Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
512/21.2PLLRS.L2.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO RATO
Descritores: RECURSO PARA O SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
VÍCIOS DO ART.º 410 DO CÓDIGO DE PROCESSO PENAL
Data do Acordão: 05/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :

I - Após a entrada em vigor da atual redação dos artigos 432º e 434º do CPP, introduzida pela Lei n.º 94/21, de 21.12, os recursos interpostos para o STJ “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400º”, previstos na al. b) do n.º 1 daquele primeiro preceito, não podem ter como fundamento os vícios e nulidades referidas no artigo 410º, n.ºs 2 e 3, do mesmo diploma legal.


II - Nesses casos, ainda que tenha sido admitido pelo tribunal da relação sem qualquer restrição, decisão que não vincula o tribunal ad quem, o recurso tem de ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, nos termos das citadas disposições legais, conjugadas com as dos artigos 414º, n.ºs 2 e 3, e 420º, n.º 1, al. b), também do CPP, sem prejuízo, naturalmente, do seu conhecimento oficioso, se do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, tais vícios e nulidades resultarem evidentes, o que não ocorre no caso em apreço.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º 512/21.2PLLRS.L2.S1


(Recurso Penal)


*


Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


*


I. Relatório


1. Por sentença de 6.07.2023, do Juízo Local Criminal ... (jlc...) – J ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi o arguido, AA, nascido a ........1994, no ..., com os demais sinais dos autos, absolvido da prática do crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153.º e 155.º, n.º 1, al. a), do Código Penal (CP), que lhe era imputado na acusação pública


2. Inconformado, interpôs o Ministério Público, em 21.09.2023, recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa (TRL), que, por acórdão de 25.01.2024, o julgou parcialmente procedente, nos termos do seguinte dispositivo, que se transcreve:


«3 - Decisão


Pelo exposto, acordam em conceder parcial provimento ao recurso, nos seguintes termos:


A) Julga-se improcedente o recurso quanto à invocação dos vícios de contradição insanável entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova.


*


B) Julga-se parcialmente procedente o recurso de impugnação ampla da matéria de facto, passando a matéria de facto a estar alinhada nos seguintes termos:


Factos provados:


1. O arguido é filho de BB, com quem mantém uma relação conflituosa.


2. Na sequência de uma discussão entre ambos por motivos profissionais, no dia 6 de julho de 2021, durante a tarde, o arguido dirigiu-se ao local onde se encontrava o seu pai a trabalhar, na Rua ....


3. Ato contínuo, o Arguido empunhou um objeto com a configuração de uma pistola na direção da cabeça de seu pai e disse-lhe em tom exaltado, pelo menos, “vou dar-te um tiro”.


4. BB sentiu medo e inquietação com receio que o filho concretizasse o que referiu.


5. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, e conhecia o carácter criminalmente ilícito da sua conduta.


6. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta.


Factos não provados:


(i) Na ocasião referida em 2 e 3, o Arguido disse ainda ao ofendido o seguinte: “Vagabundo, se falares alguma coisa encho-te de tiros”.


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C) Julga-se que os factos provados integram a prática, pelo Arguido AA, de um crime de ameaça agravada, previsto pelos arts. 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a) do Código Penal.


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D) Julga-se insuficiente a matéria de facto provada para a decisão de escolha da espécie de pena e determinação da sua medida, ordenando-se o reenvio do processo para novo julgamento, circunscrito ao apuramento dos factos sobre a personalidade e condições sociais e económicas do Arguido (e atualização dos seus antecedentes criminais) e à fixação em seguida da pena.».


3. Inconformado, interpôs o arguido AA, em 26.02.2024, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), apresentando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):


«CONCLUSÕES:


A) Interpõe-se recurso do douto Acórdão, proferido em recurso pelo Tribunal da Relação, que alterou a decisão absolutória proferida em primeira instância e condenou o Arguido pela prática do crime de ameaça agravada.


B) É fundamento do presente recurso, nos termos do Art. 410º do CPP: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição entre a fundamentação e a decisão e c) erro notório na apreciação da prova.


C) O Acórdão recorrido, fundamenta a sua decisão de alterar a matéria de facto dada como provada e não provada, na desvalorização das declarações da testemunha CC, porquanto conclui que este terá relatado ao tribunal outra situação que não a descrita na acusação, enquanto o ofendido terá relatado os factos descritos, e assim não se verificam as inconsistências nos depoimentos que levaram à decisão da Primeira Instância.


