Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1352/21.4T8MTS.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: NUNO PINTO OLIVEIRA
Descritores: TRIBUNAL CONSTITUCIONAL
ACÓRDÃO
FORÇA VINCULATIVA
PERFILHAÇÃO
IMPUGNAÇÃO DE PATERNIDADE
DIREITO AO NOME
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
ÓNUS DA PROVA
TUTELA DA PERSONALIDADE
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 11/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
As decisões do Tribunal Constitucional são obrigatórias para todas as entidades públicas e privadas e prevalecem sobre as dos restantes tribunais e de quaisquer outras autoridades.
Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA


Recorrente: AA

Recorridos: BB, CC, DD, EE e FF

I. — RELATÓRIO

1. AA propôs a presente acção de impugnação e de investigação da paternidade, pedindo que fosse declarado que não é filha de GG, como consta do registo civil, e sim de HH.

2. Os Réus contestaram, deduzindo a excepção peremptória de caducidade do direito de acção.

3. O Tribunal de 1.º instância julgou procedente a excepção peremptória de caducidade e, em consequência, absolveu os Réus do pedido.

4. Inconformada, a Autora AA interpôs recurso de apelação.

5. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1º Vem o presente recurso interposto da sentença proferida nos presentes autos, que, sem realização de audiência de julgamento, julgou procedente a exceção da caducidade do direito de ação de impugnação da paternidade presumida e reconhecimento de nova paternidade da Autora, e, em consequência, absolveu os Réus do pedido.

2º.O tribunal recorrido não apreciou devidamente a factualidade e errou na interpretação da Lei, que restringe os direitos fundamentais da Autora, pelo que a recorrente não poderá, de forma alguma, aceitar o conteúdo da decisão que ora se coloca em crise.

3º. A decisão recorrida deve ser alterada, no sentido de permitir a realização de audiência de julgamento, e toda a produção de prova (indicada da PI) que permita apurar a factualidade, concretamente se a Autora é filha biológica de HH.

4º.O conteúdo da decisão viola inúmeros direitos constitucionais, tais como o direito à identidade e historicidade pessoal de filho, direito constitucionalmente consagrado no artigo 26º da Constituição da República Portuguesa, o direito ao desenvolvimento da sua personalidade e do reconhecimento das suas origens, pois pretende ver o seu parentesco reconhecido, direito este que se encontra constitucionalmente consagrado no artigo 36º da CRP.

5º. O Tribunal a quo, ao considerar que se encontra caducado o direito da Autora recorrente intentar a acção de investigação de paternidade, viola direitos fundamentais constitucionalmente consagrados.

6º. Razão pela qual deve a decisão proferida ser reapreciada através do presente recurso.

7º. O Tribunal a quo fundamentou a sua decisão, essencialmente considerando procedente a exceção da caducidade invocada por alguns dos Réus.

8º. O Tribunal a quo não chegou a apurar a verdade nos presentes autos, sendo certo que a Autora tem hoje a certeza que é filha do seu padrinho de registo, HH, falecido em ...-...-2007, não fazendo qualquer sentido que, por regras processuais ou por limitação dos direitos fundamentais, como é o caso do artº 1817º nº 1 do Código Civil, a Autora não veja reconhecida a sua verdadeira paternidade, mantendo-se uma mentira no registo civil.

9º. A Autora não tem hoje dúvidas que aconteceu uma longa relação extraconjugal entre os seus pais biológicos, (que terá tido o seu início em 1985, e terá durado cerca de 6 ou 7 anos), com manutenção de relações sexuais, de onde nasceu a Autora AA, em ...-...-1987, precisamente em resultado de relações sexuais entre a sua mãe II e o seu padrinho HH.

10º. O art.º 1817º, n.º 1 do Código Civil é uma verdadeira limitação aos direitos fundamentais da Autora, o que a sentença ora recorrida não reconhece, não obstante as várias decisões tomadas recentemente sobre esta matéria, pelos Tribunais Superiores, que vão no sentido de considerar este artigo inconstitucional. 11º. O direito da filiação trata-se do ramo do Direito da Família que tem por objecto as relações de Filiação, os modos por que uma ou outra se estabelecem, convertendo-se os vínculos biológicos em relações jurídicas, e os efeitos que produzem, uma vez estabelecidas, em relação aos bens dos filhos.

12º.O Supremo Tribunal de Justiça, no recente Ac. de 14-05-2019, proc. 1731/16.9T8CSC.L1.S1, 1º Secção, Relator PAULO SÁ, considerou que “O prazo de caducidade de 10 anos, previsto no n.º 1 do art.º 1817.º, n.º 1, do CC, para a investigação de paternidade e aplicável, por via do art. 1873.º do mesmo diploma legal, à investigação de paternidade deve considerar-se, pois, inconstitucional.”

13º. Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça, no Ac. de 31-01-2017, proc. 440/12.2TBBCL.G1.S1, 1º Secção, Relator PEDRO DE LIMA GONÇALVES, considerou que: “A norma constante do nº 1 do artigo 1871º do Código Civil, na dimensão interpretativa que prevê um prazo limitador da possibilidade da A., enquanto filha, propor a presente ação de investigação de paternidade, com fundamento no facto biológico da filiação, é inconstitucional, uma vez que o direito a conhecer a ascendência biológica constitui dimensão essencial do direito à identidade pessoal previsto no artigo 26º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, e o direito a estabelecer os concomitantes vínculos jurídicos traduz uma dimensão do direito a constituir família previsto no artigo 36º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa, consubstanciando tal prazo limitador uma restrição excessiva ou desproporcionada aos assinalados direito fundamental à identidade pessoal e direito de constituir família, bem como ao próprio direito geral de personalidade dos investigantes (cfr. artigo 70º do Código Civil).”

14º.Refira-se ainda que o Supremo Tribunal de Justiça, no Ac. de 06-11-2018, proc. 1885/16.4T8MTR.E1.S2, 1º Secção, Relator PEDRO DE LIMA GONÇALVES, considerou que: “A consolidação da verdade biológica como princípio estruturante do regime legal, o reforço do direito à historicidade pessoal e a perspetivação do direito a conhecer o ascendente como dimensão essencial do direito à identidade pessoal e do direito a constituir família (n.º 1 do art. 36.º da CRP) conduzem à conclusão de que a sujeição da ação de investigação da paternidade ao prazo de caducidade a que alude o n.º 1 do art. 1817.º do CC (na atual redação) é inconstitucional por consubstanciar uma restrição excessiva àqueles direitos e ao direito geral de personalidade dos investigantes.”

