CC foi declarada insolvente no âmbito do processo … do Juízo do Comércio de ....

L - No âmbito do referido processo de insolvência da mutuária, onde a exequente reclamou o crédito exequendo, veio-lhe a ser adjudicado o prédio identificado em D) e I) pelo valor de 114.000,00€.

M - A Caixa Geral de Depósitos, SA não procedeu à interpelação dos ora embargantes para proceder ao pagamento do valor em dívida pelos mutuários, nem a título de mora, nem a título de vencimento antecipado da obrigação.


III. 2. Do mérito do recurso

Analisemos, então, as questões suscitadas na revista.

· A perda do benefício do prazo, instituída no artigo 781º do CC, apenas se estende aos fiadores caso assim tenha sido contratualmente estipulado, sendo necessária, ainda, a interpelação dos mesmos para deles ser exigido o pagamento resultante do vencimento antecipado de todas as prestações (a totalidade do montante que se encontra em dívida acrescida de juros moratórios, despesas e comissões), por incumprimento por parte do devedor principal?

Antes de mais, cremos ser necessário entender a posição do fiador ou o âmbito e/ou a natureza da fiança.

O artigo 627º do Código Civil[2] dispõe que o fiador garante a satisfação do direito de crédito ficando pessoalmente obrigado perante o credor e que a obrigação assim constituída é acessória face àquela que recai sobre o principal devedor.

Ou seja, face ao preceituado no aludido art. 627°, n° 1 do Código Civil, o fiador, ao assegurar o cumprimento do devedor, obriga-se pessoalmente perante o credor, isto significa que é o seu património quem garante a realização da prestação debitória, e todo o seu património e não apenas determinados bens.

Por outras palavras, dir-se-á que a fiança é um vínculo jurídico pelo qual um terceiro – o fiador – se obriga pessoalmente perante o credor, garantindo com o seu património a satisfação do direito de crédito deste sobre o devedor[3], [4].

Trata-se de uma obrigação acessória – cit. artigo 627.º, n.º 2, do C.C. – , criada volun­tariamente pelo fiador, que a garante com a universalidade do seu património.

Como refere ANTUNES VARELA[5], “o fiador é verdadeiro devedor do credor, mas a obrigação que o fiador assume é acessória da que recai sobre o obrigado, visto que ele apenas garante que a obrigação (afiançada) do devedor será satisfeita. A obrigação que ele assume é a obrigação do devedor “.

Ou seja, após a constituição da fiança passa a haver uma obrigação principal, a que vincula o principal devedor e, por cima dela, a cobri-la, tutelando o seu cumprimento, uma obrigação acessória, aquela a que o fiador fica adstrito.

A acessoriedade[6] desta obrigação tem consequências a vários níveis: a fiança encontra-se sujeita à forma prevista para a obrigação principal[7]; no que diz respeito ao conteúdo, não pode exceder o da dívida principal, nem pode ser contraída em condições mais onerosas[8]; a sua validade torna-se dependente da validade da obrigação principal[9]. Por outro lado, é esta característica que permite fazer a distinção de figuras afins, como é o caso da assunção da dívida prevista no artigo 595º do Código Civil.

Como se trata duma garantia pessoal, todo o património do fiador responde pela obrigação assumida[10]

Por outro lado, a vontade de prestar fiança deve ser expressamente declarada: tem de existir uma declaração directa do fiador chamando a si a obrigação de realizar a prestação em caso de incumprimento do devedor, não podendo concluir-se pela sua existência através de presunções ou deduções[11]. Ou seja, é de afastar a possibilidade de a fiança ser prestada de modo tácito. A vontade de prestar fiança deve resultar directamente da declaração do fiador e não de declarações, influências ou presunções, embora para esse efeito não se exijam fórmulas precisas ou sacramentais.

O artigo 644º concede ao fiador que cumpra a obrigação o direito de sub-rogação nos direitos do credor na exacta medida em que os tiver satisfeito.

