Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
4970/18.4T8VIS.C1.S1
Nº Convencional: 2.ª SECÇÃO
Relator: ANA PAULA LOBO
Descritores: RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
DANO CAUSADO POR COISAS OU ATIVIDADES
CULPA DO LESADO
CONCORRÊNCIA DE CULPAS
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
TRANSPORTE DE PASSAGEIROS
INDEMNIZAÇÃO DE PERDAS E DANOS
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
Data do Acordão: 12/07/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE
Sumário :
O comportamento da vítima que aceitou ser transportada no reboque de um tractor, adequado exclusivamente ao transporte de carga, que não dispunha de qualquer lugar específico para o transporte de passageiros, concorre, pelo menos para o agravamento dos danos verificados, em percentagem que, nos termos do disposto no art.º 570.º do Código Civil computamos em 30%.
Decisão Texto Integral:

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I – Relatório

I.1 – relatório

AA, por si e na qualidade de único e universal herdeiro de seu filho BB, intentou, em 31 de Outubro de 2018, acção declarativa, de condenação, com processo comum, contra a sociedade “Seguradoras Unidas, S.A.” para efectivação da responsabilidade civil emergente de acidente de viação ocorrido a 7 de Março de 2018, em consequência do qual resultou, por culpa do condutor do tractor segurado na companhia ré a morte do seu filho.

O Tribunal de 1.ª instância proferiu sentença que julgou parcialmente procedente a acção condenando a R. a pagar ao A. AA, a quantia de sessenta e cinco mil euros, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação até integral pagamento.

O A. e a ré interpuseram recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidido pela improcedência do recurso apresentado pela ré, julgado a apelação do A. parcialmente procedente e condenado a Ré, a pagar ao Autor a indemnização global de 85.498,00 € (oitenta e cinco, quatrocentos e noventa e oito mil euros), acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação e até integral pagamento;

A ré, actualmente Generali Seguros, S.A. apresentou recurso de revista, e, para a hipótese de vir a considerar-se existir dupla conforme que obste à apreciação do recurso de revista, recurso de revista excepcional, apresentando alegações que terminam com as seguintes conclusões:

DA ADMISSIBILIDADE DO PRESENTE RECURSO DE REVISTA

Como Recurso de Revista normal

1. A decisão proferida pelo Tribunal a quo é passível de recurso, porquanto não se verifica dupla conforme prevista no artigo 671.º, n.º 3 do CPC, verificando-se os pressupostos de alçada e sucumbência.

2. Ademais, as decisões são distintas até na fundamentação, porquanto a Primeira Instância apenas se pronunciou sobre a causalidade dos danos, enquanto o Tribunal a quo já se pronunciou sobre a causalidade do acidente e a causalidade dos danos.

Sem prescindir,

Como Recurso de Revista Excepcional

3. Caso se venha a considerar - hipótese que se coloca por mera cautela de patrocínio - existir dupla conforme quanto à questão objecto do processo recurso, a Apelante requer que o mesmo seja admitido como de revista expecional.

4. Para esse efeito, caso o venerando Tribunal da Relação de Guimarães ou a competente secção cível deste venerando Supremo Tribunal de Justiça (à qual venha a ser distribuída eventual reclamação de indeferimento do recurso pelo Tribunal a quo) não admitam o presente recurso subordinado como de revista normal, a Apelante requer que o mesmo seja remetido, nos termos do disposto no artigo 672.º, n.º 3 do CPC, à formação constituída por três juízes escolhidos anualmente pelo presidente de entre os mais antigos das secções cíveis do Supremo Tribunal de Justiça para verificação da respectiva admissibilidade.

5. No presente recurso está em causa uma questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito, estando ainda em causa interesses de particular relevância social, o que legitima a admissão do presente recurso como de revista excepcional, ao abrigo do disposto no artigo 671.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC.