D) Entende o Recorrente que não há qualquer elemento factual que permita ao Tribunal a quo concluir que foram as declarações da testemunha CC que se referiam a outro dia (que não o dia 06 de julho de 2020) e não as do ofendido.


E) Não se discorre da decisão recorrida, qualquer elemento que permita afirmar com certeza razoável que os factos descritos pelo ofendido são os que se encontram descritos na acusação.


F) O Acórdão recorrido, incorre em contradição, ao admitir que o relato da testemunha CC é coincidente com os factos descritos na acusação, para mais adiante concluir que a testemunha estava a descrever outra situação.


G) Acresce que, conferir mais exactidão ao depoimento do ofendido, vai contra as regras da experiência comum, com efeito a testemunha CC, que não tem qualquer ligação aos arguidos e ofendido, mostra-se seguramente mais capaz de relatar com isenção e distanciamento os factos que presenciou.


H) Bem como, se é certo que a relação entre ofendido e arguido se veio a caracterizar pelo ofendido como conflituosa, também se pode concluir que o ofendido, com uma ligação emocional aos factos, tem um interesse particular no desfecho do processo


I) Face a tudo exposto só pode ficar prejudicada a alteração à matéria de facto dada como provada e não provada pelo acórdão recorrido, fica também prejudicada a conclusão que o ofendido “sentiu medo e inquietação com receio que o filho concretizasse o que referiu” e que o “Arguido agiu de formam livre, voluntária consciente e conhecia o carácter criminalmente ilícito da sua conduta.”, dado que esta decorre desta alteração da matéria de facto.


Nestes termos e nos mais de Direito que V. Exas doutamente suprirão, deve o presente recurso proceder, e ser revogada a decisão recorrida, mantendo-se a decisão do Tribunal de Primeira Instância.».


4. O recurso foi admitido por despacho do Juiz Desembargador relator, de 4.03.2024, para subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo.


5. O Ministério Público junto do TRL respondeu, em 25.03.2024, ao recurso do arguido, que rematou com as seguintes conclusões (transcrição):


«Em CONCLUSÃO:


1. O recorrente fundamenta o seu recurso nos vícios decisórios previsto no artigo 410.º, n.º 2, alíneas a), b), e c), do Código de Processo Penal.


2. Tais vícios devem ser apreciados à luz do texto da decisão recorrida, pois que devem resultar do texto por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.


3. Da leitura do acórdão recorrido não vislumbramos qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, qualquer contradição entre a fundamentação e a decisão ou qualquer erro notório na apreciação da prova.


4. Sendo que o acórdão enuncia e explicita, de forma coerente e conforme às regras da experiência comum, o raciocínio pressuposto à conclusão enunciada (a alteração da matéria de facto provada).


Termos em que se pugna seja negado provimento ao recurso e, assim, confirmando a decisão recorrida farão V.ª Exas. a costumada


JUSTIÇA!».


6. Neste Tribunal, o Ministério Público, em 5.04.2024, emitiu fundamentado parecer, de que se transcreve o seguinte excerto:


«(…) Mérito do Recurso.


*


Muito embora o recurso interposto, não cremos, salvo o devido respeito, que a douta decisão recorrida enferme dos vícios alegados pelo arguido, ora recorrente, que seja mister declarar e suprir.


*


A)-Insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.


1


Questiona-se, nesta parte:


Quais os dados factuais relevantes para a boa decisão sobre o objecto do processo que o Tribunal “a quo” não investigou ou apreciou, como devia (realidade bem diversa é a insuficiência da prova para a decisão proferida, que, em rigor, invoca o recorrente)?


2


Não o diz o arguido, ora recorrente;


Nem o descortinamos.


3


A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada é bem diferente da situação de carência de prova (na visão soberana do Tribunal) da decisão de facto pretendida pelo arguido...


*


B)-Contradição insanável da fundamentação.


4


Diz, em síntese, o recorrente:





F) O Acórdão recorrido, incorre em contradição, ao admitir que o relato da testemunha CC é coincidente com os factos descritos na acusação, para mais adiante concluir que a testemunha estava a descrever outra situação.


5


Ora, lido e interpretado o Acórdão sub judice, não se descortina o vício de contradição insanável em matéria de fundamentação da decisão (contradição entre a fundamentação e a decisão), invocado pelo arguido, ora recorrente.


