Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2182/21.9T8BCL.G1.S1
Nº Convencional: 1ª SECÇÃO
Relator: MANUEL AGUIAR PEREIRA
Descritores: CONTRATO-PROMESSA DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO DO CONTRATO
MORA
INCUMPRIMENTO DEFINITIVO
INTERPELAÇÃO
LICENÇA DE CONSTRUÇÃO
PERDA DE INTERESSE DO CREDOR
RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO
EXECUÇÃO ESPECÍFICA
PRESSUPOSTOS
FIXAÇÃO JUDICIAL DE PRAZO
Data do Acordão: 11/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADAS AS REVISTAS
Sumário :
I) A perda do interesse do credor e a concessão pelo credor de um prazo razoável ao devedor para cumprimento a que alude o artigo 808.º n.º 1 do Código Civil pressupõem que o devedor se encontre em situação de mora na realização da prestação a que se vinculou;

II) Só releva para efeito da resolução não convencionada do contrato promessa o seu incumprimento definitivo pela contraparte;

III) Não tendo sido acordado qualquer prazo certo para o cumprimento das obrigações a que as partes reciprocamente se vincularam e estando a obrigação do autor de proceder ao agendamento da escritura do contrato definitivo condicionada à legalização para construção da parcela de terreno objecto do contrato promessa, os réus entrarão em mora se, interpelados para proceder á legalização da parcela de terreno para construção o não fizerem no prazo que for fixado, e o autor depois de, tendo os réus procedido a tal legalização da parcela, for por eles interpelado para cumprir o acordado no prazo certo que fixarem.

IV) Não se apurando a mora nem o incumprimento do contrato promessa por parte dos réus não tem o autor direito à resolução do contrato;

V) A execução específica do contrato promessa pressupõe a mora de uma das partes contratantes nos termos do artigo 830.º n.º 1 do Código Civil)

VI) Não estando o autor em mora quanto ao cumprimento da obrigação de agendamento da escritura do contrato de compra e venda prometido sem que os réus procedam à legalização da parcela para construção prometida vender não lhes é lícito recorrer à execução específica do contrato promessa.

Decisão Texto Integral:

EM NOME DO POVO PORTUGUÊS, acordam os Juízes Conselheiros da 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:




I - RELATÓRIO

Parte I – Introdução

1) AA instaurou acção declarativa de condenação contra BB e CC, pedindo, na procedência da acção:

a) a declaração de resolução do contrato promessa de compra e venda, datado de 30 de julho de 2009, por incumprimento definitivo dos réus;

b) a condenação dos réus a restituir-lhe o montante de € 30.000,00 (trinta mil euros), correspondente ao sinal em dobro, acrescido de juros de mora, à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação até integral pagamento;

Subsidiariamente pediu o autor:

c) a nulidade do contrato promessa de compra e venda datado de 30.07.2009 e a consequente condenação dos réus a restituir-lhe a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), paga a título de sinal;

Ainda subsidiariamente:

d) a restituição da quantia global de € 15.000,00, recebida pelos réus, a título de sinal, nos termos do art.º 473.º do Código Civil, acrescida dos respetivos juros de mora à taxa legal de 4%, contados desde a data da citação e até integral pagamento.

2) Alegou, para tanto e, em síntese, que apesar de ter constituído mandatário tendo em vista a aquisição de um prédio que possuísse licença para construir uma habitação e negociar em seu nome a aquisição de um imóvel propriedade dos réus, não lhe conferiu poderes para o representar na celebração do contrato promessa datado de 30 de julho de 2009, do qual apenas teve conhecimento na data em que foi citado no âmbito de uma ação especial para fixação judicial de prazo.

A parcela de terreno objeto do referido contrato promessa não possuía licença de construção, tendo os réus assumido a obrigação de diligenciar pela legalização daquela parcela para construção, com elaboração de projetos de arquitetura e especialidades, o que não cumpriram até à presente data;

Mais alegou que entregou aos réus, a título de sinal, a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) mas que perdeu o interesse na celebração do contrato prometido, dado o incumprimento da obrigação assumida pelos réus e o facto de a parcela de terreno dele objecto não possuir licença para construção;

Alegou ainda que o contrato promessa não foi por si subscrito não tendo a mandatária que nele interveio poderes para o representar pelo que é nulo, impondo-se que seja restituído o sinal prestado no valor de € 15.000,00 (quinze mil euros), sem o que os réus enriquecerão sem causa à sua custa.

3) Os réus deduziram contestação, no âmbito da qual arguiram a ineptidão da petição inicial e a prescrição do direito à restituição da quantia de € 15.000,00 por enriquecimento sem justa causa, tendo no mais impugnado a matéria vertida na petição inicial, designadamente o facto de terem assumido a obrigação de legalizar a parcela para construção, com elaboração de projectos de arquitetura e especialidades, acrescentando que não receberam a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros) a título de sinal.

4) Os réus deduziram reconvenção pedindo a execução específica do contrato promessa, uma vez que até à presente data o autor não cumpriu a obrigação de marcar a escritura pública do contrato de compra e venda prometido, e a condenação do autor a pagar-lhes o preço estipulado no contrato nos termos da cláusula 3ª, al. b) e devido na data da realização da escritura, no montante de 60.000,00 euros (sessenta mil euros), e nos juros de mora à taxa legal a partir da citação até efectivo e integral pagamento.

5) O autor apresentou réplica e respondeu às excepções invocadas pelos réus, concluindo pela sua improcedência.

6) Em sede de audiência prévia, o autor desistiu do pedido formulado sob a alínea c), tendo sido proferida sentença homologatória dessa desistência e julgada prejudicada a apreciação e decisão da ineptidão da petição inicial arguida pelos réus.

Foi, ainda, proferido despacho que admitiu a reconvenção deduzida e despacho saneador, identificando o objecto do litígio e enunciando os temas da prova.

7) Realizada a audiência final foi proferida sentença que julgou:

- a acção parcialmente procedente, declarando resolvido o contrato promessa de compra e venda celebrado entre o autor AA e os réus BB e CC no dia 30 de julho de 2009 e estes condenados a restituir ao autor a quantia de 15.000,00 (quinze mil euros), entregue a título de sinal, acrescida de juros de mora, à taxa legal de 4%, desde a data da presente sentença e até integral pagamento, absolvendo os réus de tudo o mais;

- a reconvenção improcedente, com a consequente absolvição do autor do pedido reconvencional.

8) Os réus interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Guimarães.

Por seu acórdão de 7 de março de 2024 o Tribunal da Relação de Guimarães julgou o recurso parcialmente procedente e revogou a sentença recorrida na parte em que declarou resolvido o contrato por incumprimento definitivo e condenou os réus a restituir ao autor a quantia de € 15.000,00 (quinze mil euros), mantendo tudo o mais decidido em primeira instância.