Isso significa que o direito se transfere para a sua esfera jurídica com todos os seus acessórios: se houver devedores solidários estes continuam a ser responsáveis pelo cumprimento; mantêm-se as garantias reais que eventualmente tenham sido prestadas; se houver lugar a juros moratórios estes continuam a vencer-se; podem ser-lhe opostas todas as excepções que seriam oponíveis ao credor originário[12].

Tem-se discutido bastante na doutrina se o fiador é, também ele, devedor ou se, pelo contrário, é mero objecto de uma relação de responsabilidade. É maioritário o entendimento afirmativo: o fiador tem um dever de prestar perante o credor, ainda que a sua função seja apenas a de assegurar a realização do pagamento pelo devedor. Daí que se o fiador efectuar a prestação, tal seja considerado como um caso de prestação por um terceiro que garantiu a obrigação, ainda que sujeita por esse mesmo motivo à sub-rogação legal (art. 644)[13].

Nos termos do artº 634º do CC, a fiança tem o conteúdo da obrigação principal e cobre as consequências legais e contratuais da mora ou culpa do devedor.

No entanto, segundo o artº 638º, nº 1 do CC, ao fiador é lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido todos os bens do devedor sem obter a satisfação do seu crédito. É o chamado benefício da excussão de que também, em regra, goza o fiador, quer em relação ao património do devedor (art. 638 do Código Civil), quer em relação a bens onerados com garantia real anterior à fiança (art. 639), excussão essa que visa evitar a execução judicial dos bens do fiador enquanto a garantia concedida pelo património do devedor ou por outras garantias reais prestadas por terceiro anteriormente à fiança não se mostre insuficiente para assegurar o cumprimento da obrigação. É que, como ressalta do já dito, a fiança tem como característica normal a subsidiariedade: o património do fiador apenas pode ser objecto dos actos de agressão do credor depois de se concluir que o património do devedor e as garantias reais anteriores à fiança não bastam para assegurar a satisfação do crédito. Benefício esse, porém, que é excluído se o fiador a ele tiver renunciado.

De qualquer modo, o benefício da excussão é relativo apenas à fase executiva, pelo que o credor tem a faculdade de demandar, na fase declarativa, apenas o fiador ou este em conjunto com o devedor. É que o resulta do art. 641/1, 1.ª parte, do Código Civil[14].


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Ponderando estes ensinamentos – pacíficos na doutrina (e, ao que supomos, também na jurisprudência) – , designadamente (e em especial) a característica normal da fiança que é a da subsidiariedade, compreende-se bem o que reza o artº 782º CC, ou seja, que a perda do benefício do prazo  a que alude o artº 781º CC (vencimento automático e antecipado de todas as prestações logo que o devedor principal deixe de realizar atempadamente uma delas) se não estenda aos “co-obrigados do devedor, nem a terceiro que a favor do crédito tenha constituído qualquer garantia” (aqui, portanto, aos fiadores/embargantes). A não ser que na relação contratual e onde se consignou a obrigação de fiança tenha sido estipulado, de forma expressa e clara, que aquela perda do benefício do prazo também vinculava os fiadores (a eles se estendendo, portanto) – estipulação perfeitamente possível ao abrigo do princípio da liberdade contratual ou da autonomia da vontade (405º CC).

Mas o que aqui mais importa (subquestão, se quisermos) é saber se, para ser exigido ao fiador (no caso sub judice, aos embargantes) o pagamento da totalidade das prestações antecipadamente vencidas por incumprimento do devedor principal, é necessária a sua prévia interpelação.

Antes de mais, deve anotar-se que vencimento e exigibilidade (da obrigação) são realidades jurídicas diferentes.

Vencimento é o momento em que a obrigação deve ser cumprida[15]. E o que resulta do artº 781º CC é, precisamente, o “vencimento de todas” as prestações, na falta de realização de uma delas, nos casos em que a prestação puder ser exigida em duas ou mais prestações – ou seja, a partir daí o devedor fica com a obrigação de proceder à satisfação total da “prestação” acordada (de toda a dívida liquidável em prestações).