6. Pela gravidade das consequências de acidentes como o que está aqui em causa e pela função social do seguro automóvel - de que decorre um dos interesses em confronto na presente acção, qual seja o da protecção das vítimas de acidente de viação - mas também pela necessária consciencialização da necessidade de cumprimento das normas de circulação rodoviária por todos os que circulam pela via pública (sejam peões, condutores ou passageiros transportados) de molde a evitar a ocorrência de danos - de que decorre outro dos interesses em causa na acção, qual seja o da (re)afirmação da responsabilidade individual que sobre cada um impende de tomar todos os cuidados necessários para evitar vir a envolver-se em acidentes - é inequívoco afirmar-se que no presente recurso estão em causa interesses de particular relevância social.

7. Por outro lado, de acordo com a jurisprudência do TJUE, cabe às instâncias jurisdicionais dos Estados-Membros apreciar, à luz do direito nacional constituído, mas de acordo com critérios de proporcionalidade, as situações em que a indemnização pode ser totalmente excluída em virtude de um comportamento do passageiro lesado.

8. A questão de direito relevante para a apreciação do litígio, estando ainda longe da uma estabilidade tal que confira segurança na aplicação do regime jurídico da responsabilidade civil, é muito relevante para uma melhor aplicação do direito, designadamente para a sedimentação de jurisprudência que possa servir de orientação para os cidadãos sobre qual a gravidade exigida a um comportamento culposo do lesado para que se possa concluir pela exclusão do direito de indemnização.

9. A jurisprudência sobre a admissibilidade das revistas excepcionais vem considerando que situações semelhantes ou idênticas à dos presentes autos preenchem os critérios do tratamento de interesses de particular relevância social e de necessidade para uma melhor aplicação do direito, constituindo exemplos de tais decisões o acórdão de 31/01/2019, proferido na revista excepcional n.º 954/13.7TBPMS.C1.S1, de que foi relator Abrantes Geraldes, o acórdão de 16/05/2019, proferido na revista excepcional n.º 86375/16.9YIPRT.L1.S1, de que foi relator Abrantes Geraldes, e o acórdão de 02/02/2017, proferido na revista excepcional n.º 2443/14.3T8BRG.G1, de que foi relator Bettencourt de Faria.

10. Em face do exposto, estão preenchidos os pressupostos do artigo 672.º, n.º 1, alíneas a) e b) do CPC, pelo que, caso se entenda existir dupla conforme entre as decisões das instâncias, deve o presente recurso ser admitido como de revista excepcional, o que se requer.

Além disso,

11. Estão também preenchidos os pressupostos do artigo 672.º, n.º 1, alínea c).

12. Nos presentes Autos está em causa a imputação de responsabilidade a título de culpa ao passageiro que aceitou ser transportado num trator e que, depois, veio a cair e, bem assim, a imputação da causalidade dos danos a esse mesmo passageiro que aceitou ser transportado em veículo que não se destinada ao transporte de passageiros, não dispunha de cintos de segurança, nem arcos de protecção (ex vi artigo 570.º Código Civil).

13. No douto Acórdão de 15 de outubro de 2020 do Tribunal da Relação de Guimarães, processo 1382/17.0T8BGC.G1, disponível em https://www.direitoemdia.pt/document/s/31eb3d, foi proferida decisão que incidiu, precisamente, sobre a circunstância da vítima aceder a ser transportada no atrelado do trator, sabendo que não tinha condições de segurança para o transporte de pessoas, considerando que essa circunstância contribuiu para o agravamento dos danos.

14. Assim, o decidido nos presentes Autos quanto à questão da causalidade dos danos está em contradição com o decido no referido Aresto da Relação de Guimarães, decisão esta que foi, depois, confirmada por este Supremo Tribunal de Justiça, no douto Acórdão de 14 de julho de 2021, processo 1382/17.0T8BGC.G1.S1.

DOS FUNDAMENTOS DO RECURSO

15. Apesar das limitações inerentes aos poderes de conhecimento por parte deste Supremo Tribunal de Justiça, ainda assim, nos termos do disposto no número 3 do artigo 682.º do CPC, pode e deve ser anulada a decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, o que desde já se requer.

