Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANA BARATA BRITO | ||
Descritores: | HABEAS CORPUS PRAZO DA PRISÃO PREVENTIVA CONTAGEM DE PRAZOS ACUSAÇÃO NOTIFICAÇÃO INDEFERIMENTO | ||
Data do Acordão: | 05/17/2023 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | HABEAS CORPUS | ||
Decisão: | IMPROCEDÊNCIA / NÃO DECRETAMENTO | ||
Sumário : | Para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) e não a notificação ao arguido dessa peça processual. | ||
Decisão Texto Integral: |
1. Relatório
1.1. No processo n.º 3233/21.2T9VNF, do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo de Instrução Criminal ... - Juiz ..., arguido AA veio apresentar pedido de habeas corpus subscrito pelo seu mandatário, ao abrigo do disposto no art. 222.º, n.º 2 al. do CPP, com os fundamentos seguintes: “1 - No âmbito do processo supra mencionado, foi o Arguido sujeito a medida de coação de prisão preventiva. 2 - Tal medida de coação foi decretada por despacho datado de 13/07/2022. 3 - Os pressupostos da referida medida coativa foram reexaminados por despacho proferido em sede de debate instrutório, realizado no dia 11/04/2023, no qual se concluiu pela manutenção da prisão preventiva. 4 - Sucede que o prazo máximo da medida coativa encontrava-se já esgotado. 5 - Com efeito, prescreve o artigo 215°, n.° 1, al. a) do Código de Processo Penal que "a prisão preventiva se extingue quando, desde o seu início, tiverem decorrido quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação ". 6 - Prazo que, por força do disposto no n.° 2 do mesmo preceito legal, é elevado in casu para seis meses, já que vem o Arguido indiciado pela prática de um crime punível com pena de prisão superior a 8 anos. 7 - Ora, tendo-se iniciado a prisão preventiva em 13/07/2022, dar-se-ia a sua extinção em 13/01/2023 se não fosse nesse entretanto deduzida acusação pelo Ministério Público. 8 - Pese embora o Ministério Publico tenha efetivamente proferido despacho de acusação em 11/01/2023, o referido despacho encontra-se enfermado de nulidade. 9 - Com efeito, o despacho de acusação notificado ao Arguido, através de entrega no Estabelecimento Prisional ..., era composto apenas por 14 páginas, 10 - Terminando a última página na enunciação do facto 53, 11 - Não sendo feita qualquer indicação do grau de participação que o Arguido teve nos factos pelos quais vem acusado, 12 - Tal como não é feita qualquer indicação das disposições legais aplicáveis, 13 - Nem tão-pouco são enunciados quaisquer meios de prova que sustentem a acusação pública e que devam ser produzidos. 14 - Assim sendo, a acusação pública deduzia pelo Ministério Público não cumpre com o previsto no n.° 3 do artigo 283° do Código de Processo Penal, nomeadamente o constante das suas alíneas b), c), d) e f), sendo por isso nula. 15 - Ora, nos termos do artigo 122° do Código de Processo Penal, encontrando-se a acusação pública ferida de nulidade, a mesma tem-se como inválida, tendo assim de se proceder à sua repetição. 16 - Sucede que, até à presente data, não foi repetido o ato nulo da acusação, pelo que, para todos os efeitos, desde 13/01/2023 - dia em que se completaram 6 meses desde o início da prisão preventiva - se encontra extinta a medida coativa aplicada ao Arguido. 17 - Ora, encontrando-se extinta a prisão preventiva, prescreve o n.° 1 do artigo 217° do Código de Processo Penal que: "o arguido sujeito a prisão preventiva é posto em liberdade logo que a medida se extinguir". 18 - Assim, a manutenção da medida de coação de prisão preventiva é ilegal, encontrando-se excedido o seu prazo de duração máxima, o que colide com os direitos fundamentais do Arguido, justificando-se a imediata libertação do mesmo. 19 - A petição de Habeas Corpus contra detenção ou prisão ilegal está inscrita como garantia fundamental no artigo 31° da Constituição da República Portuguesa. 20 - E tem tratamento processual nos artigos 220° e seguintes do Código de Processo Penal. 21 - A manutenção da prisão preventiva após 13/01/2023, sem que tenha sido deduzida acusação válida, implica a violação do prazo máximo de seis meses expressamente estabelecido no artigo 215° do Código de Processo Penal. 