15º.Por fim, há que levar em conta que o Supremo Tribunal de Justiça, já no ano de 2021, por Ac. de 26-01-2021, proc. 2151/18.6T8VCT.G1.S1, 6ª Secção, Relator GRAÇA AMARAL, considerou que:

“A existência de limitação temporal ao exercício deste direito, ainda que assente num princípio de proporcionalidade de direitos/interesses conflituantes, faz desmerecer a sua essência (direito pessoalíssimo e, por natureza, imprescritível) e põe em causa o equilíbrio que pretende instituir colocando em patamar equivalente interesses/valores (focalizados na segurança jurídica do investigado e das suas relações familiares protegendo a estabilidade da mesma) que, sem poderem ser desprezados, não poderão ser equacionados e tutelados de igual forma. Qualquer limitação temporal neste âmbito, ainda que se considere de prazo razoável, constitui uma compressão da revelação da verdade biológica, que é o princípio alicerçante do regime da filiação.

Consequentemente, a limitação temporal ínsita no n.º 1 do art. 1817.º do CC, viola, de forma desproporcionada, os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade e, nessa medida, mostra-se materialmente inconstitucional (violando, entre outros, dos arts. 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da CRP).”

16º.Para além do S.T.J., também o Tribunal Constitucional, no Acórdão do de 4/10/2018, processo n.º 471/17 (2ª secção), julgou “inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.”

17º. Não há por isso dúvidas que a tendência atual da Jurisprudência nesta matéria será a de rejeitar qualquer prazo limite para intentar este tipo de ação, pois limita de forma desproporcional direitos fundamentais, consagrados na C.R.P. como sejam os previstos nos arts. 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da C.R.P.

18º.Tratam-se de direitos fundamentais constitucionalmente consagrados, como o de identidade pessoal (artigo 26º nº 1 da CRP) que adquire a dimensão de desenvolvimento da personalidade e um relevante valor social e moral.

19º.O direito à filiação consubstancia-se em vários princípios constitucionais, tal como o direito a constituir família, previsto no artigo 36º nº 1 da CRP, na medida em que todos têm o direito de ver juridicamente reconhecidos os seus laços de parentesco, para além da atribuição aos pais do poder-dever de educação dos filhos (artigo 36º nº 5 CRP), a inseparabilidade dos filhos dos seus progenitores, a não descriminação entre filhos nascidos do casamento e fora deste (artigo 36º nº 4 CRP).

20º. Além destes princípios, outros há com elevada relevância no estudo do direito da filiação, como o direito à identidade pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, previsto no artigo 26º da CRP.

21º.Ainda que se possibilite diferentes modos de estabelecimento da filiação, não podem as leis ordinárias dificultar ou limitar, injustificadamente, o estabelecimento da filiação fora do casamento, e os prazos para a impugnação ou investigação da paternidade.

22º. Não faz por isso qualquer sentido a caducidade prevista no nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, que aliás foi já declarado várias vezes inconstitucional, mormente através do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 23/2006, que declarou a sua inconstitucionalidade com força obrigatória geral, na medida em que estabelecia um prazo de caducidade para a propositura da ação de investigação de paternidade de dois anos (atualmente um prazo de 10 anos).

23º. Também o Exmo. Sr. Doutor Paulo Otero considerou que a identidade pessoal tem uma dimensão absoluta ou individual, sendo infungível, indivisível e irrepetível e uma dimensão relativa, com a história ou memória de cada um, própria e exclusiva da sua identidade. (in, “Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do Ser Humano – Um perfil Constitucional de bioética”, P. 65 e 71 ss.)

24º. Trata-se por isso do direito à identidade, direito inalienável e absoluto, sempre garantido pelos artigos 25º nº 1 e 26 nº 1 da CRP.

25º. O desejo de conhecer a ascendência biológica tem sido tão acentuado, que se assiste a movimentações no sentido de afastar o segredo sobre a identidade dos progenitores biológicos, mesmo nos casos de reprodução assistida (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 11/95, as decisões sumárias nº 114/2005 de 9 de Março e 282/2005, de 4 de Agosto, e a Proposta de Lei nº 135/VII – Diário da Assembleia da República, I série, 95, de 18 de Junho de 1999).

26º. Lembra-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/04/2008 – Proc. 08A474, Relator FONSECA RAMOS, que considerou que: “esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se inscreve no direito da personalidade é um direito inviolável e imprescritível”.

27º. Referiu ainda este Acórdão do STJ que: “países como a Itália, Espanha e Áustria optaram pela imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade, por considerarem que a procura do vínculo omisso do ascendente biológico é um valor que prevalece sobre quaisquer outros relativos ao pretenso progenitor.”

28º. Citando os professores Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “Constituição da República Portuguesa Anotada” 4ª. edição revista, I, 462) que o direito à identidade pessoal, tal como está consagrado no artigo 26º nº 1 da CRP, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores pode fundamentar em si um direito à investigação da paternidade e da maternidade.

29º. Tal direito inclui o direito à identidade genética própria e, em consequência, ao conhecimento dos vínculos de filiação “no ponto em que a pessoa é condicionada na sua personalidade pelo fator genético”. Cf. – Prof. Jorge Miranda e Dr. Rui Medeiros, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 2005, I, 204-205.

30º. Assim, o direito a conhecer a ascendência e de estabelecer um vínculo biológico conducente ao estabelecimento de um vínculo jurídico, é um direito absoluto, não podendo o Estado, de forma alguma, limitar o assentamento da filiação/identidade pessoal, com limitações de prazos.

31º. O tribunal a quo lançou mão do instituto da caducidade, deixando para segundo plano os direitos que a Autora recorrente possui, nomeadamente o direito à identidade genética própria e, em consequência, ao conhecimento dos vínculos de filiação.

32º. O Tribunal não chegou sequer a permitir a produção de prova, como seja a realização dos exames científicos para aferir da paternidade biológica da Autora recorrente.

33º. A Autora recorrente foi obrigada a recorrer à presente ação de impugnação e investigação de paternidade, por forma a colocar fim a uma mentira constante do Registo Civil, a que esta é totalmente alheia, pois não tem culpa de ter nascido fora do casamento dos seus pais de registo, e na decorrência de uma relação extraconjugal.

34º.Ainda que se trate de um filho nascido fora do casamento, a nossa constituição da República Portuguesa proíbe expressamente a discriminação desses filhos, no nº 4 do artigo 36º da CRP.