Já a exigibilidade da obrigação é, digamos, a concretização ou desencadeamento, por banda do credor, da “diligência” necessária à sua satisfação pelo devedor.

Deve, porém, anotar-se que há dois conceitos de exigibilidade: exigibilidade em sentido forte, que é a situação em que se encontra a prestação já vencida; exigibilidade em sentido fraco, que é a situação da obrigação que pode ser interpelada[16].

No caso presente, diremos que, face ao devedor, estamos perante um caso de exigibilidade antecipada da obrigação (da total acordada – todas as prestações em falta): a perda, pelo devedor, do benefício do prazo tornou a obrigação pura, podendo o credor exigi-la desde logo. Porém, “embora não se vença enquanto o credor não interpelar o devedor, nos termos gerais[17].

Ou seja, mesmo em relação ao devedor, o disposto no art. 781 C. Civil[18] não dispensa a sua interpelação: só com esta se pode desencadear o vencimento imediato das prestações vincendas e, subsequentemente, sua exigibilidade (teríamos, então, também em relação a ele, a apontada exigibilidade em sentido fraco).

O que bem se compreende, até mesmo na perspectiva do interesse do credor, pois o vencimento ope legis até pode nem lhe interessar (v.g., atenta a confiança que mantém no devedor - ou por quaisquer outras razões – , pode não ser do seu interesse desencadear o vencimento antecipado de todas as prestações).

Dito de outra forma: o desencadeamento do vencimento antecipado de todas as prestações é uma faculdade do credor (é ele quem decide se quer, ou não, continuar sujeito aos prazos de escalonadamente estabelecidos de vencimento das prestações), pelo que só a tornará efectiva, querendo e por via da interpelação do devedor.

Este é, ao que supomos, entendimento generalizado[19].

E, obviamente, se a aludida prévia interpelação é exigida para o devedor principal, por maioria de razão o é para os fiadores, atento o supra explanado quanto à natureza da fiança e o que reza o artº 782º.


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Assim, portanto – e respondendo à questão sob apreciação – , não apenas a perda do benefício do prazo prevista no artº 781º (vencimento imediato de todas  as prestações) se não aplica aos fiadores (como dispõe o artº782º) – salvo, portanto,  estipulação contratual em contrário[20]  -  , como se exige, quanto a estes (fiadores), a sua interpelação, não apenas para o vencimento (assim fazendo, quanto a eles, funcionar o disposto no artº781º), como, também (mais ainda), para que lhes possa ser exigido o pagamento da totalidade das prestações e demais em dívida nos termos constantes do contrato de mútuo celebrado com o devedor principal, sendo que podem, com tal interpelação, pôr termo à mora, a fim de obviarem ao vencimento antecipado das prestações[21].

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Esta solução (a necessidade de interpelação prévia dos fiadores (ou demais previstos no artº 782º CC) para lhes ser exigido a totalidade das prestações e demais previsto nos contratos de mútuo com hipoteca celebrados com a devedora principal), já ressaltava dos ditames da boa fé: só assim não serão surpreendidos e injustamente prejudicados pelas desmandas e/ou desleixos do devedor principal que, eventualmente, deixou agravar a dívida de forma francamente censurável, quiçá até para intencionalmente prejudicar os (“ignorantes”) fiadores (dessa forma dando cabo do património destes numa altura em que, eventualmente, o devedor principal já nada teria de seu e, como tal, até já “nada tinha a perder”).

Não se pode olvidar que a ligação – melhor, vinculação – dos fiadores a tais contratos de mútuo foi resultado de solicitação/imposição do banco credor e pedido da devedora principal. Pelo que, nesta perspectiva, bem se compreenderá que, estando, afinal, os fiadores a fazer um “favor” à devedora e, dessa forma, a permitir seja viabilizada a concretização dos contratos de mútuo, quer a devedora, quer o credor fiquem vinculados para com aqueles a certo tipo de condutas, àquilo a que a doutrina designa de deveres acessórios de conduta[22], como é o caso (no que ora importa) da obrigação do banco credor de informar, tempestivamente, os fiadores sobre o desleixo do devedor principal, da falta de pagamento por este das prestações, com o acumular em catadupa da dívida e eventual vencimento antecipado de todas as prestações, a repercutir-se no património dos fiadores. Só assim procedendo se pode dizer que agiram em conformidade com os padrões da diligência, da honestidade e da lealdade exigíveis do homem no comércio jurídico.