22 - Ora, excedendo a prisão preventiva, como excede, o prazo máximo de duração estabelecido na lei, é de concluir pela ilegalidade da manutenção da mesma. 23 - Reveste a privação ilegal da liberdade do Arguido, matéria que diz respeito a direitos de liberdades e garantias, constitucionalmente consagradas, e cuja violação se impõe reparar pela via mais expedita que o ordenamento jurídico português concede: o procedimento de Habeas Corpus. 24 - Atento o disposto nos artigos 222° do Código de Processo Penal, e 31° da Constituição da República Portuguesa, por exceder os limites máximos expressamente balizados na lei e consequentemente colidir com direitos fundamentais do Arguido, é ilegal a prisão mantida, sendo legitima e necessária a providência de Habeas Corpus ora requerida. 25 - Perante o acabado de verter verifica-se que a prisão do Arguido é ilegal, 26 - E mediante a presente providência de Habeas Corpus, requer-se que seja declarada a mesma ilegal, e se ordene a libertação mediata do Arguido.” 1.2. A informação a que se refere o art. 223.º, n.º 1 do CPP é a seguinte: “1- Por decisão datada de 18 de abril de 2023, o arguido AA foi pronunciado pela prática, em autoria e/ou co-autoria material, e na forma consumada , de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência às tabelas I-A, I-B e I-C, anexas a tal diploma . 2 - O arguido AA foi detido a 12-07-2022; 3 - Foi apresentado a 1º interrogatório judicial a 13-07-2022, tendo sido, nessa data, ordenada a sua prisão preventiva;-- 4 - No final do inquérito, em 11-01-2023 , veio a Digna Magistrada do M. P. proferir despacho de acusação , ao abrigo do disposto no art. 14 , n. 1 , do CPPenal, em processo comum e com intervenção de T. Coletivo , contra os arguidos : AA, filho de BB e de CC, natural de ..., ..., nascido a .../.../1978, natural de titular do CC. 11...ZX3, solteiro, empregado fabril, residente na Rua ..., ..., ... ... (actualmente sujeito à medida de coacção de prisão preventiva); DD, filha de EE e de FF, natural de ..., nascida a .../.../1999, titular do CC. 3...ZV0, solteira, desempregada, residente em Rua ..., ..., ... ...; e GG, filho de HH e de II, natural de ..., ..., nascido a .../.../1983, titular do CC. 1...ZY9, solteiro, desempregado, residente na Rua do ..., ..., ... .... Imputando-lhes os factos descritos na ref. ...11 , através dos quais, imputa aos arguidos: AA e DD a prática, em autoria e/ou co-autoria material, na forma consumada , de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo art.º 21º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, com referência às tabelas I-A, I-B e I-C, anexas a tal diploma. GG a prática, em autoria material, na forma consumada, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelas disposições combinadas do art. 40º, nº2 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro, por referência à Tabela Anexa I-B e I-C, e art. 2º, nºs 1 e 2 da Lei nº 30/00, de 29 de Novembro. 4 - Por despacho proferido em 23-02-2023 , foi declarada aberta a instrução requerida pelo arguido AA . 5 - A medida de coação em causa foi revista e confirmada por despacho proferido em 11-04-2023 , em sede de debate instrutório, e, igualmente, confirmada em sede de decisão instrutória , proferida em 18-04-2023. 6 - Foi apresentado pedido de habeas corpus , o qual foi, apenas , distribuído na secção central , na data de hoje ( 08-05-2023) , conforme se extrai do histórico de ref. ...18 ( cuja cópia deverá ser junta ) . 7 - O arguido/requerente mantém-se preso preventivamente.” 1.3. Notificados o Ministério Público e o defensor do arguido, realizou-se a audiência na forma legal, tendo-se reunido para deliberação. 2. Fundamentação O habeas corpus é uma providência com assento constitucional, destinada a reagir contra o abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal, podendo ser requerida pelo próprio detido ou por qualquer outro cidadão no gozo dos seus direitos políticos, por via de uma petição a apresentar no tribunal competente (art. 31.º da CRP). A petição tem os fundamentos previstos taxativamente no art. 222.º, n.