35º. É do interesse da ordem pública a fixação e a realidade das relações de parentesco, razão porque está consagrada a averiguação oficiosa.

36º A limitação temporal imposta pelo nº 1 do artigo 1817º do Código Civil não permite um justo equilíbrio de interesses, pois protege os interesses do investigado e da sua família, permitindo-lhe que permaneça acoutado na sua omissão e/ou irresponsabilidade de não reconhecimento de paternidade real.

37º. O prazo previsto no atual nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, é também materialmente inconstitucional, na medida em que é limitador da possibilidade de investigação a todo o tempo, constituindo o estabelecimento do mesmo e nos tempos que correm, com o novo paradigma do direito fundamental à identidade pessoal e de livre desenvolvimento da personalidade uma restrição não justificada, desproporcionada e não admissível do direito do filho saber em vida de quem ascende.

38º. Assim, o estabelecimento de um limite temporal para a instauração de uma ação de investigação de paternidade é inconstitucional por violação dos artigos 26º nº 1, 36º nº 1 e 18º nº 2 da CRP.

39º. O respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade não só do direito de investigar (cfr. acórdão do TC nº 23/2006, de 10 de janeiro, tendo força obrigatória geral a declaração de inconstitucionalidade nele vertida a propósito do artigo 1817º nº 1 do CC) como o de impugnar.

40º. Esse juízo de constitucionalidade vem merecendo da jurisprudência e doutrina respostas diferentes, acentuando-se no que toca à jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, tendência para considerar como contrária ao texto constitucional qualquer limitação temporal ao exercício de ação desta natureza. (Entre outros, os cf. Acórdãos de 21.09.2010, Proc. Nº 495/04, 08.06.2010, Proc. Nº 1847/08.5TVLSBA. L1.S1; de 21.09.2010, Proc. Nº 4/07.2TBEPS.G1.S1; de 27.01.2011, Proc. Nº 123/08.8TBMDR.P1.S1; e de 06.09.2011, Proc. Nº 1167/10.5TBPTL.S1, 14.01.2014; Proc. 155/12.1TBVLC-A.P1.S1, Ac. 16.09.2014, Proc. Nº 973/11.8TBBCL.G1.S1.)

41º. As razões que militavam para a previsão de um prazo limitativo de caducidade das ações de investigação de paternidade, têm de ceder perante os direitos fundamentais que militam no sentido da imprescritibilidade daquela tipologia de ações, estando em causa o direito de constituir família, o direito à identidade pessoal, o direito à integridade pessoal e o direito à não descriminação (artigos 26º nº 1 e 36 nº 1 da CRP).

42º. O direito à identidade pessoal e o direito à integridade pessoal ganharam uma nova dimensão que não pode ser desvalorizada, sendo certo que a Assembleia da República já está a trabalhar no sentido de alterar o artº 1817º nº 1 do CC, no âmbito do Projeto de Lei 125/XIV/1, que visa terminar com os prazos legais para a propositura de ação de investigação da paternidade e da maternidade.

43º.Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira – Curso de Direito da Família, Volume II, Tomo I, 2006, pág. 139 – sustentam que os tempos correm a favor da imprescritibilidade das ações de filiação, a propósito da caducidade do direito a investigar a paternidade, exarando que “não tem sentido hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas; e não pode atribuir-se o relevo antigo à ideia de insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade. Diga se, numa palavra, que o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere claramente a imprescritibilidade”.

44º. O direito fundamental à identidade pessoal, o direito fundamental à integridade pessoal bem como o direito ao livre desenvolvimento da personalidade leva em si a que não se coloquem desproporcionadas restrições a esses direitos fundamentais quando é colocada a questão da filiação, seja numa ação de investigação seja numa ação de impugnação.

45º.Deverá o artigo 1817º nº 1 do Código Civil ser declarado inconstitucional, por violação dos artigos 26º nº 1, 36º nº 1 e 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que, independentemente da proporcionalidade ou desproporcionalidade da consagração de um prazo de caducidade, o artigo 1817º nº 1 do Código Civil, na sua nova redação, é uma lei restritiva de direitos, liberdades e garantias.

46º. A nova redação do artigo 1817º do Código Civil, ao manter uma limitação temporal (10 anos) para a propositura da ação, não afastou a inconstitucionalidade da norma anterior.

47º. Assim, o artigo 1817º nº 1 do Código Civil, na redação da Lei nº 14/2009 de 1 de abril, ao estabelecer um prazo de caducidade de 10 anos após a maioridade (ou emancipação) do investigante para a propositura da ação de investigação de paternidade (1873º CC) é inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 18º nº 2, 26º nº 1 e 36º nº 1 da CRP.

48º. A sentença recorrida violou nomeadamente o disposto nos artsº 1817º nº 3, artigos 1839º, 1846º e 1842º nº 1 al. c) do Código Civil, e artsº. 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

TERMOS EM QUE SE REQUER QUE O RECURSO SEJA JULGADO PROCEDENTE E, CONSEQUÊNCIA, SEJA A SENTENÇA RECORRIDA REVOGADA,ALTERANDO-SE A MESMA, NO SENTIDO DE PERMITIR A REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO, COM VISTA À PRODUÇÃO DE TODA A PROVA QUE PERMITA APURAR SE A AUTORA É FILHA BIOLÓGICA DE HH, DEVENDO A EXCEÇÃO DE CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO SER IMPROCEDENTE, E O ARTIGO 1817º Nº 1 DO CÓDIGO CIVIL SER DECLARADO INCONSTITUCIONAL, POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 26º Nº 1, 36º Nº 1 E 18º Nº 2 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA, TAL COMO SE CONTEMPLA NAS CONCLUSÕES ADUZIDAS,

FAZENDO ASSIM VOSSAS EXCELÊNCIAS INTEIRA, SÃ E COSTUMADA JUSTIÇA!

6. Os Réus contra-alegaram, pugnando pela improcedência do recurso.

7. O Tribunal da Relação confirmou, por maioria, a decisão do Tribunal de 1.º instância.

8. Inconformada, a Autora AA interpôs recurso de revista.

9. Finalizou a sua alegação com as seguintes conclusões:

1º. O presente recurso pretende alterar o acórdão do TRP que julgou totalmente improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida, que julgou procedente a exceção de caducidade do direito de ação de impugnação da paternidade presumida e reconhecimento de nova paternidade, e por isso absolveu os réus do pedido.

