Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
13176/21.4T8LSB.L2.S2
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO SOCIAL
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: NULIDADE DA DECISÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
EXCESSO DE PRONÚNCIA
REFORMA DA DECISÃO
REFORMA DE ACÓRDÃO
REJEIÇÃO DE RECURSO
TAXA SANCIONATÓRIA EXCECIONAL
Data do Acordão: 11/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: INDEFERIDA A RECLAMAÇÃO
Sumário :
I. As nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa

II. A nulidade por omissão de pronúncia [art. 615.º, n.º l, d), do CPC], sancionando a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608.º, do mesmo diploma, apenas se verifica quando o tribunal deixe de conhecer “questões temáticas centrais”, ou seja, atinentes ao thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções; e, reciprocamente, o excesso de pronúncia só se verifica quando o tribunal conheça de matéria diversa desta.

III. O tribunal não se encontra inibido de usar argumentação diversa da utilizada pelas partes, ou de recorrer a qualquer abordagem jurídica de que seja passível determinada questão (desde que não extravase os limites da questão propriamente dita).

IV. A reforma da decisão tem como objetivo a reparação de lapsos manifestamente óbvios, em resultado de erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos, ou quando constem do processo documentos ou outro meio de prova plena que, só por si, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida.

V. Tendo deduzido pretensão em violação de lei expressa e cuja manifesta improcedência não podia desconhecer, a requerente, violando os deveres de diligência, prudência e boa-fé processual a que se encontra adstrita (cfr. art. 8º, do CPC), fez um uso flagrantemente abusivo do processo, pelo que se impõe a aplicação da taxa sancionatória excecional prevista e regulada no art. 531º, do mesmo diploma.

Decisão Texto Integral:
Revista n.º 13176/21.4T8LSB.L2.S2

MBM/DM/JES


Acordam, em conferência, na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça

I.


1. Julgado o recurso, veio a R. MOTA-ENGIL, Engenharia e Construção, S.A.:

a) Requerer “a rejeição do recurso de revista”, alegando o “não preenchimento do requisito geral da sucumbência”;

b) Arguir a nulidade do acórdão, por excesso de pronúncia, bem como, subsidiariamente, a sua reforma.

2. A A., AA, respondeu, pugnando pelo indeferimento do peticionado.

Decidindo.


II.

3.1. Por despacho do relator neste Supremo Tribunal de Justiça, datado de 19.03.2024 – tendo sido entendido (para além do mais) que o valor da sucumbência era superior a 15.000,00 € –, foi admitida a revista nos termos gerais quanto a certos pontos e determinada a remessa dos autos à Formação a que alude o artigo 672º, nº 3, do CPC1, a qual veio a admitir a revista excecional no tocante, entre outras, à questão da (i)licitude do despedimento.

Proferido que foi o acórdão final, vem agora a ré requerer que tal despacho seja reapreciado em sede de Conferência …

Requerimento que, obviamente, é a todos os títulos extemporâneo – e, assim, improcedente –, uma vez que tal despacho transitou em julgado, desde logo por não ter sido objeto de reclamação, no prazo legal/geral de 10 dias (arts. 652º, nº 3, e 149º, nº 1) e, por outro lado, pelo facto de o acórdão em causa ter implicitamente reafirmado que nada obstava ao conhecimento da revista (ao conhecer das questões que constituíam o seu objeto).

3.2. Tendo deduzido pretensão em violação de lei expressa e cuja manifesta improcedência não podia desconhecer, a requerente, violando os deveres de diligência, prudência e boa-fé processual a que se encontra adstrita (cfr. art. 8º), fez um uso flagrantemente abusivo do processo, pelo que se impõe a aplicação da taxa sancionatória excecional prevista e regulada no art. 531º, em montante que se tem por adequado fixar em 2 UC (cfr. art. 10º do Regulamento das Custas Judiciais).

4.1. Entre as causas de nulidades da sentença, enumeradas taxativamente no artigo 615.º, n.º 1, não se incluem o “chamado erro de julgamento, a injustiça da decisão, a não conformidade dela com o direito substantivo aplicável, o erro na construção do silogismo judiciário” (Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, in Manual de Processo Civil, 2ª Edição Revista e Atualizada, Coimbra Editora, 1985, pág. 686).

Na verdade, como se sabe, as nulidades de sentença apenas sancionam vícios formais, de procedimento, e não patologias que eventualmente possam ocorrer no plano do mérito da causa, como este Supremo Tribunal tem reiteradamente declarado (v.g. Ac. do STJ de 10.12.2020, proc. n.º 12131/18.6T8LSB.L1.S1, 7.ª Secção).

