Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
8/20.0YFLSB
Nº Convencional: SECÇÃO DO CONTENCIOSO
Relator: OLIVEIRA ABREU
Descritores: CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
VICE-PRESIDENTE DO CONSELHO SUPERIOR DA MAGISTRATURA
JUIZ
DEVERES FUNCIONAIS
ATO ADMINISTRATIVO
PROCEDIMENTO DISCIPLINAR
PARTICIPAÇÃO
LEGITIMIDADE
INTERESSE PÚBLICO
VIOLAÇÃO DE LEI
INDEPENDÊNCIA DOS TRIBUNAIS
PRINCÍPIO DA SEPARAÇÃO DE PODERES
DISCRICIONARIEDADE
Data do Acordão: 02/24/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: AÇÃO ADMINISTRATIVA
Decisão: JULGADA IMPROCEDENTE A ACÇÃO.
Indicações Eventuais: TRANSITADO EM JULGADO
Sumário :
I. Após participação disciplinar, o interesse primordial que poderá estar em causa é um interesse público no correto exercício da ação disciplinar - e que esse interesse público é alheio ao interesse do particular participante, que não pode exercer o direito de impugnação contenciosa apenas para fazer valer a tutela da legalidade administrativa disciplinar, por si só e em exclusivo, todavia, se o aludido interesse é primordial, temos de convir que não é, necessariamente, exclusivo, porquanto nem sempre o exercício da ação de impugnação da decisão de arquivamento de participação disciplinar é ditado apenas pelo interesse da entidade funcional em causa - pelo que, subsequentemente, nem sempre essa impugnação se deve considerar subtraída e alheada dos interesses individuais ofendidos, nomeadamente, não se descortinam motivos pelos quais se tem de julgar vedada ao participante disciplinar a possibilidade de, mais do que (ou até em vez de) proclamar um interesse na prossecução do interesse público no correto exercício da perseguição disciplinar, alegar, ao invés, pretender pugnar pela defesa de interesses individuais como os inerentes à sua integridade física ou moral, honra, bom nome e reputação, donde, não se distingue fundamentos para, à luz do critério estabelecido na alínea a) do art.º 55º do Código do Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), não lhe reconhecer legitimidade para impugnar a decisão de arquivar uma determinada participação disciplinar.
II. No domínio das ações de condenação à prática de ato devido, os poderes de pronúncia do tribunal são aqueles que vêm consagrados no artigo 71.º do Código do Processo dos Tribunais Administrativos (CPTA), aplicável ex vi artigos 166.º, n.º 2, 169.º e 173.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ).
III. No direito disciplinar surpreendem-se inúmeras manifestações da formulação de valorações próprias da função administrativa ou da margem de “livre” decisão, desde logo a existência de um juízo de oportunidade na própria instauração do procedimento disciplinar, porém, esta constatação aporta consequências diretas para a pretensão condenatória.
IV. Reconhecendo-se que o Conselho Superior da Magistratura quando praticou o(s) ato(s) impugnado(s), atuou no exercício de um poder vinculado quanto à oportunidade, mas não vinculado quanto ao conteúdo, importa que o Tribunal conheça todas as questões de invalidade apontadas, a fim de identificar e especificar (todos) os aspetos vinculados a observar pela autoridade administrativa, para evitar que, em caso de eventual reexercício da atividade administrativa, reincida nas ilegalidades cometidas.
V. Na dogmática jurídico-administrativa, o vício de violação de lei ocorre quando é efetuada uma interpretação errónea da lei, aplicando-a à realidade a que não devia ser aplicada ou deixando-a de aplicar à realidade que devia ser aplicada.
VI. A independência dos tribunais, enquanto órgãos de soberania, exercendo funções jurisdicionais, também postula, pressupõe e exige a independência dos juízes que desfrutem de independência funcional e estatutária, não bastando a mera atribuição de poderes às entidades da Administração para, na resolução dos casos concretos, poderem decidir sem sujeição a ordens ou instruções.
VII. O Conselho Superior da Magistratura assume-se, não como um órgão jurisdicional, mas como órgão da Administração Pública, independente, corolário do princípio da separação de poderes e de uma reserva da administração autónoma da justiça, competindo-lhe, nessa medida, exercer ação disciplinar por violação de ilícitos apurados nessa sede, mas já não compete sindicar atos próprios do exercício da judicatura stricto sensu (nomeadamente, a motivação de facto e de direito que fundamentam a decisão, a par da forma como são conduzidas as diligências de produção de prova num dado processo judicial, enquanto atos praticados pelos juízes ao abrigo de poderes de direção de atos processuais de produção de prova), sendo tal matéria reservada ao escrutínio jurisdicional, nomeadamente, em sede de recurso.
Decisão Texto Integral:

Processo n.º 8/20.0YFLSB.S1

Secção do Contencioso

Relator - Juiz Conselheiro Oliveira Abreu

Demandante/AA

Demandados/Conselho Superior da Magistratura e outros

Acordam na Secção do Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório


1. AA, notificada da decisão do Plenário do Conselho Superior de Magistratura de 3 de Dezembro de 2019, no âmbito do processo disciplinar n.º …..388, vem, nos termos dos artºs. 164º n.º 1 alínea c) e 169º, ambos do Estatuto dos Magistrados Judiciais e dos artºs. 50º e seguintes do Código do Processo dos Tribunais Administrativos intentar contra o Conselho Superior da Magistratura a presente ação de impugnação dos atos administrativos praticados pelo Senhor Conselheiro, Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura de 10 de Julho de 2019 que decidiu no sentido do arquivamento da participação disciplinar no processo acima referido, e pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura do dia 3 de Dezembro de 2019 que julgou improcedente a reclamação necessária da decisão proferida em 10 de Julho de 2019, apresentada pela Autora/AA, requerendo a procedência da presente ação, e, em consequência:
a) Ser anulado o ato administrativo praticado pelo Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura no dia 10 de Julho de 2019 que arquivou a participação disciplinar apresentada pela Autora/AA contra os Juízes Participados;

b) Ser anulado o ato administrativo praticado pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura no dia 3 de Dezembro de 2019 que julgou improcedente a reclamação apresentada pela Autora/AA;

c) Devendo o Conselho Superior da Magistratura ser condenado a praticar novo ato administrativo que julgue procedente a participação disciplinar apresentada pela Autora/AA contra os Juízes Participados, daí extraído todas as legais consequências.
2. A Autora/AA aduziu, com utilidade, as seguintes conclusões:

 “A INEQUÍVOCA VIOLAÇÃO DO EMJ (IGNORADA PELOS ATOS IMPUGNADOS)

155. É firme convicção da Autora - e os atos impugnados deviam tê-la firmado - que os Senhores Juízes Participados agiram em violação do EMJ.

156. E que sabiam, sem poder ignorar, que, da forma como agiam, atingiam a intimidade da vida privada da Autora, bem como a sua honra, consideração e bom nome, como pessoa, mulher e cidadã, sobretudo, na sua veste de tia, que ama e respeita os seus sobrinhos e sobrinhas acima de tudo neste mundo.

157. Os Senhores Juízes Participados, plenamente cientes dos deveres que sobre si impendiam (e impendem) por força do seu estatuto profissional, no exercício das suas funções enquanto Magistrados Judiciais, assumiram uma atitude manifestamente abusiva e que exorbitou o específico âmbito das suas funções.

158. Displicente, deliberada e levianamente, quiseram os Participados, sabendo que isso lhe estava legalmente vedado, atingir a intimidade da vida privada da Autora, assim como a respetiva honra e consideração.

159. Para além disto, os Participados “abandalham” o ambiente solene que deve ser um julgamento em tribunal com perguntas que fazem lembrar uma atitude “coscuvilheira” típica de um grupo de amigos ou vizinhos, numa “conversa de café” ou “de cabeleireiro”, sobre a vida privada de alguém que nunca esteve presente, contribuindo para promover uma imagem negativa dos tribunais junto dos cidadãos.

160. Ao contrário daquilo que os atos aqui impugnados afirmam, há claros elementos que permitem concluir que os Participados violaram deveres funcionais, em claro prejuízo de direitos fundamentais da Autora, suscetíveis de os fazer incorrer em responsabilidade disciplinar.

Ora,

161. Os artigos 81.º e ss. do EMJ preveem a responsabilidade disciplinar dos magistrados judiciais, determinando o artigo 82.º do diploma que “constituem infração disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os atos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções” (Considera-se a versão do diploma anterior à alteração do EMJ operada pela Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto, atenta a natureza sancionatória das normas em apreço).

 162. Acresce que o artigo 32.º do EMJ prescreve a aplicação subsidiária aos magistrados judiciais do regime da função pública, relativamente a deveres, incompatibilidades e direitos, pelo que terá aplicação e interesse, in casu, a LGTFP (Considera-se a versão do diploma anterior à alteração do EMJ operada pela Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto, atenta a natureza sancionatória das normas em apreço, que remete para a LGTFP.).

163. O artigo 183.º da LGTFP estipula o seguinte: “Considera-se infracção disciplinar o comportamento do trabalhador, por ação ou omissão, ainda que meramente culposo, que viole deveres gerais ou especiais inerentes à função que exerce”

164. Ora, o elenco dos deveres a que os trabalhadores que exercem funções públicas (aí incluídos os magistrados judiciais) estão adstritos, encontra-se plasmado nos artigos 70.º e 73.º da LGTFP e estes preceitos ditam o seguinte:

“Artigo 70.º Deveres gerais do empregador público e do trabalhador

1 - O empregador público e o trabalhador, no cumprimento das respectivas obrigações, assim como no exercício dos correspondentes direitos, devem agir de boa-fé.

2 - O empregador público e o trabalhador devem colaborar na obtenção da qualidade do serviço e da produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador”

“Artigo 73.º Deveres do trabalhador

1 - O trabalhador está sujeito aos deveres previstos na presente lei, noutros diplomas legais e regulamentos e no instrumento de regulamentação colectiva de trabalho que lhe seja aplicável.

2 - São deveres gerais dos trabalhadores:

a) O dever de prossecução do interesse público;

b) O dever de isenção;

c) O dever de imparcialidade;

d) O dever de informação;

e) O dever de zelo;

f) O dever de obediência;

g) O dever de lealdade;

h) O dever de correção;

i) O dever de assiduidade;

j) O dever de pontualidade.

3 - O dever de prossecução do interesse público consiste na sua defesa, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

4 - O dever de isenção consiste em não retirar vantagens, diretas ou indiretas, pecuniárias ou outras, para si ou para terceiro, das funções que exerce.

5 - O dever de imparcialidade consiste em desempenhar as funções com equidistância relativamente aos interesses com que seja confrontado, sem discriminar positiva ou negativamente qualquer deles, na perspectiva do respeito pela igualdade dos cidadãos.

6 - O dever de informação consiste em prestar ao cidadão, nos termos legais, a informação que seja solicitada, com ressalva daquela que, naqueles termos, não deva ser divulgada.

7 - O dever de zelo consiste em conhecer e aplicar as normas legais e regulamentares e as ordens e instruções dos superiores hierárquicos, bem como exercer as funções de acordo com os objectivos que tenham sido fixados e utilizando as competências que tenham sido consideradas adequadas.

8 - O dever de obediência consiste em acatar e cumprir as ordens dos legítimos superiores hierárquicos, dadas em objecto de serviço e com a forma legal.

9 - O dever de lealdade consiste em desempenhar as funções com subordinação aos objectivos do órgão ou serviço.

10 - O dever de correção consiste em tratar com respeito os utentes dos órgãos ou serviços e os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos.

11 - Os deveres de assiduidade e de pontualidade consistem em comparecer ao serviço regular e continuamente e nas horas que estejam designadas.

12 - O trabalhador tem o dever de frequentar ações de formação e aperfeiçoamento profissional na atividade em que exerce funções, das quais apenas pode ser dispensado por motivo atendível.

13 - Na situação de requalificação, o trabalhador deve observar os deveres especiais inerentes a essa situação”.

165. Tendo em conta a factualidade atrás exposta, dúvidas não podem restar de que, no âmbito do processo-crime n.º 541….., os Senhores Juízes Participados não lograram observar os deveres gerais que sobre si impendiam (e impendem), no sentido de agir de boa-fé e de promover e pugnar pela qualidade do serviço.

166. Por outro lado, inobservados ficaram, ainda e pelo menos, os deveres especiais de prossecução do interesse público, de imparcialidade, de zelo e de correção.

167. Assim foi, em suma, devido à forma inconsequente, desrespeitosa, indiscreta, devassadora e, em certa medida, difamatória como se referiram e como deixaram que se referissem à aqui Autora, no âmbito do processo n.º 541…...

168. E, mais precisamente, aquando da inquirição da aí testemunha BB e aquando da elaboração de resumos relativos à inquirição de tal testemunha e da testemunha CC em sede de Acórdão.

169. Sem atender ao facto de não ser a vida pessoal/amorosa e a personalidade da Autora o objeto da discussão em tais autos

170. E sem atender à circunstância de a Autora nem sequer ter sido chamada ao processo, para se pronunciar - a que título fosse - sobre o que se dizia a seu respeito.

171. Tudo o que os atos aqui impugnados - sublinhe-se, erradamente - consentiram, o que os inquina de um manifesto erro de Direito.

VI.  DOS CONCRETOS VÍCIOS DE QUE PADECEM OS ATOS IMPUGNADOS

172. Era a conclusão referida no ponto precedente aquela que se impunha no âmbito do processo disciplinar n.º …..388, mais precisamente, por via dos atos impugnados.

173. Que, em consonância, deveriam ter condenando os Senhores Juízes Participados, pela prática dos ilícitos disciplinares acima mencionados.

174. Ora, apartando-se os atos impugnados de uma correta análise dos factos e, essa medida, de uma coerente aplicação do Direito, os mesmos mostram-se feridos de ilegalidade.

Com efeito:

175. Tal como acima melhor se descreveu o ponto III.1., o Plenário do Conselho Superior da Magistratura errou ao considerar que a Autora, através da reclamação da decisão do Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, trazia à colação uma decisão acerca da atividade jurisdicional, propriamente dita, do Tribunal Coletivo formado pelo Senhores Juízes Participados.

 176. Tal erro levou a que, erradamente, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura considerasse que “(...) que as questões em apreço têm natureza jurisdicional, estando nessa medida fora da competência do CSM (...)”.

177. Para isso, o Plenário do Conselho Superior da Magistratura defendeu um conceito demasiado lato de “função jurisdicional”, que praticamente esvazia os poderes disciplinares do próprio Conselho, o que viola frontalmente os artigos 203.º, 216.º e 217.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, assim como, dos artigos 81.º, 82.º e 149.º, alínea a), todos dos Estatuto das Magistrados Judiciais (na sua versão anterior, já que era a vigente à prática dos factos).

178. Desta forma, e por violar as referidas normas jurídicas, a ato administrativo praticado pelo Plenário é anulável, nos termos do artigo 163.º, n.º 1, do Código do Procedimento Administrativo.

179. Tal ato administrativo é, igualmente, anulável, porque viola os artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, 3.º, n.º 2, 5.º, n.º 2, 81º e 82º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, seja na sua versão atual, seja na sua versão anterior (em vigor à data dos factos), e, bem assim, os artigos 215.º, n.º 1, e 216.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.

180. Isto porque, tal como se referiu no ponto III.2., o ato administrativo praticado pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura viola as normas jurídicas anteriormente mencionadas ao entender, no fundo, que os poderes de disciplina e de direção do ato processual não são sindicáveis ao nível disciplinar, quando, da conjugação dos preceitos normativos aplicáveis, se conclui que toda a atividade jurisdicional (aí incluídos aqueles poderes de disciplina e de direção) está submetida à lei (a qual, por seu turno, inclui o Estatuto dos Magistrados Judiciais e as regras deontológicas aí plasmadas).

181. Por último, e tal como se explanou nos pontos IV.1 e IV.2, os atos administrativos praticados, quer pelo Senhor Vice-Presidente, quer pelo Plenário do Conselho Superior da Magistratura, são anuláveis, nos termos do artigo 163.º, n.º 1 do Código do Procedimento Administrativo, na medida em que erram na aplicação dos artigos 70.º, n.ºs 1 e 2, e 73.º, n.ºs 1 e 2, alínea a), c), e) e h), e n.ºs 3,5,7 e 10, e 183.º LGTFP ex vi artigo 82.º EMJ, já que nos termos do disposto nestes artigos, a violação de tais deveres implica a aplicação de uma sanção disciplinar aos seus infratores.

182. Tudo o que impõe a respetiva erradicação da ordem jurídica, através da sua anulação e substituição por ato administrativo que, concluindo pela prática, pelos Participados, de uma infração disciplinar nos termos do EMJ, daí extraia todas as legais consequências.”

Conclui pela procedência da demanda.

3. O Conselho Superior de Magistratura deduziu contestação onde rebateu os vícios invocados pela Autora/AA e concluiu inexistir qualquer fundamento bastante para determinar a procedência da presente ação e a peticionada declaração de anulabilidade dos atos administrativos impugnados.

4. O Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu o parecer, ao abrigo do disposto no art.º 85º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (doravante designado abreviadamente por CPTA), tendo sugerido, conquanto sem suscitar expressamente, que a Autora/AA não detém legitimidade ativa para se insurgir contra o arquivamento de uma participação disciplinar.

5. O Conselho Superior de Magistratura pronunciando-se sobre o parecer emitido pelo Digno Procurador-Geral Adjunto sufragou o entendimento aí consignado.

6. A Autora/AA na sua pronúncia, subsequente ao aludido parecer emitido pelo Digno Procurador-Geral Adjunto, rebateu a sugerida ilegitimidade ativa.

7. Findos os articulados e compulsados os autos para saneamento, prefigurou-se ao Tribunal que não se encontrava assegurada a validade e a regularidade subjetiva da instância.

Assim, previamente à prolação de despacho saneador, foi proferido despacho de aperfeiçoamento destinado a providenciar pelo suprimento da exceção de ilegitimidade verificada, tendo-se convidado a Autora/AA a corrigir a sua petição inicial, identificando os contrainteressados.

8. Identificados os contrainteressados, foram os mesmos notificados para os termos da presente demanda, sendo que, decorrido o prazo para o efeito, nada disseram.

9. Outrossim, notificados que foram os contrainteressados, e uma vez que estes nada disseram, cumpriria proferir despacho saneador, porventura seguido de despacho com identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova, sendo este o momento oportuno para equacionar a convocação de audiência prévia, nos termos do disposto nos artigos 87.º-A seguintes, todos do CPTA, sendo que este Tribunal entendeu dispensar a audiência prévia, pelas razões constantes do despacho proferido para o efeito, entretanto notificado às partes.

10. Como já adiantamos no predito despacho, e aqui sublinhamos, atendendo à causa de pedir e respetivos pedidos, julgamos que o estado do processo contém elementos suficientes para o Tribunal, com segurança, conhecer, de imediato, da questão de facto e de direito da causa.

11. Foram cumpridos os vistos.

12. Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO

II. 1. O tribunal é competente em razão da nacionalidade, da matéria, da hierarquia e do território (art.º 170º n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais).

O processo é o próprio e é válido (artºs. 66.º e seguintes do CPTA, ex vi, art.º 169.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais).

A petição inicial não é inepta.

As partes têm capacidade e personalidade judiciárias e estão devidamente representadas.

Nos presentes autos, a Autora/AA, participante disciplinar, pretende a anulação da deliberação da entidade demandada que arquivou a sua participação, optando por não promover perseguição disciplinar aos juízes participados.

A esta pretensão anulatória a demandante associa uma pretensão condenatória, no sentido de condenar a entidade demandada a instaurar procedimento disciplinar aos juízes participados.

Como já consignamos, o Digno Agente do Ministério Público proferiu parecer que embora sem o suscitar expressamente, sugeriu que a Autora/AA não detém legitimidade ativa para se insurgir contra o arquivamento de uma participação disciplinar, sendo que a Autora/AA e o Conselho Superior da Magistratura tiveram oportunidade para se pronunciar sobre o teor do mesmo.

Significa isto que foi já objeto de discussão nos presentes autos a suposta ilegitimidade ativa da Autora/AA.

Cumpre conhecer da invocada exceção que, de resto, é de conhecimento oficioso (art.º 89º n.ºs 2 e 4, alínea e), do CPTA).

Sem prejuízo da pertinência teórico-abstrata dos argumentos esgrimidos no debate (a favor e contra) a propósito da aludida exceção, não reconhecemos que se possa julgar verificada qualquer questão de invalidade ou irregularidade da instância, por duas distintas ordens de razão.

Desde logo, porque, em bom rigor a questão foi suscitada fora do figurino e ritologia processuais próprios.

Com efeito, o parecer do Ministério Público proferido ao abrigo do art.º 85º do CPTA não serve, à partida, para deduzir exceções dilatórias.

Tenha-se em atenção a redação dos diversos números deste art.º 85º e ainda o n.º 1 do art.º 85º-A do citado diploma, dos quais resulta que, nesta sede, apenas mostra estar permitido ao Ministério Público: i) pronúncia sobre o mérito da causa em defesa de direitos fundamentais de cidadãos, ii) invocar novas causas de invalidade de atos administrativos ou iii) suscitar exceções perentórias.

Assim como também é certo que a dedução da exceção de ilegitimidade pela entidade demandada no requerimento apresentado, já depois do parecer do Digno Agente do Ministério Público, é extemporânea, porquanto toda a defesa deve ser deduzida na contestação e depois desta só podem ser deduzidas exceções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes (art.º 83º, nºs. 3 e 5 do CPTA).

Em todo o caso, concede-se, como já avançamos, o conhecimento da invocada exceção de ilegitimidade ativa, porque de conhecimento oficioso, cumprindo esclarecer, a este propósito, ser não só muitíssimo discutível, como efetivamente debatido em sede jurisprudencial, que ao participante disciplinar não assista a legitimidade para impugnar a decisão de arquivamento disciplinar, maxime quando, além de (ou mais do que) sustentar a omissão do dever de perseguição disciplinar pela autoridade administrativa, também alegue a lesão direta, atual e imediata de interesses pessoais (honra, património, integridade física). Este, de resto, é um dos campos em que a Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Administrativo (ainda) divergem pontualmente.

Não desconhecemos a já longa Jurisprudência da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça, no sentido de que no procedimento desencadeado pela participação de alegada infração, a legitimidade do participante esgota-se no ato de participar, não podendo o participante de certa infração, alegadamente cometida pelo participado, considerar-se titular do interesse direto, pessoal e legítimo na anulação da decisão que determinou o arquivamento da participação apresentada para fins disciplinares.

Esta orientação jurisprudencial encontra respaldo em duas premissas fundamentais.

Por um lado, a possibilidade de participação disciplinar visa predominantemente suscitar à entidade detentora da ação disciplinar a necessidade de apreciar a dignidade disciplinar dos factos participados, não lhe impondo qualquer dever de determinar a instauração de processo disciplinar, de inquérito ou de averiguações ou de exercer a ação disciplinar correspondente.

E, como tal, os cidadãos em geral, pela simples circunstância de serem titulares do poder jurídico de participação disciplinar, não têm legitimidade para a impugnação do ato que determina o arquivamento ou a não instauração de qualquer procedimento disciplinar, de inquérito ou de averiguações instaurados com base nos factos denunciados.

Por outro lado, o participante disciplinar não tende a retirar qualquer utilidade ou vantagem pessoal, quer do arquivamento do processo resultante da sua participação disciplinar, quer do seu não arquivamento, pelo que, não lhe dever ser assegurada legitimidade recursiva.

Sentindo-se o(a) participante lesado(a) com o ato que determinou a sua participação, sempre pode recorrer a uma queixa-crime contra o(s) participado(s), sem prejuízo da possibilidade de intentar ação de responsabilidade civil contra o(s) mesmo(s).

No sentido exposto, podem ser enunciados, a título meramente exemplificativo, os seguintes Acórdãos da Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça, todos acessíveis in http://www.dgsi.pt/jstj:

- Acórdão de 27-05-2003 (Processo n.º 01B1639);

- Acórdão de 18-12-2003 (Processo n.º 03A4095);

- Acórdão de 21-11-2012 (Processo n.º 75/12.0YFLSB);

- Acórdão de 10-12-2019 (Processo n.º 3/19.1YFLSB).

É também esse o sentido geral da Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo e dos tribunais superiores da jurisdição administrativa, embora apenas quando o participante somente alegue que o arquivamento traduz uma omissão ilícita do dever de perseguir disciplinarmente.

Sintetizando a já antiga orientação jurisprudencial que o Supremo Tribunal Administrativo acolheu nos seus Acórdãos de 07-07-1998 (Processo n.º 41 141), de 15-10-1999 (Processo n.º 41 897 - Pleno) e de 08-06-2000 (Processo n.º 41.879), e que desde então vem sendo seguida, predomina também na jurisdição administrativa o entendimento de que, não obstante serem titulares do poder jurídico de participação disciplinar - enquanto colaboradores na vigilância e fiscalização do correto e legal desenvolvimento da atividade administrativa e da atuação dos seus órgãos e agentes -, os funcionários públicos ou trabalhadores em funções públicas que sejam participantes de infrações disciplinares não têm, em princípio, legitimidade para impugnar contenciosamente a anulação do ato que determina o arquivamento ou a não instauração de procedimento disciplinar ou outro, na medida em que não podem licitamente invocar, com fundamento naquele poder de participação, a preexistência no seu património de um direito subjetivo ou interesse legítimo suscetível de ser lesado por aquele ato.

Contudo, o Supremo Tribunal Administrativo também entendeu que, se, dos termos em que se mostra elaborada a petição de recurso, se concluir que o participante não se limita a invocar interesses coletivos, antes visa obter a reparação, ainda que reflexa, de valores eminentemente pessoais que hajam sido lesados com a conduta denunciada, como os inerentes à sua integridade física ou moral, honra, bom nome e reputação, então já dispõe de legitimidade ativa, neste sentido, os Acórdãos de 14-05-2003 (Processo n.º 01681/02), de 22-10-2003 (Processo n.º 0136/03), de 26-11-2003 (Processo n.º 046/02) e de 07-06-2006 (Processo n.º 01089/05).

Muito recentemente, o mesmo Supremo Tribunal Administrativo, por Acórdão de 21-05-2020, admitiu recurso de revista no Processo n.º 0634/17.4BEPRT, esclarecendo que a questão deveria ser revisitada porque “(…) está em causa uma questão que “pela sua relevância jurídica ou social” assume “importância fundamental [sendo] a sua apreciação, por este Supremo Tribunal, (…) “claramente necessária para uma melhor aplicação do direito”. (…) E entrando nessa análise temos que a “quaestio juris” envolve análise de questões de algum melindre e dificuldade e revela-se complexa, disso sendo indício não apenas a divergência entre as instâncias, mas, também, o próprio voto de vencido, constituindo temática cuja elucidação assume relevo jurídico e é suscetível de ser repetível e recolocada em casos futuros, reclamando a necessária intervenção deste Tribunal. (…) Por outro lado, o entendimento firmado no acórdão recorrido mostra-se, “primo conspecto”, em sentido dissonante com a jurisprudência convocada no voto de vencido, sendo que a jurisprudência produzida sobre a problemática por este Supremo Tribunal foi-o no quadro do anterior regime contencioso administrativo (LPTA/RSTA) (…) entendimento jurisprudencial este que importará ser revisitado e reanalisado, à luz do atual regime do contencioso administrativo, com vista a uma melhor interpretação e aplicação do Direito.”