16. Pretende a aqui Apelante que seja fiscalizada a observância das regras de direito probatório material, porquanto no seu entender, a fundamentação apresentada na decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto ao pedido de prova de um facto por presunção judicial, sempre com o devido respeito, padece de evidente contradição, mostra-se ilógica e, mais ainda, não se mostra devidamente fundamentada.

17. Com efeito, em sede de recurso de apelação, pretendeu a aqui Apelante que o Tribunal a quo desse como provado que o desequilíbrio e queda de BB vieram a ocorrer por via do estado de influência do álcool e de substâncias em que se encontrava.

18. Sendo que pretendeu que a prova deste facto resultasse por prova por presunção, porquanto resultaram provados os seguintes factos base: resultaram provados os seguintes factos:

16) O pavimento era composto de um aglomerado asfáltico e encontrava-se em regular estado de conservação.

(17) O pavimento estava limpo e seco.

(18) A estrada apresenta uma configuração recta, em patamar

(19) Aquando da queda o trator pelo arguido seguia a uma velocidade não concretamente apurada

20) Já após a queda, mas em momento que, em concreto, não se logrou apurar, foi colhida uma amostra de sangue a BB que revelou a presença de metabolitos activos e inactivos de canabinóides e etanol (álcool) sob uma concentração de 1,18 g/l de sangue, considerando um erro de 0,15 g/l

19. Ora, se não se apurou a circunstância como a queda ocorreu e tendo-se apurado que a malograda vítima revelou a presença de metabolitos activos e inactivos de canabinoides e etanol (álcool) sob uma concentração de 1,18 g/l de sangue, considerando um erro de 0,15 g/l, pretendia-se, a partir dos supra indicados factos base, infirmar um facto desconhecido, isto é, que o desequilíbrio e queda de BB vieram a ocorrer por via do estado de influência do álcool e de substâncias em que se encontrava.

20. Aliás, este juízo de indução impunha-se, à luz das regras da experiência, pois que em virtude da taxa de alcoolemia e o consumo de canabinoides, a capacidade de reacção do malogrado BB e os seus os reflexos estavam fortemente diminuídos, bem como a sua capacidade de se concentrar e de se equilibrar em cima do reboque estavam francamente prejudicadas.

21. Acontece que, o Tribunal a quo, ao mesmo tempo que refere que se desconhece o que motivou a queda, ao mesmo tempo refere que a única causa só pode ter que ver com as condições instáveis em que era transportada a infeliz vítima,

22. Ou seja, avança com uma causa sem que essa causa tenha resultado demonstrada para afastar a conclusão que se lhe impunha por força das regras da experiência.

23. Além disso, sem qualquer fundamentação para essa conclusão, o Tribunal a quo entende que imputar a queda à referida influência do álcool e de substâncias psicotrópicas, é inferência que não é suportada por factualidade provada (nomeadamente a indicada pela Ré) que a permita, acrescentando, ainda, que a prova dos factos base não existe.

24. Ora, não só os factos base resultaram provados [(factos 16) a 20) dados como provados], como se impõe concluir, ainda que por recurso a prova por presunção, que a queda se ficou a dever à influência do álcool e de substâncias psicotrópicas.

25. A desconsideração total por parte do Tribunal a quo ante a evidência do facto que podia e devia ter dado como provado por recurso a prova por presunção, traduz uma manifesta violação das regras de direito probatório.

Sem prescindir,

26. Entende a Apelante que, mesmo considerando os factos tal qual se encontram dados como provados na sentença em crise, a queda ficou a dever-se, a título de culpa, única e exclusivamente à vítima.

27. Sendo o motivo da queda desconhecido e antes resultando que a queda se deu numa recta, em patamar e com asfalto em regular estado de conservação, sempre com o devido respeito, não há qualquer nexo causal entre a queda e o facto da vítima se encontrar a ser transportado num reboque.

