Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS | ||
Descritores: | SEGURO AUTOMÓVEL DANOS PRÓPRIOS PRINCÍPIO INDEMNIZATÓRIO | ||
Data do Acordão: | 05/03/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | REVISTA IMPROCEDENTE. | ||
Sumário : | I- Face ao que decorre do DL 214/97 – ou seja, no âmbito dos seguros que confiram coberturas facultativas a danos próprios de veículos automóveis – não é deixada à autonomia privada do tomador do seguro a indicação do valor ou capital que pretende seja considerado seguro, cabendo, isso sim, ao tomador de seguro fornecer ao segurador os elementos que permitam a este a determinação do valor da indemnização em caso de perda total e do capital seguro, tendo em conta as tabelas de desvalorização a que se refere o DL 214/97. II- Caso o segurador não proceda a tal determinação – caso aceite acriticamente o valor indicado pelo tomador do seguro e cobre o prémio correspondente ao valor indicado (superior ao valor do veículo) – responde, em caso de sinistro, pelo valor seguro à data do vencimento do prémio imediatamente anterior à verificação desse mesmo sinistro (nos termos do art.º 3.º do DL 214/97), ou seja, satisfaz uma prestação superior ao valor do veículo (uma vez que tal art. 3.º do DL 214/97 constitui uma exceção ao “princípio indemnizatório” consagrado nos arts. 128.º, 130.º e 132.º do RJCS). | ||
Decisão Texto Integral: | Processo: 4280/21.0T8VIS.C1.S1 ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA I - Relatório MGL 2, Transportes Lda., com sede em Quinta ..., ..., instaurou ação declarativa comum contra Companhia de Seguros Allianz Portugal SA, com sede em ..., pedindo que esta seja condenada a pagar-lhe a “quantia de € 52.011,19 €, relativa ao capital seguro, acrescida dos juros calculados à taxa legal desde 12.08.2020, que até à presente data se contabilizam em 2 445,28 € e os que se vencerem até efetivo e total pagamento, bem pela privação do uso do veiculo, uma indemnização correspondente à verba diária de 149,33 €, desde o dia 12.08.2020 até à data em que se tiver verificado a efetiva entrega a A. da indemnização devida e que até hoje se contabiliza em 63.913,24 €, acrescida dos juros à taxa legal desde a citação, até efetivo e total pagamento”. Alegou que é dona do veículo automóvel, trator pesado, de marca Renault, com a matrícula ..-QG-.., tendo celebrado com a Ré, com respeito a tal veículo, contrato seguro que, para além das coberturas obrigatórias, previa coberturas facultativas relativas a danos próprios, designadamente, choque, colisão ou capotagem, com o capital seguro de 55.000,00 € (tendo sido estipulado a franquia de 1.100,01 €); sucedendo que, no dia 11/08/2020, pelas 14,45 horas, ao KM ... do A 8, em ..., quando o referido veículo ..-QG-.. era conduzido pelo motorista da A. AA, teve um acidente e ficou destruído. Mais alegou que participou tal sinistro à R., que apurou não se mostrar aconselhável a sua reparação e lhe propôs, a título de indemnização, o valor de 10.852,00 € (correspondente ao valor de 13.000,00 € atribuído ao veículo, deduzido do valor do salvado de 1.888,00€ e do valor da franquia); proposta esta que a A. não aceitou, pretendendo e aqui reclamando uma indemnização de 52.860.00 € (correspondente ao capital seguro de 55.000,00 €, deduzido do valor do salvado e do valor da franquia) e, ainda, uma indemnização pela privação do uso da viatura desde a data do acidente (considerando que a A. é uma empresa que se dedica a atividade de transportes internacionais de mercadorias por estrada e que o trator pesado ..