E, tendo apreciado a questão, por Acórdão de 15-10-2020 proferido naquele Processo n.º 0634/17.4BEPRT, decidiu o Supremo Tribunal Administrativo não infletir a orientação prosseguida anteriormente, consignando a propósito: “A questão da legitimidade do participante de processo disciplinar para impugnar o ato de arquivamento desse processo que desencadeara foi, na vigência da LPTA (aprovada pelo DL n.º 267/85, de 26/7), objeto de numerosa jurisprudência deste STA, onde, maioritariamente, se perfilhou o entendimento que ela cabia ao participante que fosse simultaneamente ofendido pela conduta do denunciado, distinguindo, assim, as situações em que atuava exclusivamente por dever de ofício daquelas em que ele próprio também era ofendido pelo comportamento denunciado, tendo, por isso, um interesse legítimo que lhe conferia o poder de obter a anulação do ato pelo qual a Administração prejudicou esse interesse (cf. os Acs. do Pleno de 15/1/97 in BMJ 463 – 337 e CJA, n.º 9, pág. 25 e de 15/10/99 in BMJ 490 - 104 e da Secção de 1/6/94 – Rec. n.º 31127, de 8/6/95 – Rec. nº 32440, de 8/6/2000 – Rec. n.º 041879, de 22/10/2003 – Rec. n.º 136/13, de 26/11/2003 – Rec. n.º 046/02 e de 7/6/2006 – Rec. n.º 01089/05).

É que se “o conceito de interesse na anulação do ato, a que se refere o art.º 46.º do Regulamento do Supremo Tribunal Administrativo, tem de entender-se, hoje, como vantagem ou utilidade na anulação do ato repercutida na proteção de um bem jurídico preexistente no património jurídico do recorrente”, será titular desse interesse “aquele que, com verosimilhança, aferida pelos termos peticionados, materialmente bem ou mal fundada, invoque a titularidade no seu património jurídico, de um direito subjetivo ou de um interesse legalmente protegido lesado com a prática do ato, retirando da anulação pretendida uma qualquer utilidade ou vantagem, dignas de tutela jurisdicional, no aproveitamento do bem a que aquele direito ou interesse inerem” (citado Ac. do Pleno de 15/1/97).

Por isso - como se escreveu no referido Ac. do Pleno de 15/10/99 – “o facto de os arguidos, com a sua conduta disciplinar ilícita, terem afetado, para além do bom funcionamento do serviço, valores pessoais do participante faz com que a punição disciplinar a aplicar, para além dos fins de interesse público que diretamente persegue, tenha também, embora apenas reflexamente, efeitos de compensação moral para a pessoa atingida, pois ninguém negará que os danos morais sofridos pelo participante serão atenuados pelo facto de ter sido disciplinarmente censurada a conduta dos infratores e, ao invés, serão exacerbados se a conduta lesiva ficar, ilegal e injustamente, impune e de que, embora seja certo que o interesse próprio do participante na justa punição dos infratores não seja diretamente protegido pela lei, “não é menos certo que a lei protege um interesse público (no caso, a disciplina), que, se for corretamente prosseguido, implicará a satisfação simultânea do interesse individual referido”, casos em que “o titular do interesse privado não pode legalmente exigir da Administração que satisfaça o seu interesse, mas pode exigir-lhe que não prejudique esse interesse ilegalmente”, e, assim, “estamos perante um interesse legítimo, que confere ao seu titular o poder de obter a anulação dos atos pelos quais a Administração tenha prejudicado ilegalmente esse interesse” (excertos do citado acórdão de 8 Junho 1995)”.

Portanto, de acordo com a mencionada posição jurisprudencial, a legitimidade do participante para impugnar contenciosamente o ato de arquivamento do processo disciplinar instaurado em resultado da sua denúncia, na falta de lei que a conferisse, deveria ser aferida casuisticamente face aos termos peticionados, devendo entender-se que ele tinha interesse na anulação desse ato quando obtivesse uma vantagem ou utilidade nessa anulação repercutida na proteção de um bem jurídico preexistente no seu património jurídico, ou seja, quando as infrações disciplinares participadas fossem suscetíveis de ofender os seus valores pessoais, como a integridade física e moral ou a honra, bom nome e reputação.

Não há motivo para alterar esta orientação, em face do que dispõe atualmente o CPTA em matéria de legitimidade para impugnação de ato administrativo que a faz depender da alegação da titularidade de um interesse direto e pessoal na sua anulação, estabelecendo uma presunção “juris tantum” de legitimidade a favor do interveniente no procedimento administrativo em que tenha sido praticado esse ato (art.º 55.º, nºs. 1, al. a) e 3).

Importa, pois, apreciar se, de acordo com as circunstâncias factuais alegadas pela A., se deve entender que a infração disciplinar que participou é suscetível de ofender os seus valores pessoais, como a integridade física e moral ou a honra, bom nome e reputação.

Ora, invocando ela que os atos médico-dentários a que foi sujeita pelo ora recorrente desrespeitavam as “leges artis”, tendo-lhe causado lesões de ordem patrimonial e não patrimonial, como sejam prejuízos estéticos e vários problemas de saúde que se prolongaram por um período superior a 8 anos e determinarão a realização de uma cirurgia reconstrutiva, não pode deixar de se concluir, como o acórdão recorrido, que foi alegada a referida violação, pela infração participada, de interesses pessoais e que retira da procedência da ação uma vantagem com repercussão na reparação do bem jurídico lesado.”

Dito isto, e atenta a controvérsia de que acabamos de dar nota, subscrevemos o entendimento segundo o qual, após participação disciplinar, o interesse primordial que poderá estar em causa é um interesse público no correto exercício da ação disciplinar - e que esse interesse público é alheio ao interesse do particular participante, que não pode exercer o direito de impugnação contenciosa apenas para fazer valer a tutela da legalidade administrativa disciplinar, por si só e em exclusivo.

Dizemos e reiteramos, primordial, mas não necessariamente exclusivo.

É que, e em contrapartida, também tendemos a reconhecer que nem sempre o exercício da ação de impugnação da decisão de arquivamento de participação disciplinar é ditado apenas pelo interesse da entidade funcional em causa - pelo que, subsequentemente, nem sempre essa impugnação se deve considerar subtraída e alheada dos interesses individuais ofendidos, nomeadamente, não se descortinam motivos pelos quais se tem de julgar vedada ao participante disciplinar a possibilidade de, mais do que (ou até em vez de) proclamar um interesse na prossecução do interesse público no correto exercício da perseguição disciplinar, alegar, ao invés, pretender pugnar pela defesa de interesses individuais como os inerentes à sua integridade física ou moral, honra, bom nome e reputação. E, se assim for, não se distinguem fundamentos para, à luz do critério estabelecido na alínea a) do art.º 55º do CPTA, não lhes reconhecer legitimidade para impugnar a decisão de arquivar uma determinada participação disciplinar.

Entendemos ser esse o caso dos autos.

Relembremos o teor dos artºs. 7º e 8º da petição inicial, donde se colhe: “Isto, em suma, devido à forma inconsequente, desrespeitosa, indiscreta, devassadora e difamatória como se referiram e como deixaram que se referissem à Autora, no âmbito do processo n.º 541........, sem atender ao facto de não ser a vida pessoal/amorosa e a personalidade da Autora o objeto da discussão em tais autos e, bem assim, sem atender à circunstância de a Autora nem sequer ter sido chamada ao processo, para se pronunciar - a que título fosse - sobre o que se dizia a seu respeito” e “ Sempre se diga, aliás, que os factos praticados pelos Senhores Juízes Participados, para além da óbvia relevância disciplinar, constituem, simultaneamente, ilícitos civis e criminais, na medida em que os Senhores Juízes Participados, na forma como conduziram o processo e ao interrogar as testemunhas, violaram (e permitiram que outros violassem) direitos de personalidade da Autora (maxime: o seu direito ao bom nome, à honra e à reserva da vida privada e familiar), sem que tivessem para tal qualquer fundamento de interesse público,”

Pelo exposto, julgamos as partes igualmente legítimas.

Não ocorrem outras quaisquer exceções dilatórias ou nulidades processuais que importe conhecer.

II. 2. Questões suscitadas pela Autora/AA:

1. Vício de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito:

a. Violação dos artºs. 203º, 216º e 217º n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa e 81º, 82º e 149º alínea a) do Estatuto dos Magistrados Judiciais, por, na deliberação do Plenário, se considerar que as questões suscitadas na participação têm natureza jurisdicional e, nessa medida, fora das competências do Conselho Superior da Magistratura;

b. Violação dos artºs. 1º, nºs. 1 e 2, 3º, n.º 2, 5º, n.º 2, 81º e 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, e 215º, n.º 1 e 216º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que na deliberação impugnada se entende, no fundo, que os poderes de disciplina e de direção do ato processual não são sindicáveis ao nível disciplinar;

c. Violação na aplicação dos art.º 70º nºs 1 e 2, 73º, nºs 1 e 2, alíneas a), c), e) e h), 3, 5, 7 e 10, e 183.º da Lei Geral dos Trabalhadores da Função Pública ex vi art. 82.º dos Estatuto dos Magistrados Judiciais, na medida em que a violação dos deveres aí previstos implica a aplicação de uma sanção disciplinar aos seus infratores.

II. 3. Da Matéria de Facto

Tendo em atenção a posição das partes expressas nos seus articulados e o acervo documental junto aos autos, está provada, com relevância para a decisão a proferir nos presentes autos e de acordo com as várias soluções de direito, plausíveis, a seguinte matéria de facto, a qual se passa a enunciar subordinada aos seguintes números:
1) No dia 30-05-2019 a aqui autora subscreveu documento escrito, que endereçou à aqui entidade demandada, com o seguinte teor:
Exmos. Senhores Membros do Conselho Superior da Magistratura […]
AA, […] (doravante de designada ‘‘Participante”), vem, na qualidade de cidadã e magistrada, pela presente, nos termos e para os efeitos dos artigos 82.°, 110.°, 111.° e 131.° do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei 21/85, de 30 de julho-EMJ) bem como, do artigo 206.°, n.° 1, da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.° 35/2014, de 20 de junho -LGTFP), apresentar PARTICIPAÇÃO DISCIPLINAR
Contra:
DD, Magistrado Judicial, em funções no Tribunal Judicial ...... […]
EE, Magistrada Judicial, em funções no Tribunal Judicial ...... […]
FF, Magistrada Judicial, em funções no Tribunal Judicial ...... […] (doravante designados como “Participados”),
O que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
I.    FACTOS
1. A Participante é cidadã nacional, no gozo de todos os seus direitos.
2. A Participante é Juíza ......., desde ….2012 - cargo para o qual foi graduada por concurso público hoje em dia, em comissão de serviço no Tribunal …..
3. A Participante desempenhou, desde …… 1989, o cargo de docente na Faculdade de Direito ….. (o que fez em regime de exclusividade até setembro de 2012 e até julho de 2017 como professora …..), coordenando seminários, cursos e conferências, lecionando em disciplinas de Licenciatura (……..), bem como de Mestrado (Direito …..). Quanto a esta última disciplina, aliás, a Participante lecionou - a na Faculdade de Direito da Universidade …..
4. De outra perspetiva — importante para a presente participação —, a Participante (também conhecida, no âmbito familiar, como “AA” ou “AA”) é, também, tia da uma menor cujo nome não se revela para proteção da mesma (doravante, tão-só “Menor”) e cunhada do Senhor GG, respetivamente, vítima e arguido no âmbito do processo n.º 541….., este último tio da Menor.
5. No âmbito do processo n.º 541….., o Senhor GG, marido de BB (irmã da Participante), foi investigado pela prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, p. e p. pelo artigo 171.º, n.º 1, CP e pelo artigo 171.º, n.º 3, alínea a), por referência ao artigo 170.º CP, sobre a Menor (sobrinha da Participante, do arguido e da sua mulher).
6. Nesse referido processo-crime, a Participante não desempenhou qualquer papel, nomeadamente, por não ter sido arrolada como testemunha por nenhum dos sujeitos processuais.
7. A Participante não foi igualmente chamada a depor, nem pelo Ministério Público, nem, ainda, pelo Tribunal em funções.
8. O processo n.º 541…. correu os seus termos e, na presente data, já foi apresentado recurso do acórdão, proferido no final da fase de julgamento, bem como as respetivas respostas, subscritas pelo Ministério Público e pelo Arguido.
9. Atualmente, o processo aguarda por prolação de acórdão por parte do Tribunal da Relação …..
10. Os Participados são Magistrados Judiciais de carreira, em funções no Tribunal Judicial ......, tendo exercido as respetivas funções - respetivamente como juiz presidente (o Participado DD) e como juízas adjuntas (as Participadas EE e FF) - na condução da fase de julgamento do processo n.º 541….,
11. Nessa medida, proferindo, a final, o acórdão absolutório de primeira instância, entretanto, sujeito a recurso.
12. A Participante e os Participados DD e FF não se conhecem, nunca falaram e (que seja do conhecimento da Participante) nunca se viram.
13. Por outro lado, embora a Participada EE tivesse estudado na Universidade…. , entre 1982 e 1988, tendo sido contemporânea da aqui Participante, que aí estudou entre 1983 e 1989, certo é que ambas se conheceram muito superficialmente nessa época, sem, porém, nunca mais se terem encontrado após a conclusão da licenciatura.
14. Nessa medida, também neste caso, se pode dizer que a Participante e a Participada conheceram-se muito superficialmente, há muitos anos atrás, que nunca mais falaram e que nunca mais se viram.
15. Em suma, também neste caso, a relação entre ambas, à semelhança do verificado quanto aos demais Participados, é inexistente.
Antes de iniciar o concreto relato dos factos aqui participados,
16. Quer a Participante deixar bem claro que o recurso à presente queixa disciplinar não visa - em momento algum - uma qualquer intervenção da Participante na concreta discussão do objeto do processo n.º 541….., designadamente discutindo o sentido da decisão da causa, perfilhado em primeira instância.
17. A Participante respeita a independência do Tribunal.
18. O único objetivo visado pela aqui Participante prende-se, antes, com a discussão da atitude e postura - por demais incorretas - que o Tribunal adotou ao longo do julgamento em relação a si, as quais considera dignas de censura disciplinar.
Posto isto:
19. No dia 24-09-2018, teve lugar, no âmbito do processo n.º 541….., a inquirição da testemunha BB, irmã da aqui Participante, esposa do aí Arguido GG e tia da aí vítima Menor, a qual fora arrolada pela defesa (cf. Documento n.º 1, Documento n.º 2 e Documento n.º 3).
20. Considera a Participante que o depoimento da sua irmã (casada com o arguido e na defesa deste), a então testemunha BB, atacou a sua honra, consideração e bom nome, assim como a privacidade.
21. Trata-se de um depoimento cuja (i)licitude, naturalmente, não cumpre analisar nesta sede.
22. O mesmo apenas é referido por ter sido justamente nesse contexto que o próprio Tribunal, nas pessoas dos aqui Participados, colaborou em tal ataque, nomeadamente, devassando a vida íntima e familiar da Participante de forma absolutamente despropositada.
23. Com efeito, no final da inquirição da testemunha BB, chegou a discutir-se o seguinte, com intervenção, anuência e mesmo a solicitação dos Participados:
“[00:31:53] EE: Já estou [impercetível]. Eu quero fazer uma pergunta, não sei se é a mesma, mas logo veremos, não é? O Senhora Doutora, boa tarde. A Senhora doutora não referiu esta questão, mas referiu o seu marido, e como a Senhora Doutora, com certeza, há coisas que as filhas falam mais com as mães do que com os pais, eu queria perceber aquela questão do casamento, do casamento da sua filha HH... o seu marido referiu que, quando a sua filha HH ia casar... eu não sei se quer situar no tempo, porque nós não estivemos muito preocupados com isso, mas quando a sua filha ia casar, que a sua irmã AA a terá tentado dissuadir. Eu, parece-me que foi isto que percebi, mas não quero pôr na boca do seu marido uma coisa que ele não tenha dito. Na altura, isto já me chamou um bocadinho à atenção, porque isto, geralmente, faz-se em situações em que há comprovadamente problemas do lado de lá, e a pessoa tenta salvar uma rapariga que vai... não é? Para o abismo, digamos assim. E depois, com todos os elementos que até agora vão trazendo, eu gostava de perceber o que é que aconteceu aqui, se é que aconteceu então isso e em que é que se concretizou?
[00:33:08] BB: Sim, ela disse-lhe: “ai, vê lá se o II tem emprego, se... pensa bem...”, até acho que foi por mensagem.
[00:33:21] EE: Mas a Senhora Doutora inscreve isso nessa posição de que fala... que fala, e que, provavelmente... pronto, nós sabemos que a sua irmã tem trabalhos publicados...
[00:33:31] BB: Não, obviamente...
[00:33:33] EE: ...e tudo isso, portanto, nós não vamos fazer de conta que não sabemos.
[00:33:34] BB: Trabalhos quê, desculpe?
[00:33:35] EE: Publicados, a sua irmã tem trabalhos publicados sobre assuntos relacionados com menores, e abusos, e tal, e, portanto, a posição pública dela é mais ou menos coincidente.
[00:33:41] BB: Sim.
[00:33:43] EE: Se a Senhora Doutora inscreve essa atitude da sua irmã num cuidado de tia, ou se inscreve em mais [impercetível]?
[00:33:49] BB: Quer dizer, ela tentou... eu acho que, no fundo, ela tentou fazer ali um... um aviso, escondendo...
[00:34:09] EE: O motivo?
[00:34:10] BB: Claro que a HH lhe cortou logo as bases, como se costuma dizer, e chegou-se logo atrás...
[00:34:16] EE: E esse episódio aconteceu já depois disto, a sua filha casou já depois disto?
[00:34:21] BB: Sim, sim.
[00:34:22] EE: Pronto, desse episódio?
[00:34:22] BB: Porque a HH, acho que lhe mandou uma mensagem a dizer que ia casar, e ela, depois disse-lhe: “vê lá, HH, ainda é muito cedo, se calhar, e tal...”, ah! “Fico muito preocupada com o casamento, estou muito preocupada com o teu casamento... vê lá se o II tem emprego”. O II tinha emprego, obviamente, senão a HH não ia casar.
[00:34:44] EE: Sim. Pronto. Muito obrigada, Senhora Doutora.
[00:34:49] FF: Tenho aqui... eu ia-lhe fazer uma pergunta, que tem um bocadinho a ver com esta pergunta que fez a minha colega, que a Senhora Doutora há bocado diz que sempre alertou a filha, portanto, a filha HH, para o problema da aversão da AA aos homens...
[00:35:04] BB: AA.
[00:35:05] FF: AA. Pronto, acho que foi assim que disse.
[00:35:08] BB: Sim.
[00:35:09] FF: E isto aqui, não que a irmã da Senhora Doutora, obviamente não está a ser julgada, mas a partir do momento em que se diz que a atitude da [Menor] terá sido, de certa forma, guiada pela tia, não é? Tem alguma importância, e só por isso é que tem importância, saber de onde é que vem esta aversão aos homens.
[00:35:36] BB: Sim.
[00:35:35] FF: Isto é uma coisa congénita, foi uma coisa desenvolvida com o tempo...?
[00:35:41] BB: Eu acho que foi um bocado desenvolvida com o tempo. Porque ela, depois também se começou a especializar um bocado, porque ela, inicialmente... ela, primeiro, especializou-se em ….., não é? Depois, fez ali um Doutoramento em...
[00:35:56] FF: Direito …..?
[00:35:56] BB: Direito …., não é? E depois, voltou-se a... primeiro, especializou-se em ……, não é? E depois, é que voltou outra vez à ….. E depois, começou a ter uma aversão aos homens, e uma coisa terrível, e aquilo foi-se avolumando, avolumando, avolumando...
[00:36:14] FF: Sim, mas é assim, todos nós, já... a nível profissional, já trabalhámos com …...
[00:36:19] BB: Sim, mas foi uma coisa gradual. Eu não sei como é que aconteceu, depois ela acabou um casamento também, todos nós sabemos, logo a seguir ao meu casamento. E aquilo foi gradual. Não sei, foi-se avolumando.
[00:36:30] ADVA: Está a falar da HH? E a Senhora Juiz está a falar de quem?
[00:36:34] FF: Estou a falar da HH!
[00:36:34] BB: Não, não. Eu estou... está a falar da...
[00:36:36] ADVA: Acho que, que eu saiba, a HH não é que tem aversão aos homens. Eu acho...
[00:36:38] BB: Não, não...
[00:36:39] ADVA: Eu acho [impercetível]...
[00:36:42] BB: Não, não, só se falou da AA!
[00:36:43] FF: Está a falar da HH? Pronto, eu estava... [00:36:45] BB: Não, não! Estamos a falar da HH, minha filha!
[00:36:45] DD: Não! [falas sobrepostas]
[00:36:48] BB: E estamos a falar da AA.
[00:36:49] ADVA: Sim, mas está a dizer a Senhora Juiz, se bem percebi, de onde é que vem a aversão aos homens.
[00:36:53] BB: Sim...
[00:36:55] ADV: A AA.
[00:36:55] ADVA: Pronto, percebi isso. Estava a dizer "acabou um casamento ", quem é que acabou um casamento?
[00:37:00] FF: Não sei...
[00:37:01] ADVA: [impercetível] foi casada?
[00:37:03] BB: A AA acabou um casamento, porque ela ia casar, não é?
[00:37:08] FF: Não percebi. Acabou o casamento, porque ia casar? 
[00:37:10] BB: Ela, a minha irmã AA começou uma aversão muito grande aos homens, imediatamente a seguir ao... acabaram o casamento, porque ela ia casar e não casou.
[00:37:20] FF: Ah...
[00:37:21] DD: Ah, mas isso já foi…
[00:37:21] BB: Há muitos anos!
[00:37:22] DD: Ah, pronto.
[00:37:22] AXV: E não acabou o casamento, não chegou a casar! Rompeu o casamento.
[00:3 7:25] FF: Portanto, não chegou a casar? Não chegou a casar, é isso que quer dizer?
[00:37:27] BB: Sim. Não chegou a casar.
[00:37:29] FF: Pronto.
[00:37:29] ADVA: Senhora Juiz, então... [falas sobrepostas]
[00:37:30] BB: E logo a seguir a isso, desenvolveu uma aversão, eu acho que foi nessa altura em que começou um crescendo [impercetível].
[00:37:38] FF: Pronto/ E isso pode ser uma explicação, não é?
[00:37:41] BB: Não sei se é uma explicação, mas foi nessa altura! Em que começou a desenvolver uma grande aversão aos homens. Não sei se foi uma explicação, mas foi nessa altura. Não sei se foi por isso. O rapaz até era amoroso e ela gostava muito dele e ele dela. Pronto! E... e acabou, pronto.
[00:37:56] FF: Está. Muito obrigada.
[00:37:57] ADVA: Senhor Juiz, se me é permitido, já agora, a Dr.ª AA teve ou não teve – e a Senhora é família - vários namorados ao longo da vida? Homens?
[00:38:07] BB: Ai, teve! Teve!
[00:38:08] ADVA: Ah, pronto! Então, a aversão aos homens é seletiva? [00:38:10] DD: Mas isso... mas...
[00:38:12] BB: É quê?
[00:38:12] ADVA: A aversão...
[00:38:13] DD: Ô Senhora Doutora, mas isso ai, tem que se fazer a pergunta que se impõe, não é? Isso foi antes ou depois de acabar com esse casamento que não chegou a ser?
[00:38:19] BB: O quê?
[00:38:20] DD: Estes namorados que a Senhora Doutora está a falar?
[00:38:21] BB: Foram depois.
[00:38:22] DD: Foi depois do casamento?
[00:38:23] BB: Sim, sim.
[00:38:25] DD: Mas continuou... portanto, mantinha esses namorados, e, ao mesmo tempo, foi como que um crescendo de aversão?
[00:38:31] T: Sim, sim! A aversão continuou. Pronto, era isso que eu queria dizer. 
[00:38:34] DD: Senhora Doutora? Só perguntei [impercetível] era pertinente esta pergunta,
[00:38:41] ADVA: Sabe... ia-lhe perguntar se sabe se ela namora atualmente, mas cortou essa parte...
[00:38:44] BB: Que eu saiba, não.
[00:38:47] DD: Pronto. Está...
[00:38:48] ADVA: Já, está completamente [impercetível].
[00:38:50] DD: Está encerrado, está esmiuçado este assunto. Muito bem, pronto. Não havendo mais nada, está terminado o seu depoimento. Pode- se retirar. Boa tarde.
[00:38:58] ADV: E nem vamos falar em mais...” (cf. Documento n.° 2, pp. 33 e ss.)
24. Como se pôde comprovar através da transcrição supra, os Participados intervieram na inquirição da testemunha para explorar a ideia que, na falta de melhor expressão, se reconduz à (alegada) “aversão da Participante a homens”,
25. Tentando apurar se se trataria de uma característica congénita ou, antes, de um traço de personalidade causado por algum tipo de trauma que a Participante sofrera (!).
26. Nessa linha, não perderam os Participados a oportunidade de indagar acerca da existência (passada e atual) de namorados na vida da aqui Participante e da respetiva quantidade (!).
27. Ou, até, de se informarem acerca de um noivado da Participante que, em tempos, esta havia rompido (!).
28. Tudo isto sem que tais temas se prendessem minimamente com o concreto objeto do processo-crime do qual se ocupavam.
29. E tanto assim era que, se a Participante e a sua vida íntima fossem um elemento essencial para o processo-crime em apreço, o Tribunal teria oficiosamente chamado a aqui Participante a depor, o que, porém, nunca fez.
30. Os Participados foram, numa palavra, movidos por aguçada curiosidade e indiscrição - sem qualquer relevo substancial para o caso que tinham em mãos
31. Negligenciando na sensatez e no decoro pelos quais a Magistratura Judicial sempre deve pautar no exercício da sua função.
32. Permitiram e quiseram os Participados que o nome, atitudes (que nem sabem se são verosímeis) e vida íntima da Participante fossem debatidos e comentados em praça pública e nas suas costas, de forma distorcida, pouco rigorosa e, sempre, com um objetivo vexatório e intromissivo.
33. Sem que a mesma tivesse a mínima oportunidade de se defender.
34. Tratou-se de uma postura por demais condenável, mas cuja censurabilidade é adensada se se considerar que os Participados assim agiram, cientes da qualidade profissional que assumiam (e das exigências de comportamento que isso implica) e cientes da qualidade profissional da Participante, que, entre o mais, é sua colega de profissão.
35. Os Participados teceram comentários e, bem assim, permitiram que se tecessem comentários sobre a Participante que se revelaram devassadores da sua vida privada e, de certa forma e em parte, difamatórios, no âmbito de um processo que, como bem sabiam, era (e é) público, com a consciência de que, assim, criavam especiais condições para que a mensagem se difundisse.
36. Ou seja, o julgamento do arguido transformou-se numa intrusão na vida privada da Participante, o que, independentemente do caráter indecoroso ou inofensivo dos factos, devassa a sua vida privada e familiar, direito humano fundamental tutelado pelo artigo 26.°, n.º 1, da Constituição, e pelo artigo 8.° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, enquanto direito a reservar a sua vida privada e a construir um espaço existencial livre de terceiros – “o direito a estar só” - ou “o interesse do indivíduo na sua privacidade, isto é, em subtrair-se à atenção dos outros, em impedir o acesso a si próprio ou em obstar à tomada de conhecimento ou à divulgação de informação pessoal” .
37. Tutela que abrange o direito à vida familiar, ou seja, o direito a organizar a sua vida pessoal e íntima como entender, a ser solteira ou casada, a namorar ou a não namorar, a viver sozinha ou acompanhada, a romper relações, a divorciar-se, etc., sem que essas opções sejam objeto de qualquer discriminação ou juízo de valor.
38. E, sobretudo, sem que essas opções se possam revestir de qualquer significado para o efeito de determinar a alegada influência da Participante na denúncia crime apresentada pelos pais da criança.
39. A tutela deste direito fundamental à privacidade e à vida familiar apenas sofre exceções, se tal for necessário para proteção do interesse público ou da segurança nacional e sem ultrapassar um critério de justa medida.
40. Exceções, manifestamente, não em causa neste processo, em que a Participante não foi arguida, nem vítima, nem testemunha.
41. Aliás, nem que, por absurdo, estivesse em causa, em relação à Participante, uma suspeita de, por exemplo, comissão do crime de denúncia caluniosa contra GG (e note-se que a única denúncia que teve lugar foi apenas aquela que foi feita pelos pais da menor, no exercício das suas responsabilidades parentais, e nunca nela tia, aqui Participante, nunca o Tribunal poderia, mesmo num (hipotético) processo que contra a Participante tivesse sido instaurado a esse propósito, investigar factos da sua vida privada - estado civil e relações de namoro - ou qualquer preconceito homofóbico ou machista de suposta «aversão a homens».
Por outro lado, 
42. Os Participados, aquando da redação do acórdão, proferido no final da fase de julgamento do processo n.º 541…., nomeadamente aquando da fundamentação da matéria de facto da decisão, adotaram uma postura por demais incorreta em relação à aqui Participante.
43. Com efeito, e entre o mais, o Coletivo de Juízes, aqui Participados, nessa fundamentação, referiu a expressão “tia que tem aversão a homens", reportando-se, claramente, à aqui Participante, visando atribuir-lhe um traço de carácter assaz negativo e preconceituoso (cf. Documento n.º 4, pp. 12 e 15).
44. Tal expressão - “aversão a homens”   reportada à aqui Participante, é desprovida de qualquer conteúdo fáctico,
45. Tendo, aliás, uma natureza preconceituosa e misógina.
46. Com efeito, os Participados, ao utilizarem a referida expressão, para caracterizar a aqui Participante, apenas a poderão ter feito assentar na sua perceção quanto ao estado de solteira da Participante.
47. Tal constatação resulta, aliás, das perguntas feitas pelos Participados à irmã da Participante, a então testemunha BB, a propósito do estado civil da Participante (referidas supra),
48. Bem como do palco que se deu às alegações (falsas e exorbitantes) de um primo da Participante, a aí testemunha CC - com quem não convive desde a adolescência- pessoa também citada no acórdão (cf. Documento n.º 4, p. 15) - contra quem (adiante-se) foi apresentada queixa-crime por falsidade de testemunho e difamação agravada, por o mesmo, entre o mais, ter opinado que achava que a prima, a aqui Participante, havia sido sexualmente abusada na infância.
49. Neste contexto - e ainda que en passant importa deixar a nota de que o discurso adotado pelas testemunhas de defesa, no âmbito do processo-crime n.º 541…., integrou uma estratégia, montada pelo arguido e seu advogado, a qual passou por esgrimir preconceitos e falsidades contra a aqui Participante, destinados a desviar a atenção do depoimento da vítima Menor (desacreditando-o) para a vida privada e familiar da Participante.
50. Nesta estratégia, colaboraram, em conluio, o arguido (e o seu mandatário contra quem já foi apresentada queixa crime e disciplinar) e restantes testemunhas (mulher do arguido, filhos e primo por afinidade), para assim defenderem o arguido do risco de uma condenação estigmatizante para toda a família, aproveitando-se do trabalho cívico da Participante em campanhas contra o assédio sexual - e do facto de alguns movimentos considerarem que ela tem uma ideologia feminista radical - para fazerem crer o Tribunal que foi ela que influenciou a denúncia crime contra o arguido e que manipulou a Menor.
51. Tal estratégia visava, acima de tudo e com aquele objetivo último, despertar a curiosidade dos aqui Participados, que se deixaram manipular, para temas absolutamente alheios ao processo-crime que se discutia.
52. De facto, a mal da realização da justiça no caso concreto, os Participados preferiram discutir a vida e o modo de ser e estar de uma pessoa alheia ao processo (a aqui Participante), do que se centrar na opinião da vítima do crime (a Menor) acerca dos factos objeto do processo que tinham em mãos.
53. Recentrando: o conceito usado na sentença - “tia que tem aversão a homens” - é manifestamente discriminatório, em função do género e do estado civil da Participante.
54. O mesmo é, de outra banda, devassador da sua vida privada e familiar.
55. Partindo de um estereótipo negativo das mulheres solteiras.
56. Quanto a este último aspeto, não será de somenos importância dizer, no presente contexto, que tal configuração da Participante é, de resto, proibida pela Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (nomeadamente, por força do artigo 12.º, n.º 2, e artigo 42.º, n.º 1, aplicável por maioria de razão).
57. Visto que tal Convenção vincula o Estado português à não utilização de expressões discriminatórias, bem como àquelas que se baseiem em estereótipos negativos das mulheres ou que promovam a sua inferioridade.
58. Trata-se, em suma, de um acórdão, nesta ótica, por demais incompreensível e criticável.
59. Ademais, sempre importa referir que, se os aqui Participados tivessem a convicção de que era importante perceber o papel da aqui Participante na sua família, nomeadamente, na educação das crianças e, em concreto, para o cabal entendimento do depoimento da vítima Menor, teriam, forçosamente, de ter logrado a busca pela verdade material, convocando a aqui Participante para depor, ao abrigo do que permite o artigo 340.° do Código de Processo Penal.
60. Nessa sede, poderiam os aqui Participados confrontar a Participante com as acusações que lhe fizeram o arguido e outros familiares e com os factos que o Tribunal (nas pessoas dos aqui Participados) julgasse serem pertinentes e necessários para a boa resolução da causa.
61. Sucede, porém, que os aqui Participados preferiram não o fazer, em prejuízo dos poderes que a lei processual penal lhes conferia e em prejuízo do próprio processo criminal que, ali, assumiu contornos que não lhe são próprios, nem expectáveis - mais próximos do “mexerico” e difamação gratuita de terceiros, do que da descoberta séria e competente da verdade material.
Ora,
62. Os Participados sabiam, sem poder ignorar, que, da forma como agiram, atingiam a intimidade da vida privada da Participante, bem como a sua honra, consideração e bom nome, como pessoa, mulher e cidadã, sobretudo, na sua veste de tia, que ama e respeita os seus sobrinhos e sobrinhas acima de tudo neste mundo.
63. Os Participados, plenamente cientes dos deveres que sobre si impendiam (e impendem) por força do seu estatuto profissional, no exercício das suas funções enquanto Magistrados Judiciais, assumiram uma atitude manifestamente abusiva e que exorbitou o específico âmbito das suas funções.
64. Displicente, deliberada e levianamente, quiseram os Participados, sabendo que isso lhe estava legalmente vedado, atingir a intimidade da vida privada da Participante, assim como a respetiva honra e consideração.
65. Para além disto, os Participados “abandalham” o ambiente solene que deve ser um julgamento em tribunal com perguntas que fazem lembrar uma atitude “coscuvilheira” típica de um grupo de amigos ou vizinhos, numa “conversa de café”, sobre a vida privada de alguém que nunca esteve presente.
II. DIREITO
66. Não existe um “elenco” das situações em que é possível apresentar participação a este douto Conselho Superior da Magistratura, valendo o critério de que poderá ser apresentada uma participação sempre que exista qualquer situação que, no entendimento dos cidadãos, lhes tenha provocado dano e que possa ser reconduzido à infração de um qualquer dever disciplinar que impenda sobre Magistrados Judiciais.
67. Neste sentido, o n.º 1 do artigo 31.° do Regulamento Interno do Conselho Superior da Magistratura (RICSM), publicado pela Deliberação n.º 1722/2016, do Conselho Superior da Magistratura, que, sob a epígrafe “Participações e requerimentos”, estipula que “Os particulares podem requerer as informações em que sejam diretamente interessados, bem como intentar os procedimentos que entendam necessários na defesa dos seus direitos subjetivos ou interesses legalmente protegidos”.
68. Por seu turno, o artigo 149.º, alínea a), do EMJ estabelece que compete ao Conselho Superior da Magistratura “nomear, colocar, transferir, promover, exonerar, apreciar o mérito profissional, exercer a ação disciplinar e, em geral, praticar todos os atos de idêntica natureza respeitantes a magistrados judiciais (...)”.
69. Ora, os artigos 81.º e ss. do EMJ preveem a responsabilidade disciplinar dos magistrados judiciais, determinando o artigo 82.° do diploma que “[c]onstituem infração disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os atos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções” (com destaques nossos).
70. Acresce que o artigo 32.º do EMJ prescreve a aplicação subsidiária aos magistrados judiciais do regime da função pública, relativamente a deveres, incompatibilidades e direitos, pelo que terá aplicação e interesse, in casu, a LGTFP.
71. O artigo 183.º da LGTFP estipula o seguinte: “Considera-se infração disciplinar o comportamento do trabalhador, por ação ou omissão, ainda que meramente culposo, que viole deveres serais ou especiais inerentes à função que exerce” (com destaques nossos).
72. Ora, o elenco dos deveres a que os trabalhadores que exercem funções públicas (aí incluídos os magistrados judiciais) estão adstritos, encontra-se plasmado nos artigos 70.º e 73.º da LGTFP e estes preceitos ditam o seguinte:
Artigo 70.º
Deveres gerais do empregador público e do trabalhador
1 - O empregador público e o trabalhador, no cumprimento das respetivas obrigações, assim como no exercício dos correspondentes direitos, devem asir de boa-fé.
2 - O empregador público e o trabalhador devem colaborar na obtenção da qualidade do serviço e da produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador” (com sublinhados nossos).
Artigo 73.º
Deveres do trabalhador
1 - O trabalhador está sujeito aos deveres previstos na presente lei, noutros diplomas legais e regulamentos e no instrumento de regulamentação coletiva de trabalho que lhe seja aplicável.
2 - São deveres gerais dos trabalhadores:

a)   O dever de prossecução do interesse público:
b)   O dever de isenção;
c)   O dever de imparcialidade:
d)   O dever de informação;
e)   O dever de zelo;
f)   O dever de obediência;
g)   O dever de lealdade;
h)   O dever de correção:
i)    O dever de assiduidade;
j)    O dever de pontualidade.
3 - O dever de prossecução do interesse público consiste na sua defesa, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
4 - O dever de isenção consiste em não retirar vantagens, diretas ou indiretas, pecuniárias ou outras, para si ou para terceiro, das funções que exerce.
5 - 0 dever de imparcialidade consiste em desempenhar as funções com equidistância relativamente aos interesses com que seja confrontado, sem discriminar positiva ou negativamente qualquer deles, na perspetiva do respeito pela igualdade dos cidadãos.
6 - O dever de informação consiste em prestar ao cidadão, nos termos legais, a informação que seja solicitada, com ressalva daquela que, naqueles termos, não deva ser divulgada.
7 - O dever de zelo consiste em conhecer e aplicar as normas legais e regulamentares e as ordens e instruções dos superiores hierárquicos, bem como exercer as funções de acordo com os objetivos que tenham sido fixados e utilizando as competências que tenham sido consideradas adequadas.
8 - O dever de obediência consiste em acatar e cumprir as ordens dos legítimos superiores hierárquicos, dadas em objeto de serviço e com a forma legal.
9 - O dever de lealdade consiste em desempenhar as funções com subordinação aos objetivos do órgão ou serviço.
10 - 0 dever de correção consiste em tratar com respeito os utentes dos órgãos ou serviços e os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos.
11 - Os deveres de assiduidade e de pontualidade consistem em comparecer ao serviço regular e continuamente e nas horas que estejam designadas.
12 - 0 trabalhador tem o dever de frequentar ações de formação e aperfeiçoamento profissional na atividade em que exerce funções, das quais apenas pode ser dispensado por motivo atendível.
13 - Na situação de requalificação, o trabalhador deve observar os deveres especiais inerentes a essa situação”. Ora,
73. Tendo em conta a factualidade atrás exposta, dúvidas não restam de que, no âmbito do processo-crime n.º 541…., os aqui Participados não lograram observar os deveres gerais que sobre si impendiam (e impendem), no sentido de agir de boa- fé e de promover e pugnar pela qualidade do serviço.
74. Por outro lado, inobservados ficaram, ainda e pelo menos, os deveres especiais de prossecução do interesse público, de imparcialidade, de zelo e de correção.
75. Assim foi, em suma, devido à forma inconsequente, desrespeitosa, indiscreta, devassadora e, em certa medida, difamatória como se referiram e como deixaram que se referissem à Participante, no âmbito do processo n.º 541…. e, mais precisamente, aquando da inquirição da aí testemunha BB,
76. Sem atender ao facto de não ser a vida pessoal/amorosa e a personalidade da Participante o objeto da discussão em tais autos.
77. E, bem assim, sem atender à circunstância de a Participante nem sequer ter sido chamada ao processo, para se pronunciar - a que título fosse - sobre o que se dizia a seu respeito.
Nestes termos e nos demais de direito, cujo Douto suprimento de V. Exas. se invoca deve a presente Participação ser recebida e, por conseguinte, deve o correspondente procedimento disciplinar ser desencadeado.
Nestes termos e nos demais de direito cujo suprimento de V. Exas. se invoca, deve a presente Participação ser recebida e, por conseguinte, deve o correspondente procedimento disciplinar ser desencadeado,
Mais requerendo a Participante, sem prejuízo do segredo previsto para a tramitação e condução do procedimento disciplinar, que seja notificada e informada da decisão final que venha a ser por tomada por este Ilustre Conselho Superior da Magistratura. (cf. doc. C junto à petição inicial).”
2) No âmbito do procedimento instaurado na sequência da participação referida em 1), autuado nos serviços do CSM sob o n.º “……388”, foi a 09-07-2019 elaborado instrumento escrito em papel timbrado da entidade demandada, com a referência “……358”, com o seguinte teor:
Exmo. Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura,
A Ex.ma Sr.ª Juíza Conselheira Dr.ª AA apresentou participação disciplinar contra os Ex.mos Srs. Juízes de Direito Dr. DD, Dr.ª EE e Dr.ª  FF, pugnando pela instauração de procedimento disciplinar contra os Srs. Juízes de Direito visados.
Para sustentar a participação, invoca, em suma, os seguintes factos:
- os Srs. Juízes de Direito participados - o primeiro, como presidente e, as restantes, como adjuntas - integraram o coletivo responsável pelo julgamento realizado no processo comum coletivo n.º 541….., do Juízo Central Criminal ......;
- nesse processo imputava-se ao nele arguido, cunhado da participante e tio da vítima, menor de idade, a prática de dois crimes de abuso sexual de crianças, previstos e puníveis pelos art.ºs 171.°, n.ºs 1 e 3, al. a), por referência ao art.º 170.°, todos do Código Penal;
- na sessão da audiência de julgamento realizada no dia 24 de setembro de 2018 foi inquirida como testemunha a esposa do arguido, também irmã da participante e tia da vítima, com cujo depoimento foi (a participante) atacada na sua honra, consideração e bom nome, assim como na sua privacidade;
- o tribunal, contudo, nas pessoas dos participados, colaborou em tal ataque, devassando a sua vida íntima e familiar de forma despropositada, mediante intervenção, anuência e mesmo solicitação dos participados, no final do depoimento da testemunha, explorando a ideia da sua “aversão a homens”;
- e fê-lo, sem que o tema em questão se prendesse com o objeto do processo e sem chamarem a participante a depor em julgamento, agindo movidos por curiosidade e indiscrição;
- acresce que, no acórdão proferido após a conclusão da audiência de julgamento, designadamente em sede de fundamentação da matéria de facto, o coletivo de juízes formado pelos participados, voltou a referir-se à participante com a expressão “tia que tem aversão a homens”, expressão essa discriminatória e devassadora da sua vida privada e familiar;
- conclui, pelo exposto, que os participados, displicente, deliberada e levianamente, quiseram atingir a sua vida privada, assim como a sua honra e consideração, violando os deveres gerais que sobre si impendiam de agirem de boa fé e de promoverem e pugnarem pela qualidade do serviço e os especiais de prossecução do interesse público, de imparcialidade, de zelo e de correção.
Facultada aos Ex.mos Srs. Juízes de Direito participados a sua audição a respeito dos factos que lhes foram imputados, refutaram estes, em tomada de posição conjunta, que tivessem violado qualquer dever funcional que os fizesse incorrer em responsabilidade disciplinar.
Assim, e em suma, invocaram a seguinte ordem de razões:
- o arguido, na contestação que apresentou no processo em questão na participação, desenvolveu como linha principal de defesa a influência que o contexto familiar da vítima teve nos relatos produzidos por esta;
- esta linha de defesa foi depois levada à prática em audiência de julgamento, quer no âmbito das declarações do arguido, quer no âmbito das inquirições de testemunhas, uma das quais a especialmente visada na participação;
- a audiência de julgamento, em processo cujo objeto se prendia com criminalidade especialmente violenta, decorreu com exclusão da publicidade, pelo que tudo quanto nela se passou está sob segredo de justiça;
- contrariamente ao relatado na participação, a intervenção de todos em audiência de julgamento pautou-se, não pela intenção de devassa da vida familiar da participante, mas exclusivamente pelo dever de apurar os factos submetidos a julgamento com rigor e imparcialidade, visando a descoberta da verdade e com respeito pelo direito de defesa do arguido;
- acresce que, no que diz respeito ao acórdão subscrito por todos, em lado algum do mesmo é indicado o nome da participada ou outro elemento suscetível de revelar a sua identificação;
- por outro lado, as duas referências nele feitas à expressão a que a participante alude surgem no contexto do relato feito em audiência de julgamento por duas testemunhas inquiridas e não como afirmação ou juízo próprio dos participados;
- concluem, assim, que não cometeram qualquer ato ilícito suscetível de os fazer incorrer em responsabilidade disciplinar.
*
Cumpre apreciar e decidir.
A participação disciplinar apresentada pela Ex.ma Sr.ª Juíza Conselheira participante, a resposta elaborada pelos Ex.mos Srs. Juízes de Direito visados e toda a documentação junta ao presente expediente mereceu uma cuidada análise da nossa parte.
É nossa convicção, contudo, a de que, da participação apresentada, não resultam elementos de facto e de direito que sugiram a violação, por parte dos Srs. Juízes de Direito participados, de qualquer dever funcional suscetível de os fazer incorrer em responsabilidade disciplinar, pelo que se imporá o seu arquivamento liminar.
Antes de enunciar as razões que nos levem a alcançar tal conclusão, importa, contudo, começar por tecer as seguintes considerações.
O Conselho Superior da Magistratura, como decorre do art. 136.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (E.M.J.), é o órgão superior de gestão e disciplina dos juízes, estando o elenco de competências que lhe estão cometidas, previsto no art. 149.º daquele diploma legal, incindivelmente ligado a tal natureza do órgão.
Desse elenco de competências não consta a possibilidade de interferir na apreciação e decisão de processos judiciais concretos. Essa tarefa é da exclusiva competência dos tribunais, no exercício da função jurisdicional e no quadro da independência que lhes é constitucionalmente reconhecida (v. art.ºs 202.º e 203.º da Constituição da República Portuguesa - C.R.P.).
O C.S.M., não sendo um tribunal, não pode, assim, apreciar pedidos de tutela jurisdicional, nem interferir na condução de processos judiciais ou nos termos da prolação de decisões judiciais, sob pena de ilegítima ingerência na atividade dos tribunais enquanto órgãos de soberania.
Tal não exclui o entendimento de que toda e qualquer atividade levada a cabo por um juiz no exercício da função jurisdicional não possa ou não deva conhecer limites.
Pelo contrário, a atividade do juiz terá sempre como limite inultrapassável o respeito e a observância dos princípios constitucionais que enformam o sistema jurídico, como é o caso do princípio da igualdade e dignidade social de todos os cidadãos perante a lei (art. 13.º, n.º 1 da C.R.P.) e o da imperatividade dos direitos dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias (art. 18.º da C.R.P.).
Extravasado esse limite intransponível, a atividade do juiz deixa de estar inserida no quadro da administração da justiça e, consequentemente, no da salvaguarda da independência que constitucionalmente lhe é assegurada, para passar a estar sob sindicância, podendo, inclusive, ser objeto de sancionamento disciplinar, uma vez verificado que uma tal atuação consubstanciou a violação de deveres funcionais.
*
No caso em apreço, a Ex.ma Sr.ª Juíza Conselheira participante insurge-se contra a atuação dos Srs. Juízes de Direito participados enquanto Juízes que compunham o coletivo que realizou o Julgamento no processo comum coletivo n.º 541…., do Juízo Central Criminal .......
Segundo a Sr.ª Juíza Conselheira, no referido processo foi lançado um ataque à sua honra e consideração, tendo os Srs. Juízes visados participado e colaborado em tal ataque, devassando a sua vida íntima e familiar, mediante intervenção, anuência e mesmo solicitação dos próprios.
O ataque teria consistido na exploração da ideia da “aversão a homens” da participante e, no que diz respeito aos Srs. Juízes participados, em dois momentos distintos: um, no decurso da audiência de julgamento, no âmbito da inquirição de uma testemunha; outro, nos termos do próprio acórdão proferido após a realização da audiência de julgamento.
Do que acaba de ser exposto, resulta que, subjacente à participação, não está a forma como os Srs. Juízes de Direito participados, compondo o coletivo, proferiram decisão no processo em. causa, mas a questão de saber se estes extravasaram os limites que se lhes impunham no exercício da sua função jurisdicional, violando direitos fundamentais da Participante como os da dignidade, do bom nome e consideração e da reserva da sua vida privada e familiar.
E o certo é que se entende que tal não ocorreu.

Assim, como invocam, os Srs. Juízes de Direito participados na sua resposta e resulta da documentação junta pelos mesmos com tal exposição, designadamente da contestação oferecida no processo em questão na participação, o arguido em tal processo, acusado que estava nele da prática de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de uma menor, sua sobrinha, esgrimiu como argumento de defesa, entre outros, a alegada influência da Participante, sua tia, junto da menor, nomeadamente no que diz respeito ao “radicalismo e obsessão contra o género masculino, incutindo desde muito cedo na cabeça das crianças, suas sobrinhas, as ideais mais mirabolantes sobre os perigos dos contactos com os homens...” (v. art. 16.º da contestação).
Tratou-se, aliás, de um argumento exposto e substanciado em alguns artigos da contestação e que o arguido tentou ilustrar com a junção de documentos que, na sua ótica, o revelavam, como seja excertos de conversações, que tinham a Participante como interlocutora, extraídas de redes sociais, sendo que, com tal orientação de defesa, se visava, em último termo, a descredibilização da menor vítima e da sua mãe.
A questão subjacente a tal argumento foi, depois, em sede de audiência de julgamento, desenvolvida no decurso da inquirição da testemunha em causa na participação, tal como decorre da transcrição do respetivo depoimento junta com a participação, mormente das passagens com início em 00:45:43.
Ora, constando da contestação do arguido e trazida a julgamento no decurso da inquirição de uma testemunha, a análise de tal questão tornou-se um tema de abordagem incontornável pelo tribunal, sob pena de, não o fazendo, este, não só pôr em causa a descoberta da verdade material e a boa realização da justiça, como o próprio direito de defesa do arguido - cuja observância, em se tratando de direito constitucionalmente consagrado (art. 32.º, n.º 1 da C.R.P.), é imperativa e, portanto, também um limite intransponível à atuação do tribunal.
E foi nesse quadro que o coletivo de juízes, como decorre da transcrição do depoimento da testemunha em causa, atuou.
Na verdade, a intervenção dos Srs. Juízes no julgamento, no que diz respeito à abordagem da questão, mostra-se objetiva e pautada sempre pela lógica e pelo intuito do esclarecimento dos factos.