28. A que acresce a circunstância de que foi decisão do BB ali seguir e ser transportados nas condições em que o foi.

29. Todavia, se se aderir ao supra pugnado, dúvidas não restam de que a causa da queda, a título de culpa, foi o estado de embriaguez e de consumo de estupefacientes.

30. Nenhum outro motivo justifica que numa recta, em patamar e com asfalto em regular estado de conservação a infeliz vítima tenha caído do reboque.

31. E, nessa medida, se mostra evidenciado o nexo causal entre o sinistro e a culpa do infeliz BB traduzida na circunstância de circular nas condições de alcoolemia e consumo de estupefacientes em que o fazia.

32. Por força do vindo de referir, impõe-se a absolvição da Ré do pedido.

33. Mas, ainda que assim não se entenda, sempre será de censurar a culpa do lesado/vítima nos danos ocorridos.

34. Era exigível a um bom pai de família colocado naquelas concretas situações de facto que não se fizesse voluntariamente transportar naquele reboque, não só porque estava exposto ao risco de queda pela ausência de uma qualquer segurança, mas também porque a vítima não podia desconhecer que estava embriagado e que havia consumido estupefacientes, o que potencia ainda mais o risco de queda.

35. o que agrava a censura a fazer ao comportamento da vítima, pois que, mesmo assim, acedeu em ser transportado no reboque, donde os danos sofridos pela vítima apenas ocorreram em consequência das condições de transporte que assumidamente aceitou, associadas ao estado de alcoolemia e de consumo de estupefacientes.

36. Ao abrigo do disposto no artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil, considerando a concorrência de um facto culposo do lesado para a produção dos danos, o seu grau de culpa e a contribuição do mesmo para as consequências verificadas, deve a indemnização ser totalmente excluída.

37. O Tribunal a quo na douta Sentença dos Autos, ao decidir como decidiu, violou o preceituado nos artigos 342.º, 349.º 487.º e 570.º, todos do Código Civil.

Nestes termos, e nos que Vossas Excelências mui doutamente suprirão, julgando procedente o presente recurso e julgando de conformidade com as precedentes CONCLUSÕES, será feita uma verdadeira e sã JUSTIÇA!

Pelo autor foram apresentadas contra-alegações defendendo a confirmação do acórdão recorrido.


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I.2 – Questão prévia - admissibilidade do recurso

O recurso de revista é admissível ao abrigo do disposto no art.º 671.º, do Código de Processo Civil.

Não se verifica a situação de dupla conforme por o Tribunal da Relação ter alterado a decisão proferida em 1.ª instância quanto aos danos indemnizáveis.


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I.3 – O objecto do recurso

Tendo em consideração o teor das conclusões das alegações de recurso e o conteúdo da decisão recorrida, cumpre apreciar a seguinte questão:

1. Culpa do lesado.


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I.4 - Os factos

O acórdão recorrido considerou provados e relevantes para a decisão do recurso os seguintes factos:

1. Através de uma operação de fusão por incorporação, as companhias Açoreana Seguros, S.A., pessoa colectiva n.º ... ... .48, Seguros LOGO, S.A., pessoa colectiva n.º ... ... .00 e T-Vida, Companhia de Seguros, S.A., pessoa colectiva n.º ... ... .86 foram incorporadas na Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A. Assim, todos os direitos e obrigações, património, activos, passivos e responsabilidades das sociedades incorporadas foram transferidos para sociedade incorporante, que assegurará a continuidade das operações das sociedades incorporadas. Em consequência, a Companhia de Seguros Tranquilidade, S.A. foi redenominada para Seguradoras Unidas, S.A., mantendo o número de identificação de pessoa colectiva [apud certidão permanente disponível, código 0572-..68-..48].

2. O proprietário tractor agrícola matriculado como GR-..-.. tinha a sua responsabilidade civil emergente de acidente de viação, relativamente a danos causados a terceiros, transferida para a Ré mediante a apólice n.º ........29.

3. BB faleceu no dia ... de Março de 2018, à data com 47 anos, no estado de divorciado, sem ter feito testamento ou qualquer outra disposição de última vontade.