6


Será, porventura, ilógico, contraditório, porque atinente, a um tempo, ao ser e ao não ser, consignar ma decisão que:


-Do que vem de ser dito inferimos então que o episódio a que a testemunha CC se reporta não é o descrito na acusação e objeto dos presentes autos, o que explica as divergências assinaladas entre o seu depoimento e o do ofendido.


7


E depois fundamentar que:


Assim é que o depoimento da testemunha CC, relevando, em qualquer caso, enquanto meio de prova da relação conflituosa entre o arguido e o ofendido e de que aquele era ao tempo detentor de um objeto com um aspeto em tudo semelhante a uma «pistola», com o qual não se inibia de andar e até de exibir, já não releva enquanto meio de prova dos factos concretamente ocorridos no dia retratado na acusação?


8


Evidentemente, não.


O primeiro segmento da fundamentação refere, tão-só, que, no seu depoimento, a testemunha CC relatou um outro episódio entre o arguido e o ofendido, que não o relatado na acusação, pelo que, nesta parte, não relevou como meio de prova (directa, presencial) da prática do crime.


9


O segundo, bem-diferentemente, tem por escopo lógico-dialéctico elucidar que tal depoimento serviu para provar os factos instrumentais da relação conflituosa entre aqueles e o de o arguido ser ao tempo detentor de um objeto com um aspeto em tudo semelhante a uma «pistola», que não se inibia de exibir, o que foi valorado na formação da livre convicção (como prova indirecta, indiciária).


10


Ou seja:


Não há qualquer erro lógico quanto à formulação das premissas e da conclusão.


11


A testemunha CC relatou outros factos que não os descritos na acusação, mas que se constituíram, na análise lógico-crítica do Tribunal da Relação de Lisboa, em objecto de prova indirecta dos factos imputados. Sic et simpliciter.


*


C)-Erro notório na apreciação da prova.


12


Diz, no essencial, o arguido, ora recorrente:


… …


G) Acresce que, conferir mais exactidão ao depoimento do ofendido, vai contra as regras da experiência comum, com efeito a testemunha CC, que não tem qualquer ligação aos arguidos e ofendido, mostra-se seguramente mais capaz de relatar com isenção e distanciamento os factos que presenciou.


H) Bem como, se é certo que a relação entre ofendido e arguido se veio a caracterizar pelo ofendido como conflituosa, também se pode concluir que o ofendido, com uma ligação emocional aos factos, tem um interesse particular no desfecho do processo


… …


13


Foi o arguido julgado incurso na prática do crime em questão sem provas dos pressupostos fácticos da respectiva tipicidade, contra toda a evidência?


É o que resulta do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum?


– Questiona o Ministério Público.


13


Mais do que isso:


O recorrente – perdendo-se em numa discursividade puramente impugnatória sobre o tema em discussão – não procede ao necessário cotejo lógico-dialéctico entre os factos-provados, tipicamente relevantes (análise do texto da decisão recorrida) e os dados da experiência comum).


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E a arte de julgar não se traduz numa operação matemática, acrítica, avessa à dialéctica, pela qual o julgador, mais do que sujeito de um processo intelectual-cognitivo, seria o mero oráculo de uma (in)justiça feita de automatismos e assente em critérios probatórios pré-definidos.


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O Tribunal “a quo” não teve dúvida séria quanto à culpabilidade do arguido, que a assumiu como a certeza prático-jurídica, no respeito pelas regras prudenciais da sindicabilidade da questão-de-facto em sede de recurso da sua impugnação alargada e de forma sindicável, o que o recorrente não logra pôr em crise com a linha de argumentação traçada.


16


E fê-lo, na verdade, assente, essencialmente, nos depoimentos do ofendido – que, na verdade, tem um interesse particular no desfecho do processo, tal como o arguido – e da testemunha CC, que foram devidamente analisados, interpretados e cotejados, o de um com o do outro e ambos com as regras da experiência comum.


17


Basta, aliás, uma leitura minimamente atenta e crítica da decisão recorrida (de que se destacará curto mas expressivo excerto, sob pena de puro exercício do supérfluo), para se concluir que, na verdade, se impunha, nesta questão, a alteração da matéria-de-facto provada na 1ª Instância, no desempenho da sua razoável sindicância em recurso.


18


Atentemos.


… …


Ouvindo os depoimentos em detalhe, estamos em crer que há uma explicação para as assinaladas divergências e essa explicação é a de que houve, não uma, mas pelo menos duas situações idênticas, em dias diferentes, sendo que a testemunha CC descreveu em audiência apenas a segunda delas.