Dela não se entrevê excessos nas questões colocadas, sendo que, ainda que atinentes à esfera da vida pessoal e privada da Participante, todas elas se mostraram enquadradas no tema em discussão e denunciaram, inclusive, preocupação do tribunal em esclarecer uma imputação (a suposta ideia de “aversão aos homens”) vaga e com laivos de insinuação, esclarecimento esse essencial para o apuramento da verdade e, bem assim, para aferir da própria credibilidade do testemunho em que foi veiculada.
Note-se que em momento algum da inquirição se registam, da parte dos Srs. Juízes, comentários, acintes, locuções jocosas ou intervenções desenquadradas da questão, que pudessem sugerir sequer que o objetivo dos mesmos fosse outro que não o da descoberta da verdade e da boa decisão da causa.
Os Srs. Juízes abordaram e deixaram abordar, de facto, a questão a que a Participante alude e, com isso, a menção a aspetos da sua vida pessoal, mas enquanto questão submetida a julgamento que importava apreciar e nada mais.
De resto, resulta da transcrição do depoimento em questão que a Sr.ª Juíza de Direito FF, a propósito da questão em apreço, fez questão de ressalvar - de um modo que nos parece espontâneo - que a abordagem da questão nada tinha a ver com o julgamento da Participante e deixar vincado que a “importância” da questão, que legitimava a sua consideração em julgamento, decorria do facto de se ter dito “que a atitude da (menor) terá sido, de certa forma, guiada pela tia...”.
E resulta, ainda, que o Ex.mo Sr. Juiz Dr. DD, depois de ter posto as questões que reputou pertinentes, pôs termo ao depoimento, obstando ao evoluir do depoimento para aspetos da questão irrelevantes para a decisão da causa, dizendo expressamente “Está encerrado, está esmiuçado este assunto...”.
Entendemos, assim, que, do expediente, não resultam elementos objetivos que, de forma consistente e sustentada, permitam concluir que os Srs. Juízes de Direito visados, no decurso da inquirição da testemunha, tenham por qualquer forma ultrapassado os limites do exercício da função jurisdicional que, enquanto membros do coletivo, lhes competia assegurar e, consequentemente, violado deveres funcionais.
Com efeito, não havendo dúvidas de que, a páginas 12 e 15 do acórdão foi transcrita a expressão “aversão aos homens”, tal expressão surge, no contexto daquele aresto, em sede de fundamentação da decisão da matéria de facto e como reprodução dos depoimentos em que foi utilizada.
Ou seja, tal expressão não corresponde a um juízo de valor ou sequer a uma afirmação empregue no acórdão por criação do tribunal, mas como algo que foi dito por dois declarantes que depuseram em julgamento e, assim, como explicitação dos termos em que foi prestado um elemento de prova relevante para a decisão da matéria de facto.
O emprego de tal expressão mais não traduz, assim, do que o cabal cumprimento, pelo tribunal, do dever de fundamentação das decisões judiciais prescrito na própria C.R.P. (v. o seu art. 205.º, n.º 1) e no C.P.P. (v. o seu art. 374.º, n.º 2), constituindo a “indicação”, num exercício de rigor e transparência, das provas relevantes para a formação da sua convicção.
Temos, em suma, que não há elementos que nos permitam concluir que os Srs. Juízes de Direito participados tenham violado qualquer dever funcional suscetível de os fazer incorrer em responsabilidade disciplinar, antes resultando dos elementos disponíveis que toda a sua atuação mais não constituiu do que o exercício da função jurisdicional que, na qualidade de membros do coletivo chamado a julgar o processo, lhes competia.
Entende-se, assim, que a participação apresentada deverá ser arquivada.
Pelo exposto, apresente ao Ex.mo Sr. Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, com proposta de arquivamento da participação em apreço e de que se proceda às comunicações devidas.
KK
Vogal
(cf. doc. A junto à petição inicial)
3)    Na sequência do proposto no instrumento procedimental referido em 2), foi a 10-07-2019 exarado despacho pelo Sr. Vice-Presidente da entidade demandada, em instrumento escrito em papel timbrado daquela autoridade administrativa, com a referência “……..369”, com o seguinte teor:
Concordo inteiramente com a proposta apresentada pelo Exm.º Sr. Vogal, pois que não se vislumbra qualquer infração disciplinar por parte dos Exm.ºs Srs. Juízes visados na participação. Deste modo, sem necessidade de maiores considerações, impõe-se o arquivamento da presente participação.
Comunique.
JJ
Vice-Presidente (cf. doc. A junto à petição inicial)
4)    A Autora foi notificada do teor do despacho referido em 3) e do documento referido em 2) pelo ofício n.º “……834”, expedido pela entidade demandada a 11-07-2019 (idem).
5)    A 26-07-2019 deu entrada nos serviços da entidade demandada um instrumento subscrito pela Autora com o seguinte teor:
Exmo. Senhor Dr.
JJ […]
AA, Participante nos autos à margem referenciados e aí melhor identificada, notificada da decisão de arquivamento, de 10-07-2019, proferida por V. Exa., Exmo. Senhor Vice- Presidente deste Conselho Superior da Magistratura, no âmbito dos presentes autos, e não se conformando com a mesma, vem, nos termos e para os efeitos dos artigos 164.°, n.º 1, 166.°, e 167.°, n.º 1, do Estatuto dos Magistrados Judiciais (Lei 21/85, de 30 de julho - EMJ), bem como do artigo 32.°, alínea b), do Regulamento Interno do Conselho Superior da Magistratura (Deliberação n.º 172…..), com os efeitos previstos no artigo 167.°-A EMJ, apresentar a sua
RECLAMAÇÃO
Junto dos Exmos. Senhores Membros do Plenário do Conselho Superior da Magistratura […]
O que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:
1. Através da presente Reclamação, a Participante, aqui Reclamante, pretende reverter a decisão de arquivamento, proferida no dia 10-07-2019, pelo Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, no âmbito dos presentes autos disciplinares (doravante, “Decisão Reclamada”).
2. Tal decisão é desfavorável à Participante, aqui Reclamante, porquanto desconsidera “in totum” a Participação Disciplinar por si antes apresentada contra os Senhores Drs. DD, EE e FF, por atos por estes perpetrados, enquanto membros do Tribunal Coletivo que dirigiu a fase de julgamento, no processo n.º 541….
3. A Decisão Reclamada concorda com a proposta de decisão apresentada, no dia 09-07-2019,            pelo Exmo. Senhor Vogal do Conselho Superior da Magistratura, o Exmo. Senhor Dr. KK (doravante, “Proposta”), assumindo-a na sua globalidade.
4. Porque os argumentos e a decisão constantes da Proposta correspondem aos argumentos e à decisão da Decisão Reclamada, a Participante sente-se naturalmente legitimada a referir-se, daqui em diante, ao texto da Proposta, porquanto o mesmo deve entender-se como “replicado” na Decisão Reclamada e, nessa medida, como sua parte integrante.
5. Na Proposta, refere-se que:
“É nossa convicção (...) que, da participação apresentada, não resultam elementos de facto e de direito que sugiram a violação, por parte dos Srs. Juízes de Direito participados, de qualquer violação funcional suscetível de os fazer incorrer em responsabilidade disciplinar, pelo que se imporá o seu arquivamento liminar” (pág. 3).
6. Mais se indica na Proposta que:
“No caso em apreço, a Exma. Sr.ª Juíza Conselheira participante insurge-se contra a atuação dos Srs. Juízes de Direito participados enquanto Juízes que compunham o coletivo que realizou o julgamento no processo comum coletivo n.º 541…., do Juízo Central Criminal .......
Segundo a Sr.ª Juíza Conselheira, no referido processo foi lançado um ataque à sua honra e consideração, tendo os Srs. Juízes visados participado e colaborado em tal ataque, devassando a sua vida íntima e familiar, mediante intervenção, anuência e mesmo solicitação dos próprios.
O ataque teria consistido na exploração da ideia da ‘aversão a homens’ da participante e, no que diz respeito aos Srs. Juízes participados, em dois momentos distintos: um, no decurso da audiência de julgamento, no âmbito da inquirição de uma testemunha; outro, nos termos do próprio acórdão após a realização da audiência de julgamento.
Do que acaba de ser exposto, resulta que, subjacente à participação, não está a forma como os Sr.s Juízes de Direito participados, compondo o coletivo, proferiram decisão no processo em causa, mas a questão de saber se estes extravasaram os limites que se lhes impunham no exercício da sua função jurisdicional, violando direitos fundamentais da Participante com os da dignidade, do bom nome e consideração e da reserva da sua vida privada e familiar.
E o certo é que se entende que tal não ocorreu” (pág. 4).
7. Nas linhas que se seguem, a Participante, aqui Reclamante, demonstrará em que termos esta última conclusão deve considerar-se por demais errada.
II. DOS FACTOS
8. De uma leitura global da Decisão Reclamada, não pode senão concluir-se que a mesma assenta na ideia (base) de que a personalidade, as convicções e o modo de ser e estar da Participante tinham que ser explorados pelos Participados, no âmbito do processo n.º 541/16.8PSPRT, da forma como foram, porque isso se revelava necessário à descoberta da verdade material e, nessa medida, ao correto julgamento da causa, já que a defesa do arguido assentava na ideia de que a Participante influenciava negativamente os seus sobrinhos, aí incluída a Menor, vítima do crime sob análise, podendo tal influência ter levado a que esta fantasiasse um abuso que não aconteceu. 
9. Nestes termos, a Proposta, logo na sua página 5, ao afirmar o seguinte:
“como invocam os Srs. Juízes de Direito participados o arguido em tal processo, acusado que estava nele da prática de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de uma menor, sua sobrinha, esgrimiu como argumento de defesa, entre outros, a alegada influência da Participante. sua tia, junto da menor, nomeadamente no que diz respeito ao 'radicalismo e obsessão contra o género masculino, incutindo desde muito cedo na cabeça das crianças, suas sobrinhas, as ideias mais mirabolantes sobre os perigos dos contactos com homens...” (16.º contestação).
Tratou-se, aliás, de um argumento exposto e substanciado em alguns artigos da contestação e que o arguido tentou ilustrar com a junção de documentos que, na sua ótica, o revelavam, como seja excertos de conversações, que tinham a participante como interlocutora, extraídas de redes sociais, sendo que, com tal orientação de defesa, se visava, em último termo, a descredibilização da menor vítima e da sua mãe.
A questão subjacente a tal argumento foi, depois, em sede de audiência de julgamento, desenvolvida no decurso da inquirição da testemunha em causa na participação [a saber: BB, esposa do aí Arguido GG], tal como decorre da transcrição do respetivo depoimento junta com a participação (...).
Ora, constando da contestação do arguido e trazida a julgamento no decurso da inquirição de uma testemunha, a análise de tal questão tornou-se um tema de abordagem incontornável pelo tribunal, sob pena de, não o fazendo, este, não só pôr em causa a descoberta da verdade material e a boa realização da justiça, como o próprio direito de defesa do arguido - cuja observância, em se tratando de direito constitucionalmente consagrado (art. 32.°, n.º 1 da C.R.P.), é imperativa e, portanto, também um limite intransponível à atuação do tribunal. E foi nesse quadro que o coletivo de juízes, como decorre da transcrição do depoimento da testemunha em causa, atuou” (com destaques nossos).
10. De igual forma, na página 6 da Decisão Reclamada e reportando-se à inquirição da testemunha BB, pode ler-se, ainda, o seguinte:
“todas elas [as perguntas colocadas em julgamento pelos juízes Participados] se mostraram enquadradas no tema em discussão e denunciaram, inclusive, preocupação do tribunal em esclarecer uma imputação (a suposta ideia de ‘aversão a homens’) vaga e com laivos de insinuação, esclarecimento esse essencial para o apuramento da verdade e, bem assim, para aferir da própria credibilidade do testemunho em que foi veiculada. (...) 
Os Srs. Juízes abordaram e deixaram abordar, de facto, a questão a que a Participante alude e, com isso, a menção de aspetos da sua vida pessoal, mas enquanto questão submetida a julgamento que importava apreciar e nada mais” (com destaques nossos).
11. Por assentar neste argumento central - que depois desenvolve -, a Decisão Reclamada revela o seu pecado capital: a falta de coerência lógica e, por aí, a imperatividade da sua revogação. E isto, essencialmente, por duas razões que se passa a indicar.
Primeira:
12. Entende a Reclamante que a Contestação apresentada pelo Arguido GG no âmbito do processo n.º 541…., que, nos termos da Decisão Reclamada, determinou o sentido da produção de prova, foi manifestamente abusiva e falsa no que toca à sua pessoa.
13. No entanto, e independentemente disso - porque não é essa a questão que se encontra, nesta sede, em discussão pretende a Reclamante destacar que, como a própria Decisão Reclamada começa por indicar, a defesa do Arguido assentava na ideia (absurda, mas para si essencial) de que a Reclamante influenciava os sobrinhos, entre eles a Menor, incutindo ideias mirabolantes sobre perigos de contactos com homens.
14. Foi nesse contexto, e com o intuito de densificar e justificar, “teatralizando”, esta última afirmação, que a mesma defesa explorou - indevida e abusivamente - a ideia (descabida) de que a aqui Reclamante tinha “aversão a homens”.
15. No entanto, certo é que, independentemente deste “toque”, o ponto essencial para a boa decisão da causa, mesmo na ótica da defesa, não passava por saber se a Reclamante tinha ou não a dita aversão - por si só, tal realidade era absolutamente irrelevante,
16. Mas sim se a Reclamante influenciava negativamente os seus sobrinhos e, nessa medida, a Menor.
17. Ou seja, a ideia (falsa) da dita aversão serviu apenas para “apimentar” o tema da alegada influência. Dito isto:
18. Se a defesa, no desempenho da sua função, quis aprofundar e discutir em praça pública a dita aversão de que a Reclamante (supostamente) padece, fê-lo de forma exorbitante, ilegítima e ilegal.
19. Coisa que os juízes Participados deveriam ter impedido.
20. Ao Tribunal esperava-se que “separasse o trigo do joio”.
21. Uma coisa é discutir a tal aversão (falso ou não, trata-se da apreciação de aspetos pessoais de alguém sem o mínimo de interesse e relevo efetivo para a causa);
22. Outra coisa é discutir a assinalada influência negativa da tia sobre a Menor (falsa ou não, trata-se da apreciação de acontecimentos concretos com específico e objetivo interesse para a resolução da causa, pois, de acordo com a [absurda] linha de defesa do arguido, contende com a credibilidade ou não da queixa e, logo, com a culpabilidade ou não do arguido).
23. De facto, importa que, aqui, não se perca o foco.
24. Num processo crime onde se julga um alegado abuso de uma Menor, não ignora a Reclamante que uma das linhas de defesa se pode reconduzir à apreciação da credibilidade ou não da queixa que estava na sua base.
25. Foi, justamente, nesta direção que militou a defesa do arguido GG, a qual tentou, entre o mais, convencer o Tribunal de que tudo não passava de efabulações da Menor, criadas por força da influência negativa da tia, a aqui Reclamante.