Era, de facto, exigível à devedora e ao banco credor que tivessem para com os fiadores (que, afinal, se limitaram a satisfazer interesses daqueles), um comportamento honesto, correcto, leal, não defraudando a legítima confiança ou expectativa que neles os fiadores depositaram. Mas assim não procederam, pois defraudaram essa confiança, o que saiu bem caro aos (quiçá “ingénuos”) fiadores!

«[Boa fé (ou seja, comportar‑se segundo a boa fé) é a conduta honesta, leal, correcta, própria de uma pessoa de bem[23].

Trata‑se de um princípio que se desentranha numa série interminável de deveres secundários de prestação e, principalmente, de deveres acessórios de conduta que recaem por igual sobre ambos os sujeitos da relação creditória[24].

Está presente, quer na preparação como na formação do contrato (art. 227.º do C. Civil), quer, também, no cumprimento das obrigações e no exercício do direito correspondente (art. 762.º, do mesmo Código).

É um princípio que constitui uma trave mestra, certa e segura da nossa ordem jurídica, vivificando‑a por forma a dar solução a toda a gama de problemas de cooperação social que ela visa resolver no campo obrigacional — princípio, é certo, que deve ser observado com as restrições apontadas por Salvatore Romano, em “Enciclopédia del Diritto”, Milão, 1959 — “Buona Fede”, pp. 667 e ss.[25]- [26]]».

Assim, portanto, para além do mais já explanado, foi em violação desse princípio basilar do nosso sistema jurídico que se nos afigura ter actuado (relativamente aos fiadores), quer a devedora principal, quer a Exequente Caixa Geral de Depósitos, SA, esta ao não levar a cabo a (prévia) interpelação dos embargantes “para proceder ao pagamento do valor em dívida pelos mutuários, nem a título de mora, nem a título de vencimento antecipado da obrigação” (facto provado sob a al. M).

Ainda a propósito[27], escreve Januário da Costa Gomes[28] que sendo o credor “parte numa relação contratual com o fiador, está vinculado à adoção de determinados comportamentos, entre os quais se inclui o de informar este, em tempo, das vicissitudes relevantes da relação principal” pois “ainda que se entenda que o regime do art. 782 é imperativo, o fiador acaba por “sofrer” as consequências da progressiva formação de uma “torrente de dívida” (...) cuja “velocidade” de efetivação depende do credor”. Assim, entende o referido autor que “uma vez iniciada a quebra de pagamentos por parte do devedor, desde que, pela sua frequência, seja objetivamente indiciadora da dificuldade ou impossibilidade económica do devedor cumprir - ou do propósito de não cumprir – , o credor tem o ónus de informar o fiador. Se o não fizer, este, quando instado para pagar, já eventualmente em processo executivo, pode opor ao credor a exceção de inexigibilidade (parcial) da obrigação exequenda”[29].


*

· Mas – pergunta-se (2ª questão): a interpelação admonitória dos Fiadores pode considerar-se realizada com a citação para a execução, dessa forma afastando a regra do artigo 782.º e fazendo funcionar o regime do artigo 781.º, com vencimento da totalidade das prestações?

Neste segmento, entende-se que a resposta deve ser positiva, mas com ressalva no que tange aos juros de mora que aos fiadores possam ser exigidos, pois que, dada a ausência da já aludida prévia interpelação por banda da credora, tais juros moratórios contar-se-ão, somente, a partir da citação.

Entendimento, diga-se, sufragado por variados arestos.