º 2. do CPP, que consubstanciam “situações clamorosas de ilegalidade em que, até por estar em causa um bem jurídico tão precioso como a liberdade ambulatória (…), a reposição da legalidade tem um carácter urgente”. O “carácter quase escandaloso” da situação de privação de liberdade “legitima a criação de um instituto com os contornos do habeas corpus” (Cláudia Cruz Santos, “Prisão preventiva – habeas corpus – recurso ordinário”, in RPCC, ano 10, n.º 2, 2000, pp. 303-312, p. 310). Os autores convergem no sentido de que “a ilegalidade que estará na base da prevaricação legitimante de habeas corpus tem de ser manifesta, ou seja, textual, decorrente da decisão proferida. Pela própria natureza da providência, que não é nem pode ser confundida com o recurso, tem de estar em causa, por assim dizer, uma ilegalidade evidente e actual. (…) O habeas corpus nunca foi nem é um recurso; não actua sobre qualquer decisão; actua para fazer cessar «estados de ilegalidade»” (José Damião da Cunha, “Habeas corpus (e direito de petição «judicial»): uma «burla legal» ou uma «invenção Jurídica»?”, in Homenagem ao Professor Doutor Germano Marques da Silva (coord. José lobo Moutinho et al.), vol. 2, lisboa: uce, 2020, pp. 1361-1378, pp 1369 e 1370). E constitui jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça a excepcionalidade da providência e a sua distanciação da figura dos recursos. O habeas corpus não é um recurso e não se destina a decidir questões que encontram no recurso o seu modo normal de suscitação e de decisão. Em obediência aos ditames constitucionais, a lei ordinária desenhou-o como meio processual de reação expedita contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, e não como meio processual para reexame ou avaliação de pressupostos de facto e de direito que em concreto determinaram a aplicação de uma medida de privação da liberdade ou de uma pena de prisão. Assim tem sido decidido sem divergência pelo Supremo, repete-se, como se constata por exemplo no acórdão de 16-03-2015 (Rel. Santos Cabral) – “II - A providência de habeas corpus não decide sobre a regularidade de actos do processo, não constitui um recurso das decisões em que foi determinada a prisão do requerente, nem é um sucedâneo dos recursos admissíveis. III - Nesta providência há apenas que determinar, quando o fundamento da petição se refira à situação processual do requerente, se os actos do processo produzem alguma consequência que se possa reconduzir aos fundamentos referidos no art. 222.º, n.º 2, do CPP. IV - Como não se substitui nem pode substituir-se aos recursos ordinários, o habeas corpus não é o meio adequado de pôr termo a todas as situações de ilegalidade da prisão, porquanto está reservado para os casos indiscutíveis de ilegalidade que impõem e permitem uma decisão tomada com a celeridade legalmente definida.” (itálico nosso) E assim foi igualmente observado no acórdão do STJ de 6 de Setembro de 2022 (Rel. Ernesto Vaz Pereira), que decidiu providência de habeas corpus anteriormente deduzida pelo ora peticionante. Preceitua, então, o art. 222.º do CPP, sob a epígrafe “Habeas corpus em virtude de prisão ilegal”, que o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência a qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa (n.º 1). Por força do n.º 2 da mesma norma jurídica, a ilegalidade da prisão deve (ou tem de) provir de uma das seguintes circunstâncias: a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei o não permite; c) Se mantiver para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial. No presente caso, o requerente invoca o requisito da al. c). Relativamente a este requisito, tem-se entendido que ele ocorre com a ultrapassagem de prazos legais ou judiciais, como no caso de manutenção da prisão preventiva para lá dos prazos fixados no art. 215.º do CPP. E da simples leitura da petição decorre imediatamente que nenhum prazo de prisão preventiva foi ultrapassado. Diz o requerente, e seguindo a sua alegação, que foi sujeito a medida de coação de prisão preventiva por despacho datado de 13/07/2022; que os pressupostos da referida medida coativa foram reexaminados por despacho proferido em sede de debate instrutório, realizado no dia 11/04/2023, no qual se concluiu pela manutenção da prisão preventiva; que nos termos do art. 215.°, n.° 1, al. a) do CPP "a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação ", mas por força do n.