Parte II – A Revista

9) Inconformado o autor interpôs recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, tendo formulado as seguintes conclusões nas respectivas alegações:

“(…) 1

12. Pelo que, com o devido respeito, há, como veremos, um evidente erro na aplicação e interpretação de normas legais aplicáveis ao caso dos autos.

13. Consideramos que existe efetivo fundamento para a resolução do contrato promessa de compra e venda celebrado entre o autor e os réus, por claro incumprimento imputável a estes.

14. Acrescendo a perda de interesse do autor, face à inércia dos réus relativamente à legalização e elaboração de projeto de arquitetura/especialidades, conforme decorre do estipulado no contrato em apreço.

15. Consta dos factos dados como provados que a parcela de terreno objeto do contrato promessa não possuía licença para a construção, bem como os Réus não legalizaram tal parcela, nem diligenciaram pela elaboração de projeto de construção e de especialidades.

16. Consta igualmente provado que os Réus nunca entregaram a parcela ao Autor.

17. Além disso, o Autor comprou uma habitação.

18. De facto, o contrato promessa de compra e venda foi celebrado no ano de 2009, tendo já decorrido cerca de 15 anos, pelo que não pode considerar-se que a falta de legalização da parcela resulta de mero desinteresse de ambas as partes, como alega o acórdão recorrido.

19. Na verdade, apesar de não existir um prazo fixado para a legalização da parcela de terreno, o certo é que atento o tempo decorrido e, atenta a falta de interesse do autor, fruto da não legalização, consideramos existir motivo suficiente para ser declarado resolvido o contrato promessa de compra e venda, por incumprimento definitivo imputável aos réus.

20. Desde, há muito tempo que tanto a doutrina como a jurisprudência vêm entendendo que é de considerar como definitivamente incumprido um contrato, quando tal resulte de comportamento do devedor que, inequivocamente, demonstre que o mesmo não pode ou não quer cumprir o contratado, desde que tal comportamento seja concludente, nesse sentido.

21. Ora apesar de inexistir um prazo para a legalização do terreno, é certo que 15 naos é tempo por demais suficiente para os réus terem legalizado o terreno, sendo que não o fizeram porque efetivamente não quiseram!

22. Não podendo o autor ser colocado numa situação ad eternum de claro incumprimento dos réus.

23. Alémdisso, emjulhode2018, decorridos praticamente nove anos sobre a data da celebração do contrato promessa, os réus enviaram uma carta ao autor, com a finalidade de ser agendada a marcação da escritura pública do contrato prometido, obrigação por este assumida naquele acordo, e interpuseram, no ano seguinte, uma ação especial para fixação judicial de prazo para esse mesmo fim.

24.Contudo,perante a ausência de qualquer respostado autor à decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães no âmbito daquela ação, os réus enviaram-lhe a carta registada no dia 17 de fevereiro de 2020, da qual resulta que consideraram o contrato promessa resolvido por culpa daquele depois de decorrido o prazo de 15 dias após a receção da missiva sem que o promitente comprador marcasse a escritura pública, o que reforça claramente a ideia de que os réus perderam interesse na celebração do contrato prometido perante o não agendamento daquela escritura.

25. Portanto, é claro a intenção dos Réus em não cumprirem o contrato, porquanto nunca legalizaram, e mesmo após a não marcação da escritura definitiva nada fizeram, no sentido de intentar ação de execução específica.

26. O STJ, já em Acórdão de 3 de Outubro de 1995, in CJ, STJ, Ano III, tomo 3, a pág. 42 e seg.s, decidiu que há incumprimento do contrato quando o devedor (no caso, um empreiteiro) manifestar que não quer cumprir ou que não cumprirá, podendo essa manifestação resultar de declaração expressa ou de actos concludentes do mesmo, citando, nesse sentido, Vaz Serra, in Mora do Devedor, BMJ, n.º48, pág. 60 e seg.s; A. Varela, Das Obrigações em Geral e Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, vol.II. Entendimento este que tem vindo a ser mantido por este Supremo Tribunal, como decorre da análise da jurisprudência do STJ, podendo, por último, dar-se como exemplo o seu Acórdão de 02 de Fevereiro de 2017, Processo n.º 280/13.1.TBCDN.C1.S1.

27. Como ali se refere, apoiando-se nos ensinamentos de Galvão Telles, Direito das Obrigações, 1997, pág. 258; Almeida Costa, Direito das Obrigações, 2009, pág. 1049 e seg.s; Brandão Proença, Lições de Cumprimento e não Cumprimento das Obrigações, 2011, pág. 323, entre outros, é de considerar a existência de mora debitória, independentemente de interpelação, para além das hipóteses previstas no artigo 805.º, n.º 2, do Código Civil, se o devedor declara ao credor, de forma, inequívoca, definitiva, conscientemente e de forma peremptória, a sua intenção de não cumprir; o que pode revestir a forma expressa ou tácita, exigindo-se, nesta última hipótese que tal intenção tem de se deduzir de factos que, com toda a probabilidade a revelam, em conformidade com o disposto no artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil.

28. Ora, in casu, não obstante os promitentes vendedores se tenham obrigado a legalizar a parcela de terreno e, os projetos de construção e de especialidade, o certo é que decorridos 15 anos não o fizeram e, sem motivo para tal, revelou vontade e intenção de não o fazer, conforme decorre da sentença proferida.

29. Daqui decorre que a mesma se desinteressou, se desvinculou das obrigações que assumira ao celebrar o contrato promessa, tornando, desde logo e por isso, impossível, em termos definitivos, o cumprimento do referido contrato promessa, pelo que, como se concluiu na decisão ora em recurso, se tem de ter por definitivamente incumprido o contrato promessa que está na génese dos presentes autos.

30. Neste sentido, veja-se Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, Processo: 1350/14.4TBLRA-D.C1, de 27-02-2018:

X - Por outro lado, de acordo com o disposto no artigo 799, n.º 1, Código Civil, incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento não procede de culpa sua e só existe incumprimento definitivo quando a prestação não tenha sido cumprida e já não possa vir a sê-lo posteriormente e desde que continue a existir interesse do credor na prestação, de acordo com o disposto no artigo 808.º do Código Civil.

XI - A diferença entre a mora e o incumprimento definitivo reside no facto de a mora se traduzir na falta de cumprimento na data estabelecida, continuando o cumprimento a ser possível e a satisfazer o interesse do credor, enquanto o incumprimento definitivo revela uma situação em que a prestação já não pode ser efectuada ou deixe de satisfazer o interesse do credor. Daqui resulta que a aplicação das sanções aludidas no artigo 442.º, n.º 2 do CC. pressupõe o incumprimento definitivo do contrato promessa, não bastando a simples mora.

XII - No entanto, desde há muito tempo que tanto a doutrina como a jurisprudência vêm entendendo que é de considerar como definitivamente incumprido um contrato quando tal resulte de comportamento do devedor que, inequivocamente, demonstre que o mesmo não pode ou não quer cumprir o contratado, desde que tal comportamento seja concludente nesse sentido.