2º. A recorrente não se conforma com o acórdão recorrido por considerar que:

a) está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito - artº 672º nº 1, al. a) do C.P.C.;

b) Estão em causa interesses de particular relevância social - artº 672º nº 1, al. b) do C.P.C.;

c) O Acórdão do Tribunal da Relação do Porto está em contradição com outros, já transitados em julgado, proferidos pelos vários Tribunais da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito - artº 672º nº 1, al. c) do C.P.C.

3º. A decisão recorrida deve ser alterada, no sentido de permitir a realização de audiência de julgamento, e toda a produção de prova indicada que permita apurar a verdade, concretamente que a recorrente é filha biológica de HH.

4º. O acórdão recorrido do TRP viola inúmeros direitos constitucionais, como o direito à identidade e historicidade pessoal de um filho, direito constitucionalmente consagrado no artigo 26º da Constituição da República Portuguesa, o direito ao desenvolvimento da sua personalidade e do reconhecimento das suas origens, pois a recorrente pretende ver o seu parentesco reconhecido, como se encontra constitucionalmente consagrado no artigo 36º da CRP.

5º. Com a decisão recorrida, a recorrente ficaria impedida de provar que é filha do seu padrinho de registo, HH, falecido em ...-...-2007, o que não faz qualquer sentido, sobretudo devido a preceitos processuais constantes do Código Civil, que são violadores da Constituição da República Portuguesa.

6º. Não é justo nem aceitável que a decisão recorrida impeça que a recorrente veja reconhecida a sua verdadeira paternidade e a sua verdadeira identidade, continuando a constar uma informação falsa no registo civil, como aliás é sabido hoje inclusive pelos próprios réus, familiares da autora ora recorrente.

7º. Trata-se de uma matéria pessoal e reservada, razão pela qual nunca se falou publicamente da mesma, muito menos na frente da recorrente, por ser objeto de vergonha para os envolvidos, sobretudo os réus, que se remeteram ao silêncio durante anos, por estar em causa uma relação extraconjugal que envolvia o pai e/ou marido daqueles.

8º. A recorrente, durante muitos vários anos, não sabia nem tinha a obrigação de saber que, devido à relação próxima entre os seus pais de registo e os seus padrinhos, aconteceu uma relação extraconjugal entre a sua mãe, II, e o padrinho, HH, e daí ter nascido a recorrente, que não tem qualquer culpa ou responsabilidade.

9º. Só recentemente a recorrente AA soube dessa longa relação extraconjugal, que terá tido o seu início em 1985 e terá durado cerca de 7 anos, que veio a culminar no nascimento desta, em ...-...-1987, cujo pai será de facto o seu padrinho HH.

10º. Não pode um preceito tão injusto constante do Código Civil, impedir de repor a verdade e manter uma mentira aos olhos de todos, ao impor um prazo de 10 anos para deduzir a ação, o que é controverso e foi já considerado inconstitucional por diversas vezes e por vários Tribunais, que certamente analisaram a questão com a devida profundidade.

11º. Está em causa uma matéria extremamente sensível e pessoal, que define a identidade de cada sujeito, pelo que a sua apreciação, pela sua relevância jurídica – investigação da paternidade -, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito - artº 672º nº 1, al. a) e nº 2 al. a) do C.P.C., cfr. Ac. STJ de 30-06-2016, proc. 65/14.8T8FAF.G1.S1, 1ª Secção, Relator BETTENCOURT DE FARIA, (disponível em http://www.dgsi.pt), o que legitima o presente recurso.

12º. Em simultâneo também estão em causa interesses de particular relevância social - artº 672º nº 1, al. b) e nº 2 al. b) do C.P.C., pois trata-se de investigação da paternidade e reconhecimento de nova paternidade, para repor a verdade e alterar uma informação falsa no Registo Civil, em que a recorrente consta erradamente como filha de GG, quando na verdade será filha do seu padrinho de registo HH - cfr. Ac. STJ de 07-12-2016, proc. 759/14.8TBSTB.E1.S1, Relator BETTENCOURT DE FARIA, (disponível em http://www.dgsi.pt), o que também legitima o presente recurso.

13º. Acresce que o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto ora em crise está em contradição com vários outros acórdãos proferidos pelos Tribunais da Relação e pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito - artº 672º nº 1, al. c) e nº 2 al. c) do C.P.C., nomeadamente:

- Ac. de 14-05-2019, proc. 1731/16.9T8CSC.L1.S1, 1º Secção, Relator Paulo Sá;

- Ac. de 31-01-2017, proc. 440/12.2TBBCL.G1.S1, 1º Secção, Relator Pedro de Lima Gonçalves;

- Ac. de 06-11-2018, proc. 1885/16.4T8MTR.E1.S2, 1º Secção, Relator Pedro de Lima Gonçalves;

- Ac. de 26-01-2021, proc. 2151/18.6T8VCT.G1.S1, 6ª Secção, Relatora Graça Amaral, sendo este o mais recente e cuja cópia será junta com o presente recurso - artº 672º nº 1, al. c) e nº 2, al. c) do C.P.C.

14º. O presente recurso é o meio necessário para repor a verdade e assenta na inconstitucionalidade do art.º 1817º, n.º 1 do Código Civil, que o acórdão recorrido não reconheceu, mas que já foi declarada por vários tribunais superiores, incluindo o STJ, e bem recentemente, o que Tribunal recorrido não levou em conta.

15º. O acórdão mencionado pelo Tribunal recorrido e que justifica a decisão é de 2020 - Ac. do STJ de 16-12-2020, proc. nº 389/14.4T8VFR.P2.S1 em www.dgsi.pt., sendo certo que após essa data, houve outras decisões e acórdãos que rejeitaram o prazo previsto no art.º 1817º, n.º 1 do Código Civil, estando neste aspeto o acórdão recorrido ultrapassado e em contradição com outros.

16º. É por isso fundamental levar em conta o Douto Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26-01-2021, proc. 2151/18.6T8VCT.G1.S1, 6ª Secção, Relatora GRAÇA AMARAL, com o seguinte sumário (disponível em http://www.dgsi.pt):

“I - O direito ao conhecimento da paternidade biológica (direito de conhecer e ver reconhecida a ascendência biológica e a marca genética de cada pessoa), decorrência dos direitos de identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade, assume a natureza de direito fundamental

II - Enquanto direito fundamental impõe que os meios legais se mostrem adequados à sua plena concretização por forma a lograr obter, eficazmente, a coincidência entre o vínculo jurídico e o biológico.