-QG-.. constituía um dos seus instrumentos de trabalho, o que lhe causa um prejuízo diário de 149,33 €). A R. contestou, alegando que a A., “aquando da primeira inclusão do “QG” na apólice em análise, ocorrida em 20/11/2015, atribui-lhe um valor em novo de € 85.938,00, de forma a que, com a desvalorização, dado ser um veículo de 2012, o sistema da R. aceitasse que o valor venal do veículo fosse de € 55.000,00”[1]; “posteriormente, mais especificamente em 02/06/2016, a solicitação da A., este veículo deixou de estar incluído na apólice em crise”[2]; “em 19/12/2018, voltou a A. a solicitar a inclusão do “QG” na apólice, tendo nesse momento a mesma atribuído um valor em novo de € 161.765,00, (…) de forma a manter um valor venal igual ou seja de € 55.000,00”[3]; “facto que passou despercebido aos serviços da R. uma vez que com a constante inclusão e retiradas de veículos nas apólices de frota, como é o caso em análise, nem sempre é possível controlar os valores atribuídos pelos segurados”[4]. Invocando, com base em tal factualidade, que a A. atribuiu ao “QG” um valor muito superior ao seu valor comercial, o que a R. desconhecia e que, por isso, se verifica uma situação de sobresseguro, razão pela qual, “por força do princípio indemnizatório”, o valor que contratualmente a A. tem direito a receber foi o que lhe foi proposto e colocado à disposição. E concluiu pela total improcedência da ação. A A. respondeu, negando ter atribuído ao veículo (quando voltou a solicitar a sua inclusão na apólice) um valor em novo de € 161.765,00 (antes solicitando a sua inclusão pelo “valor de danos próprios de 55.000.00 €”) e invocando ser ao caso aplicável o DL 214/97, cujas regras a R. não cumpriu, razão pela qual “a R. responde com base no valor seguro apurado à data do vencimento do sinistro”[5], “não tendo aplicação ao caso dos autos o DL 72/2008”[6]. Realizada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, em que foi declarada a total regularidade da instância, estado em que se mantém; tendo-se identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova. Instruído o processo e realizada a audiência, o Exmo. Juiz proferiu sentença, em que se julgou a ação parcialmente procedente e, em consequência, “condenou a R. no pagamento à A. do total de € 35.000,00, correspondente às seguintes quantias: 1- € 17.099,99, a título de perda total do veículo; 2- € 17.900,01, a título de paralisação do veículo; 3- Juros, à taxa legal, desde a citação e até integral pagamento.” Inconformados com tal decisão, interpuseram recursos de apelação, autónomo e subordinado, respetivamente, quer a A. quer a R., recursos a que, por Acórdão da Relação de Coimbra de 10/01/2023, foi “concedido parcial provimento, revogando-se, correspondentemente, a sentença impugnada, e condenando-se a apelante subordinada, Companhia de Seguros Allianz Portugal, SA, a pagar à apelante principal: a) A quantia de € 52 011,99, acrescida de juros de mora, à taxa supletiva dos juros civis, contados desde 23 de Outubro de 2020, até pagamento; b) A quantia que se liquidar ulteriormente, com observância dos limites do pedido, relativo ao dano suportado pela apelante principal com a privação do uso do veículo automóvel ..-QG-...” Ainda inconformado, interpõe agora a R./seguradora o presente recurso de revista, visando a revogação parcial do Acórdão da Relação e que a indemnização devida a título de perda total seja reduzida para o montante de € 15.211,99 (€ 18.200,00, deduzido dos montantes de € 1.100,01 e € 1.888,00) e os juros contabilizados apenas desde a citação. Concluiu as suas alegações do seguinte modo: (…) 1. Não pode a Recorrente conformar-se com o douto acórdão proferido pelo Venerando Tribunal da Relação de Coimbra relativamente ao decidido quanto à perda total. 2. Com efeito, o regime legal disposto no Decreto-Lei 214/97 de 16 de agosto não afasta o princípio do indemnizatório, o qual sempre será aplicável (a não ser que exista convenção expressa das partes em sentido diverso). 