31. A isto acresce que, sempre poderá dizer-se que esta circunstância é suficiente para caracterizar um incumprimento definitivo do contrato.

32. Uma vez que era ao promitente vendedor que incumbia a realização dos passos necessários para obtenção da licença, será a ele que incumbe a prova de ausência de culpa da sua parte, nos termos do artigo 799º nº 1 do CC.

33. Não estaremos assim perante uma situação de mora apta a desencadear os mecanismos de proteção do credor previstos no artigo 808º nº 1 do CC. Relembre-se que o devedor se constitui em mora quando “por causa que lhe seja imputável, aprestação, ainda possível, não foi efetuada no tempo devido”.

34. No caso dos autos não foi fixado qualquer prazo para o promitente vendedor obter a licença de construção, sendo apenas estabelecida a sua obrigação de obter tal licença.

35. Ora, decorridos 15 anos desde a celebração do contrato promessa de compra e venda, os réus, promitentes vendedores nada fizeram no sentido de obter a licença, independentemente de não ter sido fixado qualquer prazo.

36. Perante isto, verifica-se que a prestação a cargo dos réus, essencial para a outorga da escritura, a obtenção da licença de construção, não foi realizada.

37. Reitera-se assim que a situação configurada pelos réus tem a ver com o incumprimento definitivo destes e não com a constituição destes em mora - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, Processo 1194/11.5TVLSB.L1-8, de 13-10-2011.

38. Na mesma esteira, quanto à resolução do contrato promessa de compra e venda e, seguindo a sentença proferida em primeira instância, considerando que ambas as partes contribuíram com culpa para a não formalização do contrato definitivo, veja-se o seguinte aresto:

- Quando se verifique uma situação de incumprimento do contrato-promessa imputável a quem prestou o sinal, permite a lei que aquele que o recebeu o faça seu e, ao invés, verificando-se o incumprimento definitivo da parte de quem o recebeu, confere a quem o prestou a faculdade de exigir o dobro do que tiver prestado (arts. 441.º e 442.º, n.º 2, do CC).

II - Só o incumprimento definitivo e culposo comina o regime previsto no art. 442.º, n.º 2, do CC, não se bastando a lei com uma situação de retardamento ou incumprimento para além do tempo de cumprimento da obrigação, ou seja, da ocorrência de mora de qualquer dos contraentes.

III - Para além das situações em que a lei prevê especialmente a possibilidade de uma das partes resolver o contrato, a resolução pode ser accionada quando um contraente deixe, definitiva e culposamente, de cumprir a prestação a que estava adstrito (arts. 798.º e 801.º, n.º 2, do CC).

IV - A simples mora não confere ao contraente fiel o direito (potestativo) de pedir a resolução do contrato, mas tão só o direito de pedir a reparação dos prejuízos que o retardamento causou ao credor (art. 804.º, n.º 1, do CC).

V - Para que ocorra uma situação de perda de interesse susceptível de justificar a assumpção de uma atitude resolutiva por parte do accipiens, torna-se necessário que a situação de retardamento no cumprimento da prestação em que o devedor se colocou ocasione um subjectivo, objectivamente perspectivado, desinteresse do credor na execução do contrato.

VI - Cabe aos demandantes alegar e provar os factos objectivos e concretos que substanciem a perda do interesse, susceptível de caracterizar o comportamento do inadimplente como equiparável à impossibilidade de cumprir; a perda de interesse reveste, a esta luz, a natureza de facto constitutivo do direito que o credor se arroga de proceder, com esse fundamento, à liquidação da relação contratual (art. 342.º, n.º 1, do CC).

VII - Tendo o comportamento contratual de ambas as partes contribuído para uma situação de impasse ou de inércia na actuação (positiva) com vista ao cumprimento dasua parte no computo da relação contratual estabelecida, verifica-se uma situação de não cumprimento bilateral, pelo que o contrato-promessa deve ser resolvido tendo por base as normas gerais, pela compensação de culpas concorrentes, verificados os respectivos pressupostos (art. 570.º do CC).

VIII - Considerando que ambas as partes, agindo com culpa, contribuíram para que o contrato não obtivesse o resultado para que tendia, nos termos dos arts. 433.º e 434.º do CC, a não conclusão do contrato terá os efeitos da resolução, o que, no caso, se traduz na restituição, em singelo, do sinal recebido.

39. Dependendo o exercício do direito à resolução da ponderação de interesses terá que existir uma adequação entre a eficácia extintiva da figura e os pressupostos/limites que conformam o instituto. “Paradigma do fundamento resolutivo é o incumprimento superveniente, culposo, total ou parcial, traduzido na falta definitiva de cumprimento (por impossibilidade ou recusa de cumprimento) dos deveres de prestação e certos deveres de conduta tidos por relevantes no contexto contratual.” “Essa exigência de um fundamento importante, isto é de um incumprimento com determinada gravidade (apreciada sobretudo pela intensidade da possível culpa, pela amplitude, pelas consequências o reiteração da violação e, portanto, em função do todo da relação contratual) está em sintonia com a finalidade do instituto da resolução (ratio extrema ou ultima ratio) e permite submeter a figura a um controlo axiológico balizado pela boa fé e, mais concretamente, pelo abuso do seu exercício perante um incumprimento insignificante, pouco prejudicial, ou alegando o credor mera conveniência pessoal ou um aproveitamento das circunstâncias. [Há]que valorara natureza do dever violado(podemos estar perante um dever principal ou um dever acessório impeditivo do cumprimento do principal, um dever de prestação sujeito a um termo essencial ou absolutamente fixo, um dever lateral importante, etc.), a forma como se manifesta (estamos a pensar na recusa intencional, clara e inequívoca de cumprimento manifestada por um dos contraentes) tudo em ordem à afectação negativa da substância do contrato e a fundar, enquanto causa adequada, a pretendida ou declarada cessação negocial.”

40. Para Baptista Machado “[O] incumprimento é uma categoria mais vasta onde cabem: a) O incumprimento definitivo, propriamente dito; b) A impossibilidade de cumprimento; c) A conversão da mora em incumprimento definitivo – art. 808º, nº1, do C. Civil; d) A declaração antecipada de não cumprimento e a recusa categórica de cumprimento, antecipada ou não; e) E, talvez ainda, o cumprimento defeituoso.”

41. Para que ocorra uma situação de perda de interesse susceptível de justificar a assumpção de uma atitude resolutiva por parte do accipiens torna-se necessário que a situação de retardamento no cumprimento da prestação em que o devedor se colocou ocasione um subjectivo, objectivamente perspectivado, desinteresse do credor na execução do contrato.