26. Tendo considerado o Tribunal, nesse processo-crime, que o assinalado tema fazia parte do objeto do processo e que a sua averiguação era essencial, entre o mais, à boa resolução da causa - como a Decisão Reclamada defende então o enfoque do Tribunal deveria ter apontado, quanto a este aspeto, apenas para a procura de respostas quanto aos seguintes temas:
(i)A aqui Reclamante influenciava (ou não) os sobrinhos, entre eles a Menor?
(ii) A aqui Reclamante incutia (ou não), desde cedo, ideias mirabolantes às crianças sobre perigos de contactos com homens?
27. Tratar-se-ia, numa palavra, de apurar a influência e o modo de influência da Reclamante sobre os sobrinhos, em geral, e sobre a Menor, em particular.
28. Coisa, portanto, substancialmente distinta daquilo que veio a acontecer no âmbito do processo n.º 541….., onde se chegou a reconduzir a produção de prova, pura e simplesmente, ao apuramento da (suposta) “aversão a homens” da Reclamante, abordando-se, sem limites e bem para lá de toda a razoabilidade, as convicções da Reclamante, o seu modo de ser e estar e - até! - o histórico das suas relações amorosas (!).
29. E isto quanto a Reclamante não era sequer parte visada no processo (!).
30. E foi, justamente, esta “descentralização” do enfoque da questão que a Reclamante criticou em sede de Participação Disciplinar (e continua a criticar na presente Reclamação).
31. De facto, se a ideia era seguir a lógica (absurda) da defesa, então importaria que, no processo-crime, a discussão tivesse passado, no que a este tema concerne, apenas e só, pelo apuramento de concretas conversas, (supostamente) desapropriadas, que a Reclamante haja tido com a Menor e/ou com demais sobrinhos e que demonstrassem uma influência negativa da mesma em relação a estes.
32. Mas o exercício efetuado foi assaz diferente. Bem ao invés, considerou-se a personalidade da Reclamante, discutiram-se as suas (supostas) convicções, tentou apurar-se a origem da sua (suposta) aversão a homens - se congénita, ou se traço de personalidade - e chegou a abordar-se, abertamente, episódios da sua vida privada.
33. A Decisão Reclamada tem, assim, contra si a argumentação que ela própria apresenta no sentido do arquivamento do presente processo. Isto porque nem sequer logra identificar corretamente o concreto âmbito que a discussão do processo-crime em apreço, por referência à argumentação (absurda) utilizada pela defesa do Arguido GG, deveria ter assumido.
Segunda:
34. A Decisão Reclamada é contraditória nos seus próprios termos também por um outro aspeto. E isto, mesmo no cenário de V. Exas. não concordarem com o que até ao momento se disse.
35. Com efeito, mesmo que se queira defender que a discussão sobre o modo de ser e estar (lato sensu) da Reclamante, tida em julgamento, era necessária em face dos argumentos invocados pela defesa, certo é que, nesse pressuposto, então não se consegue explicar a passividade dos Participados. Indo direta ao ponto:
36. Nem sequer pode ser certo que a personalidade da aqui Reclamante tivesse que ser o tema central do processo-crime n.º 541…. e que as discussões tidas em julgamento tivessem que se desenrolar em torno desse tema, pois, se assim realmente fosse - e acreditando que os juízes participados são competentes (neste ponto, existe, como não poderia deixar de ser, a presunção de que assim é) -, o Tribunal teria que ter considerado igualmente essencial / central, no processo, ouvir a própria Reclamante (o que não aconteceu), por forma a percecionar a sua personalidade e a sua maneira de ser, com respeito ao princípio da imediação e da oralidade - diligência a que os Participados poderiam ter dado azo com recurso ao expediente constante do artigo 340.° Código de Processo Penal.
37. Só desta forma os Participados revelariam a assinalada centralidade e essencialidade do tema para a correta e justa decisão da causa.
38. Ora, o facto de tal diligência não ter tido lugar tem a virtualidade de demonstrar, preto no branco, que a aqui Reclamante não era, nem nunca foi, para o Tribunal, uma figura central do processo n.º 541…. como agora a Decisão Reclamada pretende sugerir.
39. Este foi, apenas, um argumento alegado pelos Participados, na sua defesa, no âmbito dos presentes autos disciplinares, e que, de forma algo acrítica (porquanto foi desconsiderando o raciocínio ora explanado), foi acolhido na Decisão Reclamada.
40. Termos em que não pode senão concluir-se que os Participados, no processo n.º 541…., exorbitaram, flagrantemente, aquilo que era esperado do Tribunal.
Ademais.
41. A Decisão Reclamada manifesta-se, ainda, no sentido de que, em todo o caso, a abordagem dos Participados, na inquirição da testemunha BB, no âmbito do processo n.º 541…., foi objetiva, respeitosa e adequada ao necessário esclarecimento dos factos aí sob julgamento.
42. Assim, e por exemplo, nas seguintes passagens da Decisão Reclamada:
“Na verdade, a intervenção dos Srs. Juízes no julgamento, no que diz respeito à abordagem da questão, mostra-se objetiva e pautada sempre pela lógica e pelo intuito do esclarecimento dos factos. 
Dela não se entrevê excessos nas questões colocadas, sendo que, ainda que atinentes à esfera pessoal e privada da Participante, todas elas se mostraram enquadradas no tema em discussão e denunciaram, inclusive, preocupação do tribunal em esclarecer uma imputação (a suposta ideia de ‘aversão a homens’) vaga e com laivos de insinuação, esclarecimento esse essencial para o apuramento da verdade e, bem assim para aferir da própria credibilidade do testemunho em que foi veiculada.
Note-se que em momento algum da inquirição se registaram, da parte dos Srs. Juízes, comentários, acintes e locuções jocosas ou intervenções desenquadradas da questão, que pudessem sugerir sequer os objetivos dos mesmos fosse outro que não o da descoberta da verdade e da boa decisão da causa.
(...)
Entendemos, assim, que, do expediente, não resultam elementos objetivos que, de forma consistente e sustentada, permitam concluir que os Srs. Juízes de Direito visados, no decurso da inquirição da testemunha, tenham por qualquer forma ultrapassado os limites do exercício da função jurisdicional que, enquanto membros do coletivo, lhes competia assegurar e, consequentemente, violado deveres funcionais” (págs. 5 e seguinte — com destaques nossos).
43. Nada mais errado e desligado da realidade.
44. É firme convicção da Participante que a forma como agiram os Juízes Participados, intervenientes na inquirição da testemunha BB, foi absolutamente desproporcional e, nessa medida, abusiva.
45. Com efeito, os mesmos, mais do que (alegadamente) procurarem a verdade material — como se refere na Decisão Reclamada — exploraram ideias que, em absolutamente nada contribuíram para a melhor ou pior decisão da concreta causa submetida a julgamento.
46. Como a própria Decisão Reclamada não deixa mentir (embora, depois, como se verá, com algumas contradições), os Participados pretendiam, no fundo, perceber se o episódio objeto dos autos criminais tinha ou não sido fruto de invenção da Menor, nomeadamente por influência da Participada. Apenas aqui pode existir um nexo (absurdo, mas em todo o caso) lógico com o tema objeto do processo.
47.  Ora, se assim é, não pode deixar de se concluir que, para tal, sempre seria absolutamente supérfluo e, nessa medida, desproporcional “esclarecer uma imputação (a suposta ideia de ‘aversão a homem’)” dirigida à aqui Reclamante - ideia que a Decisão Reclamada, paradoxalmente, defende.
48. Conforme já referido supra, para quê saber se a Reclamante pensa A ou pensa B? Defende causa C ou critica causa D? Se gosta mais do sexo feminino ou do masculino? Et cetera, et cetera, et cetera,
49. Se o que se pretende (a pedido da defesa [absurda] do Arguido) se reconduz (ou deveria reconduzir-se!) apenas a saber se a Reclamante foi (ou não) uma influência negativa na Menor, a ponto de a mesma distorcer a realidade no âmbito do processo-crime em apreço?
50. A resposta é óbvia: os juízes Participados perderam o pulso à produção de prova, indo bem para lá daquilo que o direito lhes permitia.
51. Mais: mesmo que assim não se entendesse, certo é que, sobretudo. não era preciso “esmiuçar” a vida da Reclamante da forma como a mesma foi esmiuçada, indo ao ponto de indagar e de permitir que se indagasse a testemunha BB (i) sobre se o (suposto) “problema” da “aversão a homens” de que “padece” a Reclamante era ou não congénito, (ii) sobre os noivados que a mesma havia rompido ou havia deixado de romper ou (iii) sobre o histórico dos seus relacionamentos amorosos... (!)
52. Este desnorte da inquirição resulta muito claro da transcrição da diligência, junta com a Participação, sobretudo no seguinte trecho:
“[00:31:53] EE: Já estou [impercetível]. Eu quero fazer uma pergunta, não sei se é a mesma, mas logo veremos, não é? O Senhora Doutora, boa tarde. A Senhora doutora não referiu esta questão, mas referiu o seu marido, e como a Senhora Doutora, com certeza, há coisas que as filhas falam mais com as mães do que com os pais, eu queria perceber aquela questão do casamento, do casamento da sua filha HH... o seu marido referiu que, quando a sua filha HH ia casar... eu não sei se quer situar no tempo, porque nós não estivemos muito preocupados com isso, mas quando a sua filha ia casar, que a sua irmã AA a terá tentado dissuadir. Eu, parece-me que foi isto que percebi, mas não quero pôr na boca do seu marido uma coisa que ele não tenha dito. Na altura, isto já me chamou um bocadinho à atenção, porque isto, geralmente, faz-se em situações em que há comprovadamente problemas do lado de lá, e a pessoa tenta salvar uma rapariga que vai... não ê? Para o abismo, digamos assim. E depois, com todos os elementos que até agora vão trazendo, eu gostava de perceber o que é que aconteceu aqui, se é que aconteceu então isso e em que é que se concretizou?
[00:33:08] BB: Sim, ela disse-lhe: “ai, vê lá se o II tem emprego, se... pensa bem...”, até acho que foi por mensagem.
[00:33:21] EE: Mas a Senhora Doutora inscreve isso nessa posição de que fala... que fala, e que, provavelmente... pronto, nós sabemos que a sua irmã tem trabalhos publicados...
[00:33:31] BB: Não, obviamente...
[00:33:33] EE: ...e tudo isso, portanto, nós não vamos fazer de conta que não sabemos.
[00:33:34] BB: Trabalhos quê, desculpe?
[00:33:35] EE: Publicados, a sua irmã tem trabalhos publicados sobre assuntos relacionados com menores, e abusos, e tal, e, portanto, a posição pública dela é mais ou menos coincidente.
[00:33:41] BB: Sim.
[00:33:43] EE: Se a Senhora Doutora inscreve essa atitude da sua irmã num cuidado de tia, ou se inscreve em mais [impercetível]?
[00:33:49] BB: Quer dizer, ela tentou... eu acho que, no fundo, ela tentou fazer ali um... um aviso, escondendo...
[00:34:09] EE: O motivo?
[00:34:10] BB: Claro que a HH lhe cortou logo as bases, como se costuma dizer, e chegou-se logo atrás...
[00:34:16] EE: E esse episódio aconteceu já depois disto, a sua filha casou já depois disto?
[00:34:21] BB: Sim, sim.
[00:34:22] EE: Pronto, desse episódio?
[00:34:22] BB: Porque a HH, acho que lhe mandou uma mensagem a dizer que ia casar, e ela, depois disse-lhe: “vê lá, HH, ainda é muito cedo, se calhar, e tal...”, ah! “Fico muito preocupada com o casamento, estou muito preocupada com o leu casamento... vê lá se o II tem emprego”. O II tinha emprego, obviamente, senão a HH não ia casar. 
[00:34:44] EE: Sim. Pronto. Muito obrigada, Senhora Doutora.
[00:34:49] FF: Tenho aqui... eu ia-lhe fazer uma pergunta, que tem um bocadinho a ver com esta pergunta que fez a minha colega, que a Senhora Doutora há bocado diz que sempre alertou a filha, portanto, a filha HH, para o problema da aversão da AA aos homens...
[00:35:04] BB: AA.
[00:35:05] FF: AA. Pronto, acho que foi assim que disse.
[00:35:08J BB: Sim.
[00:35:09] FF: E isto aqui, não que a irmã da Senhora Doutora, obviamente não está a ser julgada, mas a partir do momento em que se diz que a atitude da [Menor] terá sido, de certa forma, guiada pela tia, não é? Tem alguma importância, e só por isso é que tem importância, saber de onde é que vem esta aversão aos homens.
[00:35:36] BB: Sim.
[00:35:35] FF: Isto é uma coisa congénita, foi uma coisa desenvolvida com o tempo...?
[00:35:41] BB: Eu acho que foi um bocado desenvolvida com o tempo. Porque ela, depois também se começou a especializar um bocado, porque ela, inicialmente... ela, primeiro, especializou-se em …., não é? Depois, fez ali um Doutoramento em...
[00:35:56] FF: Direito …..?
[00:35:56] BB: Direito …., não é? E depois, voltou-se a... primeiro, especializou-se em ….., não é? E depois, é que voltou outra vez à …... E depois, começou a ter uma aversão aos homens, e uma coisa terrível, e aquilo foi-se avolumando, avolumando, avolumando...
[00:36:14] FF: Sim, mas é assim, todos nós, já... a nível profissional, já trabalhámos com …....
[00:36:19] BB: Sim, mas foi uma coisa gradual. Eu não sei como é que aconteceu, depois ela acabou um casamento também, todos nós sabemos, logo a seguir ao meu casamento. E aquilo foi gradual. Não sei, foi-se avolumando.
[00:36:30] ADVA: Está a falar da HH? E a Senhora Juiz está a falar de quem?
[00:36:34] FF: Estou a falar da HH!
[00:36:34] BB: Não, não. Eu estou... está a falar da...
[00:36:36] ADVA: Acho que, que eu saiba, a HH não é que tem aversão aos homens. Eu acho...
[00:36:38] BB: Não, não...
[00:36:39] ADVA: Eu acho [impercetível]...
[00:36:42] BB: Não, não, só se falou da AA! 
[00:36:43] FF: Está a falar da HH? Pronto, eu estava...
[00:36:45] BB: Não, não! Estamos a falar da HH, minha filha!
[00:36:45] DD: Não! [falas sobrepostas]
[00:36:48] BB: E estamos a falar da AA.
[00:36:49] ADVA: Sim, mas está a dizer a Senhora Juiz, se bem percebi, de onde é que vem a aversão aos homens.
[00:36:53] BB: Sim...
[00:36:55] ADVA: A AA.
[00:36:55] ADVA: Pronto, percebi isso. Estava a dizer “acabou um casamento”, quem é que acabou um casamento?
[00:37:00] FF: Não sei...
[00:37:01] ADVA: [impercetível] foi casada?
[00:37:03] BB: A AA acabou um casamento, porque ela ia casar, não é?
[00:3 7:08] FF: Não percebi. Acabou o casamento, porque ia casar?
[00:37:10] BB: Ela, a minha irmã AA começou uma aversão muito grande aos homens, imediatamente a seguir ao... acabaram o casamento, porque ela ia casar e não casou.
[00:37:20] FF: Ah...
[00:37:21] DD: Ah, mas isso já foi...
[00:37:21] BB: Há muitos anos!
[00:37:22] DD: Ah, pronto.
[00:37:22] ADV: E não acabou o casamento, não chegou a casar! Rompeu o casamento.
[00:3 7:25] FF: Portanto, não chegou a casar? Não chegou a casar, é isso que quer dizer?
[00:37:27] BB: Sim. Não chegou a casar.
[00:37:29] FF: Pronto.
[00:37:29] ADVA: Senhora Juiz, então... [falas sobrepostas]
[00:37:30] BB: E logo a seguir a isso, desenvolveu uma aversão, eu acho que foi nessa altura em que começou um crescendo [impercetível].
[00:3 7:38] FF: Pronto! E isso pode ser uma explicação, não é?
[00:37:41] BB: Não sei se é uma explicação, mas foi nessa altura! Em que começou a desenvolver uma grande aversão aos homens. Não sei se foi uma explicação, mas foi nessa altura. Não sei se foi por isso. O rapaz até era amoroso e ela gostava muito dele e ele dela. Pronto! E,... e acabou, pronto.
[00:37:56] FF: Está. Muito obrigada.
[00:37:57] ADVA: Senhor Juiz, se me é permitido, já agora, a Dr.ª AA teve ou não teve – e a Senhora é família - vários namorados ao longo da vida? Homens?
[00:38:07] BB: Ai, teve! Teve!
[00:38:08] ADVA: Ah, pronto! Então, a aversão aos homens é seletiva? [00:38:10] DD: Mas isso... mas...
[00:38:12] BB: É quê?
[00:38:12] ADVA: A aversão...
[00:38:13] DD: Ó Senhora Doutora, mas isso aí, tem que se fazer a pergunta que se impõe, não é? Isso foi antes ou depois de acabar com esse casamento que não chegou a ser?
[00:38:19] BB: O quê?
[00:38:20] DD: Estes namorados que a Senhora Doutora está a falar? [00:38:21] BB: Foram depois.
[00:38:22] DD: Foi depois do casamento?
[00:38:23] BB: Sim, sim.
[00:38:25] DD: Mas continuou... portanto, mantinha esses namorados, e, ao mesmo tempo, foi como que um crescendo de aversão?
[00:38:31] T: Sim, sim! A aversão continuou. Pronto, era isso que eu queria dizer.
[00:38:34] DD: Senhora Doutora? Só perguntei [impercetível] era pertinente esta pergunta.
[00:38:41] ADVA: Sabe... ia-lhe perguntar se sabe se ela namora atualmente, mas cortou essa parte...
[00:38:44] BB: Que eu saiba, não.
[00:38:47] DD: Pronto. Está...
[00:38:48] ADVA: Já, está completamente [impercetível].
[00:38:50] DD: Está encerrado, está esmiuçado este assunto. Muito bem, pronto. Não havendo mais nada, está terminado o seu depoimento. Pode-se retirar. Boa tarde.
[00:38:58] ADV: E nem vamos falar em mais...” (cf. Documento n.º 2 da C Participação Disciplinar, págs. 33 e seguintes, com destaques nossos)
53. Resulta claro do exposto que foram abordados temas reconduzíveis à esfera mais íntima da Reclamante sem que tais temas se prendessem minimamente com o concreto objeto do processo-crime do qual se ocupavam.
54. E tanto assim era que - repita-se - se a Reclamante e a sua vida íntima fossem um elemento essencial para o processo-crime em apreço, o Tribunal teria oficiosamente chamado a aqui Reclamante a depor, o que, porém, nunca fez.
55. Mais uma vez se afirma que os Participados foram, numa palavra, movidos por aguçada curiosidade e indiscrição - sem qualquer relevo substancial para o caso que tinham em mãos negligenciando na sensatez e no decoro pelos quais a Magistratura Judicial sempre deve pautar no exercício da sua função.
56. Permitiram e quiseram os Participados que o nome, atitudes (que nem sabem se são verosímeis) e vida íntima da Reclamante fossem debatidos e comentados em praça pública e nas suas costas, de forma distorcida, pouco rigorosa e, sempre, com um objetivo vexatório e de intromissão, sem que a mesma tivesse a mínima oportunidade de se defender.
57. Tratou-se de uma postura por demais condenável, mas cuja censurabilidade é adensada se se considerar que os Participados assim agiram, cientes da qualidade profissional que assumiam (e das exigências de comportamento que isso implica) e cientes da qualidade profissional da Participante, aqui Reclamante, que, entre o mais, é sua colega de profissão.
58. Os Participados teceram comentários e, bem assim, permitiram que se tecessem comentários sobre a Reclamante que se revelaram devassadores da sua vida privada e, de certa forma e em parte, difamatórios.
59. Ou seja, o julgamento do arguido GG transformou-se numa intrusão na vida privada da Reclamante, o que, independentemente do caráter indecoroso ou inofensivo dos factos, devassou a sua vida privada e familiar, direito humano fundamental tutelado pelo artigo 26.°, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, e pelo artigo 8.° da Convenção Europeia dos Direitos Humanos, enquanto direito a reservar a sua vida privada e a construir um espaço existencial livre de terceiros - “o direito a estar só” - ou “o interesse do indivíduo na sua privacidade, isto é, em subtrair-se à atenção dos outros, em impedir o acesso a si próprio ou em obstar à tomada de conhecimento ou à divulgação de informação pessoal”.
60. Tutela que abrange o direito à vida familiar, ou seja, o direito a organizar a sua vida pessoal e íntima como entender, a ser solteira ou casada, a namorar ou a não namorar, a viver sozinha ou acompanhada, a romper relações, a divorciar-se, etc., sem que essas opções sejam objeto de qualquer discriminação ou juízo de valor.
61. E, sobretudo, sem que essas opções se possam revestir de qualquer significado para o efeito de determinar a (alegada) influência da Reclamante na denúncia crime apresentada pelos pais da criança.
62. A tutela deste direito fundamental à privacidade e à vida familiar apenas sofre exceções, se tal for necessário para proteção do interesse público ou da segurança nacional e sem ultrapassar um critério de justa medida - exceções, manifestamente, não em causa neste processo, em que a Reclamante não foi arguida, nem vítima, nem testemunha.
63. Aliás, nem que, por absurdo, estivesse em causa, em relação à Reclamante, uma suspeita de, por exemplo, comissão do crime de denúncia caluniosa contra o arguido GG (e note-se que a única denúncia que teve lugar foi apenas aquela que foi feita pelos pais da menor, no exercício das suas responsabilidades parentais e nunca pela tia, aqui Reclamante), nunca o Tribunal poderia, mesmo num (hipotético) processo que contra a Reclamante tivesse sido instaurado a esse propósito, investigar factos da sua vida privada - estado civil e relações de namoro - ou qualquer preconceito homofóbico ou machista de suposta “aversão a homens” em torno da qual rondou toda a produção de prova. 
64. Tudo isto para dizer que, ao contrário daquilo que a Decisão Reclamada considera, a inquirição da testemunha BB não foi nem objetiva, nem respeitosa e nem muito menos adequada ao necessário esclarecimento dos factos sob julgamento no âmbito do processo n.º 541…...
65. Numa palavra: a conduta dos Participados situou-se nos antípodas daquilo que exigem os princípios da adequação e da proporcionalidade stricto sensu (artigo 18.º, n.º 2, Constituição da República Portuguesa).
66. Primeiro, porque o rumo que tomou a inquirição da testemunha BB se afastou daquilo que, através de tal diligência se deveria pretender apurar, mesmo considerando a ótica da defesa;
67. Segundo, porque, em consequência, a diligência foi claramente além da “justa medida” de lesão de direitos fundamentais da Reclamante que a descoberta da verdade material, a boa decisão da causa e a defesa dos interesses do arguido GG, no caso concreto, poderiam permitir.
68. Neste quadro de considerações é, pois, absolutamente indiferente e irrelevante saber se “em momento algum da inquirição se registaram, da parte dos Srs. Juízes, comentários, acintes e locuções jocosas ou intervenções desenquadradas da questão”, como a Decisão Reclamada sublinha.
69. In casu, o que definiu o caráter excessivo e abusivo e, nessa medida, desproporcional da inquirição não foram os termos aí utilizados, mas sobretudo o sentido que a mesma seguiu.
Por fim 
70. Refere a Decisão Reclamada que não se pode apontar qualquer tipo de ilícito disciplinar à conduta dos juízes participados, pelos termos utilizados no Acórdão proferido no âmbito do processo-crime n.º 541….., porquanto as expressões aí utilizadas (“tia que tem aversão a homens” ou similar), nomeadamente a páginas 12 e 15, se reconduzem a expressões utilizadas pelas testemunhas ao longo do julgamento, pelo que os juízes Participados, ao importarem-nas para o Acórdão, apenas responderam ao dever de fundamentação que sobre si impendia.
71. Assim, na página 7 da Proposta:
“não havendo dúvidas de que, páginas 12 e 15 do acórdão foi transcrita a expressão ‘aversão a homens’, tal expressão surge, no contesto daquele aresto, em sede de fundamentação da decisão da matéria de facto e como reprodução dos depoimentos em que foi utilizada.
Ou seja, tal expressão não corresponde a um juízo de valor ou sequer a unta afirmação empregue no acórdão por criação do tribunal, mas como algo que foi dito por dois declarantes que depuseram em julgamento e, assim, como explicitação dos termos em que foi prestado um elemento de prova relevante para a decisão da matéria de facto.
O emprego de tal expressão mais não traduz, assim, do que o cabal cumprimento, pelo tribunal, do dever de fundamentação das decisões judiciais prescrito na própria C.R.P. (...) e no C.P.P. (...), constituindo a ‘indicação’, num exercido de rigor e transparência, das provas relevantes para a formação da sua convicção” (com destaques nossos),
72. Não ignora a Participante que, na página 12 do Acórdão, os Participados descrevem o conteúdo da inquirição da testemunha BB e que, na página 15 do aresto, os mesmos aludem ao conteúdo da inquirição da testemunha CC.
73. Acontece que a crítica da Reclamante não se reconduz a este aspeto, salvo o devido respeito, tão superficial. Pretende, antes, salientar a razão que esteve por detrás da utilização de tal expressão (por demais criticável) no texto do Acórdão.
74. Ora, entende a Reclamante que o resumo que um Tribunal faça, numa sua decisão, do conteúdo do depoimento de uma testemunha, em cumprimento do dever de fundamentação, não necessita de referir tudo quanto tal testemunha haja referido, ponto por ponto, mas tão-só aquilo que essa testemunha haja referido com relevo para a discussão da causa.
75. Ora, conforme referido supra - para onde se remete sob pena de repetição - a discussão da vida e do modo de ser e estar da Reclamante é um tema alheio ao verdadeiro cerne da questão sub iudicio nos autos n.º 541…...
76. Por ser assim, não havia sequer razão para que os juízes Participados recordassem o que testemunhas disseram (falsamente) acerca de tal assunto.
77. Mas mais: ainda que os juízes Participados o quisessem fizer (o que não se compreende), certo é que os mesmos não deveriam ter dado palco a uma expressão como aquela que veio a ser efetivamente referida para caracterizar a Reclamante (a tal “aversão a homens”).
78. Ao fazê-lo, os Participados, mais do que se limitar a descrever o que alguém referiu, em julgamento, assumiram a autoria da expressão.
79. Foi, afinal de contas, a expressão que escolheram para, nas suas palavras, descrever o que outrem referira acerca da Reclamante.
80. E foi aqui que o Tribunal, formado pelos aqui Participados (também) errou.
81. Tal expressão - “aversão a homens” - reportada à aqui Reclamante, é desprovida de qualquer conteúdo fáctico, tendo, aliás, uma natureza preconceituosa e misógina.
82. Com efeito, acredita a Reclamante que os Participados, ao utilizarem a referida expressão, para a caracterizar, apenas a poderão ter feito assentar na perceção que tinham / têm quanto ao seu estado civil de solteira.
83. Tal constatação resulta, aliás, das perguntas feitas pelos Participados à irmã da Reclamante, a então testemunha BB, a propósito do estado civil daquela (questões referidas supra).
84. Bem como do palco que se deu às alegações (falsas e exorbitantes) de um primo da Reclamante, a aí testemunha CC, com quem não convive desde a adolescência - pessoa também citada no acórdão (cf. Documento n.º 4, pág. 15) - contra quem (adiante-se) foi apresentada queixa-crime por falsidade de testemunho e difamação agravada, por o mesmo, entre o mais, ter opinado que achava que a prima, a aqui Reclamante, havia sido sexualmente abusada na infância.
85. Neste contexto - e ainda que en passant -, importa deixar a nota de que o discurso adotado pelas testemunhas de defesa, no âmbito do processo-crime n.º 541/16.8PSPRT, integrou uma estratégia, montada pelo arguido e seu advogado, a qual passou por esgrimir preconceitos e falsidades contra a aqui Reclamante, destinados a desviar a atenção do depoimento da vítima Menor (desacreditando-o) para a vida privada e familiar da Reclamante.
86. Nesta estratégia, colaboraram, em conluio, o arguido (e o seu mandatário contra quem já foi apresentada queixa crime e disciplinar) e restantes testemunhas (mulher do arguido, filhos e primo por afinidade), para, assim, defenderem o arguido do risco de uma condenação estigmatizante para toda a família, aproveitando-se do trabalho cívico da Reclamante em campanhas contra o assédio sexual — e do facto de alguns movimentos considerarem que ela tem uma ideologia feminista radical - para fazerem crer o Tribunal que foi ela que influenciou a denúncia crime contra o arguido e que manipulou a Menor.
87. Tal estratégia visava, acima de tudo e com aquele objetivo último, despertar a curiosidade dos aqui Participados, que se deixaram manipular, para temas absolutamente alheios ao processo-crime que se discutia. 
88. De facto, a mal da realização da justiça no caso concreto, os Participados preferiram discutir a vida e o modo de ser e estar de uma pessoa alheia ao processo (a aqui Reclamante), do que se centrar na opinião da vítima do crime (a Menor) acerca dos factos objeto do processo que tinham em mãos.
89. Recentrando: o conceito usado no Acórdão - “tia que tem aversão a homens” - é manifestamente discriminatório, em função do género e do estado civil da Reclamante.
90. O mesmo é, de outra banda, devassador da sua vida privada e familiar, partindo de um estereótipo negativo das mulheres solteiras.
91. Quanto a este último aspeto, não será de somenos importância dizer, no presente contexto, que tal configuração da Reclamante é, de resto, proibida pela Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, adotada em Istambul, a 11 de maio de 2011 (nomeadamente, por força do artigo 12.°, n.º 13, e artigo 42.°, n.º 1, aplicável por maioria de razão), visto que tal Convenção vincula o Estado português à não utilização de expressões discriminatórias, bem como àquelas que se baseiem em estereótipos negativos das mulheres ou que promovam a sua inferioridade.
92. Trata-se, em suma e pelas razões referidas, de um Acórdão que, pelas palavras que utiliza, é, desta ótica, incompreensível e criticável.
93. Ademais, sempre importará reiterar que, se os aqui Participados tivessem a convicção de que era importante perceber o papel da aqui Reclamante na sua família, nomeadamente, na educação das crianças e, em concreto, para o cabal entendimento do depoimento da vítima Menor, teriam, forçosamente, de ter logrado a busca pela verdade material, convocando a aqui Reclamante para depor, ao abrigo do que permite o artigo 340.° do Código de Processo Penal.
94. Nessa sede, poderiam os Participados confrontar a Reclamante com as acusações que lhe fizeram o arguido e outros familiares e com os factos que o Tribunal (nas pessoas dos aqui Participados) julgasse serem pertinentes e necessários para a boa resolução da causa.
95. Sucede, porém, que os aqui Participados preferiram não o fazer, em prejuízo dos poderes que a lei processual penal lhes conferia e em prejuízo do próprio processo criminal que, ali, assumiu contornos que não lhe são próprios, nem expectáveis - mais próximos do “mexerico” e difamação gratuita de terceiros, do que da descoberta séria e competente da verdade material.
Posto tudo isto:
96. Os Participados sabiam, sem poder ignorar, que, da forma como agiram, atingiam a intimidade da vida privada da Reclamante, bem como a sua honra, consideração e bom nome, como pessoa, mulher e cidadã, sobretudo, na sua veste de tia, que ama e respeita os seus sobrinhos e sobrinhas acima de tudo neste mundo.
97. Os Participados, plenamente cientes dos deveres que sobre si impendiam (e impendem) por força do seu estatuto profissional, no exercício das suas funções enquanto Magistrados Judiciais, assumiram uma atitude manifestamente abusiva e que exorbitou o específico âmbito das suas funções.
98. Displicente, deliberada e levianamente, quiseram os Participados, sabendo que isso lhe estava legalmente vedado, atingir a intimidade da vida privada da Reclamante, assim como a respetiva honra e consideração.
99. Para além disto, os Participados “abandalham” o ambiente solene que deve ser um julgamento em tribunal com perguntas que fazem lembrar uma atitude “coscuvilheira” típica de um grupo de amigos ou vizinhos, numa “conversa de café”, sobre a vida privada de alguém que nunca esteve presente, contribuindo para promover uma imagem negativa dos tribunais junto dos cidadãos.
100. Já pensou este CSM com que imagem do tribunal fica a Reclamante, a sua família e amigos após esta devassa completamente injustificada? E o que concluirão os cidadãos, que desta devassa tenham conhecimento, sobre a forma como funcionam os tribunais? Mais: no caso de o CSM considerar lícito este comportamento, não estará a dar “carta branca” para que tudo se repita?
101. Nestes termos, os argumentos aduzidos apresentados pela Decisão Reclamada no sentido da desresponsabilização dos Participados não podem proceder.
102. Ao contrário daquilo que a Decisão Reclamada afirma, no final da sua página 7, é firme convicção da Reclamante, pelas razões apresentadas, que há elementos que permitem concluir que os Participados violaram deveres funcionais suscetíveis de os fazer incorrer em responsabilidade disciplinar.
São eles os seguintes:
III. DIREITO
103. Os artigos 81.° e ss. do EMJ preveem a responsabilidade disciplinar dos magistrados judiciais, determinando o artigo 82.° do diploma que “[c]onstituem infração disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os atos ou omissões da sua vida pública ou que nela se repercutam incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções” (com destaques nossos).
104. Acresce que o artigo 32.º do EMJ prescreve a aplicação subsidiária aos magistrados judiciais do regime da função pública, relativamente a deveres, incompatibilidades e direitos, pelo que terá aplicação e interesse, in casu, a LGTFP.
105. O artigo 183.º da LGTFP estipula o seguinte: “Considera-se infração disciplinar o comportamento do trabalhador, por ação ou omissão, ainda que meramente culposo, que viole deveres gerais ou especiais inerentes à função que exerce” (com destaques nossos).
106. Ora, o elenco dos deveres a que os trabalhadores que exercem funções públicas (aí incluídos os magistrados judiciais) estão adstritos, encontra-se plasmado nos artigos 70.º e 73.º da LGTFP e estes preceitos ditam o seguinte:
Artigo 70.º
Deveres gerais do empregador público e do trabalhador
1 - O empregador público e o trabalhador, no cumprimento das respetivas obrigações, assim como no exercício dos correspondentes direitos, devem asir de boa-fé.
2 - O empregador público e o trabalhador devem colaborar na obtenção da qualidade do serviço e da produtividade, bem como na promoção humana, profissional e social do trabalhador» (com sublinhados nossos).
Artigo 73.º
Deveres do trabalhador
1 - O trabalhador está sujeito aos deveres previstos na presente lei, noutros diplomas legais e regulamentos e no instrumento de regulamentação coletiva de trabalho que lhe seja aplicável.
2 - São deveres gerais dos trabalhadores:
a)   O dever de prossecução do interesse público:
b)   O dever de isenção;
c)   O dever de imparcialidade:
d)   O dever de informação;
e)   O dever de zelo;
f)   O dever de obediência;
g)   O dever de lealdade;
h)   O dever de correção:
i)    O dever de assiduidade;
j)    O dever de pontualidade.
3 - O dever de prossecução do interesse público consiste na sua defesa, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.
4 - O dever de isenção consiste em não retirar vantagens, diretas ou indiretas, pecuniárias ou outras, para si ou para terceiro, das funções que exerce.
5 - O dever de imparcialidade consiste em desempenhar as funções com equidistância relativamente aos interesses com que seja confrontado, sem discriminar positiva ou negativamente qualquer deles, na perspetiva do respeito pela igualdade dos cidadãos.
6 - O dever de informação consiste em prestar ao cidadão, nos termos legais, a informação que seja solicitada, com ressalva daquela que, naqueles termos, não deva ser divulgada.
7 - O dever de zelo consiste em conhecer e aplicar as normas legais e regulamentares e as ordens e instruções dos superiores hierárquicos, bem como exercer as funções de acordo com os objetivos que tenham sido fixados e utilizando as competências que tenham sido consideradas adequadas.
8 - O dever de obediência consiste em acatar e cumprir as ordens dos legítimos superiores hierárquicos, dadas em objeto de serviço e com a forma legal.
9 - O dever de lealdade consiste em desempenhar as funções com subordinação aos objetivos do órgão ou serviço.
10 - 0 dever de correção consiste em tratar com respeito os utentes dos órgãos ou serviços e os restantes trabalhadores e superiores hierárquicos.
11 - Os deveres de assiduidade e de pontualidade consistem em comparecer ao serviço regular e continuamente e nas horas que estejam designadas.
12 - 0 trabalhador tem o dever de frequentar ações de formação e aperfeiçoamento profissional na atividade em que exerce funções, das quais apenas pode ser dispensado por motivo atendível.
13 - Na situação de requalificação, o trabalhador deve observar os deveres especiais inerentes a essa situação».
Ora,
107. Tendo em conta a factualidade atrás exposta, dúvidas não podem restar de que, no âmbito do processo-crime n.º 541….., os juízes Participados não lograram observar os deveres gerais que sobre si impendiam (e impendem), no sentido de agir de boa-fé e de promover e pugnar pela qualidade do serviço.
108. Por outro lado, inobservados ficaram, ainda e pelo menos, os deveres especiais de prossecução do interesse público, de imparcialidade, de zelo e de correção.
109. Assim foi, em suma, devido à forma inconsequente, desrespeitosa, indiscreta, devassadora e, em certa medida, difamatória como se referiram e como deixaram que se referissem à Reclamante, no âmbito do processo n.º 541……
110. E, mais precisamente, aquando da inquirição da aí testemunha BB e aquando da elaboração de resumos relativos à inquirição de tal testemunha e da testemunha CC em sede de Acórdão.
111. Sem atender ao facto de não ser a vida pessoal/amorosa e a personalidade da Reclamante o objeto da discussão em tais autos
112. E, bem assim, sem atender à circunstância de a Reclamante nem sequer ter sido chamada ao processo, para se pronunciar - a que título fosse - sobre o que se dizia a seu respeito.
IV. SINTETIZANDO:
A. Através da presente Reclamação, a Participante, aqui Reclamante, visa reverter a decisão de arquivamento, proferida no dia 10.07.2019 pelo Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, no âmbito dos presentes autos disciplinares (doravante, “Decisão Reclamada”).
B. A Decisão Reclamada assenta na ideia central de que a personalidade, as convicções e o modo de ser e estar da Participante tinham que ser explorados pelos Participados, no âmbito do processo n.° 541…., da forma como foram, porque isso se revelava necessário à descoberta da verdade material e, nessa medida, ao crreto julgamento da causa, já que a defesa do arguido assentava na ideia de que a Participante influenciava negativamente os seus sobrinhos, aí incluída a Menor, vítima do crime sob análise, podendo tal influência ter levado a que esta fantasiasse um abuso que não aconteceu.
C. Por assentar neste argumento central - que depois desenvolve a Decisão Reclamada revela o seu pecado capital: a falta de coerência lógica e, por aí, a imperatividade da sua necessária revogação.
D. Em primeiro lugar, mesmo da ótica da defesa (e como a Decisão Reclamada não desmente), o ponto essencial para a boa decisão da causa, não passava por saber se a Reclamante tinha ou não a dita “aversão a homens” - por si só, esta realidade era absolutamente irrelevante mas sim se a mesma influenciava negativamente os seus sobrinhos e, nessa medida, a Menor. A ideia (falsa) da dita aversão apenas serviu (mal) para “apimentar” o tema da alegada influência.
E. Se a ideia era seguir a lógica (absurda) da defesa, então importaria que, no processo- crime, a discussão tivesse passado, apenas e só, pelo apuramento de concretas conversas, (supostamente) desapropriadas, que a Reclamante haja tido com a Menor e / ou com demais sobrinhos e que demonstrassem uma influência negativa da mesma em relação a estes, e não pela centralização da discussão na sua (suposta) “aversão a homens” da Reclamante, com o debate acerca das suas convicções, do seu modo de ser e estar e até do histórico das suas relações amorosas.
F. A Decisão Reclamada tem, assim, contra si a argumentação que ela própria apresenta no sentido do arquivamento do presente processo. Isto porque nem sequer logra destacar corretamente o âmbito que a discussão do processo-crime em apreço, por referência à argumentação (absurda) utilizada pela defesa do Arguido GG, deveria ter assumido, retirando daí as devidas consequências. 
G. Em segundo lugar, nem sequer é certo que a personalidade da aqui Reclamante tivesse que ser o tema central do processo-crime n.º 541….. e que as discussões tidas em julgamento tivessem que se desenrolar em torno de tal tema, pois, se realmente assim fosse, os Participados teriam que ter considerado igualmente essencial / central no processo ouvir a própria Reclamante, por forma a percecionar a sua personalidade e a sua maneira de ser - diligência a que poderiam ter dado azo com recurso ao expediente constante do artigo 340.° Código de Processo Penal.
H. O facto de tal diligência não ter tido lugar tem a virtualidade de demonstrar, preto no branco, que a aqui Reclamante não era, nem nunca foi, para o Tribunal, uma figura central do processo n.º 541…., como agora a Decisão Reclamada pretende sugerir. Este foi, apenas, um argumento alegado pelos Participados, na sua defesa, no âmbito dos presentes autos, e que, de forma algo acrítica (porquanto foi desconsiderando o raciocínio ora explanado), foi acolhido na Decisão Reclamada.
I. A Decisão Reclamada manifesta-se, ainda, no sentido de que, em todo o caso, a abordagem dos Participados, na inquirição da testemunha BB, no âmbito do processo n.º 541…., foi objetiva, respeitosa e adequada ao necessário esclarecimento dos factos aí sob julgamento.
J. Trata-se de uma afirmação totalmente desligada da realidade, porquanto o modo como os Juízes Participados agiram, na inquirição da testemunha BB, foi absolutamente desadequado e desproporcional e, por essa via, por demais abusivo.
K. Se os Participados pretendiam, no fundo, perceber se o episódio objeto dos autos criminais tinha ou não sido fruto de invenção da Menor, nomeadamente por influência da Participada, era absolutamente supérfluo e, nessa medida, desproporcional, esclarecer a imputação da ideia de “aversão a homens” dirigida à aqui Reclamante.
L. Mas mesmo que assim não se entendesse, certo é que, sobretudo, não era preciso “esmiuçar” a vida da Reclamante da forma como a mesma foi esmiuçada, indo ao ponto de indagar e de permitir que se indagasse a testemunha BB (i) sobre se o (suposto) “problema” da “aversão a homens” de que “padece” a Reclamante era ou não congénito, (ii) sobre os noivados que a mesma havia rompido ou havia deixado de romper ou (iii) sobre o histórico dos seus relacionamentos amorosos.
M. Os Participados foram movidos por aguçada curiosidade e indiscrição - sem qualquer relevo substancial para o caso que tinham em mãos negligenciando na sensatez e no decoro pelos quais a Magistratura Judicial sempre deve pautar no exercício da sua função.
N. Permitiram e quiseram os Participados que o nome, atitudes (que nem sabem se são verosímeis) e vida íntima da Reclamante fossem debatidos e comentados em praça pública e nas suas costas, de forma distorcida, pouco rigorosa e, sempre, com um objetivo vexatório e de intromissão, sem que a mesma tivesse a mínima oportunidade de se defender.
O. Tratou-se de uma postura por demais condenável, mas cuja censurabilidade é adensada se se considerar que os Participados assim agiram, cientes da qualidade profissional que assumiam (e das exigências de comportamento que isso implica) e cientes da qualidade profissional da Participante, aqui Reclamante, que, entre o mais, é sua colega de profissão.
P. Neste quadro de considerações é absolutamente indiferente e irrelevante constatar (ou não) se se registaram, da parte dos Participados, comentários, acintes c locuções jocosas ou intervenções desenquadradas da questão. In casu, o que definiu o caráter excessivo e abusivo e, nessa medida, desproporcional da inquirição não foram os termos aí utilizados, mas sobretudo o próprio sentido que a mesma seguiu.
Q. Em último lugar, refere a Decisão Reclamada que não se pode apontar qualquer tipo de ilícito disciplinar à conduta dos juízes participados, pelos termos utilizados no Acórdão proferido no âmbito do processo-crime n.º 541…., porquanto as expressões aí utilizadas (“tia que tem aversão a homens” ou similar), nomeadamente a páginas 12 e 15, se reconduzem a expressões utilizadas pelas testemunhas ao longo do julgamento, pelo que os juízes Participados, ao importarem-nas para o Acórdão, apenas respondiam ao dever de fundamentação que sobre si impendia.
R. Não ignora a Participante que, na página 12 do Acórdão, os Participados descrevem o conteúdo da inquirição da testemunha BB e que, na página 15 do aresto, os mesmos aludem ao conteúdo da inquirição da testemunha CC.
S. No entanto, partindo, por um lado, do pressuposto de que o resumo que um Tribunal faz, numa sua decisão, do conteúdo do depoimento de uma testemunha, em cumprimento do dever de fundamentação, não necessita de referir tudo quanto a mesma referiu, ponto por ponto, mas tão-só aquilo que tal testemunha referiu com relevo para a discussão dos factos sob julgamento, e considerando, por outro lado, que a discussão da vida e do modo de ser e estar da Reclamante é um tema alheio ao verdadeiro cerne da questão sub iudicio nos autos n.º 541/16.8PSPRT, não pode a Reclamante deixar de concluir que não havia sequer razão para que os juízes Participados recordassem o que testemunhas disseram (falsamente) acerca de tal assunto.
T. Ainda que os juízes Participados o quisessem fizer (opção que não se compreende), certo é que os mesmos não deveriam ter dado palco a uma expressão como aquela que veio a ser efetivamente referida para caracterizar a Reclamante (a tal “aversão a homens”). Ao fazê-lo, os Participados, mais do que se limitar a descrever o que alguém referiu em julgamento, assumiram a autoria da expressão, sendo essa afinal de contas, a expressão que escolheram para, nas suas palavras, descrever o que outrem referira acerca da Reclamante. 
U.  A ideia usada no Acórdão - que a Reclamante tem “aversão a homens” - é manifestamente discriminatória, em função do género e do estado civil da Reclamante, sendo, de outra banda, devassadora da sua vida privada e familiar, partindo de um estereótipo negativo das mulheres solteiras.
V. Trata-se de um Acórdão que, pelas palavras que utiliza, é por demais incompreensível e criticável.
W. Os Participados sabiam, sem poder ignorar, que, da forma como agiram, atingiam a intimidade da vida privada da Reclamante, bem como a sua honra, consideração e bom nome, como pessoa, mulher e cidadã, sobretudo, na sua veste de tia.
X. Os Participados, plenamente cientes dos deveres que sobre si impendiam (e impendem) por força do seu estatuto profissional, no exercício das suas funções enquanto Magistrados Judiciais, assumiram uma atitude manifestamente abusiva e que exorbitou o específico âmbito das suas funções.
Y. Displicente, deliberada e levianamente, quiseram os Participados, sabendo que isso lhe estava legalmente vedado, atingir a intimidade da vida privada da Reclamante, assim como a respetiva honra e consideração.
Z. Para além disto, os Participados “abandalham” o ambiente solene que deve ser um julgamento em tribunal com perguntas que fazem lembrar uma atitude “coscuvilheira” típica de um grupo de amigos ou vizinhos, numa “conversa de café”, sobre a vida privada de alguém que nunca esteve presente, contribuindo para promover uma imagem negativa dos tribunais junto dos cidadãos.
AA. Já pensou este CSM com que imagem do tribunal fica a Reclamante, a sua família e amigos após esta devassa completamente injustificada? E o que concluirão os cidadãos, que desta devassa tenham conhecimento, sobre a forma como funcionam os tribunais? Mais: no caso de o CSM considerar lícito este comportamento, dos participados não estará a dar “carta branca” para que se repita? 
BB. Nestes termos, e ao contrário daquilo que a Decisão Reclamada afirma, há elementos que permitem concluir que os Participados violaram os deveres gerais que sobre si impendiam (e impendem), no sentido de agir de boa-fé e de promover e pugnar pela qualidade do serviço e, bem assim, os deveres especiais de prossecução do interesse público, de imparcialidade, de zelo e de correção (artigos 70.°, n.ºs 1 e 2, e 73.°, n.ºs 1 e 2, alínea a), c), e) e h), e n.ºs 3, 5,7 e 10, e 183.° LGTFP ex vi artigo 82.° EMJ), deveres funcionais estes suscetíveis de os fazer incorrer em responsabilidade disciplinar.
Nestes termos e nos demais de direito, cujo Douto suprimento de V. Exas. se invoca, deve a presente Reclamação ser recebida e, por conseguinte, deve a Decisão Reclamada ser revogada e substituída por outra que considere os Participados disciplinarmente responsáveis.
Mais requer a Reclamante que a presente Reclamação seja instruída com todos os elementos do processo disciplinar, por tal se afigurar relevante para a boa decisão da causa.
A Reclamante, (cf. doc. D junto à petição inicial)
6)    No âmbito do procedimento referido em 2), a entidade demandada, em sessão plenária datada de 03-12-2019, deliberou por unanimidade concordar com o projeto apresentado pela Srª. Vogal, Dra. LL, de apreciação da reclamação referida em 5), com o seguinte teor:
Processo …..388
“Reclamante: AA
Delibera, em Plenário, o Conselho Superior da Magistratura:
1. Relatório
No seguimento da notificação que lhe foi efetuada da decisão proferida em 10 de julho de 2019 pelo Exm.º Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura que, concordando com a proposta do Exm.º Senhor Vogal do Distrito Judicial …., determinou o arquivamento do procedimento porquanto “não se vislumbra qualquer infração disciplinar por parte dos Exm.ºs Srs. Juízes visados na participação”, a Exm.ª Sr.ª Dr.ª AA, reclamou da mesma, por considerar que, ao contrário do entendido pela decisão reclamada, os participados violaram os deveres gerais que sobre si impendiam no sentido de agir de boa fé e de promover e pugnar pela qualidade do serviço e bem assim, os deveres especiais de prossecução do interesse público, de imparcialidade, de zelo e de correção (art.s 70.º n.ºs 1 e 2 e 73.º n.ºs 1 e 2 alíneas a), c) e h), nºs 3, 5, 7 e 10 e 183.º da LGTFP ex vi art. 82.º do EMJ).
Fundamenta tal conclusão, alegando, em síntese, que a decisão reclamada padece de falta de coerência lógica, uma vez que tem contra si a argumentação que ela própria apresenta no sentido do arquivamento do presente processo, não logrando identificar corretamente o concreto âmbito da discussão que o processo crime em apreço, por referência à argumentação utilizada pela defesa do arguido, deveria ter assumido.
Com efeito, segundo alega, centrando-se esta defesa, como o afirma a decisão reclamada, em que a reclamante influenciava os sobrinhos, entre eles a menor, incutindo ideias mirabolantes sobre perigos e contactos com homens, o ponto essencial para a boa decisão da causa não passava por saber se a reclamante tinha ou não “aversão a homens”, mas se a mesma influenciava negativamente os seus sobrinhos e, nessa medida, a menor.
Deste modo, o enfoque do tribunal deveria ter apontado apenas para a resposta dos seguintes temas: - A aqui reclamante influenciava ou não os sobrinhos, entre eles, a menor; - A aqui reclamante incutia ou não, desde cedo, ideias mirabolantes às crianças sobre perigos de contactos com homens?
No entanto, os participados reconduziram a produção de prova, pura e simplesmente, ao apuramento da suposta “aversão a homens” da reclamante, abordando-se, sem limites e para além de toda a razoabilidade, as convicções da reclamante, o seu modo de ser e estar e até o histórico das suas relações amorosas.
Mais alega que a decisão reclamada é contraditória nos seus próprios termos, uma vez que, entendendo que era necessário indagar sobre o modo de ser da reclamada, em face dos argumentos invocados pela defesa, deveria o Tribunal ter considerado essencial/central, no processo, ouvir a reclamante por forma a percecionar a sua personalidade e a sua maneira de ser, com respeito ao princípio da imediação e da oralidade. Não o tendo feito, significa que a reclamante não era uma figura central do processo crime, como defendido pela decisão reclamada, a significar que os participados exorbitaram flagrantemente aquilo que era esperado do Tribunal.
Insurge-se ainda a reclamante quanto ao entendimento da decisão reclamada de que a abordagem dos participados, aquando da inquirição da testemunha BB, foi objetiva, respeitosa e adequada, quando a mesma foi desproporcionada e abusiva, pois exploraram ideias que em nada contribuíram para a melhor ou pior decisão da causa submetida a julgamento, designadamente a suposta ideia de “aversão a homens” por parte da reclamante, quando o que se pretendia era tão somente saber se a reclamante foi ou não uma influência negativa na menor, não sendo, por isso, necessário esmiuçar a vida da reclamante, como foi feito, tendo os participados sido movidos por aguçada curiosidade e indiscrição sem qualquer relevo substancial para o caso que tinham em mãos. Permitiram, desta forma, os participados que o nome, atitudes e vida íntima da reclamante fossem debatidos e comentados em praça pública e nas suas costas, de forma distorcida, pouco rigorosa e sempre com um objetivo vexatório e de intromissão, sem que a mesma tivesse a mínima oportunidade de se defender.
Por último, no que se refere às expressões utilizadas no acórdão como “tia que tem aversão a homens”, entendida pela decisão reclamada como não configurando qualquer ilícito disciplinar pelos participados, porque se reconduzem a expressões utilizadas pelas testemunhas, entende a reclamante que o resumo que o tribunal faz do conteúdo de um depoimento, não necessita de referir tudo quanto a testemunha haja dito para que seja respeitado o dever de fundamentação. Tendo os participados utilizado tal expressão assumiram a mesma, sendo essa a que escolheram para, nas suas palavras, descrever o que outrem referia acerca da reclamante.
Conclui que a ideia usada no Acórdão, que a reclamante tem “aversão a homens” é manifestamente discriminatória, em função do género e do estado civil da reclamante, sendo ainda devassadora da sua vida privada e familiar partindo de um estereótipo negativo das mulheres solteiras. Os participados sabiam que agindo como agiram, atingiam a intimidade da vida privada da reclamante, bem como a sua honra, consideração e bom nome, como pessoa, mulher e cidadã, sobretudo na sua veste de tia. Mais acrescenta que os participados “abandalham” o ambiente solene que deve ser um julgamento em tribunal com perguntas que fazem lembrar uma atitude “coscuvilheira” típica de um grupo de amigos ou vizinhos, numa conversa de café, sobre a vida privada de alguém que nunca esteve presente, contribuindo para promover uma imagem negativa dos tribunais e dos cidadãos.
*
Os participados, ouvidos a respeito dos factos que lhe eram imputados na participação apresentada pela aqui reclamante, negaram a prática de qualquer conduta que integrasse a violação de qualquer dever funcional que os fizesse incorrer em responsabilidade disciplinar, pelas seguintes razões, enunciadas na proposta elaborada pelo Exmº Senhor Vogal do Distrito Judicial …..:
- O arguido, na contestação que apresentou no processo em questão na participação desenvolveu, como linha principal de defesa, a influência que o contexto familiar da vítima teve nos relatos produzidos por esta;
- Esta linha de defesa foi depois levada à prática em audiência de julgamento, quer no âmbito das declarações do arguido, quer no âmbito das inquirições de testemunhas, uma das quais a especialmente visada na participação;
- A audiência de julgamento, em processo cujo objeto se prendia com criminalidade especialmente violenta, decorreu com exclusão da publicidade, pelo que tudo quanto nela se passou está sob segredo de justiça;
- Contrariamente ao relatado na participação, a intervenção de todos em audiência de julgamento pautou-se, não pela intenção de devassa da vida familiar da participante, mas exclusivamente pelo dever de apurar os factos submetidos a julgamento com rigor e imparcialidade, visando a descoberta da verdade e com respeito pelo direito de defesa do arguido;
- Acresce que, no que diz respeito ao acórdão subscrito por todos, em lado algum do mesmo é indicado o nome da participada ou outro elemento suscetível de revelar a sua identificação;
- Por outro lado, as duas referências nele feitas à expressão a que a participante alude surgem no contexto do relato feito em audiência de julgamento por duas testemunhas inquiridas e não como afirmação ou juízo próprio dos participados.
2. Apreciação
Como supra se aludiu, o Exm.º Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura, concordando com a proposta do Exm.º Senhor Vogal do Distrito Judicial ...., determinou o arquivamento do procedimento por considerar que não se vislumbrava qualquer infração disciplinar por parte dos Exm.ºs Srs. Juízes visados na participação.
Em causa está a conduta dos Exm.ºs Juízes que compuseram o Tribunal Coletivo no julgamento do processo 541…., em que era arguido um cunhado da Exm.ª Reclamante, conduta essa no âmbito da audiência de julgamento que teve lugar no dia 24 de setembro de 2018, bem como no Acórdão posteriormente subscrito por todos.
Cumpre apreciar e decidir.
Em consonância com o disposto no art. 202.º n.º 2 da Constituição da República Portuguesa (CRP) e com o art. 3.º n.º 1 do Estatuto dos Magistrados Judiciais (EMJ), a Magistratura Judicial tem por função administrar a justiça, competindo-lhe assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos de interesses públicos e privados.
Resulta ainda do disposto no art. 216.º n.º 2 da CRP que os juízes não podem ser responsabilizados pelas suas decisões, ressalvando, contudo, as exceções consignadas na lei.
Por sua vez, o art. 5.º do EMJ reafirma o mesmo princípio de irresponsabilidade mas logo estipula que só nos casos especialmente previstos na lei os magistrados judiciais podem ser sujeitos, em razão do exercício das suas funções, a responsabilidade civil, criminal ou disciplinar.
E de acordo com o disposto no art. 82.º do EMJ, constituem infração disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais e os atos ou omissões da sua vida pública, ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções.
Significa pois que, apesar da consagração geral da sua irresponsabilidade, os juízes estão sujeitos a diversos deveres profissionais, designadamente os previstos nos artigos 8.º e ss do EMJ, bem como os que, com adaptações, resultam da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas (Lei n.º 35/2014, de 20 de junho) (LGTFP), de aplicação subsidiária, como determina o art. 131.º do EMJ.
Resulta do citado art. 82.º que os elementos objetivos se traduzem:
- Nos atos violadores dos deveres profissionais dos magistrados judiciais, sejam os enumerados no EMJ, sejam os enumerados na Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas;
- Ou nos atos ou omissões da vida pública ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício da função.
A par destes deveres específicos que impendem sobre a magistratura judicial, sobre os magistrados judiciais impendem ainda todos os outros deveres genéricos que obrigam qualquer servidor público, deles se destacando, como relevo para o presente processo, o dever de prossecução do interesse público, o dever de imparcialidade, o dever de zelo e de correção (cf. art.s 73.º n.ºs 2 alíneas a), c), e) e h), concretizados nos nºs 3, 5, 7 e 10 LGTFP).
Como referido no AC.STJ 04-07-2019  o dever de prossecução do interesse público consiste na sua defesa, no respeito pela Constituição, pelas leis e pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadão, sendo entendido nas palavras de PAULO VEIGA E MOURA como o dever de defender esse mesmo interesse público, o que aponta para a obrigação do funcionário nortear toda a sua atuação no sentido de prosseguir aquele interesse, adotando comportamentos que sejam exigíveis a esse fim e abstendo-se de toda e qualquer atuação que comprometa a sua realização. Mais acrescenta este aresto, com relevo também para a definição dos contornos do dever de imparcialidade, que não obstante o “elevado grau de indeterminação” de que se reveste o conceito de interesse público, não subsistem quaisquer dúvidas, de que, para além do dever funcional da imparcialidade que, nas suas vertentes objetiva e subjetiva, enforma toda a atividade jurisdicional do juiz, a compreensão externa da sua imparcialidade é (…) um bem jurídico a tutelar, na medida em que a compreensão/ideia que os cidadãos têm da imparcialidade do juiz constitui um dos pilares fundamentais da confiança que depositam na administração da justiça.
Tendo presente que a função primordial da judicatura se traduz na administração da justiça – artigo 3.º n.º 1 do EMJ – impõe-se que o juiz se assegure que a confiança dos cidadãos no funcionamento dos tribunais e a imagem global do poder judicial não seja afetada pelo seu desempenho ou comportamento.
No que respeita ao dever de zelo, com as necessárias adaptações decorrentes do estatuto de soberania que é constitucionalmente deferido aos Tribunais é ele definido no n.º 7 do art. 73.º da LGTFP consiste em conhecer e aplicar as nomas legais e regulamentares e as ordens e instruções dos superiores hierárquicos, bem como exercer as funções de acordo com os objetivos que tenham sido fixados e utilizando as competências que tenham sido consideradas adequadas.
Por sua vez, o dever de correção consiste em tratar com respeito os sujeitos e intervenientes processuais, outros magistrados, advogados, outros profissionais forenses, funcionários judiciais e público em geral (art. 73.º n.º 10 da LGTFP).
Ou seja, nas suas relações profissionais, o Juiz deve usar urbanidade cordialidade, respeito e polidez.
Aqui chegados, importa sublinhar, quanto ao âmbito das competências do Conselho Superior da Magistratura, que este é o órgão de gestão e disciplina da magistratura judicial (art. 136.º do EMJ) não sendo um Tribunal ou instância de recurso ou de revisão de decisões judiciais, a significar, portanto, que não pode interferir nas decisões judiciais, sob pena de violar o princípio constitucional da independência dos Tribunais e dos Juízes.
Não cabe, assim, ao Conselho Superior da Magistratura pronunciar-se sobre tais decisões ou analisar a sua conformidade com o conteúdo dos processos.
Analisada a reclamação em apreço, a mesma centra-se essencialmente na ausência de crítica por parte da decisão reclamada na forma como foi conduzida a audiência de julgamento, designadamente na inquirição da testemunha BB cujo enfoque se deveria ter traduzido não em indagar se a reclamante tinha ou não “aversão a homens”, como foi feito, mas em saber se a mesma influenciava negativamente ou não os seus sobrinhos, incutindo-lhes ideias sobre perigos de contactos com homens.
Mais se insurge quanto à ausência de crítica da decisão reclamada quanto à forma como foi redigido o acórdão, a qual entendeu que a expressão “tia que tem aversão a homens” foi utilizada citando certos depoimentos, o que no entender da reclamante, era desnecessário para cumprimento do dever de fundamentação.
Estas discordâncias, pela banda da reclamante, quanto à forma como foi conduzida a audiência de julgamento e quanto à forma como foi redigido o acórdão, sendo naturalmente legítimas, não deixam, no entanto, de ser discordâncias que têm como objeto direto a atividade jurisdicional e essa atividade, em cumprimento da Lei e da Constituição, não pode ser sindicada ou apreciada pelo CSM. E ao CSM, naturalmente, impõem-se o cumprimento da Lei e da Constituição e o respeito pelas competências de cada órgão, concretamente e também pelo órgão de soberania Tribunal, designadamente pela garantia de independência que lhe é constitucionalmente garantida (cf. art. 203.º da CRP).
Ora, a atuação dos Exm.ºs Juízes participados, na audiência de julgamento, tal como descrita pela Exm.ª Reclamante não indicia a prática de qualquer infração disciplinar, antes se enquadrando no âmbito dos seus poderes de direção do ato processual em que participavam, nos termos do disposto nos art.ºs 322.º e 323.º do Código de Processo Penal. Com efeito, tal como referido na proposta apresentada pelo Exm.º Sr. Vogal do Distrito Judicial .... e aceite pela própria reclamada, em face da linha de defesa apresentada pelo arguido, tornava-se necessário debater o modo de ser da Exm.ª Reclamante e a eventual influência da mesma na sobrinha comum com o arguido. Em momento algum se pode descortinar na transcrição apresentada na participação, e que se encontra anexa, qualquer atitude vexatória ou discriminatória da vida privada da Exm.ª Reclamante, cuja identidade foi salvaguardada no acórdão proferido, sendo certo que a audiência de julgamento teve lugar com exclusão de publicidade. Em momento algum se vislumbra que os Exm.ºs Juízes, no decurso do julgamento, tenham assumido qualquer atitude intrusiva na vida privada da Exm.ª Reclamante, para além do estritamente necessário ao que competia apurar, a saber a alegada influência da mesma na sobrinha. Por último, em momento algum se vislumbra também que os Exm.ºs Juízes participados tenham tido ou permitido que se tivessem tido atitudes menos dignas e desrespeitosas quer dos intervenientes quer de terceiros.
Em suma, em momento algum os Exm.ºs Juízes participados, no uso dos poderes que constitucionalmente e legalmente lhes cabiam de direção da audiência de julgamento assumiram qualquer conduta que possa constituir um ilícito disciplinar e, nessa sede, sindicável pelo CSM. Por todo o exposto, considera-se que as questões em apreço têm natureza jurisdicional, estando nessa medida fora da competência do CSM e, em conformidade, mantém-se a decisão impugnada e indefere-se a presente reclamação.
3. Decisão:
Em conformidade com o que se deixou dito, deliberam os membros que compõem o Plenário do Conselho Superior da Magistratura julgar improcedente a reclamação apresentada pela Exm.ª Sr.ª Dr.ª AA. (cf. doc. B junto à petição inicial)”.