Assim, v.g., o acórdão do STJ proferido no Processo nº 1366/18.1T8AGD-A.P1 em 8.09.2020[30], onde se entendeu que, embora não tendo havido lugar à interpelação do fiador, “há que ter em conta que entretanto ocorreu a sua citação para os termos da execução, pelo que, pelo menos, a partir dessa data há que considerar que o fiador embargante se constituiu em mora, o que significará a inexigibilidade a este dos juros de mora anteriores à citação, nenhum efeito advindo, contudo, da ausência de interpelação no tocante à exigência do capital, juros remuneratórios, despesas e comissões”.

É certo que a citação para a execução não visa pôr termo à mora ou impedir a resolução do contrato. Mas aquela ausência de comunicação/interpelação ao embargante, não afasta a relevância da posterior citação para a execução, conduzindo esta à imediata exigibilidade de todas as prestações em dívida e devidas até ao final dos prazos dos contratos, embora a exigibilidade da totalidade da dívida quanto aos fiadores somente se deva considerar a partir da citação para a execução.

Assim também, no Ac. o Acórdão da Relação do Porto de 14.06.2017[31]: “Não pode negar-se no entanto a relevância que nesse sentido se reveste a citação para a execução, conducente à exigibilidade imediata de todas as prestações em dívida e devidas até final do prazo dos referidos contratos, ainda que entendendo que, contrariamente ao alegado pela Exequente no requerimento inicial, a exigibilidade da totalidade da dívida no que aos fiadores concerne se deva considerar apenas a partir da citação dos Executados e não desde a data apontada no requerimento executivo.

(…). “as consequências do comportamento da Exequente quanto à obrigação exequenda não assumem os contornos de inexigibilidade pretendidos pelos Recorrentes, mas refletem-se no conteúdo da mesma, relativamente ao montante dos respetivos juros moratórios (quanto às prestações ainda não vencidas à data da citação), que serão devidos desde a citação.”.

Ainda a propósito da exigibilidade da obrigação e citação na demanda executiva, pode trazer-se à colação o ensinamento de CASTRO MENDES[32]: “se a obrigação não está vencida, faltando apenas a interpelação, vale como tal a citação para a acção executiva. Trata-se de uma interpelação judicial[33].


· Fica, assim, parcialmente respondida a questão seguinte.

Com efeito, considera-se que a citação para a execução constitui interpelação bastante para pagamento, assistindo à Exequente o direito a exigir (solidariamente com a devedora principal) dos fiadores o pagamento da totalidade das prestações que, por força do estatuído no artº 781º, se venceram (e não apenas as já vencidas e não pagas até à data da instauração da execução), com a contabilização dos juros moratórios a partir daquela citação, despesas e comissões devidas.

Isto, porém, não obstante a mutuária CC ter sido declarada insolvente (no âmbito do processo …. do Juízo do Comércio de ...).

Não olvidamos o estatuído no artigo 780.º, n.º 1, 1.ª parte, CC (como bem se refere no Ac STJ de 06.12.2018, relatado por Tomé Gomes), ao prescrever a perda do benefício do prazo estabelecido a favor do devedor quando este se torne insolvente, ainda que a insolvência não tenha sido judicialmente declarada – situação que, para ANTUNES VARELA, determina “o vencimento imediato da obrigação, por caducidade do prazo estabelecido”[34].

Ou seja, para além dos casos de exigibilidade antecipada previstos nos arts. 780º e 781º, ambos do CC, prevê o art. 91º, nº 1, do CIRE, que, com a declaração judicial de insolvência, a dívida a prazo se vence antecipadamente, sem necessidade de interpelação do credor ao devedor: dá-se o vencimento automático antecipado (sendo, porém, que Almeida Costa já diferencia duas situações: a declaração judicial de insolvência, em que, por via do art.º 91.º, n.ºs 1 e 3, do CIRE, ocorre “uma automática antecipação do vencimento”; a insolvência não judicialmente declarada, caso em que se verificará “uma simples antecipação da exigibilidade, cujo exercício fica ao arbítrio do credor e, consequentemente, vencendo-se a prestação no respectivo prazo, se ele deixa de reclamá-la[35]).