III - A existência de limitação temporal ao exercício deste direito, ainda que assente num princípio de proporcionalidade de direitos/interesses conflituantes, faz desmerecer a sua essência (direito pessoalíssimo e, por natureza, imprescritível) e põe em causa o equilíbrio que pretende instituir colocando em patamar equivalente interesses/valores (focalizados na segurança jurídica do investigado e das suas relações familiares protegendo a estabilidade da mesma) que, sem poderem ser desprezados, não poderão ser equacionados e tutelados de igual forma.

IV - Qualquer limitação temporal neste âmbito, ainda que se considere de prazo razoável, constitui uma compressão da revelação da verdade biológica, que é o princípio alicerçante do regime da filiação.

V - Consequentemente, a limitação temporal ínsita no n.º 1 do art. 1817.º do CC, viola, de forma desproporcionada, os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade e, nessa medida, mostra-se materialmente inconstitucional (violando, entre outros, dos arts. 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da CRP).”

17º Este acórdão, cuja cópia se junta ao presente recurso, vem mencionado na DECLARAÇÃO DE VOTO de vencido do Exmo. Sr. Juiz Desembargador do TRP Eduardo Rodrigues Pires, e, para além de muito recente, é esclarecedor sobre esta matéria, rejeitando perentoriamente a caducidade em causa, considerando que “a limitação temporal ínsita no n.º 1 do art. 1817.º do CC, viola, de forma desproporcionada, os direitos fundamentais à identidade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade e, nessa medida, mostra-se materialmente inconstitucional (violando, entre outros, dos arts. 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da CRP).”

18º. A declaração de voto de vencido do Exmo. Sr. Juiz Desembargador Eduardo Rodrigues Pires é perfeitamente fundamentada e elucidativa de quão errada e injusta é esta decisão do coletivo do TRP, pelo que se transcreve e subscreve a mesma:

“Com todo o respeito pela posição que fez vencimento não a acompanho, à semelhança do que já sustentei em anteriores declarações de voto nos Acórdãos da Relação do Porto de 10.12.2013, p. 165/13.1 TBVRL.P1 e de 17.12.2014, p. 1565/11.7 TBMCN.P1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt.

Teria assim revogado a decisão recorrida, julgando improcedente a exceção de caducidade, com a seguinte argumentação que, sinteticamente, recolho do sumário do Acórdão da Relação do Porto de 9.4.2013 (proc. n° 155/12.1TBVLC-A.P1, disponível in www.dgsi.pt.):

I - No quadro actual da evolução do Direito nesta era do pós-legalismo que relativiza as coordenadas ditadas pela segurança jurídica, a protecção conferida pela Constituição da República Portuguesa ao direito fundamental da identidade pessoal deve impor que se garanta a possibilidade de indagação da verdade biológica pelo tempo de vida do investigante.

II - A evolução científica permite hoje que o apuramento da paternidade biológica aconteça sem que se torne necessária a intrusão na vida privada dos investigados ou seus familiares. Essa constatação mais determina, na ponderação dos interesses conflituantes, que se tenha por inconstitucional a imposição de um prazo de caducidade de dez anos, após a maioridade do pretenso filho, para a propositura de uma acção de investigação de paternidade.

Em sentido idêntico menciono ainda os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26.1.2021, p. 2151/18.6 T8VCT.G1.S1, de 6.11.2018, p. 1885/16.4 T8MTR.E1.S2 e de 14.5.2019, p. 1731/16.9 T8CSC.L1.S1 e os Acórdãos da Relação do Porto de 26.11.2012, p. 1906/l1.7T2AVR.P1, de 7.2.2012, p. 407/07.2TBVCD.P1 e de 3.6.2014, p. 1261/12.8 TBSTS.P1, todos disponíveis in www.dgsi.pt.

Eduardo Rodrigues Pires

Porto, 11 de Outubro de 2022”

19º. Para além dos mencionados acórdãos constantes da declaração de voto, e outros acima identificados, muitos há, desde logo do STJ que ao longo dos anos têm vindo a defender, e bem, a inconstitucionalidade do nº 1 do art. 1817.º do CC, nomeadamente (disponíveis em http://www.dgsi.pt):

- Ac. STJ de 25-03-2010, proc. 144/07.8TBFVN.C1.S1, 1ª Secção, Relator HÉLDER ROQUE;

- Ac. STJ de 27/01/2011, proc. 123/08.8TBMDR.P1.S1, 2ª Secção, Relator BETTENCOURT DE FARIA;

- Ac. STJ de 14/01/2014, proc. 155/12.1TBVLC-A.P1.S1, 1ª Secção, Relator MARTINS DE SOUSA;

- Ac. STJ de 16-09-2014, proc. 973/11.8TBBCL.G1.S1, 1ª Secção, Relator HÉLDER ROQUE;

- Ac. STJ de 15-02-2018, proc. 973/11.8TBBCL.G1.S1, 6ª Secção, Relatora GRAÇA AMARAL;

- Ac. STJ de 14/07/2010, proc. 1587/06.0TVPRT.P1, 1ª Secção, Relator RUI MOURA.

20º. Todos os mencionados acórdãos do STJ julgaram inconstitucional o artº 1817º nº 1 do CC, na redacção dada pela Lei nº 14/2009, pois a investigação da paternidade não pode estar sujeita a um prazo de 10 anos, quando se trata da identidade e dignidade do filho, como no caso dos autos, em que se pretende repor a verdade e corrigir uma informação errada no Registo Civil, onde a recorrente consta como filha de um pai que na verdade não é o seu pai biológico.

21º. Acresce que, ao contrário do que é mais habitual neste tipo de processos, a recorrente sempre teve identificado um pai no Registo Civil, que era o marido da mãe, o que a levou a acreditar que seria o seu pai verdadeiro, tendo só recentemente tido a certeza necessária de que afinal o seu pai de registo não era o seu pai verdadeiro, mas antes o seu padrinho de registo.

22º. É perfeitamente compreensível que a recorrente tenha tido a certeza desta informação apenas numa altura em que o seu pai de registo e o seu pai biológico já haviam falecido, tornando mais “fácil” que as pessoas falassem com esta do assunto sem tanto tabu…

23º. Ora, reitera-se que a informação errada constante da C. do Registo Civil é totalmente alheia à recorrente, pois, não sendo filha do marido da sua mãe, como era de esperar, não teve qualquer responsabilidade na informação prestada no Registo Civil após o seu nascimento, sendo essa responsabilidade dos seus “pais”, naturalmente.