3. Através da aplicação do princípio do indemnizatório deve a indemnização devida a título de perda total ser reduzida ao valor venal do veículo, nos termos contratualmente estabelecidos na cláusula 6.3 e legalmente previstos nos artigos 128.º e 132.º do DL 72/2008. 4. Pelo exposto, sempre se dirá que a indemnização devida pela perda total do “QG” deve corresponder ao valor venal do veículo, deduzido da franquia contratualmente aplicável, e do valor do seu salvado - conforme decidido pelo Tribunal a quo ao abrigo do princípio compensatio lucri cum danno - devendo, consequentemente, a indemnização devida a título de perda total ser reduzida para o montante de Eur. 15.211,99 (Eur. 18.200,00 deduzido dos montantes de Eur. 1.100,01 e Eur. 1.888,00). 5. Quanto à fixação dos juros considerando o disposto nos artigos 804.º e 805 do Código Civil devem os juros ser contabilizados desde a citação para os presentes autos. 6. Assim, ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto na cláusula 6.3 do contrato de seguro em causa nos autos, e as normas previstas nos artigos 128.º e 132.º do DL 72/2008, no artigo do 3.º do DL 241/97 de 16 de agosto e artigos 804.º e 805.º do Código Civil, o que se invoca nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 674.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil. (…)” Não foi apresentada qualquer resposta pela A.. Obtidos os vistos, cumpra, agora, apreciar e decidir. * II – Fundamentação de Facto II – A – Factos provados. 1 A A. é dona do veículo automóvel, trator pesado, de marca Renault, com o número de matrícula ..-QG-... 2 A A. celebrou com a Ré um contrato seguro do ramo automóvel, que para além do obrigatório, previa coberturas facultativas, relativas a danos próprios, que viessem a produzir-se no seu veículo trator pesado de marca Renault, com o número de matrícula ..-QG-.., em consequência da respetiva circulação. 3 Tal contrato era titulado pela apólice ...5. 4. O prémio comercial e anual do contrato de seguro celebrado foi pago pela A. e recebido pela Ré. 5 Aquando da inclusão do veículo na apólice de seguro, a ...9 de Dezembro de 2018, foi atribuído ao veículo seguro o valor de 55.000,00 €. 6 O contrato identificado abrangia a cobertura de danos próprios de choque, colisão ou capotagem, com o capital seguro de 55.000,00 €. 7 Tendo sido estipulado a franquia de 1100,01 €. 8 No dia 11.08.2020, pelas 14,45 horas, ao KM ... do A 8, ..., por causas ignoradas, quando o referido veículo ..-QG-.. era conduzido pelo motorista da A. AA, entrou em despiste, atravessou-se na via, ainda em despiste. 9 Do embate resultaram danos no veículo, que ficou destruído. 10 A A. no dia 18.08.2020, participou à Ré o sinistro referido. 11 A Ré no dia 23 de Setembro de 2020 comunicou à A. que peritou o veículo ..-QG-.., tendo apurado que reparação não se mostrava aconselhável, já que o seu custo 63.797,57 € era superior ao valor venal do veículo, que atribuiu em 13.000,00 €. 12 Ré avaliou os salvados em 1.888,00 €. 13 A título de indemnização propôs liquidar o valor de 10.852,00 €, correspondente à diferença entre o valor atribuído ao veículo, o valor dos salvados e deduzida a franquia de 260,00 €. 14 A A. não aceitou a proposta apresentada, não só por não concordar como valor atribuído ao veículo, por ser inferior ao valor de mercado, mas também porque o capital seguro era de 55.000,00 €, reclamando o pagamento da quantia de 52.860,00 €, correspondente ao capital seguro, deduzido a franquia e o valor dos salvados. 15 Recusou-se a Ré a satisfazer esta indemnização. 16. A autora, desde a data do acidente, não mais pôde utilizar o veículo. 