Porém, relativamente aos fiadores (devedores solidários), a perda do benefício do prazo não se lhes estende, apesar da perda do benefício do prazo resultante da insolvência de um só dos devedores. Só assim não será caso tenha sido estipulada convenção em contrário ou se verifique, também quanto a eles fiadores, causa determinante dessa perda – como cremos ser entendimento jurisprudencial dominante, exemplificando-se com o Acórdão do STJ de 8.1.2018[36].

No mesmo entendimento lavra Manuel Januário da Costa Gomes[37], sustentando a subsistência do art. 782º mesmo no caso de insolvência declarada.

Certo é que se mantém válido o que supra ficou dito acerca da necessidade de interpelação dos fiadores – interpelação essa que não ocorreu antes da sua citação na execução (e muito menos antes da declaração de insolvência da devedora). Pelo que, em relação aos fiadores (e é destes que aqui tratamos e não da devedora), não tendo ocorrido a interpelação, tornou-se relevante a sua citação para a execução para efeitos da exigibilidade, a partir daí, das prestações em dívida e devidas até ao final dos prazos dos contratos,

Pode aditar-se, como bem se escreveu no Ac do Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2021 (Manuel Capelo)[38], que “No caso de declaração de insolvência do devedor, a aceitação da relevância da citação do fiador na execução, antes de lhe ter sido feita interpelação, não tem o obstáculo legal de o vencimento da dívida só poder ser exigível ao fiador em execução depois de ele ter sido interpelado, porque com essa citação não há nenhum direito legalmente tutelado, com incidência no regime de vencimento da dívida, que lhe seja subtraído.”.

· Questão diferentetambém suscitada pelos Recorrentes – é esta: se, como sustentam os embargantes, face aos montantes alegadamente já recebidos pela Exequente (pela adjudicação do imóvel hipotecado e o rateio efetuado na insolvência), deverá considerar-se extinta a execução.

Alegam, com efeito, os embargantes que, tendo a Exequente já recebido o montante de € 114.750,00 (cento e catorze mil setecentos e cinquenta euros) pela adjudicação do imóvel hipotecado (está provado sob a al. L da relação dos factos assentes que “no âmbito do referido processo de insolvência da mutuária, onde a exequente reclamou o crédito exequendo, veio-lhe a ser adjudicado o prédio identificado em D) e I) pelo valor de 114.000,00€”) – após a correção ordenada – , acrescido do montante de €9.412,39 (nove mil quatrocentos e doze euros e trinta e nove cêntimos)[39], significa que já recebeu uma quantia queexcede largamente os valores a que teria direito a receber até à data, caso fosse cumprido o calendário de pagamento de capital e juros inicialmente acordado, o que conduz à extinção da presente execução”.

Ora, nesta senda – e trata-se de mera imputação ao cumprimento do já recebido pela exequente e de simples operações aritméticas (logo, sem necessidade de adicionais diligências instrutórias) – , assistirá razão ao acórdão recorrido ao ordenar o prosseguimento da execução, após a liquidação subsequente do crédito exequendo.

É necessário fazer-se este apuramento do concreto montante do capital que ficou em dívida.

Ou seja, como se escreveu no Ac da Rel do Porto de 08.09.2020[40] (e reiterado no já referido Ac do Supremo Tribunal de Justiça de 14.01.2021[41]), “trata-se de questão… que justifica o prosseguimento dos presentes embargos com vista ao apuramento do concreto montante do capital que ficou em dívida após a imputação do valor obtido pela adjudicação à credora/exequente do imóvel hipotecado, a que se adicionam as despesas e comissões peticionadas, bem como os respetivos juros moratórios, estes contados apenas a partir da citação do ora embargante para a execução[42].

Consequentemente, há-de ser julgado improcedente o recurso de revista interposto pelos embargantes.


IV. Decisão:

Face ao exposto, acorda-se em julgar improcedente o recurso e, consequentemente, negar a revista, mantendo-se o decidido no Acórdão da Relação.


Custas da revista a cargo dos Recorrentes AA e BB

Notifique.


Nos termos do art. 15º-A do DL nº 10-A/20, de 13-3, aditado pelo DL nº 20/20, de 1-5, atesto o voto de conformidade dos Srs. Juízes Conselheiros adjuntos.