Recorde-se que o ofendido relata a situação em termos que vão em linhas gerais ao encontro do que é descrito na acusação, mas diz mais: no dia seguinte foi fazer queixa à Polícia e quando o filho soube disso foi ao local outra vez «tirar satisfações», tendo ele, ofendido, nessa segunda ocasião, chamado a Polícia, que foi ao local; e recorde-se que a testemunha CC disse que o ofendido chamou a Polícia (o que o ofendido não afirma ter feito quanto à primeira situação) e que a Polícia, pelo que soube, foi ao local (o que o ofendido diz ter acontecido da segunda vez), embora nesse momento já lá não estivesse, e disse ainda, logo no início do seu depoimento, que o Arguido «foi lá ameaçar e pelos vistos não era a primeira vez».


… … (cfr, pág. 16 do Acórdão).


19


Eis o modo por que, de forma objectiva, razoável e sindicável, o Tribunal “a quo” valorou, sopesou e acolheu o depoimento da testemunha CC, na sua relação dialéctico-funcional-probatória com o do ofendido, sem que se revele no processo lógico-intelectual de formação da convicção dos Julgadores qualquer vício lógico notório, petitio principii ou outro que não seja a mera discordância do arguido, ora recorrente.


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Isto é:


O processo lógico-intelectual de formação da convicção do Tribunal da Relação de Lisboa – que não sufragou a Sentença do Tribunal Singular – assentou em circunstâncias de facto detalhadas, aduzidas pelas provas declaratórias, produzidas e sopesadas, na sua globalidade dialéctica, à luz de critérios lógicos, sempre de forma objectivável, possibilitando-se, assim, num controlo “a posteriori”, uma efectiva compreensão da dinâmica da decisão.


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Não vamos aqui repetir, pois, todos os argumentos lógicos aduzidos na fundamentação.


Apenas nos cabe ainda reforçar que a formação da convicção assenta, natural e necessariamente e antes de tudo, na capacidade de o julgador – que decide pela mediatização das provas – usar, com critério e objectividade, para além da prova directa, o pensamento dedutivo-indutivo e o raciocínio de inferição, por ilações lógicas, especialmente nas situações em que o facto-crime, pela sua natureza ou pelas suas concretas circunstâncias, não é susceptível de ser comprovado pelo recurso a dados probatórios abundantes.


22


Ou seja:


A valência probatória dos depoimentos do ofendido e da testemunha (o arguido, regularmente notificado, não quis ir a julgamento apresentar a sua versão dos factos) – sem dúvida fontes privilegiadas dos factos, pois que a eles “assistiram” na primeira pessoa ou como particulares expectadores – deve ser avaliada, como qualquer outra prova declaratória ou testemunhal, à luz da relação dialéctica que é possível estabelecer:


Por um lado, entre o grau e a índole da credibilidade e da verosimilhança dos muitos trechos em que normalmente se podem dissecar, no plano lógico, as declarações ou os depoimentos prestados em julgamento, e o sentido global das versões que traduzem;


Por outro lado, entre a significação e valor lógico-cognitivo de cada declaração ou depoimento e o conjunto de todas as restantes provas produzidas.


23


Quer isto dizer que, efectivamente, sendo a realização da justiça a tradução de um evento do real-social numa verdade prático-jurídica, o certo é que na procura desta verdade o julgador – mediatizado pelas provas – se depara, inevitavelmente, com inverdades, meias-verdades, falhas de memória, imprecisões e efabulações, muitas vezes de mistura com a própria verdade, revelada, em esta mesma, frequentemente, com intermitências.


24


Não é, pois, de estranhar ou censurar que o tribunal valore diferentemente (do ponto de vista da formação da convicção) os vários excertos da narrativa em que se consubstanciam os depoimentos de um ofendido ou de uma concreta testemunha:


Tudo passa, como já se antevê, pela capacidade de o julgador objectivar, de uma forma lógica, clara, razoável e consistente, o processo de formação da sua livre convicção, assim permitindo sujeitá-lo a uma apreciação crítica, capaz de o avaliar pela sua racionalidade e pela valência dos seus pressupostos metodológicos.


25


O juízo de valoração das provas é, de todo, avesso a um método assente numa lógica formal-quantitativa, antes reclamando uma hábil e subtil aptidão para, num processo de índole material-qualitativa, transformar aquele universo real-social numa verdade prático-jurídica.