II. 4. Do Direito

 

1. A Autora/AA, Juíza ....... intentou a presente ação administrativa de impugnação do ato praticado pelo Senhor Vice-Presidente do Conselho Superior da Magistratura de 10 de Julho de 2019 que arquivou a participação disciplinar contra os Juízes de direito, DD, EE e FF, e da deliberação que lhe sucedeu do Plenário do Conselho Superior da Magistratura de 3 de Dezembro de 2019, no âmbito da qual se decidiu o seguinte: “Em conformidade com o que se deixou dito, deliberam os membros que compõem o plenário do Conselho Superior da Magistratura julgar improcedente a reclamação apresentada pela Exª Sr.ª AA”.

A Autora/AA associou ao pedido impugnatório (anulação dos atos) um pedido condenatório preciso, qual seja, o da “condenação do CSM a praticar novo ato administrativo que julgue procedente a participação disciplinar apresentada pela aqui autora contra os juízes participados, daí extraído todas as legais consequências”, donde, não se antolha difícil distinguir quais sejam essas consequências: pretende a Autora/AA, bem vistas as coisas, que este Tribunal condene a entidade demandada a instaurar o procedimento disciplinar contra os magistrados visados na sua participação.

No domínio das ações de condenação à prática de ato devido, os poderes de pronúncia do tribunal são aqueles que vêm consagrados no artigo 71.º do CPTA, aplicável ex vi artigos 166.º, n.º 2, 169.º e 173.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, segundo o qual, “ainda que o requerimento apresentado não tenha obtido resposta ou a sua apreciação tenha sido recusada, o tribunal não se limita a devolver a questão ao órgão administrativo competente, anulando ou declarando nulo ou inexistente o eventual ato de indeferimento, mas pronuncia-se sobre a pretensão material do interessado, impondo a prática do ato devido” (n.º 1), esclarecendo, logo de seguida, que “quando a emissão do ato pretendido envolva a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível, o tribunal não pode determinar o conteúdo do ato a praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do ato devido” (n.º 2).

A questão que preliminarmente importa dilucidar, por conseguinte, é saber se ao mandar arquivar a participação da Autora/AA, não prosseguindo a perseguição disciplinar aos magistrados participados, a entidade demandada atuou no exercício de poderes estritamente vinculados ou, ao invés, no exercício da usualmente designada “discricionariedade administrativa”.

Eis o escopo da breve análise que se segue.

2. No domínio do direito disciplinar surpreendem-se inúmeras manifestações da formulação de valorações próprias da função administrativa ou da margem de “livre” decisão.

Desde logo, e com manifesto interesse para a economia da presente decisão, é defendida a existência de um juízo de oportunidade na própria instauração do procedimento disciplinar. É já longa a tradição jurídica entre nós que vai nesse sentido.

Assim, já Marcello Caetano defendia que, “ao contrário da repressão penal, que deve ser exercida sempre que se verifique a existência de um crime, a repressão disciplinar só tem lugar quando, segundo o critério dos chefes, a vantagem da punição do funcionário seja maior para a boa ordem do serviço que o esquecimento da falta” (Do Poder Disciplinar, 1932, Coimbra, Imprensa da Universidade, página 44).

No mesmo sentido, António Esteves Fermiano Rato, a propósito da “discricionariedade do detentor do poder disciplinar”, sustentou que “esta discricionariedade pode levar quem tem o poder de punir a entender que este não deve ser exercido pelas mais hipotéticas razões dentro de um quadro razoável da natureza e gravidade dos factos e do prejuízo causado ao serviço onde se integra o arguido” (“Processo disciplinar”, em Dicionário Jurídico da Administração Pública, volume vi, Lisboa, Atlântida Editora, 1994, página 541).

Outras sensibilidades doutrinárias afloraram a ideia de que estamos perante um princípio de oportunidade temperado ou “discricionariedade vinculada”.

Seguindo aqui de perto a exposição de Ana Fernanda Neves (O Direito Disciplinar da Função Pública, volume II, 2007 (dissertação de doutoramento, inédito, disponível e acessível para consulta online na presente data in https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/164/2/ulsd054618_td_vol_2.pdf, pp. 344 e passim), diremos que a decisão em causa é condicionada por alguns limites jurídicos. São eles os seguintes: i) as regras de competência para instaurar o procedimento e para punir; ii) o papel do participante do procedimento (que deve ser ouvido pelo instrutor e deve ser notificado da decisão de não instauração); e iii) a necessária formalização e exteriorização dos motivos da decisão. A estas acrescentaremos pelo menos um outro: a necessidade de observância de limites temporais estritos e preclusivos para o exercício do direito de instaurar o procedimento disciplinar, nos termos estabelecidos no art.º 178.º, nºs. 1 e 2, da Lei Geral de Trabalho em Funções Públicas (aprovada pela Lei n.º 35/2014, de 20 de junho, doravante designada pela sigla LGTFP).

Mais difícil, prossegue a Autora na obra a que aludimos supra, é saber se, além destes elementos vinculados, pode ainda assim interceder um juízo de oportunidade ou de conveniência na tomada de decisão. Em sentido afirmativo pode argumentar-se que a discricionariedade permitirá a ponderação, pelo órgão competente, da pertinência dessa instauração à luz da respetiva utilidade ou eficácia, ou, por identidade de razão, dos valores e finalidades do poder disciplinar. De tal sorte que, “[…] indiciada infração disciplinar, não é de excluir a possibilidade de não instauração de procedimento disciplinar se, ponderada, fundamentalmente, a gravidade da infração e os efeitos da decisão de não proceder em termos de conduta futura do trabalhador (e de outros trabalhadores), for de concluir pela prevalência dos respetivos benefícios, designadamente, que é possível, atenta a “diminuta gravidade da infração”, “levar o funcionário ao cumprimento dos seus deveres”, sem “o despoletar de um processo disciplinar”” (Ana Fernanda Neves, ob. cit., página 352).

Mais recentemente, os glosadores não se eximiriam de apodar, mais assertivamente até, esta matéria como de verdadeira discricionariedade, asseverando que “o superior hierárquico […] tem o poder discricionário, de avaliação, se haverá lugar ou não à instauração do procedimento disciplinar” (Raquel Carvalho, Comentário ao Estatuto Disciplinar dos Trabalhadores que Exercem Funções Públicas, Lisboa, Universidade Católica Editora, 2012, página 131). No mesmo sentido, veja-se a anotação ao art.º 207.º da LGTFP de Paulo Veiga e Moura / Cátia Arrimar, Comentários à Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas, 1.º volume, artigos 1.º a 240.º, Coimbra Editora, 2014, página 597.

Esta tese, aliás, encontra respaldo normativo expresso no artigo 207.º, n.º 1, da LGTFP. O enunciado normativo citado dispõe o seguinte: “Assim que seja recebida participação ou queixa, a entidade competente para instaurar procedimento disciplinar decide se a ele deve ou não haver lugar” (sublinhados nossos).

Decompondo o próprio enunciado gramatical do preceito, resulta:

(1) previsão: “assim que seja recebida participação ou queixa”;

(2) estatuição: “a entidade competente para instaurar procedimento disciplinar”:

i) operador deôntico: “decide”;

a) primeiro segmento: instaurar o procedimento (“deve haver lugar”);

ou (conjunção coordenativa disjuntiva entre dois elementos coordenados, apresentados como alternativos)

b) segundo segmento: não instaurar o procedimento (“não deve haver lugar”).

É seguro asseverar, pois, que a norma concede discricionariedade ao órgão competente para decidir se instaura ou não instaura o procedimento (optando entre a alternativa que se lhe oferece). “Sendo assim, ao poder de “participar” não corresponde, do lado passivo, outro dever que não seja o de receber a participação e sobre ela, proferindo despacho liminar, decidir se instaura ou não o procedimento adequado” (Ac. do STA de 08-06-2000, proc. n.º 41 879).

Mas diremos mais: essa discricionariedade é revelada ainda pelo facto de à aludida estatuição deôntica (“decide” se instaura ou não) não se associar uma previsão de que essa opção se circunscreva necessária e exclusivamente à legalidade dos indícios de infração. Vislumbra-se, assim, que a decisão de não instaurar o procedimento disciplinar pode legitimamente ter ou um fundamento legal ou um fundamento de inconveniência e inoportunidade do procedimento disciplinar: no primeiro caso, quando há ausência dos pressupostos normativos para instaurar tal procedimento, fundado na inexistência de infração disciplinar por os factos não integrarem qualquer violação de deveres; no segundo, pela própria inconveniência ou inoportunidade daquele procedimento em face dos interesses do serviço público e do fim do poder disciplinar.

Essa inconveniência ou ponderação pode resultar da ponderação, pelo órgão competente, da pertinência dessa instauração à luz da respetiva utilidade ou eficácia - por exemplo, quando considerar a “manifesta dificuldade de recolha da prova”, a “dificuldade probatória intransponível no mero âmbito do procedimento disciplinar” ou a “expectativa de que o processo criminal possa vir a contribuir com novas provas para uma rigorosa determinação da responsabilidade” (José Vicente Gomes de Almeida, “Recomendação sobre a legalidade de não instaurar procedimento em vez de suspender o procedimento instaurado. Processo n.º 112/99, Parecer n.º 2/2002”, in Controlo Externo da Atividade Policial e dos Serviços Tutelados pelo MAI, volume II, anos 1998-2002, ed. da Inspeção-Geral da Administração Interna, que se encontra integralmente disponível e acessível,inhttps://www.igai.pt/pt/Publicacoes/PublicacoesIGAI/Documents/2003%20Controlo%20Externo%20da%20Actividade%20Policial%20Vol%20II.pdf, pp. 306-308). Mas também pode resultar dos valores e das finalidades, próprias do procedimento disciplinar, tendo em consideração, não só os critérios gerais previstos para cada sanção disciplinar, como também a natureza, a missão e as atribuições do órgão ou serviço, ao cargo ou categoria do trabalhador, a sua personalidade e todas as circunstâncias em que a infração tenha sido cometida (ou seja, aplicando-se assim os mesmos critérios para a decisão de instaurar os previstos para a medida das sanções disciplinares, vertidas no artigo 189.º da LGTFP).