Lisboa, 11 de março de 2021


Fernando Baptista (Juiz Conselheiro Relator)

Abrantes Geraldes (Juiz Conselheiro 1º Adjunto)

Tomé Gomes (Juiz Conselheiro 2º Adjunto)

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[1] Não muito longe da mera repetição do corpo das alegações - em desconformidade, diga-se, com o disposto no artº 639º, nº 1 do CPC, que manda que as conclusões sejam apresentadas de forma sintética.

Só não se “perde mais tempo” em convite à sua sintetização (ut artº 639º, nº 3, do CPC) por se perceber, com toda a nitidez, quais as questões que nelas são suscitadas.

[2] A este diploma se reportam todas as normas que se citarem infra sem menção de proveniência.

[3] Cfr. ANTUNES VARELA in Das Obrigações em Geral, vol. II, Almedina, 5ª edição, 1992, pg. 475.

[4] Cfr. Ac. STJ de 19.12.2006 in http://www.dgsi.pt/jstj  processo nº 06A4127.

[5] C. Civil Anotado, em anotação ao artº 627º.

[6] Cfr. Ac. STJ de 15.03.3007 in http://www.dgsi.pt/jstj  processo nº 07B406.

[7] Cfr. artigo 628º do Código Civil.

[8] Cfr. artigo 631º CC.

[9] Cfr. artigo 632º CC.

[10] Cfr. Ac. STJ de 12.10.2006 in http://www.dgsi.pt/jstj processo nº 06B3353.

[11] Cfr. ANTUNES VARELA in op. cit., pg. 480.

[12] No entanto, se o devedor consentir no cumprimento pelo fiador ou se, avisado por este nos termos do artigo 645º, não lhe der conhecimento, injustificadamente dos meios de defesa que poderia opor ao credor, fica impedido de opor esses meios ao fiador – vide artigo 647º.

[13] Neste sentido, vide, v.g., MENEZES LEITÃO, Direito das Obrigações, II, 3.ª ed., Coimbra, Almedina, 2005, ps. 315 – 316, e JANUÁRIO GOMES, Assunção Fidejussória de Dívida, Coimbra, Almedina, 2000, ps. 115 e ss...