17. A declaração de seguro a que corresponde apólice ...5, formalizada pela Ré, determina o início do seguro é reportado às 00,00 horas de 01.05.2020 e o seu termo é reportado a 30.04.2021. 18 A mesma apólice consigna que o valor seguro de danos próprios por choque, colisão ou capotagem é de 55.000,00 €. 19 Explicitando-se em rodapé, que este valor sofre uma desvalorização anual automática com base nas Tabelas de Desvalorização em vigor. 20 A A. é uma empresa que se dedica a atividade de transportes internacionais de mercadorias por estrada. 21 O trator pesado ..-QG-.., constitui um dos seus instrumentos de trabalho. 22 A autora suporta um prejuízo que, em concreto, não foi possível fixar. 23 O veículo da A. estava afeto ao transporte internacional de mercadorias por estrada. 24 Fazia em média duas viagens por semana para o estrangeiro. 25 Percorrendo, em média, por semana ou por mês, quilometragem que não foi possível apurar com precisão. 26 Cada km era faturado por quantia que não foi possível apurar com precisão. 27 De que resultava uma faturação bruta mensal que não foi possível fixar. 28 As despesas mensais com motorista, combustíveis, óleos, portagens, pneus, seguros, desgaste de componentes, eram em quantitativo que, igualmente, não foi possível apurar com rigor. 29 O valor venal do “QG”, veículo pesado, importado, de Janeiro de 2012, com mais de 841.000 Km percorridos, da marca Renault, não é suscetível de fixar com precisão, mas fixa-se entre os 13.000,00 € e os € 18.200,00. 30 Em 02/06/2016, a solicitação da A., este veículo deixou de estar incluído na apólice em crise. 31 Em 19/12/2018 voltou a A. a solicitar a inclusão do “QG” na apólice, tendo mantido um valor venal igual, ou seja, de € 55.000,00. 32 Facto que passou despercebido aos serviços da R. 33 A A. atribuiu ao “QG” um valor muito superior ao seu valor comercial. 34 A autora, desde 23/09/2020, sabia não só que se estava perante uma perda total, bem como qual o valor que lhe foi posto à disposição. 35 Em Março de 2021 a Ré comunicou à A. que decidira atualizar o capital seguro dos danos próprios, dos veículos que identifica. 36 Atribuindo, então, ao veículo ..-QG-.. o valor de 18.200,00 €. 37 A ré atualizava anualmente os prémios de seguro, tendo por base capital seguro. 38 A A. no dia 18 de Dezembro de 2018, remeteu correio eletrónico ao Sr. BB, mediador da Ré, solicitando-lhe a inclusão na apólice de frota do veículo ..-QG-.., no valor de danos próprios de 55 000,00 €. * II – B – Factos não Provados. Não se provou que a) À data da realização do contrato seguro foi atribuído pela Ré seguradora ao veículo seguro o valor. b) O prejuízo diário de 149,33 €. c) O veículo percorresse em média 3500 km por semana, ou seja, 14000 km/mês, à razão de 0,80 €, fazendo uma faturação bruta mensal de 11200,00 €. d) A autora, aquando da primeira inclusão do “QG” na apólice em análise, lhe atribui um valor em novo de € 85.938,00 de forma a que, com a desvalorização, o sistema da R. aceitasse que o valor venal do veículo fosse de € 55.000,00. e) Em 19/12/2018 atribuiu ao mesmo um valor em novo de € 161.765,00, de forma a manter um valor venal igual ou seja de € 55.000,00. f) A R. desconhecia que a A. lhe atribuiu um valor muito superior ao seu valor comercial. g) O valor venal do veículo era 55.000,00€ * III – Fundamentação de Direito O presente litígio colocava-nos perante duas questões: uma primeira, respeitante ao valor da prestação “indemnizatória” devida pela perda total do veículo seguro; e, uma segunda, respeitante à reparação do dano da privação do uso de tal veículo[7]. Sucedendo que, neste momento, face à divergência recursiva expressa pela R./seguradora em relação ao Acórdão recorrido, apenas está em causa a primeira das questões (como claramente resulta das suas conclusões recursivas, supra transcritas). E, indo