42. Na perspectiva da doutrina e da jurisprudência tem-se por assente que a perda de interesse legitimadora do direito potestativo de resolução ou da possibilidade de liquidação da relação, na acepção germânica, não é suficiente que o contraente fiel afirme, mesmo convictamente, que já não tem interesse na prestação, exigindo-se que, em face das circunstâncias, seja alegado e provado se a perda do interesse corresponde a uma disfuncionalidade objectiva da relação contratual que impede a execução do contrato.

43. A perda do interesse do accipiens terá que resultar, objectivamente, das condições e das expectativas concretas que estiveram na origem da celebração do negócio, bem como das que, posteriormente, venham a condicionar a sua execução, inscrevendo-se no contexto daquilo que Calvão da Silva chama o respetivo "programa obrigacional".

44. Tendo ficado provado factos objetivos e concretos que substanciam a perda do interesse, suscetível de caracterizar o comportamento do inadimplente como equiparável à impossibilidade de cumprir.

45. A perda de interesse reveste, a esta luz, a natureza de facto constitutivo do direito que o credor se arroga como forma de proceder, com esse fundamento, pedir a liquidação da relação contratual. (art. 342º, nº 1, do C. Civil).

46. A factualidade que resulta como provada, mormente que o autor adquiriu uma habitação, que já decorrem 15 desde a celebração do contrato promessa de compra e venda e, os Réus não legalizaram a parcela de terreno e que o autor perdeu interesse na celebração do contrato, uma vez que não é possível ali construir uma habitação, porquanto não foram elaborados projetos de arquitetura e especialidades.

47. Além de que, os réus para além de não cumprirem a obrigação a que estavam vinculados, nada fizeram a após o autor não ter procedido à marcação da escritura definitiva, o que é demonstrativo da sua igual perda de interesse na celebração do negócio.

48. Revisitando os elementos de facto carreados para o processo cremos serem integradores de uma objetiva perda de interesse, por inércia, desleixo ou incúria, assacada aos réus.

49. Os Réus negligenciaram de forma grosseira e intolerável os seus deveres de obtenção de elementos que, sendo acessórios do contrato-promessa, eram essenciais para a execução do programa contratual para que o contrato-promessa tendia. Com a inércia, abstenção e inanidade volitiva posta no desenvolvimento e execução do contrato-promessa.

50. Ao comportar-se com o desinteresse demonstrado, os Réus evidenciam, objetivamente, tendo, subjetivamente criado essa ideia no autor, uma incapacidade inibitória de se conduzir de modo a vir a conseguir uma situação favorável para o contrato-promessa.

51. Ocorre que, poderá por mera hipótese académica, dizer-se que da parte do autor ocorreu algum desleixo, no sentido de interpelar os réus para o cumprimento, ocorrendo, neste caso, e como ajuizou o tribunal de 1.ª instância uma concorrência de culpas na produção do evento desencadeador da resolução que haverá que repartir nos termos do artigo 570.º do Código Civil.

52. Em nosso juízo, não deixando de ter presente que a perda de interesse se tem de aquilatar e ajuizar segundo padrões de objetividade, o facto é que tendo o comportamento contratual de ambas as partes contribuído para uma situação de impasse ou de inércia na atuação (positiva) com vista ao cumprimento da sua parte computo da relação contratual estabelecida se verificará uma situação de não cumprimento bilateral pelo que “o contrato deve ser resolvido, tendo por base as normas gerais, pela compensação de culpas concorrentes verificados os respectivos pressupostos (art. 570.º do CC). “Assim, a indemnização poderá ser totalmente concedida, reduzida ou mesmo excluída, consoante a gravidade das culpas de ambas as partes e as consequências que delas resultaram. Se as culpas dos dois contraentes forem iguais, a indemnização deve ser excluída, devendo o accipiens, porém, restituir o sinal em singelo, pois não se vê a que título possa retê-lo legitimamente – neste sentido, entretanto, o acórdão do S.T.J., de 13 de Janeiro de 2009 (Processo n.º 08A3649); acórdão da Relação de Lisboa, de 12 de Março de 2009 (Processo n.º 9788/2008-7).

53. É que tal restituição, importa repeti-lo, não reveste natureza indemnizatória, sendo antes mera consequência da resolução equiparada, quanto aos efeitos, à nulidade ou à anulabilidade (arts. 433.º e 434.º) –, que tem eficácia retroactiva, pelo que deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado (art. 289.º, ex vi do art. 433.º).” [[12]]

54. Se o autor não cumpriu, formalmente, a obrigação que sobre si impendia de interpelar, admonitoriamente, os Réus para, em determinado prazo, obterem a documentação que permitiria e realização da escritura do contrato definitivo, o facto é que a atitude e o comportamento destes, ao terem-se desinteressado do cumprimento do contrato, agiram de modo a criar uma situação de alheamento susceptível de ser entendido como desinteresse na concreção do contrato.

55. Por isso, o acórdão recorrido devia ter mantido a sentença proferida no sentido de declarar resolvido o contrato promessa de compra e venda por incumprimento definitivo e condenar os Réus a restituir ao Autor a quantia de €15.000,00 e, não o tendo feito não fez nessa medida a interpretação e a aplicação mais correta e adequada do disposto nos artigos 410.º, 411.º, 432.º, 441.º, 442.º, 801.º, 805.º, 808.º, 779.º do Código Civil.

56. Por tudo o acima exposto, a decisão recorrida deverá ser revogada e substituída por outra que declare resolvido o contrato promessa de compra e venda por incumprimento definitivo e condene os Réus a restituir ao Autor a quantia de €15.000,00.

TERMOS EM QUE e sempre com o douto suprimento de Vossas Excelências, deverá ser dado inteiro provimento ao presente recurso, e, em consequência, ser o acórdão recorrido revogado e substituído por outro que declare resolvido o contrato promessa de compra e venda por incumprimento definitivo e condene os Réus a restituir ao Autor a quantia de €15.000,00”.


◊ ◊



10) Os réus apresentaram articulado de resposta às alegações da revista interposta pelo autor, as quais rematam pela forma seguinte:

“1. Não foi dado como provado nas instâncias, que “Os réus assumiram a obrigação de legalizar a parcela de terreno objeto do contrato promessa para construção, com elaboração de projetos de arquitetura e especialidades.” – ponto 22.

2. De facto, de todas as preocupações do Recorrente e a “suposta falta de interesse” inicialmente alegada, que vimos não corresponder à realidade, e transparece apenas ao fim de vários anos a “empatar” a realização de um negócio junto dos vendedores.

3. O Recorrente nunca interpelou os Réus no sentido de estes assumirem o pagamento de qualquer despesas relativas ao projeto que este tivesse elaborado ou pretendesse elaborar ou fez qualquer outra interpelação com qualquer outra imputação aos Recorridos de qualquer facto que lhes fosse imputável.

4. de modo que, no ano de 2019, os réus propuseram contra o autor ação especial de fixação judicial de prazo, que correu termos sob o n.º 335/19.9..., no juízo local cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de..., pedindo que fosse fixado o prazo de 30 dias para este proceder à marcação da escritura pública de compra e venda relativamente ao contrato promessa.