24º. Foi considerado pelo STJ em acórdão recente que, estando em causa a ação de investigação da paternidade por parte de um filho, não se lhe pode impor qualquer prazo de caducidade para o efeito, como se poderia impor aos pais, esses sim com responsabilidade no registo de um filho.

25º. O dito acórdão do STJ está brilhantemente fundamentado no sentido de rejeitar o prazo do artº 1817º nº 1 do CC, desde logo porque um filho não ter qualquer responsabilidade pela informação prestada perante o registo civil sobre a identificação dos seus pais, após o seu nascimento.

26º. Por outro lado, este acórdão do STJ ressalva uma matéria fundamental na análise destes processo de investigação da paternidade, quando refere que: “Ora, o que desde logo se afigura é que, tendo em conta que o prazo geral de prescrição é de 20 anos (artigo 309.º do Código Civil), a duração de dez anos do prazo de caducidade, para impugnar a presunção de paternidade, conforme o artigo 1842.º, n.º 1, al. c), tem por consequência que a extensão do prazo para exercer um direito pessoalíssimo, como o direito à identidade pessoal, é mais reduzida do que a de um prazo para invocar direitos patrimoniais, o que não pode ser constitucionalmente admissível.”

27º. Ora, facilmente chegamos a uma comparação perfeitamente inadmissível: caso a recorrente tivesse um eventual crédito sobre os réus, relativo a uma dívida destes com aquela, poderia cobrar essa dívida até ao prazo de 20 anos, sem qualquer problema de prescrição; contudo, estando em causa uma matéria tão pessoal e sensível – investigação da paternidade - a recorrente tem uma imposição legal que a limita ao prazo de 10 anos para poder deduzir uma ação, onde se pretende provar e corrigir uma informação errada sobre a sua paternidade, constante da C. R. Civil, em que não tem qualquer responsabilidade.

28º. Que sentido faz esta limitação temporal?

29º. Qual a coerência de um sistema jurídico que mantém estas duas realidades?

30º. São por isso vários os argumentos para que este acórdão do TRP seja revogado, pois está em causa a identidade pessoal da recorrente, que não lhe pode ser negada, pois está consagrada como direito fundamental na CRP.

31º. O art.º 1817º, n.º 1 do Código Civil é uma verdadeira limitação aos direitos fundamentais da recorrente, que o acórdão recorrido não reconheceu, não obstante as várias decisões tomadas recentemente sobre esta matéria, pelos Tribunais Superiores, que vão no sentido de considerar este artigo inconstitucional.

32º. Veja-se o Acórdão do Tribunal Constitucional de 4/10/2018, processo n.º 471/17 (2ª secção), que julgou “inconstitucional a norma do artigo 1817.º, n.º 1, do Código Civil, na redação da Lei n.º 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade, por força do artigo 1873.º do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante, por violação das disposições conjugadas dos artigos 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.”

33º. Não olvidamos que o Tribunal Constitucional também já se pronunciou no sentido de que o artº 1817º nº 1 do CC não era violador da CRP, nomeadamente no acórdão nº 394/2019, processo n.º 471/2017, e acórdão nº 401/2011, processo n.º 497/10, mas em ambos os processos estavam em causa pais “incógnitos”, pois os autores eram filhos de pais desconhecidos e pretendiam que fosse averbado o nome do pai, omisso no registo de nascimento.

34º. Nesses processos os filhos sabiam e não podiam ignorar que tinham pais incógnitos, ao contrário dos presentes autos, em que a recorrente sempre soube que tinha um pai, que seria o marido da mãe, tendo só recentemente tido o conhecimento e a certeza necessária de que afinal seria filha biológica do seu padrinho de registo e não do marido da sua mãe.

35º. Essencial será lembrar que, nestas situações, os filhos precisam de tempo para saberem com a certeza necessária que não são filhos do pai registado, assim como têm que aprender a lidar com esta situação da qual não têm responsabilidade, mas que acaba por levar à vergonha da família e deles próprios, como se fossem responsáveis, pois não será fácil encarar a sociedade e a comunidade onde estão inseridos, que é por vezes implacável e intolerante perante uma situação que habitualmente tem por base uma relação extraconjugal, ainda censurável aos olhos da sociedade.

36º. Será por isso normal que o caminho vá no sentido de alargar (para pelo menos 20 anos) ou até eliminar qualquer prazo limite para intentar este tipo de ação, pois condiciona de forma desproporcional direitos fundamentais previstos nos arts. 16.º, n.º 1, 18.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da C.R.P., tanto mais tendo em conta o desenvolvimento da ciência na contribuição da investigação, cada vez mais segura, da paternidade, mesmo quando o pretenso pai já tenha falecido, como no caso dos autos.

37º. Para além dos tribunais, incluindo o Tribunal Constitucional, também a Doutrina se tem debruçado sobre esta matéria, surgindo como defensor desta tese, o Professor Joaquim de Sousa Ribeiro, “A inconstitucionalidade da limitação temporal ao exercício do direito à investigação da paternidade”, RLJ, Ano 146º (março/abril de 2018), nº 4009, págs. 214/238.

38º. Também o Exmo. Sr. Doutor Paulo Otero considerou que a identidade pessoal tem uma dimensão absoluta ou individual, sendo infungível, indivisível e irrepetível e uma dimensão relativa, com a história ou memória de cada um, própria e exclusiva da sua identidade. (in, “Personalidade e Identidade Pessoal e Genética do Ser Humano – Um perfil Constitucional de bioética”, P. 65 e 71 ss.)

39º. Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira – Curso de Direito da Família, Volume II, Tomo I, 2006, pág. 139 – sustentam que os tempos correm a favor da imprescritibilidade das ações de filiação, a propósito da caducidade do direito a investigar a paternidade, exarando que “não tem sentido hoje, acentuar o argumento do enfraquecimento das provas; e não pode atribuir-se o relevo antigo à ideia de insegurança prolongada, porque este prejuízo tem de ser confrontado com o mérito do interesse e do direito de impugnar a todo o tempo, ele próprio tributário da tutela dos direitos fundamentais à identidade e ao desenvolvimento da personalidade. Diga se, numa palavra, que o respeito puro e simples pela verdade biológica sugere claramente a imprescritibilidade”.