III


Em síntese:


Não padece a decisão recorrida dos vícios previstos na disposição do art. 410º/2 do Código de Processo Penal, pois que se apresenta, pelo prisma da questão-de-facto, como um todo lógico, coerente e sem lacunas.


IV


Em conclusão:


Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:


Deverá o presente recurso ser julgado não provido e improcedente, sendo de manter os termos da decisão recorrida.


(…)».


7. Observado o contraditório, o arguido não respondeu ao parecer do Ministério Público.


8. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. Objeto do recurso


1. Considerando a motivação e conclusões do recurso, as quais, como é pacífico, delimitam o respetivo objeto1, as questões nele colocadas cingem-se:


a) à verificação dos vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e do erro notório na apreciação da prova, previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP.


III. Da (in)admissibilidade do recurso


O recurso em apreço vem interposto de acórdão condenatório proferido pelo TRL em recurso de decisão absolutória da 1ª instância e fundamenta-se exclusivamente nos vícios previstos no artigo 410º, n.º 2, do CPP, integrando-se, por conseguinte, na previsão do artigo 432º, n.º 1, al. b), combinado com os artigos 434º e 400º, n.º 1, al. e), in fine, todos do mesmo diploma legal, na redação que lhes foi dada pela Lei n.º 94/2021, de 21.12, o que suscita a questão prévia da sua rejeição, por inadmissibilidade legal, a que não obsta o facto de ter sido admitido pelo tribunal a quo, uma vez que essa decisão não vincula o Tribunal ad quem, conforme prevê o artigo 414º, n.º 3, do mesmo código.


Efetivamente, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 434º e 432º, n.º 1, al. b), do CPP, “o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”, sendo que na al. b) deste preceito se prevê precisamente a hipótese de recurso como o presente, é dizer aquele interposto para o STJ “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.


Hipótese, portanto, em que, ao contrário do que sucede nas suas alíneas a) e c), relativas, respetivamente, aos recursos interpostos para o STJ “de decisões das relações proferidas em 1ª instância, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º” e “de acórdãos finais proferidos pelo tribunal do júri ou pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, visando exclusivamente o reexame da matéria de direito ou com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º”, não se contempla como fundamento do recurso a verificação dos vícios e nulidades referidas neste artigo 410º, n.ºs 2 e 3.


Assim sendo, apesar de ter sido admitido pelo TRL, o recurso deverá ser rejeitado, por inadmissibilidade legal, nos termos das citadas disposições legais, conjugadas com o disposto nos artigos 414º, n.ºs 2 e 3, e 420º, n.º 1, al. b), do CPP, sem prejuízo, naturalmente, do seu conhecimento oficioso, se do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, tais vícios e nulidades resultarem evidentes, o que aqui não ocorre, como se afirma na resposta ao recurso e no parecer do Ministério Público apresentados no TRL e neste Supremo Tribunal2.


É essa, de facto, a orientação uniforme e constante da jurisprudência do STJ, após a entrada em vigor da atual redação dos citados preceitos, introduzida pela também citada Lei n.º 94/21, de 21.12, com início de vigência no dia 20 de março de 2022, antes, portanto, da prolação das decisões aqui em apreço e do próprio início do julgamento em 1ª instância e, consequentemente, aqui aplicável, nos termos do artigo 5º, n.º s 1, e 2, a contrario, do CPP3.


Ainda assim diga-se que, como resulta cristalino do texto do acórdão escrutinado, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, não ocorre, in casu, qualquer nulidade ou vício da decisão, que, de resto, o próprio recorrente não logra demonstrar por referência aos concretos pontos da decisão de que emergem, antes procurando fundamentá-los em elementos exteriores ao respetivo texto ou mediante a consideração de matéria de facto diferente daquela que nele se deu como assente ou distorcendo a respetiva fundamentação, como ensaiou fazer quanto ao depoimento da testemunha CC.


De facto, ao contrário do que se afirma na motivação e conclusões do recurso, o acórdão recorrido não lhe retirou credibilidade face às declarações do ofendido, antes o desconsiderou relativamente à situação descrita na acusação e que constitui o objeto da processo delimitado pela acusação pública, por ter fundamentadamente concluído que essa testemunha não assistiu a esse, mas a posterior episódio de confronto do arguido com o ofendido, seu pai, valorando-o como elemento instrumental ou acessório corroborante das declarações deste último quanto ao primitivo e verdadeiro evento sujeito a julgamento, por isso o considerando “em linha com a acusação e as declarações do ofendido” e não, como afirma o recorrente, ser com elas “coincidente”.