Esta discricionariedade, por apelo a critério de conveniência ou oportunidade, tem sido reconhecida pela doutrina (Ana Fernanda Neves, ob. cit., página 346), quando reconhece discricionariedade na instauração do procedimento disciplinar em termos tais que permite ao órgão competente realizar uma ponderação “[…] da pertinência dessa instauração à luz da respetiva unidade ou eficácia e dos valores e finalidades do poder disciplinar […]”; vide  também Carlos Alberto Fernandes Cadilha, Direito Disciplinar da Função Pública - Alguns tópicos in Elementos de apoio à preleção aos auditores do curso de formação de juízes dos tribunais administrativos, Policopiado, 9 de maio de 2003, pp. 3-4) e pela jurisprudência dos tribunais superiores da jurisdição administrativa (cf. Acórdãos do STA de 19-10-1995, proc. n.º 032609, do TCAS de 20-04-2006, proc. n.º 02713/99 e do TCAN de 28-09-2006, proc. n.º 00121/04.0BEPRT, acessíveis in http://www.dgsi.pt), traduzindo uma orientação relativamente à qual não se vislumbram motivos para dissentir.

Fechando este ponto preliminar, temos, por conseguinte, que à entidade demandada se deve reconhecer “discricionariedade” na opção por instaurar ou não o procedimento disciplinar.

Dito isto, esta constatação aporta consequências diretas para a pretensão condenatória, nos exatos termos em que vem formulada nos autos.

Com efeito, não pode este Tribunal condenar a entidade demandada a instaurar procedimento disciplinar, sob pena de violar o disposto no artigo 3.º, n.º 1, do CPTA e de derrogação do princípio da separação de poderes, plasmado no artigo 111.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa (doravante designada abreviadamente por Constituição ou CRP), nos termos do qual “os órgãos de soberania devem observar a separação e a interdependência estabelecidas na Constituição”, elevado mesmo a limite material da revisão constitucional - cf. artigo 288.º, alínea j), da Lei fundamental.

A esta luz, reconhecendo-se que a entidade demandada, quando praticou o(s) ato(s) impugnado(s), atuou no exercício de um poder vinculado quanto à oportunidade  ou ao an (ou seja, tinha o dever de agir, como o denunciava o comando deôntico “decide”, pelo que o demandante particular tem o direito e a legitimidade substantiva para exigir que a autoridade administrativa aja), mas não vinculado quanto ao conteúdo ou ao quid (ou seja, atuou no exercício de poderes discricionários quanto à determinação do conteúdo), terá então o julgador de lançar mão do artigo 71.º, n.º 2, do CPTA, acima transcrito.

Nestes casos, em que se conclui que o ato de indeferimento foi proferido no uso de poderes discricionários, e, portanto, que a Administração tem o dever de praticar um ato administrativo, mas não há vinculação legal quanto ao conteúdo do ato a praticar, importa dar cumprimento ao disposto no artigo 71.º, n.º 2, do CPTA, apreciando (todas) as questões de invalidade apontadas pela Autora/AA, a fim de identificar e especificar (todos) os aspetos vinculados a observar pela autoridade administrativa, para evitar que, em caso de eventual reexercício da atividade administrativa, reincida nas ilegalidades cometidas.

Vejamos, pois.

3. São assacados aos atos impugnados vícios de violação de lei, por erro sobre os pressupostos de direito, sustentando a Autora/AA que os atos impugnados violam a disciplina normativa dos artigos:

i) 203.º, 216.º e 217.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa e 81.º, 82.º e 149.º, al. a) do Estatuto dos Magistrados Judiciais por, na deliberação do Plenário, se considerar que as questões suscitadas na participação têm natureza jurisdicional e, nessa medida, se encontram fora das competências do Conselho Superior da Magistratura;

ii) 1.º, n.ºs 1 e 2, 3.º, n.º 2, 5.º, n.º 2, 81.º e 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e 215.º, n.º 1 e 216.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, na medida em que na deliberação impugnada se entende, no fundo, que os poderes de disciplina e de direção do ato processual não são sindicáveis ao nível disciplinar;

iii) 70.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.ºs 1 e 2, alíneas a), c), e) e h), 3, 5, 7 e 10, e 183.º da LGTFP, aqui aplicável ex vi art.º 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais, na medida em que a violação dos deveres aí previstos implica a aplicação de uma sanção disciplinar aos seus infratores.

Na dogmática jurídico-administrativa, o vício de violação de lei é definido como sendo o vício que “consiste na discrepância entre o conteúdo ou o objeto do ato administrativo e as normas jurídicas que lhe são aplicáveis” (Diogo Freitas do Amaral, Direito Administrativo. Volume III, Lisboa, impressão da Associação Académica da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 1990, página 303) ou na “desconformidade entre os pressupostos e/ou o conteúdo do ato concreto e a previsão de situação e/ou o comando contidos em norma imperativa” (José Manuel Sérvulo Correia, Noções de Direito Administrativo, Lisboa, Danúbio, 1982, página 463).

Por outras palavras, trata-se do vício que “afeta o ato praticado em desconformidade com os requisitos legais vinculados respeitantes aos respetivos pressupostos ou objeto” (Mário Esteves de Oliveira, Direito Administrativo, 1.ª edição, 1980, Coimbra, Almedina, página 559), ou, por outras palavras ainda, que afeta o ato administrativo “cujo conteúdo, incluindo os respetivos pressupostos, contrarie as normas jurídicas com as quais se devia conformar, integrando tal vício quer o erro na interpretação ou indevida aplicação da regra de direito (erro de direito) como o erro baseado em factos materialmente inexistentes ou apreciados erroneamente (erro de facto)” (Marcello Caetano, Manual de Direito Administrativo, volume I, 10.ª edição, 11.ª reimpressão, revista e atualizada por Diogo Freitas do Amaral, 2013, Coimbra, Almedina, página 501).

Portanto, o vício de violação de lei configura uma ilegalidade de natureza material, sendo a própria substância do ato administrativo que contraria a lei.

A ofensa da lei não se verifica aqui nem na competência do órgão nem nas formalidades ou na forma que o ato reveste nem no fim tido em vista, mas no próprio conteúdo ou no objeto do ato.

Recuperando os ensinamentos da Doutrina mais autorizada:

“O vício de violação de lei, assim definido, configura uma ilegalidade de natureza material: neste caso, é a própria substância do ato administrativo, é a decisão em que o ato consiste, que contraria a lei […]

Não há, pois, correspondência entre a situação abstratamente delineada na norma e os pressupostos de facto e de direito que integram a situação concreta sobre a qual a Administração age, ou coincidência entre os efeitos de direito determinados pela Administração e os efeitos que a norma ordena. O vício de violação de lei produz-se normalmente quando, no exercício de poderes vinculados, a Administração decida coisa diversa do que a lei estabelece ou nada decida quando a lei mande decidir algo.” (Freitas do Amaral, ob. cit., página 304)

Assim, o vício de violação de lei ocorre quando é efetuada uma interpretação errónea da lei, aplicando-a à realidade a que não devia ser aplicada ou deixando-a de aplicar à realidade que devia ser aplicada.

Socorramo-nos novamente da Doutrina da especialidade:

“No que toca então aos vícios do fim no domínio vinculado, eles poderão traduzir-se na falta de pressuposto abstrato (isto é, falta de base legal, uma vez que este vício se traduz no facto de a Administração atuar sem qualquer lei lhe atribuir tal poder) ou na falta de pressuposto concreto. Neste segundo caso tanto poderá acontecer que a situação concreta pura e simplesmente não exista (estaremos então perante um erro de facto) ou, existindo, não seja subsumível na hipótese legal (caso em que haverá um erro de qualificação dos factos ou um erro de direito quanto aos factos).” (José Eduardo Figueiredo Dias / Fernanda Paula Oliveira, Noções Fundamentais de Direito Administrativo. 2.ª edição, 2010, Coimbra, Almedina, página 261).

“Para que o ato administrativo prossiga o fim legalmente pretendido, é necessário que a sua emissão se baseie em pressupostos legalmente previstos e efetivamente existentes. Caso contrário, existirá um vício por falta de pressupostos, o que determinará a anulabilidade do ato.

Se a emissão do ato não se basear em pressupostos legalmente previstos, existe falta de pressuposto abstrato, hipotético ou de direito: a circunstância que levou a Administração a agir não estava prevista pela norma.

Se a emissão do ato se basear em pressupostos legalmente previstos, mas não efetivamente existentes, existe falta de pressuposto real ou de facto: a circunstância legalmente prevista não se verificou na realidade.” (Mário Aroso de Almeida, Teoria Geral do Direito Administrativo, 6.ª edição, 2020, Almedina, pp. 378-379).

Em suma: os pressupostos do ato administrativo são as circunstâncias objetivas, normativamente previstas, de cuja verificação depende a constituição do órgão administrativo no poder-dever de agir mediante a prática de um ato administrativo de determinado tipo legal.

Se a emissão do ato se baseou nos pressupostos legalmente devidos, mas não efetivamente existentes, ocorre falta de um pressuposto real ou de facto (a circunstância legalmente prevista não se verificou na realidade).

Por seu turno, ocorre vício de erro sobre os pressupostos de direito quando a emissão do ato administrativo de determinado sentido e conteúdo se não baseia em pressupostos legalmente previstos: a circunstância que motivou a decisão administrativa não estava coberta pela norma invocada.

Reafirmando Jurisprudência constante, tem vindo a Secção de Contencioso do Supremo Tribunal de Justiça a decidir reiteradamente que “[o] vício de violação de lei ocorre quando é efetuada uma interpretação errónea da lei, aplicando-a à realidade a que não devia ser aplicada ou deixando-a de aplicar à realidade que devia ser aplicada” (Acórdão desta Secção de Contencioso de 04-07-2019, proc. n.º 39/18.0YFLSB; vide ainda o Acórdão de 25-05-2016, proferido no processo n.º 55/14.0YFLSB, assim como, na jurisprudência mais recente, os Acórdãos de 20-02-2019, processo n.º 68/18.3YFLSB, e de 24-10-2019, processo n.º 67/18.5YFLSB, ambos em www.dgsi.pt).

Ocorre vício de erro sobre os pressupostos de direito quando a emissão do ato administrativo de determinado sentido e conteúdo se não baseia em pressupostos legalmente previstos: a circunstância que motivou a decisão administrativa não estava coberta pela norma invocada.

Mais tem afirmado o Supremo Tribunal de Justiça (Ac. de 04-07-2019, proferido no processo n.º 69/18.1YFLSB) que o erro de direito pode respeitar à lei a aplicar, ao sentido da lei aplicada ou à qualificação jurídica dos factos: no primeiro caso, aplicou-se por engano ou por ignorância uma norma quando era outra a aplicável (erro na aplicação); no segundo caso, aplicou-se a lei correta, mas interpretou-se mal (erro na interpretação); no terceiro caso, qualificaram-se certos factos numa figura jurídica quando deviam sê-lo noutra (erro na qualificação).

4.1. Os pontos fulcrais da discordância da Autora/AA com os atos impugnados residem na interpretação que nestes foi efetuada de que as questões suscitadas na participação têm natureza jurisdicional e, nessa medida, se encontram subtraídas às competências do Conselho Superior da Magistratura, a quem está vedada a sindicabilidade dos poderes de disciplina e de direção de atos processuais (de produção de prova).

Para tanto, sustenta-se na petição inicial, bem como na respetiva retificação, que o Plenário do CSM errou ao considerar que a Autora/AA, através da reclamação da decisão do Senhor Vice-Presidente do CSM, trazia à colação uma decisão acerca da atividade jurisdicional, propriamente dita, do Tribunal Coletivo pelos juízes participados, tendo tal erro conduzido a que, erradamente, o Plenário da entidade demandada considerasse que “[…] as questões em apreço têm natureza jurisdicional, estando nessa medida fora da competência do CSM […]”.

Assim, aduzindo que “[…] o Plenário do Conselho Superior da Magistratura defendeu um conceito demasiado lato de “função jurisdicional”, que praticamente esvazia os poderes disciplinares do próprio Conselho […]”, conclui a Autora/AA que esta interpretação da entidade demandada é inválida, por violação do disposto nos art. 203.º, 216.º e 217.º, n.º 1, todos da Constituição da República Portuguesa, e 81.º, 82.º e 149.º, al. a) do EMJ.

Mais argumenta a Autora/AA, nesta sede, que no processo-crime n.º 541........, que correu termos no Juízo Central Criminal ......, foi lançado, na terminologia já usada na decisão reclamada, um ataque à sua honra e consideração, tendo os magistrados participados colaborado em tal ataque, devassando a sua vida íntima e familiar, mediante intervenção, anuência e mesmo solicitação dos próprios. Tal ataque teria consistido na exploração da ideia da “aversão a homens” por parte da participante e, no que diz respeito aos magistrados participados, em dois momentos distintos: um, no decurso da audiência de julgamento, no âmbito da inquirição de uma testemunha; outro, nos termos do próprio acórdão proferido após a realização da audiência de julgamento. E tal sucedeu, também segundo a Autora, sem que o tema em questão se prendesse com o objeto do processo e sem chamarem a participante a depor em julgamento, agindo os juízes participados movidos por curiosidade e indiscrição.

Assume a demandante que, em face da defesa apresentada pelo arguido, a única coisa que poderia fazer sentido discutir no âmbito do processo-crime seria a indagação do seu grau de influência e modo de influência sobre a menor (alegada vítima), sua sobrinha, e não a indagação sobre o seu modo de ser ou “aversão aos homens”. Mais entende, reiterando o que já havia dito em sede de reclamação, que “[…] se a real convicção dos Senhores Juízes Participados fosse a de que a discussão em torno do modo de ser da Autora era essencial à descoberta da verdade material e à boa resolução do caso, devendo ser objeto de discussão e julgamento, então os mesmos sempre teriam que ter convocado a Autora para depor em julgamento […]”.

E conclui que “[…] a posição do Conselho Superior da Magistratura, assumida na Deliberação, redundaria na ideia de que, pese embora a ilicitude de uma determinada conduta, do ponto de vista criminal ou (para o que aqui mais importa) disciplinar, a mesma estaria sempre “legitimada”, excluindo-se-lhe qualquer cunho ilegal, desde que desenvolvida ao abrigo de um dos poderes previstos nos artigos 322.º e 323.º do CPP […]”, interpretação que viola o artigos 1.º, n.ºs 1 e 2, 3.º, n.º 2, 5.º, n.º 2, 81.º e 82.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais e 215.º, n.º 1 e 216.º, n.º 2 da Constituição da Républica Portuguesa.

4.2. É nos Capítulos I e III do Título V da Constituição, dedicado aos tribunais, que se estabelecem os princípios que se referem ao seu funcionamento e ao exercício da função jurisdicional, primeiro, e ao estatuto dos juízes, depois. É nesses capítulos que se encontram, respetivamente, os artigos 203.º, por um lado, e 216.º e 217.º, n.º 1, da Constituição da Républica Portuguesa, por outro lado, convocados pela Autora.

Importa, por isso mesmo, revisitar aqueles capítulos, para o que aqui seguiremos de perto o excurso expositivo efetuado no acórdão do Tribunal Constitucional (TC) n.º 620/2007 (Processo n.º 1130/2007), de 20-12-2007.

O artigo 202.º, sob a epígrafe “função jurisdicional”, no seu n.º 1, define os tribunais como os “órgãos de soberania com competência para administrar a justiça”, vindo a identificar, no n.º 2, o conteúdo da função jurisdicional por referência a três diferentes áreas de intervenção: defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos; repressão de violação da legalidade; dirimição de conflitos de interesses públicos e privados.

O entendimento geral é o de que a Constituição pretendeu, deste modo, instituir uma reserva de jurisdição, entendida como uma reserva de competência para o exercício da função jurisdicional em favor exclusivamente dos tribunais.

Nesse sentido, poderá apenas discutir-se o âmbito de delimitação dessa reserva, quer por efeito das dificuldades que possa suscitar, em cada caso concreto, a distinção entre função administrativa e função jurisdicional, quer por via da maior ou menor latitude que se possa atribuir ao conceito.

A existência de uma reserva de jurisdição é a necessária decorrência da aplicação dos princípios da separação e interdependência de poderes: sendo a competência dos órgãos de soberania definida na Constituição e devendo estes observar a separação e a interdependência nela estabelecidas (artigos 110.º, n.º 2, e 111.º, n.º 1), haverá de concluir-se que a atribuição constitucional de determinada competência a um certo órgão de soberania exclui a possibilidade de ela poder vir a ser legalmente atribuída a qualquer outro, salvo explícita ou implícita autorização constitucional (neste sentido, o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 71/84, publicado no DR, II Série, de 2 de janeiro de 1985).

Por outro lado, a reserva de jurisdição concretiza-se através de uma reserva do juiz, no sentido de que, dentro dos tribunais, só os juízes poderão ser chamados a praticar os atos materialmente jurisdicionais (Gomes Canotilho / Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra, 3.ª edição revista, 1993, página 792; Rui Medeiros / Maria João Fernandes, “Artigo 202.º”, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, coordenação de Jorge Miranda / Rui Medeiros, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, página 32).

Assim se compreende que o Tribunal Constitucional tenha declarado a inconstitucionalidade de normas atributivas de competência jurisdicional a agentes que, ainda que inseridos na estrutura judiciária, não tenham a qualidade de juiz (acórdãos n.ºs 182/90 e 247/90, que se pronunciaram sobre a competência dos secretários judiciais para proferir decisões relativas a custas); e, noutros casos, tenha concluído pela constitucionalidade da solução legislativa apenas por considerar que a função judiciária atribuída a quem não tem o estatuto de juiz não integrava o conceito de ato jurisdicional (assim, nos acórdãos n.ºs 67/2006 e 144/2006, que abordaram a questão da atribuição ao Ministério Público do poder de decidir, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo).

Um outro princípio inerente à reserva de jurisdição consubstancia-se na exigência de que o órgão jurisdicional ao qual possa ser atribuída a função de julgar se encontre rodeado das necessárias garantias de independência e imparcialidade.

A esse propósito, escreveu-se no já citado acórdão do Tribunal Constitucional n.º 71/84: “[…] para que determinado órgão possa ser qualificado como tribunal não basta, nem pode bastar, que lhe haja sido cometida uma competência materialmente incluída na função jurisdicional. É que se assim fosse, esvaziar-se-ia completamente de conteúdo a referida reserva da função jurisdicional aos tribunais, na medida em que todo e qualquer órgão se converteria em tribunal pela mera atribuição de uma competência materialmente jurisdicional. // Para que um determinado órgão possa ser qualificado como tribunal é necessário, antes de mais, que ele seja “independente”, como o exige o artigo 208.º da Constituição [o atual artigo 203.º]”.

Por isso, importa concluir, como também se refere no acórdão n.º 171/92 (publicado no DR, II Série, de 18 de setembro de 1992), “que tribunais hão de ser visualizados como sendo só aqueles órgãos de soberania que, exercendo funções jurisdicionais, sejam suportados por juízes que desfrutem totalmente de independência funcional e estatutária, não bastando, pois, a mera atribuição de poderes às entidades da Administração para, na resolução dos assinalados casos concretos, poderem decidir sem sujeição a ordens ou instruções”.

É esse o postulado que decorre do artigo 203.º da Constituição, segundo o qual “os tribunais são independentes e apenas estão subordinados à lei”.

A independência dos tribunais é descrita como uma independência objetiva, que deriva da própria essência da atividade jurisdicional, e tem como pressuposto a subordinação do juiz à lei; mas também como uma independência subjetiva, esta caracterizada por uma autonomia dos tribunais em relação aos outros poderes do Estado e em relação aos outros contitulares do poder jurisdicional - isso sem prejuízo das relações de hierarquia e supraordenação ditadas pela existência de diferentes categorias de tribunais em cada ordem de jurisdição (Paulo Rangel, Reserva de jurisdição. Sentido dogmático e sentido jurisprudencial, Porto, Universidade Católica Editora, 1997, pp. 44 e 45).

No entanto, a independência dos tribunais também postula, pressupõe e exige a independência dos juízes, conforme se afirmou nos acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 135/88 e 393/89 (publicados no DR, II Série, de 8 de setembro de 1988 e de 14 de setembro de 1989, respetivamente). Por essa mesma razão se diz que a garantia essencial da independência dos tribunais é a independência dos juízes, que por isso se considera necessariamente abrangida pela proteção constitucional que resulta da norma do artigo 203.º (Gomes Canotilho / Vital Moreira, ob. cit., página 794).

É, aliás, essa a ideia que é expressa por José de Oliveira Ascensão [“A reserva constitucional de jurisdição”, O Direito, ano 123.º, 1991, II-III (abril-setembro), página 467], quando assevera que “[…] a independência dos tribunais, expressa pelo artigo 206.º da Constituição [atual artigo 203.º], procura assegurar que esse corpo especializado não fique sujeito à pressão de quaisquer outras forças, políticas antes de mais. // Mas a descrição do órgão a quem está constitucionalmente confiada a jurisdição é incompleta enquanto não tivermos em atenção a figura do juiz […]. Não é só a magistratura que é independente; cada juiz é dentro dela independente, no âmbito da sua competência. Neste sentido se diz que cada juiz é titular da totalidade da jurisdição […]”. 

Se é certo que a independência do juiz é sobretudo um dever ético-social que lhe exigirá manter-se alheio e acima das influências exteriores e que, nessa medida, se traduzirá numa forma de independência vocacional, não é menos verdade que deverá, ainda assim, existir um quadro legal que promova e facilite essa independência. É nessa mesma linha de entendimento que se declara que “a independência e imparcialidade da jurisdição exigem garantias orgânicas, estatutárias e processuais” (hoc sensu, vide Acórdão n.º 52/92 do TC, e, na Doutrina, Rui Medeiros / Maria João Fernandes, ob. cit., página 42).

As garantias orgânicas e estatutárias de que se fala são justamente aquelas que vêm mencionadas nos artigos 215.º a 218.º da CRP, e traduzem-se essencialmente na unicidade orgânica e estatutária dos juízes (artigo 215.º, n.º 1), nas garantias de inamovibilidade e irresponsabilidade (artigo 216.º, n.ºs 1 e 2) e no princípio do autogoverno da magistratura, este traduzido na exigência de que a nomeação, colocação, transferência e promoção dos juízes, bem como o exercício da ação disciplinar, sejam efetuados por um órgão autónomo não dependente do poder executivo (artigos 217.º e 218.º).

E, porque assim, o estatuto subjetivo dos magistrados está indissociavelmente ligado à reserva de jurisdição e constitui um princípio constitucional material concretizador do Estado de direito, na medida em que se destina a garantir a independência e imparcialidade dos juízes no exercício da função jurisdicional, neste sentido veja-se o citado acórdão do TC n.º 620/2007 (Processo n.º 1130/2007), de 20-12-2007, que aqui se seguiu de perto; na Doutrina, José Joaquim Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7.ª edição, 13.ª reimpressão, Coimbra, Almedina, 2013, pp. 667 e 668; Paulo Rangel, ob. cit., página 48.

Por tudo, e em suma, como é sublinhado por Paulo Rangel, a reserva de jurisdição, tal como está consagrada nos artigos 202.º e 203.º da CRP e nos preceitos subsequentes que regulam o estatuto dos juízes (artigos 215.º a 218.º), pressupõe a necessária convergência entre a dimensão material e a dimensão organizatória da jurisdição, e postula a eliminação das reminiscências da caracterização da função judicial como função pública e a plena assunção dos juízes como titulares de órgãos de soberania (Repensar o poder judicial. Fundamentos e fragmentos, Porto, 2001, pp. 175 e 299).

É, pois, em ordem e tendo em vista garantir a independência dos juízes, por tudo o que se deixou dito, que a Constituição consagra um conjunto de garantias e de limitação de direitos relativamente ao regime de exercício de funções dos magistrados judiciais, que constitui o verdadeiro estatuto do juiz, e que foi desenvolvido, no plano do direito ordinário, pelo Estatuto dos Magistrados Judiciais, aprovado pela Lei n.º 21/85, de 30 de julho, com as suas ulteriores alterações.

4.3. A esta luz, relembremos aqui o que, a este respeito, se deixou estabelecido em cada um dos atos impugnados.

O despacho do Sr. Vice-Presidente da entidade demandada de 10-07-2019 acolheu a fundamentação proposta pelo Vogal consignado no instrumento com a referência “2019/DSP/06358”, de 09-07-2019 [cf. pontos 2) e 3) do probatório], pelo que é nessa sede que havemos de perscrutar o iter valorativo expendido no primeiro ato.

Aí se deixou consignado, além do mais, o seguinte com respeito da “reserva de jurisdição”: “O Conselho Superior da Magistratura, como decorre do art. 136.º do Estatuto dos Magistrados Judiciais (E.M.J.), é o órgão superior de gestão e disciplina dos juízes, estando o elenco de competências que lhe estão cometidas, previsto no art. 149.º daquele diploma legal, incindivelmente ligado a tal natureza do órgão.

Desse elenco de competências não consta a possibilidade de interferir na apreciação e decisão de processos judiciais concretos. Essa tarefa é da exclusiva competência dos Tribunais, no exercício da função jurisdicional e no quadro da independência que lhes é constitucionalmente reconhecida (v. artºs. 202.º e 203.º da Constituição da República Portuguesa - C.R.P.).

O C.S.M., não sendo um tribunal, não pode, assim, apreciar pedidos de tutela jurisdicional, nem interferir na condução de processos judiciais ou nos termos da prolação de decisões judiciais, sob pena de ilegítima ingerência na atividade dos tribunais enquanto órgãos de soberania.

Tal não exclui o entendimento de que toda e qualquer atividade levada a cabo por um juiz no exercício da função jurisdicional não possa ou não deva conhecer limites.

Pelo contrário, a atividade do juiz terá sempre como limite inultrapassável o respeito e a observância dos princípios constitucionais que enformam o sistema jurídico, como é o caso do princípio da igualdade e dignidade social de todos os cidadãos perante a lei (art. 13.º, n.º 1 da C.R.P.) e o da imperatividade dos direitos dos preceitos constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias (art. 18.º da C.R.P.).

Extravasado esse limite intransponível, a atividade do juiz deixa de estar inserida no quadro da administração da justiça e, consequentemente, no da salvaguarda da independência que constitucionalmente lhe é assegurada, para passar a estar sob sindicância, podendo, inclusive, ser objeto de sancionamento disciplinar, uma vez verificado que uma tal atuação consubstanciou a violação de deveres funcionais.”

Ainda no mesmo ato, mas agora com referência à concreta forma como foi conduzida a diligência de prova pelos magistrados participados, deixou-se consignado o seguinte: “Assim, como invocam os Srs. Juízes de Direito participados na sua resposta e resulta da documentação junta pelos mesmos com tal exposição, designadamente da contestação oferecida no processo em questão na participação, o arguido em tal processo, acusado que estava nele da prática de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de uma menor, sua sobrinha, esgrimiu como argumento de defesa, entre outros, a alegada influência da Participante, sua tia, junto da menor, nomeadamente no que diz respeito ao “radicalismo e obsessão contra o género masculino, incutindo desde muito cedo na cabeça das crianças, suas sobrinhas, as ideias mais mirabolantes sobre os perigos dos contactos com os homens…” (v. art.º 16.º da contestação).

Tratou-se, aliás, de um argumento exposto e substanciado em alguns artigos da contestação e que o arguido tentou ilustrar com a junção de documentos que, na sua ótica, o revelavam, como seja, excertos de conversações, que tinham a Participante como interlocutora, extraídas de redes sociais, sendo que, com tal orientação de defesa, se visava, em último termo, a descredibilização da menor vítima e da sua mãe.