40º. Importante será ainda lembrar que foi solicitado em dezembro de 2019, parecer ao Conselho Superior de Magistratura, pelo Exmo. Sr. Presidente da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da Assembleia da República, no âmbito do Projeto de Lei 125/XIV/1, que visava terminar com os prazos legais para a propositura de ação de investigação da paternidade e da maternidade.

41º. Nesse parecer do CSM, datado de 06-02-2020 (disponível em https://www.csm.org.pt/estudos-e-pareceres), pode-se ler que terminar com os prazos legais para a propositura de ação de investigação da paternidade e da maternidade é uma opção do legislador, razão pela qual será uma questão de tempo até este artigo do Código Civil ser alterado, no sentido de não limitar temporalmente o prazo para a propositura destas ações, mormente tendo em conta a votação na reunião da Comissão n.º 21 em 2020-02-19, com resultado“Aprovado”(https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.a spx?BID=44198).

42º. O direito à filiação consubstancia-se em vários princípios constitucionais, tal como o direito a constituir família, previsto no artigo 36º nº 1 da CRP, pois todos têm o direito de ver juridicamente reconhecidos os seus laços de parentesco, para além da atribuição aos pais do poder-dever de educação dos filhos (artigo 36º nº 5 CRP), a inseparabilidade dos filhos dos seus progenitores e a não descriminação entre filhos nascidos do casamento e fora deste (artigo 36º nº 4 CRP).

43º. Ora, o acórdão recorrido violou os direitos da recorrente, como o direito à identidad pessoal e ao livre desenvolvimento da personalidade, previsto no artigo 26º da CRP.

44º. Ademais, não podem as leis ordinárias dificultar ou limitar, injustificadamente, o estabelecimento da filiação fora do casamento, e os prazos para a impugnação ou investigação da paternidade.

45º. O desejo de conhecer a ascendência biológica tem sido tão acentuado, que se assiste a movimentações no sentido de afastar o segredo sobre a identidade dos progenitores biológicos, mesmo nos casos de reprodução assistida (cfr. Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 11/95, as decisões sumárias nº 114/2005 de 9 de Março e 282/2005, de 4 de Agosto, e a Proposta de Lei nº 135/VII – Diário da Assembleia da República, I série, 95, de 18 de Junho de 1999).

46º. Lembra-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17/04/2008 – Proc. 08A474, Relator FONSECA RAMOS, que considerou que: “esse direito a conhecer a paternidade, valor social e moral da maior relevância, que se inscreve no direito da personalidade é um direito inviolável e imprescritível”.

47º. Referiu ainda este Acórdão do STJ que: “países como a Itália, Espanha e Áustria optaram pela imprescritibilidade das acções de investigação de paternidade, por considerarem que a procura do vínculo omisso do ascendente biológico é um valor que prevalece sobre quaisquer outros relativos ao pretenso progenitor.”

48º. Citando os professores Gomes Canotilho e Vital Moreira (in “Constituição da República Portuguesa Anotada” 4ª. edição revista, I, 462), o direito à identidade pessoal, tal como está consagrado no artigo 26º nº 1 da CRP, enquanto conhecimento da identidade dos progenitores pode fundamentar em si um direito à investigação da paternidade e da maternidade.

49º. Tal direito inclui o direito à identidade genética própria e, em consequência, ao conhecimento dos vínculos de filiação “no ponto em que a pessoa é condicionada na sua personalidade pelo fator genético”. Cf. – Prof. Jorge Miranda e Dr. Rui Medeiros, in “Constituição da República Portuguesa Anotada”, 2005, I, 204-205.

50º. Assim, o direito a conhecer e ver reconhecida a ascendência e de estabelecer um vínculo biológico conducente ao estabelecimento de um vínculo jurídico, é um direito absoluto, não podendo o Estado, de forma alguma, limitar o assentamento da filiação/identidade pessoal, com limitações de prazos.

51º. Acresce que é do interesse da ordem pública a fixação e a realidade das relações de parentesco, razão porque está consagrada a averiguação oficiosa.

52º A limitação temporal imposta pelo nº 1 do artigo 1817º do Código Civil não permite um justo equilíbrio de interesses, pois protege os interesses do investigado e da sua família, permitindo-lhe que permaneça acoutado na sua omissão e/ou irresponsabilidade de não reconhecimento de paternidade real.

53º. O prazo previsto no atual nº 1 do artigo 1817º do Código Civil, é também materialmente inconstitucional, na medida em que é limitador da possibilidade de investigação a todo o tempo, constituindo o estabelecimento do mesmo e nos tempos que correm, com o novo paradigma do direito fundamental à identidade pessoal e de livre desenvolvimento da personalidade uma restrição não justificada, desproporcionada e não admissível do direito do filho saber em vida de quem ascende.

54º. Assim, o estabelecimento de um limite temporal para a instauração de uma ação de investigação de paternidade é inconstitucional por violação dos artigos 26º nº 1, 36º nº 1 e 18º nº 2 da CRP.

55º. O respeito pela verdade biológica sugere a imprescritibilidade não só do direito de investigar (cfr. acórdão do TC nº 23/2006, de 10 de janeiro, tendo força obrigatória geral a declaração de inconstitucionalidade nele vertida a propósito do artigo 1817º nº 1 do CC) como o de impugnar.

56º. As razões que militavam para a previsão de um prazo limitativo de caducidade das ações de investigação de paternidade, têm de ceder perante os direitos fundamentais que militam no sentido da imprescritibilidade daquela tipologia de ações, estando em causa o direito de constituir família, o direito à identidade pessoal, o direito à integridade pessoal e o direito à não descriminação (artigos 26º nº 1 e 36 nº 1 da CRP).

57º. O direito à identidade e à integridade pessoal ganharam uma nova dimensão que não pode ser desvalorizada, sendo certo que a Assembleia da República acabará por alterar o artº 1817º nº 1 do CC, com vista a terminar com os prazos legais para a propositura de ação de investigação da paternidade e da maternidade.

58º. O direito à identidade e à integridade pessoal, e o direito ao livre desenvolvimento da personalidade leva em si a que não se coloquem desproporcionadas restrições a esses direitos fundamentais quando é colocada a questão da filiação, seja numa ação de investigação seja numa ação de impugnação.

59º. Deverá o artigo 1817º nº 1 do Código Civil ser declarado inconstitucional, por violação dos artigos 26º nº 1, 36º nº 1 e 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa, uma vez que, independentemente da proporcionalidade ou desproporcionalidade da consagração de um prazo de caducidade, o artigo 1817º nº 1 do Código Civil, na sua nova redação, é uma lei restritiva de direitos, liberdades e garantias.