Nenhuma contradição, por conseguinte, se verifica nesse ou em qualquer outro segmento do acórdão recorrido, muito menos insanável, como se demonstra também no parecer do Ministério Público, nem nele se deteta qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ou ilação ilógica ou contrária às regras da experiência comum na respetiva fixação, que, aliás, à luz dos factos conhecidos, conjugados com aquelas regras e o normal acontecer, justificam as conclusões de facto sobre o as circunstâncias de tempo, modo e lugar da atuação do arguido e quanto à credibilidade conferida às declarações do ofendido extraídas pelo tribunal das provas produzidas, sem margem para qualquer censura.


Termos em que, porque, repete-se, a admissão do recurso pelo tribunal recorrido não vincula o tribunal superior, se rejeita o recurso, por inadmissibilidade legal, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 400º, n.º 1, al. e), 414º, n.º 3, 420º, n.º 1, al. b), 432º, n.º 1, al. b), e 434º. do CPP.


IV. Decisão


Em face do exposto, acorda-se em:


a) Rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA, por inadmissibilidade legal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 400º, n.ºs 1, al. e), 414º, n.º 3, 420º, n.º 1, al. b), 432º, n.º 1, al. b), e 434º, todos do CPP;


b) Condenar o recorrente nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 5 (cinco) UC, (cfr. artigos 513º e 524º do CPP e 8º, n.º 9, do RCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26.02 e Tabela III anexa), ressalvado eventual benefício de apoio judiciário.


Lisboa, d. s. c.


(Processado pelo relator e integralmente revisto e assinado digitalmente pelos subscritores)


João Rato (Relator)


Jorge Gonçalves (1º adjunto)


Celso José Neves Manata (2º adjunto)








_________________________________________________

1. Cfr. artigo 412º do Código de Processo Penal (CPP) e, na doutrina e jurisprudência, as correspondentes anotações de Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, de António Henriques Gaspar [et al]., 2021 - 3ª Edição Revista, Almedina.

Tudo sem prejuízo, naturalmente, da necessária correlação e interdependência entre o corpo da motivação e as respetivas conclusões, não podendo nestas acrescentar-se o que não encontre arrimo naquele e sendo irrelevante e insuscetível de apreciação e decisão pelo tribunal de recurso qualquer questão aflorada no primeiro sem manifestação nas segundas, não podendo igualmente, salvo as de conhecimento oficioso, conhecer-se de questões novas não colocadas nem consideradas na decisão recorrida, como se afirmou no acórdão deste STJ, de 23.11.2023, proferido no processo n.º 687/23.6YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível no sítio https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.↩︎

2. A propósito do conhecimento oficioso destes vícios e nulidades e em sintonia com o afirmado no texto, vejam-se Pereira Madeira e Oliveira Mendes em anotação aos artigos 432º e ss. e 410º e 379º do CPP, respetivamente, no referido Código de Processo Penal Comentado, de Henriques Gaspar [et al.], 3ª Edição Revista, Almedina 2021.

Também assim, o AFJ do STJ n.º 7/95, de 19.10.1995, publicado no DR, Série IA, n.º 298, de 28.12.1995.↩︎

3. Cfr, entre outros, os acórdãos, de 1.03.2023, 9.03.2023, 11.08.2023, 15.02.2024, que referencia os três anteriores, e 29.02.2024, cujos relatores são, respetivamente, os Conselheiros Ernesto Vaz Pereira, Helena Moniz, Pedro Branquinho Dias, o do presente e Agostinho Torres, proferidos nos processos n.ºs 589/15.0JABRG.G2.S1, 1368/20.8JABRG.G1.S1, 31/21.7JGLSB.L1.S1, 135/22.9JAFUN.L1.S1 e 864/20.1JABRG.G2.S1, todos disponíveis em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.

No mesmo sentido e em geral sobre as implicações, em matéria de recursos, decorrentes da Lei n.º 94/2021, de 21.12, veja-se Nuno A. Gonçalves, Juiz Conselheiro Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, in Alterações ao regime do recurso ordinário, no n.º 1 de “A Revista do Supremo Tribunal de Justiça, acessível em https://arevista.stj.pt/?page_id=624.↩︎