imediatamente ao âmago da questão que monopoliza o objeto da presente revista, tudo estará em saber se ao caso – se ao cálculo da “prestação indemnizatória” devida – se aplica ou não o chamado “princípio indemnizatório” (o mesmo é dizer, as normas do RJCS que consagram as soluções impostas por tal “princípio indemnizatório”). Não se discute – nunca se discutiu – que entre as partes foi celebrado e estava em vigor na data do acidente/sinistro um contrato de seguro de danos que, além das coberturas obrigatórias (próprias do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), incluía também coberturas facultativas, sendo justamente numa de tais coberturas facultativas – ou seja, como e enquanto seguro facultativo de danos – que se situa o litígio e centrado sobre o montante do pagamento contratualmente devido (da indemnização devida, para usar a linguagem corrente) pela R./seguradora (isto é, não se discute – nunca se discutiu – que o acidente/sinistro tenha causado a perda total do veículo “QG” e tenha feito funcionar a cobertura facultativa em causa: danos próprios por choque, colisão ou capotamento). Vejamos, então: Como é sabido, no seguro de danos, o cálculo da “prestação indemnizatória” devida pela seguradora, face ao caráter não especulativo do contrato de seguro, é dominado pelo chamado “princípio indemnizatório”, segundo o qual o segurado deve ser ressarcido do prejuízo que efetivamente sofreu, não podendo o seguro constituir fonte de rendimento para o lesado (o seguro de danos visa suprir o dano efetivamente sofrido, pelo que a prestação devida pela seguradora está sujeita a um duplo limite: o dano e o capital seguro). “Princípio indemnizatório” que dá o nome à seção III do capítulo I do título II do RJCS (aprovado pelo DL 72/2008, de 16-04) e que leva a que aí se disponha[8] que “a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro” (cf. art. 128.º do RJCS); que, “no seguro de coisas, o dano a atender para determinar a prestação devida pelo segurador é o valor do interesse seguro ao tempo do sinistro” (art. 130.º/1 do RJCS); e que “se o capital seguro exceder o valor do interesse seguro, é aplicável o disposto no art. 128.º, podendo as partes pedir a redução do contrato” (art. 132.º/1 do RJCS). Em síntese, exprime o “princípio indemnizatório” que, excedendo o seguro de danos o valor do objeto segurado (sobresseguro), só é válido até à concorrência desse valor, o que significa que a prestação devida pelo segurador está limitada ao dano decorrente do sinistro até ao montante do capital seguro. Mas, sendo tal “princípio indemnizatório” uma regra matricial do seguro de danos, comporta derrogações – podendo até dizer-se que, hoje, vale mais como declaração de princípios impeditiva de abusos, de enriquecimento excessivo e, no limite, de fraudes – uma vez que é o próprio RJCS, no seu art. 131.º/1, a prever a admissão genérica de derrogações ao princípio indemnizatório e a admitir que a autonomia privada se sobreponha e derrogue o “princípio indemnizatório”, na medida em que dispõe que, “sem prejuízo do disposto no art. 128.º e no n.º 1 do artigo anterior, podem as partes acordar no valor do interesse seguro atendível para o cálculo da indemnização”, embora no trecho final de tal art. 131.º/1 se fixe um limite racional (razoável correspondência do valor acordado ao valor real) ao que as parte podem acordar, ou seja, “não devendo esse valor [acordado pelas partes] ser manifestamente infundado”[9] (o que obsta a uma aplicação estrita dos regimes de sobresseguro ou de subseguro ao contrato de seguro em que as partes hajam acordado no valor do interesse seguro atendível). E uma outra derrogação ao “princípio indemnizatório” é a que decorre do regime previsto no art. 3.