60º. Assim, o artigo 1817º nº 1 do Código Civil, na redação da Lei nº 14/2009 de 1 de abril, ao estabelecer um prazo de caducidade de 10 anos após a maioridade (ou emancipação) do investigante para a propositura da ação de investigação de paternidade (1873º CC) é inconstitucional, por violação das disposições conjugadas dos artigos 18º nº 2, 26º nº 1 e 36º nº 1 da CRP.

61º. O acórdão recorrido violou nomeadamente o disposto nos artsº 1817º nº 3, artigos 1839º, 1846º e 1842º nº 1 al. c) do Código Civil, e artsº. 26.º, n.º 1, 36.º, n.º 1, e 18.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

TERMOS EM QUE SE REQUER QUE O RECURSO SEJA JULGADO PROCEDENTE E, CONSEQUÊNCIA SEJA O ACÓRDÃO RECORRIDO REVOGADO, ALTERANDO-SE O MESMO, NO SENTIDO DE PERMITIR A REALIZAÇÃO DE AUDIÊNCIA DE JULGAMENTO, COM VISTA À PRODUÇÃO DE TODA A PROVA QUE PERMITA APURAR QUE A RECORRENTE É FILHA BIOLÓGICA DE HH, DEVENDO A EXCEÇÃO DE CADUCIDADE DO DIREITO DE AÇÃO SER IMPROCEDENTE,

E O ARTIGO 1817º Nº 1 DO CÓDIGO CIVIL SER DECLARADO INCONSTITUCIONAL, POR VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 26º Nº 1, 36º Nº 1 E 18º Nº 2 DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA,

TAL COMO SE CONTEMPLA NAS CONCLUSÕES ADUZIDAS, FAZENDO ASSIM VOSSAS EXCELÊNCIAS INTEIRA, SÃ E COSTUMADA JUSTIÇA!

10. Os Réus contra-alegaram, pugnando pela inadmissibilidade e. subsidiariamente, pela improcedência do recurso.

11. Finalizaram a sua contra-alegação com as seguintes conclusões:

1 - O recurso deve ser rejeitado pois não apresenta conclusões que delimitam o objeto do mesmo e, consequentemente, os poderes de cognição deste Tribunal.

2 - Limitar-se-ão os Recorridos a pugnar pela manutenção do Julgado, que deverá manter-se “qua tale”, pois, a decisão da questão de facto e de direito, não merece qualquer censura;

3 - Houve adequada subsunção dos factos ao direito;

4 - Devem improceder todas as alegações do Recurso e manter-se o Julgado “qua tale”, assim se fazendo JUSTIÇA.

12. Como o objecto do recurso é delimitado pelas conclusões do Recorrente (cf. arts. 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. art. 608.º, n.º 2, por remissão do art. 663.º, n.º 2, do Código de Processo Civil), as questões a decidir, in casu, eram as seguintes:

I. — se o art. 1817.º do Código Civil deve ser desaplicado, por inconstitucionalidade;

II. — se o acórdão recorrido deve ser revogado, julgando-se improcedente a excepção de caducidade do direito de acção e determinando-se a produção de prova que permita estabelecer se a Autora, agora Recorrente, AA é filha de HH.

13. Em 2 de Fevereiro de 2023, o Supremo Tribunal de Justiça proferiu acórdão julgando improcedente o recurso.

14. Inconformada, a Autora interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 70.º, n.ºs 2-4, da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional.

15. Em 15 de Julho de 2024, o Tribunal Constitucional proferiu acórdão, julgando procedente o recurso.

16. O dispositivo do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 552/2024 é do seguinte teor:

“Pelo exposto, decide-se:

Julgar inconstitucional, por violação do disposto no n.° 1 do artigo 26.° e do n.° 1 do artigo 36.° da Constituição, em conjugação com o n.° 2 do artigo 18.° da Constituição, a norma do n.° 1 do artigo 1817.° do Código Civil, na redacão da Lei n.° 14/2009, de 1 de abril, na parte em que, aplicando-se às ações de investigação da paternidade por força do artigo 1873.° do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante;

e, em consequência,

Determinar a reforma da decisão recorrida, em conformidade com o precedente juízo de inconstitucionalidade”.

II. — FUNDAMENTAÇÃO

OS FACTOS

17. O acórdão recorrido deu como provados os factos seguintes:

- A presente acção deu entrada em 25.03.2021;

- A A. nasceu em ........1987 (tinha 34 anos, à data da propositura da ação).

O DIREITO

18. A primeira questão suscitada pela Recorrente relaciona-se com a alega a inconstitucionalidade do art. 1817.º do Código Civil.

17. A questão foi decidida no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 552/2024 1.

18. O Tribunal Constitucional julgou inconstitucional, “por violação do disposto no n.° 1 do artigo 26.° e do n.° 1 do artigo 36.° da Constituição, em conjugação com o n.° 2 do artigo 18.° da Constituição, a norma do n.° 1 do artigo 1817.° do Código Civil, na redacção da Lei n.° 14/2009, de 1 de Abril, na parte em que, aplicando-se às acções de investigação da paternidade por força do artigo 1873.° do mesmo Código, prevê um prazo de dez anos para a propositura da ação, contado da maioridade ou emancipação do investigante”.

19. Em consequência, deve desaplicar-se o prazo de caducidade do artigo 1817.º do Código Civil e julgar-se improcedente a excepção peremptória de caducidade.

20. Face à resposta dada à primeira, fica prejudicada a segunda questão.

III. — DECISÃO

Face ao exposto, reforma-se o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça em 2 de Fevereiro de 2023, como determinado no acórdão do Tribunal Constitucional n.º 552/2024, e, em consequência:

I. — revoga-se o acórdão recorrido;

II. — julga-se improcedente a excepção peremptória de caducidade;

III.. — determina-se a remessa dos autos ao Tribunal de 1.ª instância para que se pronuncie sobre os pedidos deduzidos pela Autora, agora Recorrente, AA.

Custas a final.

Lisboa, 14 de Novembro de 2024

Nuno Manuel Pinto Oliveira (relator)

José Maria Ferreira Lopes

António Barateiro Martins

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1. Com comentário de Miguel Teixeira de Sousa em WWW: < https://blogippc.blogspot.com/2024/09/jurisprudencia-constitucional-229.html >