[14] Sobre este ponto, vide ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, II, 7.ª ed., Coimbra, Almedina, 1997, p. 489. Nos casos em que, não obstante o benefício da excussão prévia, o credor opta por demandar apenas o fiador, este tem sempre a possibilidade de chamar o devedor à demanda (art. 641/1, 2.ª parte). Salvo declaração expressa no processo, o não chamamento do devedor à demanda importa para o fiador renúncia ao benefício (art. 641/2) – ou seja, como ensina ANTUNES VARELA (ibidem), «a relação processual pode influir na sorte da relação substantiva. Se o fiador for demandado só e não chamar o devedor à demanda, apesar de gozar do benefício dado da excussão, presume-se (salvo declaração expressa em contrário nos próprios autos) que ele renunciou ao benefício da excussão».
[15] GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 2ª ed., 209 e 3ª ed., 198.
[16] Cfr. CASTRO MENDES, Acção executiva, 1980-14, nota 1.
[17] GALVÃO TELLES, Direito das Obrigações, 3ª ed., 198.
[18] “Se a obrigação puder ser liquidada em duas ou mais prestações, a falta de realização de uma delas importará o vencimento de todas”.
[19] Cfr. Antunes Varela, Direito das Obrigações, 6.ª ed., vol. II, pg. 52 e ss.; Almeida e Costa, Direito das Obrigações, 11.º ed., pg. 892 e ss.; Vasco da Gama Lobo Xavier, RDES, ano XXI, n.ºs. 1 a 4, pg. 201, nota 4; Pessoa Jorge, Direito das Obrigações, vol. I, pg. 317, apud Almeida Costa, op. Cit.; Galvão Teles, Direito das Obrigações, 7.ª ed., pg. 270 e ss.- este último a sustentar que, não obstante tal solução não se encontrar expressamente consagrada na lei vigente, deve ser a consagrada de jure condendo.
[20] Trata-se de norma de natureza supletiva, podendo, como tal, ser afastada por expressa vontade das partes (ut artigo 405 CC).
[21] É vasta a jurisprudência a sustentá-lo, como pode ver-se em: acórdão da Relação de Lisboa, de 2014.02.11, Rosa Ribeiro Coelho, dgsi, proc. 12878/09.8T22SNT-A.L1; de 2013.05.16, Catarina Manso, dgsi, proc. 426-B/2011.L1; de 2011.11.17, Ezagüi Martins, dgsi, proc. 1156/09.2TBCLD-D.L1; de 2009.11.19, Manuel Gonçalves, dgsi, proc. 701/06.0YXLSB.L1); da Relação de Coimbra, de 2012.07.03, Carlos Querido, dgsi, proc. 1959/ 11.8T2OVR-A.C1) e ainda da Relação do Porto de 27.04.2017, dgsi, Anabela Dias da Silva.
[22] Sobre a existência de deveres acessórios de conduta enquanto sinal da pós-eficácia das obrigações, CARLOS MOTA PINTO, Cessão da Posição Contratual, Almedina, 1982, págs. 354-356, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, Da Pós-Eficácia das Obrigações, em “Estudos de Direito Civil”, vol. I, Almedina, 1987, pág. 143 e seg., Da Boa Fé no Direito Civil, vol. I, Almedina, 1984, pág. 625 e seg., e Tratado de Direito Civil, IX vol., 3.ª ed., Almedina, 2019, pág. 198-200, e NUNO PINTO OLIVEIRA, Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, 2005, pág. 95-96.
[23] A. Ferrer Correia, Vasco da Gama Lobo Xavier, R.D.E., IV‑120.
[24] Antunes Varela, in R.L.J., 106.º, pp. 252.
[25] Ver, ainda, a Boa Fé nos Contratos, de Armando Torres Paulo, p. 124, e “A Boa Fé no Direito Comercial”, in “temas de Direito Comercial”, conferência no Conselho Distrital do Porto da ordem dos Advogados, pp. 177 e ss., e Baptista Machado, in Obras Dispersas, vol. I.
[26] In Contratos Privados – Das Noções à Prática Judicial, FERNANDO BAPTISTA DE OLIVEIRA, vol. I, item “BOA FÉ”.
[27] A propósito das situações em que “os bancos exigem fianças para garantia de cumprimento das obrigações assumidas pelo devedor principal”.
[28]Assunção Fidejussória de Dívida, Almedina, 2000, págs. 961/962.
[29] Os destaques são nossos.
[30] Citado no Acórdão recorrido, disponível em www.dgsi.pt.
[31] Processo nº 11257/15.2T8PRT-A.P1, in www.dgsi.pt.
[32] Acção executiva, 1980-14.
[33] Destaque nosso.
[34]Das Obrigações em Geral, Vol. II, Almedina, 7.ª Edição, 1997, p. 47.
[35] Direito das Obrigações, Almedina, 11.ª Edição, 2008, p. 1016.
[36] P. 123/14.9TBSJM-A.P1.S2, Relator Henrique Araújo.
[37] "Sobre os Poderes dos Credores contra os Fiadores no Âmbito da Aplicação do CIRE. Breves Notas", no III Congresso do Direito da Insolvência, Coord. por Catarina Serra, Almedina, 2015, págs. 329/330.
[38] Proc. 1366/18.1T8AGD-A.P1.S1 (Manuel Capelo).
[39] Após o rateio efetuado e que foi documentado nos autos por requerimento de 23/9/2019 refª 9202113.
[40] Processo nº 1366/18.1T8AGD-A.P1 em 8.09.2020 (Desembargador Rodrigues Pires), in dgsi.
[41] Processo nº 1366/18.1T8AGD-A.P1.
[42] Podendo até dar-se o caso, tal como sustentado pelos embargantes, de todos os valores a que a Exequente teria direito a receber estarem já satisfeitos.