5. E, por decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datada de 17 de dezembro de 2019, foi fixado o prazo de 30 dias para a outorga da escritura pública a que se refere o contrato promessa de 30 de julho de 2009.

6. Sucede que o autor nunca marcou a escritura pública referente ao contrato prometido e nada mais disse.

7. Desse modo, o A. não pode resolver o contrato promessa de compra e venda celebrado com os RR.

8. Pois foi o Autor a constituir-se em mora ao não cumprir o prazo fixado pela decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datada de 17 de dezembro de 2019, que determinou o prazo de 30 dias para a outorga da escritura pública a que se refere o contrato promessa de 30 de julho de 2009.

9. O Autor nunca expressou aos Réus o seu desinteresse no negócio mas, pelo contrário, andou anos a alimentar a esperança de que o contrato prometido iria ser celebrado.

10. Os Réus sempre mantiveram o interesse na celebração do negócio, motivo pelo qual deduziram reconvenção, afim de dar cumprimento à celebração do contrato prometido, tendo já sido fixada judicialmente uma data limite para a celebração do contrato definitivo.

11. Das várias interpelações realizadas pelos Réus verifica-se que não houve perda do interesse para a realização devida pelo Autor, devedor.

12. Não há qualquer circunstância superveniente que justifique a alteração do interesse do Autor.”


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11) Também os réus interpuseram recurso de revista para este Supremo Tribunal de Justiça, sendo do seguinte teor as conclusões das suas alegações:

“1. Os Recorrentes propuseram contra o autor ação especial de fixação judicial de prazo, que correu termos sob o n.º 335/19.9..., no juízo local cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de..., pedindo que fosse fixado o prazo de 30 dias para este proceder à marcação da escritura pública de compra e venda relativamente ao contrato promessa.

2. No referido processo foram discutidas as obrigações das partes e os prazos respectivos, nomeadamente, a da obrigação principal – a marcação da escritura de compra e venda;

3. Por decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datada de 17 de dezembro de 2019, foi fixado o prazo de 30 dias para a outorga da escritura pública a que se refere o contrato promessa de 30 de julho de 2009;

4. O referido acórdão constitui caso julgado no que diz respeito à fixação do prazo para cumprimento da obrigação principal – a marcação da escritura de compra e venda;

5. O recorrido ignorou a referida decisão e perante o silêncio do Recorrido, os Recorrentes dirigiram-lhe uma carta registada no dia 17 de fevereiro de 2020, a dar conta que o prazo para a celebração da escritura havia terminado e, que caso não fosse marcada a referida escritura no prazo de 15 dias após a receção daquela comunicação e que se considerava “que não cumpriu o contrato por culpa que lhe é exclusivamente imputável a si.”.

6. O Autor/Recorrido constituiu-se assim em mora.

7. Pelo que os Recorrentes podiam, como podem, recorrer à execução específica e deveria ter sido reconhecido o direito destes a recorrer ao regime da execução específica e julgar a reconvenção totalmente procedente.

8. O tribunal “a quo” violou, além do mais, o disposto no artigo 930º Código Civil”.


◊ ◊



12) Os autos não evidenciam que tenha sido apresentado articulado de resposta às alegações do recurso de revista interposto pelos réus.

◊ ◊



13) Colhidos que foram os vistos dos Juízes Conselheiros adjuntos importa apreciar e decidir.

Tendo em conta o teor das decisões impugnadas, e o que se extrai das conclusões das alegações do recurso interposto pelos autores, as questões a decidir na presente revista são as seguintes:

No âmbito da revista interposta pelo autor a existência de fundamento legal para que seja decretada a resolução do contrato promessa celebrado entre as partes;

No âmbito da revista interposta pelos réus importará decidir se existe fundamento para decretar a execução específica do contrato promessa celebrado entre as partes.

Vejamos, antes de mais, os factos apurados pelas instâncias.



◊ ◊



II - FUNDAMENTAÇÃO

Parte I – Os Factos

1) São os seguintes os factos apurados pelas instâncias:

«a. Factos Provados.

1. No decurso do ano de 2009, o autor solicitou à Dr.ª DD, advogada que à data exercia advocacia num escritório sito no concelho de ..., que diligenciasse no sentido de lhe adquirir um prédio que possuísse licença para construir uma habitação.

2. A Dr.ª DD informou o autor que os réus eram proprietários de um prédio, que pretendiam vender, e no qual era possível construir.

3. O autor mandatou a Dr.ª DD para que negociasse em seu nome a compra daquele prédio propriedade dos réus.

4. E entregou-lhe um cheque com o valor inscrito de € 15.000,00 para sinalizar o negócio.

5. No dia 30 de julho de 2009, foi celebrado um contrato promessa de compra e venda, no qual constam como primeiros outorgantes os réus e segundo outorgante o autor, representado pela sua procuradora com poderes para o ato, Dr.ª DD, com as seguintes cláusulas:

“Um – Os primeiros outorgantes são donos e legítimos possuidores de uma parcela de terreno com área de 1.500 m2 a qual é parte sobrante do artigo rústico inscrito na matriz predial respetiva sob o artigo ...20º sito no lugar de ..., freguesia de ..., concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob a descrição nº ...28.

Dois – Pelo presente contrato os primeiros outorgantes prometem vender ao segundo outorgante, livre de qualquer hipoteca, ónus ou encargos, a parcela supra indicada na cláusula um.

Três – O preço da referida parcela é de € 75.000,00 (setenta e cinco mil euros), a ser pago da seguinte forma:

a) - a quantia de € 15.00,00 (quinze mil euros) a titulo de sinal e princípio de pagamento, entregue na presente data de celebração do contrato-promessa, dando os promitentes-vendedores, desde já, a competente quitação;

b) – A restante quantia de € 60.000,00 (sessenta mil euros) será paga na data da celebração da escritura de compra e venda.

Quatro – Ambos os outorgantes estabelecem entre si e de comum acordo que a presente venda não foi objeto de mediação imobiliária.

Cinco – São da responsabilidade do segundo outorgante e por este serão pagas as despesas inerentes à aquisição do imóvel, bem como todas despesas que sejam realizadas com a regularização da redução da área do logradouro dos prédios urbanos pertencentes aos promitentes – vendedores.

Seis – São da responsabilidade dos primeiros outorgantes e por este serão pagas, as despesas inerentes à respetiva legalização da parcela de terreno para construção e ainda as despesas dos projetos de arquitetura e especialidades. São da responsabilidade do segundo outorgante as despesas referentes a liquidação do IMT, escritura e registo.

Sete – É da responsabilidade do segundo outorgante a marcação da escritura de compra e venda avisando os primeiros outorgantes com quinze dias de antecedência.

Oito – Ao presente contrato é, por acordo das partes, atribuída a faculdade da execução específica nos termos do disposto no artigo 830º, do Código Civil.