º do DL 214/97, de 16 de Agosto (regime destinado “a assegurar uma maior transparência nos contratos de seguro automóvel que incluam coberturas facultativas relativas aos danos próprios sofridos pelos veículos seguro”, como se refere no art. 1.º de tal DL), o qual prevê, como sanção para o incumprimento do dever legal de “alteração automática” pelo seguradora, que a prestação da seguradora seja superior ao valor do bem seguro (em derrogação, repete-se, do “princípio indemnizatório”). E a propósito do valor do bem seguro – ou, mais exatamente, do capital seguro – dispõe-se no art. 49.º/1 e 2 do RJCS: 1 - O capital seguro representa o valor máximo da prestação a pagar pelo segurador por sinistro ou anuidade de seguro, consoante o que esteja estabelecido no contrato. 2 - Salvo quando seja determinado por lei, cabe ao tomador do seguro indicar ao segurador, quer no início, quer durante a vigência do contrato, o valor da coisa, direito ou património a que respeita o contrato, para efeito da determinação do capital seguro. O que significa, que no âmbito dos seguros obrigatórios, o capital ou valor mínimo a segurar decorre, em princípio, da lei que institua cada um deles ou de normativo que o regulamente; e que, no âmbito dos seguros facultativos plenamente regidos pela autonomia privada, a solução regra é a de que cumpre ao tomador do seguro indicar, de forma explícita e clara, o valor ou capital que pretende que seja considerado seguro, diga ele respeito a uma coisa, direito ou património. Porém, em face do que decorre do referido DL 214/97, de 16-08, ou seja, no âmbito dos seguros que confiram coberturas facultativas a danos próprios de veículos automóveis, não se pode dizer que seja deixada à autonomia privada do tomador do seguro a indicação do valor ou capital que pretende seja considerado seguro, cabendo antes ao tomador de seguro fornecer ao segurador os elementos que permitam a este a determinação do valor do capital seguro, tendo em conta, repete-se, o que decorre do DL 214/97. Pelo seguinte: Diz-se no preâmbulo de tal DL 214/97 que “uma das cláusulas contratuais gerais, comum à generalidade das seguradoras operando no território nacional, que maior reparo tem merecido é a que se refere às situações de sobresseguro, em que a aplicação menos clara de certas regras de carácter técnico, desacompanhadas da necessária informação e explicação, conduz a situações inesperadas e, por vezes, verdadeiramente injustas para os segurados no momento da liquidação das indemnizações em caso de sinistro automóvel”; afirma-se mais à frente que “o sistema introduzido garante, assim, a indemnização pelo valor seguro em caso de perda total”; e, passando ao articulado legal, estabelece-se em tal DL 214/97: Artigo 1.º Artigo 2.º Artigo 3.º Artigo 4.º _____________________________________________________
[7] Reparação esta fundada, não na inclusão da cobertura de tal risco no contrato, mas sim no atraso injustificado (na violação dos deveres acessórios de conduta) da seguradora na realização da prestação “indemnizatória” convencionada para a perda total do veículo. [9]São hoje correntes cláusulas conducentes à determinação do capital seguro por referência a certos conceitos como: valor em novo, valor de substituição, valor de reconstrução, valor venal, valor de uso, valor de empreitada ou custo da obra, etc. [10] Daí que tenhamos retirado dos factos provados aquele em que se dizia que “toda esta situação se encontra contratualmente consagrada na clausula 6.3 da apólice”, uma vez que, se se quer dizer (com tal facto) que a cláusula 6.3. vale e significa a “estipulação por acordo” prevista no art. 5.º do DL 214/97, então, trata-se de matéria de direito a ser aqui e agora apreciada (e não matéria de facto, a ser decidida com um facto de tal teor).
|