Em matéria de pronúncia decisória, o tribunal deve conhecer de todas (e apenas) as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º], questões (a resolver) que não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os invocados argumentos, motivos ou razões jurídicas, até porque, como é sabido, “o juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito” (art. 5.º, n.º 3).

Vale dizer que o tribunal não tem o dever de responder a todos os argumentos, tal como não se encontra inibido de usar argumentação diversa da utilizada pelas partes, ou de recorrer a qualquer abordagem jurídica de que seja passível determinada questão (desde que não extravase os limites da questão propriamente dita).

Assim, a nulidade por omissão de pronúncia [art. 615.º, n.º l, d)], sancionando a violação do estatuído no nº 2 do artigo 608.º, apenas se verifica quando o tribunal deixe de conhecer questões temáticas centrais2, ou seja, atinentes ao thema decidendum, que é constituído pelo pedido ou pedidos, causa ou causas de pedir e exceções; e, reciprocamente, o excesso de pronúncia só se verifica quando o tribunal conheça de matéria diversa desta.

Especificamente em sede de recurso, o tribunal deve conhecer de todas e apenas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo(s) recorrente(s) – arts. 663.º, n.º 2, e 679º.

4.2. Quanto à concreta alegação de excesso de pronúncia, sustenta a reclamante que o decidido no tocante à declarada ilicitude do despedimento da A. vai além do âmbito da revista excecional estipulado pela Formação, em cujo acórdão se lê:

«(…)

No recurso de revista excecional a Recorrente coloca as seguintes questões:

(…)

- Invoca que não teria existido, em rigor, qualquer infração disciplinar e que, mesmo que porventura fosse o caso, tal sanção seria desproporcionada.

Na sua Conclusão 12 a Recorrente afirma o seguinte:

“A sanção disciplinar de despedimento sem indemnização aplicada à A., face à conduta concreta da A., antiguidade da mesma superior a 30 anos e ausência da prática de infrações disciplinares registadas anteriormente, é manifestamente desproporcional e desadequada, face ao contexto concreto da relação laboral da A”.

Em matéria de justa causa de despedimento, o Acórdão recorrido afirma o seguinte:

(…)

De todo o exposto resulta que a Recorrente coloca questões de grande complexidade e sobre as quais é efetivamente necessário que este Tribunal se pronuncie para uma melhor aplicação do direito. Questões como a de determinar quais as consequências do desentranhamento unilateral pelo empregador de um documento que constava da resposta à nota de culpa, mas também sobre a noção de justa causa quando existe um código de ética na empresa e se a referência a esse código permite considerar como justa causa um comportamento que não causa qualquer prejuízo ao empregador (pelo menos ao nível patrimonial), o ónus da prova quanto à existência ao tempo da infração do referido código, bem como o grau de conhecimento que é exigível a um empregador para decidir da aplicação, ou não, de uma sanção disciplinar.

(…)

Decisão: Admite-se a presente revista excecional.»

4.3. Decorre daqui que a verdadeira e real questão suscitada pela A. no recurso foi a da existência, ou não, de infração disciplinar e, na afirmativa, a da (des)proporcionalidade da sanção, tendo a Formação admitido a revista excecional sem qualquer restrição, embora dando especial ênfase a determinados aspetos tidos por particularmente relevantes para aferir da existência de justa causa de despedimento.

A saber (quanto ao que ora releva): as implicações da existência de um código de ética no plano da noção de justa causa; se a referência a esse código permite considerar como justa causa um comportamento que não causa qualquer prejuízo patrimonial ao empregador; ónus da prova quanto à existência ao tempo da infração do referido código, bem como o grau de conhecimento que é exigível a um empregador para decidir da aplicação, ou não, de uma sanção disciplinar.

É patente que o acórdão reclamado se cingiu à “verdadeira e real questão” que estava em causa no recurso (existência, ou não, de infração disciplinar), sendo ainda certo que para tanto aferiu da violação do dever de lealdade por banda da A. à luz (nomeadamente) do conteúdo do Código de Ética vigente na R. (maxime, pontos 19 a 22 do acórdão), em consonância, pois, com o estipulado pela Formação.

Ao contrário do também alegado, é igualmente evidente que de forma alguma o acórdão reclamado atribui aos factos dados como provados “interpretações e significados diferentes dos fixados pelas instâncias”.

Improcede, deste modo, a arguida nulidade.