Nove – Ambos os outorgantes prescindem do reconhecimento presencial das assinaturas no presente contrato, para efeitos do disposto no nº 3 do artigo 410º do Código Civil, não podendo invocar a nulidade do mesmo por esse motivo.

Pelo segundo outorgante foi dito: Que aceita a prometida venda nos termos exarados.

(…).”

6. O contrato promessa de compra e venda foi assinado pelos réus e por DD.

7. Os réus receberam a quantia de € 15.000,00 a título de sinal.

8. Posteriormente, o autor contactou os réus dizendo que pretendia a parcela de terreno objeto do contrato promessa que visitou por diversas vezes.

9. Passado algum tempo, o autor comprou um prédio destinado à sua habitação.

10. Os réus procederam à desanexação da parcela de terreno objeto do contrato promessa junto do Município de ....

11. Mostra-se inscrita, desde 2019.01.29, na Conservatória do Registo Predial de ..., a aquisição, por compra, a favor dos réus, do prédio rústico, situado em ..., denominado “...”, com a área de 1.500 m2, aí descrito sob o n.º ...29 - freguesia ..., inscrito na matriz rústica sob o artigo ...20.

12. A parcela de terreno objeto do contrato promessa não possuía licença para construção.

13. Os réus não legalizaram a parcela de terreno objeto do contrato promessa para construção, com elaboração de projeto de construção e de especialidade.

14. A parcela de terreno objeto do contrato promessa nunca foi entregue ao autor.

15. Os réus dirigiram ao autor carta registada no dia 18 de julho de 2018, com o seguinte teor: “Tendo em conta que manifestou interesse em cumprir o contrato promessa de compra e venda solicitei-lhe que nos informasse em que prazo pretendia realizar a escritura. Pelo que lhe solicito, mais uma vez, que me informe se está disponível e reúne condições para realizar a escritura durante o próximo mês de setembro de 2018 ou se pretende outra data. Solicito ainda que me informe se está na disposição de marcar a escritura onde entender ou se pretende que seja eu a marcá-la. Pelo que aguardo me transmita brevemente essa informação de forma a ficar estabelecido entre nós a data da realização, local e obrigação dessa marcação, de forma a poder ser cumprido integralmente o contrato entre nós assinado”.

16. No ano de 2019, os réus propuseram contra o autor ação especial de fixação judicial de prazo, que correu termos sob o n.º 335/19.9..., no juízo local cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de ..., pedindo que fosse fixado o prazo de 30 dias para este proceder à marcação da escritura pública de compra e venda relativamente ao contrato promessa identificado em 5.

17. Por decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães, datada de 17 de dezembro de 2019, foi fixado o prazo de 30 dias para a outorga da escritura pública a que se refere o contrato promessa de 30 de julho de 2009, identificado em 5.

18. Os réus dirigiram ao autor carta registada no dia 17 de fevereiro de 2020, com o seguinte teor: “Tendo em conta a decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães de 18 de dezembro de 2019 que lhe fixou o prazo de 30 dias para marcar a escritura e que tal prazo terminou venho comunicar-lhe que presumo não tem interesse na celebração do negócio.

Assim, caso não marque a referida escritura no prazo máximo de 15 dias após a receção da presente comunicação considero que não cumpriu o contrato por culpa que lhe é exclusivamente imputável a si.”

19. Até à presente data, o autor não marcou a escritura pública referente ao contrato prometido.

20. O autor perdeu interesse na celebração do contrato de compra e venda da parcela de terreno objeto do contrato promessa, uma vez que não é possível ali construir uma habitação, na presente data, não tendo sido elaborados projetos de arquitetura e especialidades.




b. Factos Não Provados.

21. O autor não mandatou a Dr.ª DD para assinar qualquer contrato em seu nome.

22. Os réus assumiram a obrigação de legalizar a parcela de terreno objeto do contrato promessa para construção, com elaboração de projetos de arquitetura e especialidades.

23. O autor apenas teve conhecimento da celebração do contrato promessa de compra e venda, aquando da citação em fevereiro de 2019 no âmbito da ação para fixação judicial de prazo para outorga da escritura definitiva de compra e venda.

24. O autor tomou conhecimento que os réus fizeram sua a quantia de € 15.000,00, não legalizaram a parcela de terreno para construção, com elaboração de projetos de arquitetura e especialidades, e que não era possível construir naquele prédio em data anterior a agosto de 2018.

25. O autor solicitou aos réus, por diversas vezes, a devolução da quantia entregue a título de sinal, após ter conhecimento que não era possível construir na parcela de terreno objeto do contrato promessa.

26. Passados alguns anos, o autor enviou uma carta aos réus onde lhes reclamava o valor de € 30.000,00.

27. Os réus responderam ao autor que quando ele quisesse celebrariam a escritura definitiva e que lhe venderiam o terreno pelos € 60.000,00 ainda a liquidar.

28. O autor nada disse perante a resposta referida em 27.

29. No mês de julho de 2018, o autor remeteu aos réus nova carta onde manifestava interesse no contrato e imputava a não realização a escritura pública aos réus.».



◊ ◊



Parte II – O Direito

A) A revista interposta pelo autor

1) Reage o autor através do presente recurso de revista contra o acórdão recorrido por não decretar a resolução do contrato promessa celebrado com os réus.

Como se extrai das suas alegações, entende o autor que os réus incumpriram definitivamente a obrigação a que se vincularam contratualmente, de forma secundária, mas ainda assim indispensável à celebração do contrato de compra e venda prometido, traduzida no compromisso de legalizar a parcela de terreno objecto do contrato para construção.

Mais defende o autor ora recorrente que, em razão de tal incumprimento definitivo do contrato promessa pelos réus ele, promitente comprador, perdeu o interesse na celebração do contrato prometido.

2) Estamos, inquestionavelmente, em presença de um contrato promessa de celebração de um contrato de compra e venda, subscrito em 30 de julho de 2009, que tem por objecto uma parcela de terreno com a área de mil e quinhentos metros quadrados, parte sobrante de um prédio rústico que os réus prometeram vender e o autor comprar.

Foi acordado que a compra e venda se realizaria pelo preço de setenta e cinco mil euros dos quais foram recebidos pelos promitentes vendedores quinze mil euros a título de sinal e princípio de pagamento, devendo o restante preço ser pago na data da celebração do contrato prometido.

Não foi estabelecido qualquer prazo para celebração do contrato prometido, tendo o autor assumido a obrigação de marcar a data de realização respectiva escritura pública.

As partes acordaram ainda que as despesas inerentes à aquisição do imóvel bem como as relativas “à regularização da redução da área do logradouro dos prédios urbanos pertencentes aos promitentes – vendedores” eram da responsabilidade do promitente comprador e que as despesas inerentes à “legalização da parcela de terreno para construção” e aos “projetos de arquitetura e especialidades” eram da responsabilidade dos promitentes vendedores.