A questão subjacente a tal argumento foi, depois, em sede de audiência de julgamento, desenvolvida no decurso da inquirição da testemunha em causa na participação, tal como decorre da transcrição do respetivo depoimento junta com a participação, mormente das passagens com início em 00:45:43.

Ora, constando da contestação do arguido e trazida a julgamento no decurso da inquirição de uma testemunha, a sua análise tornou-se um tema de abordagem incontornável pelo tribunal, sob pena de, não o fazendo, este, não só pôr em causa a descoberta da verdade material e a boa realização da justiça, como o próprio direito de defesa do arguido - cuja observância, em se tratando de direito constitucionalmente consagrado (art.º 32.º, n.º 1 da C.R.P.), é imperativa e, portanto, também um limite intransponível à atuação do tribunal.

E foi nesse quadro que o coletivo de juízes, como decorre da transcrição do depoimento da testemunha em causa, atuou.

Na verdade, a intervenção dos Srs. Juízes no julgamento, no que diz respeito à abordagem da questão, mostra-se objetiva e pautada sempre pela lógica e pelo intuito do esclarecimento dos factos.

Dela não se entrevê excessos nas questões colocadas, sendo que, ainda que atinentes à esfera da vida pessoal e privada da Participante, todas elas se mostraram enquadradas no tema em discussão e denunciaram, inclusive, preocupação do tribunal em esclarecer uma imputação (a suposta ideia de “aversão aos homens”) vaga e com laivos de insinuação, esclarecimento esse essencial para o apuramento da verdade e, bem assim, para aferir da própria credibilidade do testemunho em que foi veiculada.

Note-se que em momento algum da inquirição se registam, da parte dos Srs. Juízes, comentários, acintes, locuções jocosas ou intervenções desenquadradas da questão, que pudessem sugerir sequer que o objetivo dos mesmos fosse outro que não o da descoberta da verdade e da boa decisão da causa.

Os Srs. Juízes abordaram e deixaram abordar, de facto, a questão a que a Participante alude e, com isso, a menção a aspetos da sua vida pessoal, mas enquanto questão submetida a julgamento que importava apreciar e nada mais.

De resto, resulta da transcrição do depoimento em questão que a Sr.ª Juíza de Direito FF, a propósito da questão em apreço, fez questão de ressalvar – de um modo que nos parece espontâneo – que a abordagem da questão nada tinha a ver com o julgamento da Participante e deixar vincado que a “importância” da questão, que legitimava a sua consideração em julgamento, decorria do facto de se ter dito “que a atitude da (menor) terá sido, de certa forma, guiada pela tia…”.

E resulta, ainda, que o Ex.mo Sr. Juiz Dr. DD, depois de ter posto as questões que reputou pertinentes, pôs termo ao depoimento, obstando ao evoluir do depoimento para aspetos da questão irrelevantes para a decisão da causa, dizendo expressamente “Está encerrado, está esmiuçado este assunto (…)”

Por seu turno, a deliberação de 03-12-2019 pronunciou-se acerca desta questão nos seguintes termos [cf. ponto 6) dos factos provados]:

“Aqui chegados, importa sublinhar, quanto ao âmbito das competências do Conselho Superior da Magistratura, que este é o órgão de gestão e disciplina da magistratura judicial (art. 136.º do EMJ) não sendo um Tribunal ou instância de recurso ou de revisão de decisões judiciais, a significar, portanto, que não pode interferir nas decisões judiciais, sob pena de violar o princípio constitucional da independência dos Tribunais e dos Juízes.

Não cabe, assim, ao Conselho Superior da Magistratura pronunciar-se sobre tais decisões ou analisar a sua conformidade com o conteúdo dos processos.

Analisada a reclamação em apreço, a mesma centra-se essencialmente na ausência de crítica por parte da decisão reclamada na forma como foi conduzida a audiência de julgamento, designadamente na inquirição da testemunha BB cujo enfoque se deveria ter traduzido não em indagar se a reclamante tinha ou não “aversão a homens”, como foi feito, mas em saber se a mesma influenciava negativamente ou não os seus sobrinhos, incutindo-lhes ideias sobre perigos de contactos com homens.

Mais se insurge quanto à ausência de crítica da decisão reclamada quanto à forma como foi redigido o acórdão, a qual entendeu que a expressão “tia que tem aversão a homens” foi utilizada citando certos depoimentos, o que no entender da reclamante, era desnecessário para cumprimento do dever de fundamentação.

Estas discordâncias, pela banda da reclamante, quanto à forma como foi conduzida a audiência de julgamento e quanto à forma como foi redigido o acórdão, sendo naturalmente legítimas, não deixam, no entanto, de ser discordâncias que têm como objeto direto a atividade jurisdicional e essa atividade, em cumprimento da Lei e da Constituição, não pode ser sindicada ou apreciada pelo CSM. E ao CSM, naturalmente, impõem-se o cumprimento da Lei e da Constituição e o respeito pelas competências de cada órgão, concretamente e também pelo órgão de soberania Tribunal, designadamente pela garantia de independência que lhe é constitucionalmente garantida (cf. art. 203.º da CRP).

Ora, a atuação dos Exm.ºs Juízes participados, na audiência de julgamento, tal como descrita pela Exm.ª Reclamante não indicia a prática de qualquer infração disciplinar, antes se enquadrando no âmbito dos seus poderes de direção do ato processual em que participavam, nos termos do disposto nos arts. 322.º e 323.º do Código de Processo Penal.

Com efeito, tal como referido na proposta apresentada pelo Exm.º Sr. Vogal do Distrito Judicial .... e aceite pela própria reclamada, em face da linha de defesa apresentada pelo arguido, tornava-se necessário debater o modo de ser da Exm.ª Reclamante e a eventual influência da mesma na sobrinha comum com o arguido. Em momento algum se pode descortinar na transcrição apresentada na participação, e que se encontra anexa, qualquer atitude vexatória ou discriminatória da vida privada da Exm.ª Reclamante, cuja identidade foi salvaguardada no acórdão proferido, sendo certo que a audiência de julgamento teve lugar com exclusão de publicidade. Em momento algum se vislumbra que os Exm.ºs Juízes, no decurso do julgamento, tenham assumido qualquer atitude intrusiva na vida privada da Exm.ª Reclamante, para além do estritamente necessário ao que competia apurar, a saber a alegada influência da mesma na sobrinha. Por último, em momento algum se vislumbra também que os Exm.ºs Juízes participados tenham tido ou permitido que se tivessem tido atitudes menos dignas e desrespeitosas quer dos intervenientes quer de terceiros. Em suma, em momento algum os Exm.ºs Juízes participados, no uso dos poderes que constitucionalmente e legalmente lhes cabiam de direção da audiência de julgamento assumiram qualquer conduta que possa constituir um ilícito disciplinar e, nessa sede, sindicável pelo CSM.

Por todo o exposto, considera-se que as questões em apreço têm natureza jurisdicional, estando nessa medida fora da competência do CSM e, em conformidade, mantém-se a decisão impugnada e indefere-se a presente reclamação.”

4.4. Aqui chegados, não divisamos, salvo melhor opinião, qualquer erro na apreciação efetuada nos atos impugnados a este respeito, seja com referência à reserva de jurisdição, seja com referência à insindicabilidade, em concreto, dos poderes de direção de atos processuais.

Na verdade, não obstante ser o órgão superior da disciplina (ou “autogoverno”) da magistratura judicial (João Paulo Dias, O mundo dos magistrados: A evolução da organização e do autogoverno judiciário, Almedina, 2004, página 160; Gelásio Rocha, Estatuto dos Magistrados Judicias Anotado, Almedina, 1985, página 94), o CSM assume-se, não como um órgão jurisdicional, mas como órgão da Administração Pública, independente, corolário do princípio da separação de poderes e de uma reserva da administração autónoma da justiça (Jorge Miranda, “Art. 217.º”, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo III, cit., página 191).

Ao CSM, portanto, e nessa medida, compete exercer ação disciplinar por violação de ilícitos apurados nessa sede, mas já não compete sindicar atos próprios do exercício da judicatura stricto sensu (e nomeadamente a forma como são conduzidas as diligências de produção de prova num dado processo judicial), sendo tal matéria reservada ao escrutínio jurisdicional, nomeadamente em sede de recurso.

Ora, seria isso que, verdadeiramente, se exigiria à aqui entidade demandada que efetuasse, caso prosseguisse a perseguição disciplinar nos termos reclamados pela Autora/AA: o CSM estaria então, não a exercer licitamente ação disciplinar por violação de ilícitos, mas sim a sindicar, sem credencial constitucional ou normativa bastante, atos praticados pelos magistrados participados ao abrigo de poderes de direção de atos processuais de produção de prova, nos termos do disposto nos artigos 322.º e 323.º do Código de Processo Penal.

E, porque assim, se após uma análise exaustiva dos factos participados e da conduta dos magistrados em questão, não foram pela entidade demandada apurados elementos que permitissem concluir que os juízes de direito participados tenham violado qualquer dever funcional suscetível de os fazer incorrer em responsabilidade disciplinar, antes resultando dos elementos disponíveis que toda a sua atuação mais não constituiu do que o exercício da função jurisdicional que, na qualidade de membros do coletivo chamado a julgar o processo, lhes competia, outra conclusão não podia ter sido a dos atos impugnados senão aquela que efetivamente tomou lugar: a de que as condutas dos magistrados participados, contidas nos limites que se lhes impunha no exercício da sua função jurisdicional, não eram suscetíveis de perseguição disciplinar, caindo, em consequência, fora das competências do CSM previstas no art.º 149.º, n.º 1, al. a), do EMJ.

Com pertinência se assinalou, de resto, na Deliberação impugnada que as “[…] discordâncias, pela banda da reclamante, quanto à forma como foi conduzida a audiência de julgamento e quanto à forma como foi redigido o acórdão, sendo naturalmente legítimas, não deixam, no entanto, de ser discordâncias que têm como objeto direto a atividade jurisdicional e essa atividade, em cumprimento da Lei e da Constituição, não pode ser sindicada ou apreciada pelo CSM. E ao CSM, naturalmente, impõem-se o cumprimento da Lei e da Constituição e o respeito pelas competências de cada órgão, concretamente e também pelo órgão de soberania Tribunal, designadamente pela garantia de independência que lhe é constitucionalmente garantida (cf. art. 203.º da CRP)”.

Face ao exposto, reconhecemos que se sustentou nos atos impugnados, de forma devidamente fundamentada, que as questões apreciadas e suscitadas pela Autora/AA têm como objeto direto a atividade jurisdicional, não sendo, nessa medida, sindicáveis pelo CSM, ao qual, por força do princípio constitucional da independência dos tribunais e dos juízes, está vedado aferir o acerto, ou não, das decisões judiciais, donde, improcede a pretensão da Autora/AA com este fundamento.

Por último, alega a Autora/AA que no interrogatório da testemunha BB e no Acórdão proferido estão evidenciadas atitudes dos magistrados participados que consubstanciam ilícitos disciplinares, porquanto traduzem uma atitude vexatória e discriminatória da vida privada.

A demandante reputa a expressão usada no texto do acórdão (“tia que tem aversão a homens”) manifestamente discriminatória, em função do género e do estado civil da Autora. Mais acrescenta que os juízes participados quiseram assim atingir a intimidade da sua vida privada, bem como a sua honra e consideração, e que, para além disso, “abandalharam” o ambiente solene que deve ser um julgamento em tribunal com perguntas que fazem lembrar uma atitude “coscuvilheira […] sobre a vida privada de alguém […]”.

Conclui, em consequência, que os magistrados participados violaram os deveres gerais que sobre si impendiam no sentido de agir de boa fé e de promover e pugnar pela qualidade do serviço e, bem assim os deveres especiais de prossecução do interesse público, de imparcialidade, de zelo e de correção.

Não tendo sido esse o entendimento dos atos impugnados, aduz a Autora/AA que padecem os mesmos de erro sobre os pressupostos por violação na aplicação do disposto nos artigos 70.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, n.ºs 1, 2, alíneas a), c), e) e h), 3, 5, 7 e 10, e 183.º, todos da LGTFP, aqui aplicável ex vi art.º 82.º do EMJ, na medida em que a violação dos deveres aí previstos implica a aplicação de uma sanção disciplinar aos seus infratores.

Summo rigore, este ponto acaba por ficar, em grande medida, prejudicado pelo julgamento efetuado quanto às questões supra apreciadas.

De todo o modo, sempre se refira, adicionalmente, o seguinte: de acordo com o disposto no artigo 82.º do EMJ na redação vigente à data dos factos em apreço, “constituem infração disciplinar os factos, ainda que meramente culposos, praticados pelos magistrados judiciais com violação dos deveres profissionais, e os atos ou omissões da sua vida pública, ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício das suas funções”.

A infracção disciplinar pode definir-se “como a conduta externa, culposa, ilícita e prejudicial do trabalhador, traduzida na violação de deveres gerais ou especiais previstos na lei e inerentes às funções que executa e para as quais está habilitado” (Veiga e Moura / Cátia Arrimar, ob. cit., página 539).

Os elementos objetivos previstos no citado normativo traduzem-se, assim, nos atos violadores dos deveres profissionais dos magistrados judiciais, sejam os enumerados no EMJ, sejam os enumerados na LGTFP (de aplicação subsidiária, ex vi art.º 131.º do citado EMJ) ou nos atos ou omissões da vida pública ou que nela se repercutam, incompatíveis com a dignidade indispensável ao exercício da função.

Entre os deveres que devem ser observados pelos juízes, e cuja violação pode originar ilícito disciplinar, avultam os invocados deveres de prossecução do interesse público, de imparcialidade, de zelo e de correção (art.º 3.º do EMJ e 73.º, n.º 2, alíneas a), c), e) e h), da LGTFP).

O dever de prossecução do interesse público traduz-se na “[…] obrigação de o funcionário nortear toda a sua atuação no sentido de prosseguir aquele interesse, adotando os comportamentos que sejam exigíveis para esse fim e abstendo-se de toda e qualquer atuação que comprometa a sua realização. Trata-se da concretização legislativa do princípio constitucional da prossecução do interesse público” (Veiga e Moura / Cátia Arrimar, ob. cit., página 294).

Por seu turno, o dever de imparcialidade “[…] determina que a conduta do trabalhador seja alheia e insensível a outros interesses que não o interesse público, o que significa que deve e pode ponderar todos os interesses envolvidos (para alcançar a solução que melhor permita otimizar o interesse público) mas jamais determinar-se ou deixar-se influenciar por tais interesses» (idem, ibidem, página 296).

Apesar de não consagrado expressamente no EMJ à data dos factos impugnados (apenas o viria a ser no cogente art. 6.º-A, com a redação entretanto atribuída pela Lei n.º 67/2019, de 27 de agosto), o princípio da imparcialidade já era considerado imanente ao EMJ: “habita-o e dá-lhe vida, na medida em que constitui medida essencial (constitui essência) da função judicial e, “ipso facto”, da condição e do estatuto de magistrado judicial. Sem imparcialidade e sem condições (diretas e indiretas) para a existência da mesma, não há verdadeira e própria judicatura e não há processos. Ora, essa imparcialidade depende essencialmente, e se bem vejo, de duas instâncias normativas e práticas: uma, a das condições (estatutárias e, digamos, socioprofissionais) do exercício da judicatura; outra, a das normas e práticas processuais em cada tipo de processo no qual os magistrados judiciais são chamados a decidir” (Rui Patrício, “Imparcialidade e Processo Penal”, in revista Julgar, n.º 30, 2016, página 43).

Reportada concretamente ao universo judiciário, a imparcialidade do juiz é pressuposto de validade do processo, devendo o magistrado colocar-se numa posição equidistante em relação às partes, sendo certo que dispõe do poder e dever de conduzir o processo e de tomar todas as providências legais ao seu alcance tendentes à boa realização da justiça.

O dever de zelo, por sua vez, assume-se como um dever de diligência, de competência, de aplicação e de brio profissional no concreto desempenho e execução das funções/serviço por parte do magistrado, violando tal conduta funcional se o mesmo se apartar daqueles mesmos padrões ou objetivos, mormente, por não utilização do empenho, dos conhecimentos e meios apropriados ou por subversão dos fins estabelecidos no estrito exercício daquelas suas funções/serviço. Nessa medida, o zelo ou a falta dele parecem surgir in actu exercito (Ac. STA/Pleno de 23-01-2013, proc. n.º 042/12), “cabendo inferir da sua existência ou detetá-lo à luz ou por referência com aquilo em que consiste a atividade funcional desempenhada pelo funcionário/trabalhador, determinando e apurando se naquele desempenho o mesmo revelou desconhecer e aplicar as normas legais […], bem como exercer as funções em desacordo com os objetivos que haviam sido fixados ou mobilizando meios desadequados à consecução desses fins” (Acs. TCAN de 19-04-2013 e de 18-11-2016, proferidos respetivamente nos processos que aí correram termos sob os n.ºs 02271/10.5BEPRT e 02252/10.9BEEPRT - todos os arestos aqui citados se encontram disponíveis in http://www.dgsi.pt).

Por fim, o dever de correção consiste em tratar com respeito, urbanidade, cordialidade os demais sujeitos e intervenientes processuais, funcionários judiciais e público em geral (art. 73.º, n.º 10, da LGTFP).

Pois bem, tendo em conta tudo o que acima já se deixou dito em relação às restantes invalidades invocadas, e que aqui se dá por integralmente reproduzido dada a sua estreita conexão com a invalidade que agora nos ocupa, torna-se mister concluir não padecerem as decisões impugnadas do vício ora apontado.

Conforme se refere na Deliberação impugnada, “[…] em face da linha de defesa apresentada pelo arguido, tornava-se necessário debater o modo de ser da Exmª Reclamante e a eventual influência da mesma na sobrinha […]”, sendo que “[…] em momento algum se pode descortinar na transcrição apresentada na participação […] qualquer atitude vexatória ou discriminatória da vida privada da Exmª Reclamante; E em momento algum se vislumbra que os Exmºs Juízes, no decurso do julgamento, tenham assumido qualquer atitude intrusiva na vida privada das Exmª Reclamante, para além do estritamente necessário ao que competia apurar […]; em momento algum se vislumbra também que os Exmºs Juízes participados tenham tido ou permitido que se tivesse tido atitudes menos dignas e desrespeitosas quer dos intervenientes quer dos terceiros”.

Na verdade, cumpre ter presente que um dos princípios basilares do processo penal se traduz precisamente no “[…] poder-dever que ao tribunal incumbe de esclarecer e instruir autonomamente, mesmo para além das contribuições da acusação e da defesa, o “facto” sujeito a julgamento, criando aquele mesmo as bases necessárias à sua decisão. De tal sorte que a intenção do princípio (princípio da investigação) - sem deixar ele de servir de diretriz à prossecução ou desenvolvimento de todo o processo penal - dirige-se pois, primeiramente, ao conseguimento das bases da decisão e, portanto, à matéria das provas; por isso mesmo se pode também designá-lo corretamente por princípio da verdade material […]”  (Jorge Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, 1.ª edição, reimpressa, Coimbra Editora, 2004, página 148).

Mais: “A fórmula utilizada dá intencionalmente a perceber não significar o princípio em questão que o juiz tenha de (ou sequer deva) permanecer passivo a ouvir o debate que perante ele se desenrola […], antes sim que toda a prossecução processual deve cumprir-se de modo a fazer ressaltar não só as razões da acusação, mas também as da defesa […]” (idem, ibidem, pp. 149 e 150).

Vale isto por dizer, ao cabo e ao resto, que no processo penal se consagra expressamente a descoberta da verdade material. Como tal, impõe-se, por isso, ao juiz, no âmbito dos poderes de direção da audiência que lhe estão atribuídos, apurar (todas) as situações que relevem para a boa decisão da causa.

Neste conspecto, e conforme também resulta da fundamentação das passagens das decisões impugnadas transcritas supra, tendo o arguido centrado a sua defesa na influência do contexto familiar, designadamente da ora Autora/AA, sobre os sobrinhos, entre eles a menor, a quem seriam “incutidas ideias mirabolantes sobre perigos e contactos com homens”, não se enxerga uma condução do ato processual desconforme com os comandos normativos aqui aplicáveis. Não será despiciendo equacionar, de resto, que um dos pontos essenciais para a boa decisão da causa passava também por aferir da credibilidade de tais imputações e da alegada “aversão aos homens”, a qual constituiria razão de ser da evocada influência.

É, pois, a esta luz que deve ser enquadrada a linha de abordagem que os juízes participados empreenderam na diligência, porquanto a consideraram relevante para a boa decisão da questão submetida a julgamento.

E não se refira que o que os juízes participados pretenderam apurar, ao contrário do que entende a Autora, foi apenas a sua vida privada ou o seu modo de ser - tanto assim é que consideraram irrelevante, à semelhança de todos os outros sujeitos processuais (que podiam ter requerido o depoimento da demandante), a sua presença ou audição em audiência de julgamento, motivo pelo qual não terão lançado mão do disposto no artigo 340.º do CPP. Nem se objete, outrossim, que as questões formuladas no decurso da audiência de julgamento pelos participados, ainda que atinentes a aspetos da vida pessoal da Autora, tenham extravasado o objeto do processo.

Ao invés, o que se distinguiu foi tão somente uma linha de inquirição que tinha por objeto apurar a influência do contexto familiar da menor, nomeadamente para efeitos de aferir da sua credibilidade.

Não se vislumbra, portanto, que toda a linha do interrogatório não se tenha demonstrado delimitada pelo escopo de indagação das questões pertinentes para a resolução do tema em discussão e relevantes para aferir da própria credibilidade do testemunho em que foram veiculadas, da verosimilhança da tese adiantada pela defesa e, bem assim, do tipo de influência que a Autora/AA poderia ter tido nos relatos produzidos pela menor.

Dito por outras palavras: as questões colocadas à testemunha BB, em relação às quais se insurge a Autora/AA, inserem-se no objeto do processo e na dinâmica própria da audiência de julgamento. Ao tribunal - obrigado que estava a reunir todas as provas necessárias à boa decisão da causa, nos termos estabelecidos adrede - impunha-se, por conseguinte, que abordasse o tema em apreço.

Relembremos aqui a decisão reclamada, “[…] a intervenção dos Sr.s Juízes no julgamento, no que diz respeito à abordagem da questão, mostra-se objetiva e pautada sempre pela lógica e pelo intuito do esclarecimento dos factos”.

Não deixa, aliás, de resultar do próprio excerto de transcrição do interrogatório citado nos diversos instrumentos procedimentais produzidos no procedimento no âmbito do qual foram praticados os atos impugnados, que não foram feitos quaisquer comentários, pelos magistrados participados, desenquadrados da questão; assim como também não foram por estes exteriorizadas quaisquer opiniões.

Estas constatações permitem indiciar que a intenção dos magistrados era tão somente a de indagar a relação entre a menor e a Autora/AA, e a forma como aquela poderia ter sido influenciada por esta, numa lógica de atuação orientada pelo princípio da descoberta da verdade material, perante a tese alegada pelo arguido na contestação e que pretendia fazer valer em sede de audiência de discussão e julgamento.

Posto isto, e considerando a factualidade apurada, afirmamos, sem reserva, que a mesma não é subsumível às previsões normativas que consagram os deveres que a Autora/AA invoca terem sido violados.

Desde logo, não se alcança que os participados tenham de algum modo violado o dever de prossecução do interesse público, na medida em que não se descortina qualquer desrespeito pela Constituição, leis e direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, nem que na sua atuação se tenham determinado por outros quaisquer interesses que não o interesse público em realizar a justiça no caso submetido a julgamento. Ao invés, dir-se-á até, antes pelo contrário, que foi em cumprimento e observância do dever de prossecução de interesse público e de pugnar pela qualidade do serviço - que obrigava à descoberta da verdade material - que foram colocadas com pertinência as questões contra as quais a Autora/AA se insurge.

De igual modo não se alcança a violação do dever de imparcialidade em relação a quem nem sequer era parte no processo. Discernimos, inclusive, que a conduta assumida pelos juízes participados foi completamente alheia a outros quaisquer interesses senão os de procurar factos relevantes para a boa decisão da causa e descoberta da verdade material, mantendo equidistância em relação aos envolvidos. Também no que respeita ao dever de zelo é de concluir, pelas razões já anteriormente expostas aquando da abordagem das demais invalidades invocadas, que não se vislumbra a violação de quaisquer normas legais que façam concluir pela violação de tal dever.

O mesmo se diga em relação ao dever de correção, na medida em que não se evidencia na atuação dos magistrados participados qualquer atitude desrespeitosa ou de desconsideração em relação à Autora/AA, não se descortinando quaisquer excessos nas questões colocadas.

Podendo embora ser atinentes à esfera da vida privada da demandante, em momento algum da inquirição se registam, como se fez notar na decisão reclamada para o Plenário, da parte participados quaisquer comentários, acintes, locuções jocosas ou intervenções desenquadradas da questão, que pudessem sugerir sequer que o objetivo dos mesmos fosse outro que não o da descoberta da verdade e da boa decisão da causa.

Mesmo a alusão que se deixou efetuada, em sede de motivação ou fundamentação da matéria de facto, no acórdão proferido pelos juízes participados à expressão “aversão aos homens” não se pode julgar como discriminatória e devassadora da sua vida privada, como pretende a Autora/AA.

Não se vislumbra em que medida é que “ao dar palco” à expressão “aversão a homens”, os participados, “mais do que se limitarem a descrever o que alguém referiu, em julgamento, assumiram a autoria da expressão”: tal transcrição, em sede de fundamentação da decisão da matéria de facto e como reprodução dos depoimentos em que foi utilizada, não corresponde a um juízo de valor ou sequer a uma afirmação empregue no acórdão por criação do tribunal.

Não representa mais do que a citação de algo que foi dito por dois declarantes que depuseram em julgamento e, assim, como explicitação dos termos em que foi prestado um elemento de prova relevante para a decisão da matéria de facto.

Numa palavra: embora se conceba que poderia ter sido evitada - até porque, como refere a Autora/AA, “o resumo que um tribunal faça, numa decisão, do conteúdo de um depoimento de uma determinada testemunha, em cumprimento do dever de fundamentação, não necessita de relatar tudo quanto tal testemunha haja referido, ponto por ponto, mas tão-só aquilo que essa testemunha haja referido com relevo para a discussão da causa, sobretudo quando os temas irrelevantes forem de molde a afetar direitos fundamentais das partes ou de terceiros”, tal expressão acaba por traduzir apenas uma forma de observar o cabal cumprimento, pelo tribunal, do dever de fundamentação das decisões judiciais prescrito na própria CRP (v. o seu art. 205.º, n.º 1) e no CPP (v. o seu art. 374.º, n.º 2), constituindo a indicação das provas relevantes para a formação da sua convicção.

Tudo visto e sopesado, impõe-se concluir pela improcedência da pretensão deduzida pela Autora/AA.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem a Secção de Contencioso deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar a presente ação improcedente.

Valor da ação: €30.000,01 (cfr. artigos 34.º, n.ºs 1 e 2, do CPTA).

Custas pela Autora/AA (artigos 527.º, n.º 1, do CPC), fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) unidades de conta, de acordo com o artigo 7.º, n.º 1, e Tabela I-A, ambos do Regulamento das Custas Processuais.

Notifique.

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 24 de Fevereiro de 2021

Oliveira Abreu (Relator)

Nos termos do art.º 15º-A do Decreto-Lei nº 10-A/2020, de 13 de Março, aditado pelo Decreto-Lei nº 20/2020, de 1 de Maio, declaro que o presente acórdão tem o voto de conformidade das Exmªs. Senhoras Juízas Conselheiras, Maria dos Prazeres Beleza, Maria Rosa Tching, Maria da Conceição Simão Gomes e Paula Sá Fernandes, bem como, dos Exmºs. Senhores Juízes Conselheiros, António Manuel Clemente Lima e Henrique Araújo, que compõem este Coletivo.

IV. SUMÁRIO (art.º 663º n.º 7 do Código Processo Civil).