º 2 do mesmo preceito legal, tal prazo é elevado in casu para seis meses, já que vem o arguido indiciado pela prática de um crime punível com pena de prisão superior a 8 anos; que tendo-se iniciado a prisão preventiva em 13/07/2022, dar-se-ia a sua extinção em 13/01/2023 não fora nesse entretanto ter sido deduzida acusação; que o Ministério Publico efectivamente proferiu despacho de acusação em 11/01/2023. Do exposto pelo próprio arguido, em conformidade aliás com a informação judicial, impõe-se logo a constatação de que nenhum prazo legal resulta ultrapassado. Ao invocar o fundamento da al. c), o requerente aludiu tão só a uma apodada ultrapassagem do prazo de prisão preventiva até à acusação, que afirma ter sido ultrapassado, o que não corresponde à realidade do processo. É certo que invoca eventuais irregularidades na notificação da acusação ao arguido, mas estas, mesmo a verificarem-se, não teriam a virtualidade de se repercutir em excesso de prisão sindicável em providência de habeas corpus. Desde logo, para a contagem do prazo de prisão preventiva releva a dedução tempestiva da acusação pública no processo, não se exigindo que a notificação desta ao arguido ocorra necessariamente ainda dentro do mesmo prazo. Defender posição diversa não encontra fundamento na lei. Não tem cobertura legal nem constitucional, e contraria a jurisprudência constante do Supremo Tribunal de Justiça, consentânea com a visão do Tribunal Constitucional. Por exemplo, e entre muitos, no acórdão do STJ de 10-02-2022 (Rel. Cid Geraldo) decidiu-se que “para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215.º, do CPP, é relevante a data de prolação da acusação (ou do despacho de pronúncia, ou da condenação) e não a notificação ao arguido dessa peça processual”. E ali se fez referência à abundante jurisprudência do Supremo, sempre uniforme: “Este Supremo Tribunal já tomou posição sobre a questão, defendendo-se no acórdão de 11-10-2005, in CJSTJ 2005, tomo 3, pág. 186, que para o efeito previsto no artigo 215.º do CPP, releva a data da acusação e não a notificação ao arguido dessa peça processual, podendo ver-se neste sentido ainda os acórdãos de 14 e 22 de Março de 2001, in Sumários do Gabinete de Assessores, n.º 49, págs. 62 e 81; de 15-05-2002 e de 11-06-2002, ibid., n.º 61, pág. 84 e n.º 62, pág. 81; de 13-02-2003, processo n.º 599/03-5.ª; de 22-05-2003, processo n.º 2159/03-5.ª; de 18-06-2003, processo n.º 2540/03-3.ª; de 13-11-2003, processo n.º 3943/03-5.ª; de 08-06-2005, processo n.º 2126/05-3.ª; de 19-07-2005, processo n.º 2743/05-3.ª; de 10-05-2007, processo n.º 1689/07-5.ª; de 24-10-2007, processo n.º 3977/07-3.ª; de 12-12-2007, processo n.º 4646/07-3.ª; de 13-02-2008 no processo n.º 522/08 -3.ª; de 10-12-2008, processo n.º 3971/08-3.ª; de 06-01-2010, processo n.º 28/09.5MAPTM-B.S1-3.ª e de 30-12-2010, processo n.º 4/09.8ZCLSB-A.S1-3.ª – Jurisprudência indicada no Acórdão do STJ de 09/02/2011, proc. 25/10.8MAVRS-B.S1, 3ª Secção, Relator: Raul Borges; cfr. também, o recente Ac. do STJ de 04/11/2021, proc. 77/21.5JALSB-C.S1, 5ª Secção, Relator: Helena Moniz.” E tendo sido, no caso, a prisão preventiva sempre reexaminada em observância do prazo legal máximo, tendo sido, entretanto, pronunciado o arguido e mantida tal medida de coacção, sempre falharia o elemento da actualidade na (pretensa) ilegalidade da prisão. Mas, repete-se, essa ilegalidade nunca existiu. Em suma, cumpre constatar apenas que se mostra respeitado o prazo da prisão preventiva, inexistindo qualquer excesso do prazo legal máximo, nem pretérito, nem actual, concluindo-se que a presente providência de habeas corpus carece manifestamente de qualquer base factual e legal que a suporte. 3. Decisão Pelo exposto, delibera-se neste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir o pedido de habeas corpus por falta de fundamento bastante (art. 223.º, n.º 4, do CPP). Custas pelo requerente, fixando-se 4 UC de taxa de justiça, indo condenado também na importância de 10 UC a título de sanção processual (art. 223.º, n.º 6, CPP). Lisboa, 17.05.2023 Ana Barata Brito (relatora) Ernesto Vaz Pereira (adjunto) Maria do Carmo Silva Dias (adjunta) Nuno Gonçalves (Presidente da Secção) |