Não foi, contudo, considerado provado que os promitentes vendedores tenham assumido “a obrigação de legalizar a parcela de terreno objeto do contrato promessa para construção, com elaboração de projetos de arquitetura e especialidades.”

Sumariamente passadas em revistas as cláusulas mais relevantes acordadas no contrato promessa vejamos se assiste razão ao recorrente para pugnar pela sua resolução.

3) A resolução não previamente convencionada entre as partes de um contrato é admitida se fundada na lei (artigo 432.º n.º 1 do Código Civil).

No que vem ao caso importa reter que o artigo 808.º n.º 1 do Código Civil estipula que “se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação”.

4) Da primeira parte do preceito acabado de citar resulta que a possibilidade de resolução de um contrato pode resultar da perda objectiva do interesse do credor na realização da prestação do devedor em falta se causada pela mora ou atraso no cumprimento.

Essa perda de interesse do credor na realização da prestação do devedor deve ser avaliada através de circunstâncias que, de modo objectivo e indiscutível, provem o incumprimento definitivo do contrato por parte do devedor (artigo 808.º n.º 1 primeira parte e n.º 2 do Código Civil), não operando, contudo de modo automático e imediato pois que se mostra necessário que o credor dirija ao devedor uma declaração resolutiva antes de ela se poder afirmar.

Uma vez realizada tal declaração resolutiva o preceito em causa equipara a impossibilidade de realização da prestação por causa imputável ao devedor que desencadeie a perda de interesse do credor ao não cumprimento definitivo do contrato imputável ao devedor 2.

5) A segunda parte da norma atrás citada prevê igualmente a possibilidade de resolução do contrato pelo decurso do prazo concedido pelo credor ao devedor em mora para a realização da sua prestação.

Estando o devedor em mora, e só relevando para efeito da resolução do contrato o incumprimento definitivo, é facultado ao credor converter a mora em incumprimento definitivo, concedendo ao devedor um prazo razoável para cumprir a prestação em falta, com a advertência de que se considerará definitivamente incumprido o contrato se tal não suceder.

A resolução do contrato subsequente à interpelação admonitória pressupõe a existência de uma intimação para o cumprimento, a fixação de um prazo peremptório, suplementar, razoável e exacto para o devedor cumprir e a declaração cominatória de que findo o prazo fixado sem que ocorra a execução do contrato este se considera definitivamente incumprido 3.

6) Tem a doutrina e a jurisprudência admitido que também a recusa, séria e inequívoca de cumprimento do devedor em mora configura hipóteses de incumprimento definitivo do contrato.

7) O que sucede no caso presente?

Como se salienta no acórdão recorrido o objecto do contrato promessa é uma parcela de terreno que o promitente comprador destinava – como era sabido pelos promitentes vendedores – a construção, mas que à data não se encontrava legalizada para tal efeito.

Ainda que os promitentes vendedores não tivessem assumido expressamente no contrato a obrigação de proceder à legalização da parcela por forma a permitir que ali se procedesse a qualquer construção 4, o cumprimento da obrigação principal assumida pelos réus de venda da parcela nas condições acordadas tem pressuposta a assunção da obrigação secundária tendente ao cumprimento do contrato, a qual consistia em promover as diligências necessárias à realização do negócio nos termos prometidos.

Os réus, porém, apesar de terem procedido à desanexação da parcela de terreno em causa não a legalizaram para construção.

8) Estabelece o artigo 805.º n.º 1 e 2 do Código Civil que:

“1. O devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir.

2. Há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação:

a) Se a obrigação tiver prazo certo;

b) Se a obrigação provier de facto ilícito;

c) Se o próprio devedor impedir a interpelação, considerando-se interpelado, neste caso, na data em que normalmente o teria sido.”

Não resulta dos autos que os réus tenham sido interpelados pelo autor para celebrar o contrato prometido até porque ele nunca agendou – como se obrigara – a respectiva escritura pública.

O autor também não interpelou os réus para diligenciar pela legalização do terreno para construção nem lhes fixou qualquer prazo para cumprir essa obrigação secundária, mas necessária à celebração do contrato nos termos acordados.

Sendo o contrato absolutamente omisso quanto ao estabelecimento de prazo certo para cumprimento da obrigação principal e/ou da obrigação secundária assumidas pelos réus promitentes vendedores, não pode determinar-se ab initio o momento a partir do qual os réus se constituíam em situação de mora.

9) Em conclusão, os réus nunca se encontraram em situação de mora no cumprimento de obrigações assumidas no âmbito do contrato promessa a que os autos aludem.

Ora a invocada perda do interesse do credor na prestação dos devedores promitentes vendedores pressupõe que estes se encontrem em mora, como claramente resulta da primeira parte do artigo 801.º n.º 1 do Código Civil.

Assim sendo, nas circunstâncias de facto apuradas nestes autos não se verifica a equiparação ao incumprimento definitivo a que, nos termos do aludido preceito, conduz a perda do interesse do credor, exactamente “em consequência da mora” do devedor.

10) Contrariamente ao defendido pelo autor (nomeadamente na conclusão 54), o aparente desinteresse dos réus na concretização do contrato prometido não é susceptível de, na ausência de acordo entre as partes, o isentar da necessidade do estabelecimento de um prazo concreto para o cumprimento, sem o que não pode configurar-se uma situação de mora ou de incumprimento definitivo do contrato promessa por parte do devedor em falta.

E sem haver incumprimento definitivo não pode ter lugar a peticionada resolução do contrato promessa.

O recurso de revista interposto pelo autor carece assim de fundamento.



◊ ◊



B) A revista interposta pelos réus

11) Na revista interposta pelos réus está em causa a perspectiva inversa, isto é, o incumprimento definitivo do contrato promessa por parte do autor face ao não agendamento da escritura de compra e venda no prazo fixado pelo Tribunal da Relação de Guimarães por acórdão de 17 de dezembro de 2019, mesmo após a interpelação que os réus lhe dirigiram e, em consequência, a possibilidade de os promitentes vendedores recorrerem à execução específica do contrato promessa, de resto prevista na cláusula oito do acordo escrito celebrado entre as partes, remetendo para o regime do artigo 830.º do Código Civil.

12) O acórdão recorrido recusou a aplicação do regime da execução específica do contrato promessa, ponderando que a concretização do negócio prometido através da prolação de uma sentença, em substituição da declaração do contraente faltoso, pressupunha o incumprimento do contrato promessa e que, no caso presente, não era possível afirmar ter o autor incorrido em incumprimento.

Fundou-se para tanto na análise da vontade do autor e dos réus veiculada no contrato promessa, de acordo com a qual a obrigação de agendamento da data da celebração da escritura de compra e venda assumida pelo autor estava condicionada pelo cumprimento da obrigação – secundário – assumida pelos réus de diligenciar pela legalização da parcela de terreno para construção, não tendo tal obrigação sido ainda por eles cumprida.