5.1. Relativamente à reclamada reforma do acórdão, diz a R.:

“Tendo por base a existência de documento no processo [documento de fls. 19 do procedimento disciplinar (print de Multibanco), que, a seguir ao NIB do destinatário, indicado pela autora como sendo o da Senhoria, ostenta a referência “CS” / “Conta Solidária” em relação à referida conta bancária] que inviabiliza a posição de desconhecimento assumida pelo Tribunal quanto à natureza solidária da conta bancária cotitulada pela Autora Recorrente, bem como o manifesto (…) erro na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos, consubstanciado na desconsideração da presunção legal referente à propriedade/poderes de disposição de, pelo menos metade dos ativos da mesma conta bancária, conjugada com a conduta de aceitação tácita nesta parte ao longo de todo o processo por banda da Recorrente, acrescida ainda da completa desconsideração dos factos essenciais para a “imagem global da situação” emergente dos factos provados nºs 39 a 44, proceder-se à reforma do (…) acórdão, expurgando o mesmo das referidas considerações, e substituindo-as por outras que confirmem o decidido em ambas as instâncias.”

5.2. A reforma de uma sentença ou acórdão exige sempre a verificação de um “manifesto lapso do juiz” (cfr. prémio do nº 2 do art. 616.º, do CPC), o que, para além de não ter sido invocado, também, indiscutivelmente, não ocorre no caso vertente.

5.3. Quanto ao invocado “print de Multibanco”, é manifesto que, só por si, é insuscetível de implicar “necessariamente” decisão diversa da proferida e, nessa medida, de justificar a reforma da decisão, nos termos da alínea b) daquele nº 2.

Com efeito:

Constatado que “dos factos provados nº 25 e 41 decorre a existência de uma “conta coletiva” (cotitularidade) entre a A. e a sua filha”, afirmou-se, é certo, que se desconhecia se se tratava de uma conta coletiva solidária ou de uma conta coletiva conjunta.

Mas, desvalorizando em absoluto tal tema, logo se afirmou que em qualquer caso, o dinheiro depositado numa conta bancária pertence ao património do estabelecimento bancário e não ao património do depositante, ficando este a deter um direito de crédito sobre aquele”, bem como que, “por outro lado, impõe-se distinguir os poderes de movimentação da conta e os créditos relativos às quantias depositadas, não tendo os correspondentes direitos que ser coincidentes”.

Concluindo-se depois, em termos que não deixam qualquer dúvida quanto à irrelevância no caso concreto da dicotomia conta solidária ou conjunta: “Assim, nada se tendo apurado sobre as razões subjacentes a essa situação, mas sabendo-se que com frequência a cotitularidade de um ascendente ou descendente não traduz qualquer situação de “compropriedade” dos fundos depositados (apenas radicando em razões de ordem prática, tendo em vista agilizar a movimentação da conta bancária em determinadas situações), afigura-se-nos que nada permite conjeturar que do pagamento da renda por parte da R. (à BB) adviesse algum benefício (económico) para a Autora”.

5.4. A lei também permite a reforma da decisão quando, por manifesto lapso do juiz, tenha ocorrido erro na determinação da norma aplicável e na qualificação jurídica dos factos, [alínea a) do sobredito nº 2 do art. 616º].

Deste modo, o legislador “tem como objetivo a reparação de lapsos manifestamente óbvios na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos em que o julgador tenha ocorrido” (Ac. de 13.09.2023 desta Secção Social do STJ, Proc. nº 2930/18.4T8BRG.G1.S2-A), hipótese que in casu não se vislumbra e que não se confunde com a mera divergência da parte quanto ao julgado, que é o que na realidade perpassa por todo o requerimento apresentado pela R.

Na verdade, agora nas palavras do Ac. do STJ de 02.12.2021, Proc. nº 9/21.0YFLSB, “o lapso manifesto tem de ser evidente e incontroverso, revelado por elementos exteriores à sentença ou acórdão reformados, não se reconduzindo à mera discordância quanto ao decidido”, sendo que “não é permitida a reforma do acórdão quando apenas é fundada em manifestações de discordância do julgado e se pretende a alteração do decidido”.

Improcede, pois, também, esta questão.


III.

6. Em face do exposto, acorda-se em indeferir o requerido pela ré.

Custas pela requerente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC, a que acresce a taxa sancionatória excecional prevista de 2 UC, nos termos expostos em supra nº 3.2.

Lisboa, 06.11.2024

Mário Belo Morgado (Relator)

Domingos Morais

José Eduardo Sapateiro

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1. Como todas as disposições legais citadas sem menção em contrário.↩︎

2. Nas palavras de Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, II, 2015, p. 371.↩︎