A tal conclusão não obstaria a circunstância de ter sido, entretanto, fixado judicialmente o prazo de trinta dias para marcação da escritura pública, uma vez que – tal como consta expressamente de tal decisão – “quaisquer questões de carácter contencioso como a existência, validade ou eficácia do direito que está na génese” do pedido de fixação de prazo não constituem objecto de tal acção, ficando relegadas para a acção em que se pede o cumprimento da obrigação.

13) O artigo 830.º n.º 1 do Código Civil estabelece que se “alguém se tiver obrigado a celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida”.

Como é pacífico na doutrina 5 e tem sido maioritariamente acolhido pela jurisprudência, o incumprimento a que o preceito alude é o incumprimento temporário ou atraso no cumprimento da obrigação - a mora: “Interessado no adimplemento do mesmo o credor procura obter, através do tribunal, a realização coativa da prestação.

Ora no caso presente a obrigação assumida pelo autor de proceder ao agendamento da escritura pública do contrato prometido só passaria a ser vinculante a partir do momento em que estivesse legalizada para construção a parcela de terreno que as partes pretendem transaccionar.

14) O acórdão recorrido esclarece assim a razão da recusa de aplicação do regime da execução específica no caso presente:

“No caso dos autos, decorre do que já deixamos acima explanado que a marcação da escritura pública – obrigação a cargo do autor/recorrido – estava dependente do cumprimento da obrigação secundária de legalização da parcela de terreno prometida vender para construção.

Ou seja, só se tivessem sido realizados os actos necessários para a concretização do negócio prometido nos exactos termos convencionados, é que o autor estava obrigado a cumprir a obrigação de marcar a escritura pública.

Por conseguinte, (…) não estando o autor obrigado a marcar a escritura pública enquanto não estivesse legalizada a parcela de terreno para construção, não pode se considerar estar este constituído em mora, sendo a interpelação que lhe foi dirigida pelos réus ineficaz para tal efeito.

Ou seja, do prévio cumprimento da obrigação secundária dependia a definição da data para o autor cumprir a prestação por ele contratualmente assumida. Só com o dito cumprimento e subsequente decurso dessa data, sem satisfação da prestação devida, o constituiria em mora.

Uma vez que ainda se mantém incerto o prazo de cumprimento do contrato-promessa, o autor não se constituiu em mora e nenhuma das partes incumpriu o referido contrato, que, assim, se mantém em vigor.

Inexiste assim o necessário incumprimento para proceder a execução especifica.”

15) Aceita-se, sem reserva, que a acção de fixação judicial de prazo a que alude o artigo 1026.º do Código de Processo Civil não é a sede própria para as partes discutirem o incumprimento de contrato promessa em que não foi fixado prazo certo para o cumprimento das obrigações assumidas.

A acção de fixação judicial de prazo visa exclusivamente suprir a omissão da fixação contratual do prazo de cumprimento de determinada obrigação, sem cuidar de apreciar e resolver à luz dos critérios legais que ali não são directamente aplicáveis por se tratar de uma acção de jurisdição voluntária (artigo 986.º e 987.º do Código de Processo Civil).

Tem-se, pois por irrelevante para a decisão a proferir sobre a mora no cumprimento da obrigação de agendamento da escritura de compra e venda o trânsito em julgado da decisão que, a requerimento dos réus, fixou o prazo não estabelecido no contrato promessa.

16) O que nos reconduz à questão da mora do autor, abordada no acórdão recorrido.

Quanto a estar ou não estar em mora o autor em relação ao cumprimento da obrigação de agendamento da data de celebração do contrato definitivo, da análise do contrato promessa celebrado resulta comprovada a relação de dependência funcional entre as obrigações contratualmente assumidas por autor e réus, mais especificamente entre o compromisso de os réus suportarem as despesas com a legalização da parcela de terreno para construção – a que não procederam – e o de agendamento pelo autor da escritura de compra e venda.

Os réus não ignoram que o autor pretendia adquirir a parcela de terreno para construção e que esse objectivo visado pelo autor não podia ser conseguido sem a correspondente legalização da parcela para esse efeito que eles se comprometeram, ainda que implicitamente, a realizar.

Ainda que o contrato de compra e venda pudesse (em abstracto) ser celebrado sem essa prévia legalização para construção – eventualmente em diferentes condições de preço – o que se extrai da vontade das partes traduzida no contrato promessa é que a legalização da parcela do terreno para construção era um importante pressuposto da vontade de contratar do autor que não era desconhecido dos réus que, inclusive, assumiram expressamente a responsabilidade pelo pagamento das respectivas despesas.

Como os réus não procederam a tal legalização, ainda que também não tivessem que o fazer em prazo certo que tenha sido estabelecido, o autor não entrou em incumprimento no que se refere à obrigação que sobre ele impendia de proceder ao agendamento da escritura de compra e venda.

Como lapidarmente se refere no acórdão recorrido, na falta de estabelecimento de prazos certos para cumprimento das respectivas obrigação, nenhuma das partes incumpriu ainda o contrato promessa.

Fica assim por preencher um dos requisitos substantivos previstos no artigo 830.º n.º 1 do Código Civil – o não cumprimento da promessa, no caso traduzido na alegada violação da cláusula sete do contrato promessa de compra e venda.

Tanto basta para que não possa proceder a revista interposta pelos réus visando o reconhecimento do direito à execução específica do contrato celebrado entre as partes.



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17) Nestes termos, e em conclusão, julgam-se improcedentes ambas as revistas, confirmando-se integralmente o acórdão recorrido.

O autor e os réus recorrentes suportarão as custas relativas aos recursos que interpuseram e em que ficaram vencidos.



◊ ◊



III - DECISÃO

Termos em que:

Julgam improcedente o recurso de revista interposto pelo autor AA e bem assim o recurso de revista interposto pelos réus, BB e CC, confirmando integralmente o acórdão recorrido.

O autor e os réus recorrentes, porque vencidos porque vencidos no âmbito dos recursos de revista que interpuseram, suportarão as custas relativas ao respectivo recurso.

Lisboa e Supremo Tribunal de Justiça, 12 de novembro de 2024

Manuel José Aguiar Pereira (Relator)

Henrique Ataíde Rosa Antunes

Jorge Manuel Leitão Leal

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1. Os itens 1 a 11 das “conclusões” apresentadas resumem o processado, dispensando-se a sua reprodução nesta sede↩︎

2. Assim Fernando de Gravato Morais, “Manual do Contrato-Promessa” – Editora de Ideias 2022 a página 168.↩︎

3. Fernando Gravato Morais, obra e local citados.↩︎

4. A cláusula refere-se apenas à responsabilidade pelo pagamento das despesas de legalização da parcela de terreno para construção e dos projectos de arquitectura e especialidades.↩︎

5. Por todos Fernando de Gravato Morais, obra citada a páginas 110 e seguintes.↩︎