4. O A. é o único herdeiro de BB.

5. No dia ... de Março de 2018, BB fazia limpezas num aviário, na localidade de ... com CC;

6. Durante essa actividade foi carregado estrume para um reboque, matriculado como C-4911, que estava acoplado a um tractor agrícola matriculado como GR-..- ..;

7. Quando o reboque ficou cheio, foi tapado na parte superior, sobre o estrume, com uma cobertura maleável e amovível, comumente identificada como "oleado".

8. Tal reboque haveria de ser descarregado na residência de BB, que ficava a cerca de 10 km daquele local.

9. Antes do início da marcha, BB subiu para o reboque, com o conhecimento e autorização do CC e posicionou-se sobre o oleado.

10. A parte superior do reboque assim carregado ficava a cerca de um 1,60 m de altura em relação ao solo.

11. Nem o GR nem o reboque acoplado tinham qualquer lugar específico para o transporte de passageiros, antes e só para o respectivo condutor, o que era do conhecimento de CC.

12. Depois de BB se ter posicionado no reboque, nos anteditos termos, CC iniciou a marcha, manobrando o tractor e o reboque acoplado, entrando na Estrada Nacional ... em direcção à sua residência na localidade de ....

13. Junto ao Km 52,18 da referida EN, já na freguesia de ..., concelho de ..., BB veio a cair do reboque para o pavimento da via, o que ocorreu por razões que, em concreto, não se lograram apurar.

14. Em consequência da queda, BB sofreu as lesões crânio-meningo-encefálicas e raquidianas as quais foram causa directa e necessária da sua morte, verificada pelas 17 horas desse mesmo dia.

15. Ao Km 52,18 da referida EN n.º ..., a via tinha 7 metros de largura, sendo constituída por duas vias de trânsito de sentido oposto, separadas por marcas longitudinais descontínuas.

16. O pavimento era composto de um aglomerado asfáltico e encontrava-se em regular estado de conservação.

17. O pavimento estava limpo e seco.

18. A estrada apresenta uma configuração recta, em patamar.

19. Aquando da queda o tractor seguia a uma velocidade não concretamente apurada.

20. Já após a queda, mas em momento que, em concreto, não se logrou apurar, foi colhida uma amostra de sangue a BB que revelou a presença de metabolitos activos e inactivos de canabinoides e etanol (álcool) sob uma concentração de 1,18 g/l de sangue, considerando um erro de 0,15 g/l.

21. CC sabia que ao transportar BB nas anteditas condições desrespeitava a obrigação de não transportar pessoas em número superior à lotação do veículo, ou a transportá-las de modo a comprometer a sua segurança ou a segurança da actividade da condução. Não obstante, livremente, decidiu fazê-lo.

22. CC poderia prever como possível que sobreviessem lesões físicas, ou mesmo a morte, a BB, acaso o mesmo caísse do reboque onde seguia. Não representou, todavia, a possibilidade de BB poder cair do reboque, e que da queda pudesse sobrevir a morte do mesmo.

23. Não eram conhecidos problemas de saúde, física ou cerebral / comportamental a BB.

24. À data do acidente, BB consumia estupefacientes, vivia na rua e era arrumador de carros, em ..., nas imediações do hospital daquela cidade.

25. Por ser sem abrigo, CC convidou BB para viver em casa dos seus pais.

26. Onde esteve durante alguns meses e a quem por vezes tratava como "paizinho" e "mãezinha".

27. O A. gastou a quantia de €1.785,00 a título de despesas de funeral, tendo recebido da Segurança Social apenas a importância de 1.287,00 euros;

28. O A. tinha por BB afecto e amor.

29. O falecimento de BB, provocou no A. desgosto.

- Factos não provados:

a. Que a actividade desenvolvida por BB, nos termos provado em 1) se fazia por conta e sob as ordens e instruções de CC.

b. Que a queda de BB, nas circunstâncias de tempo e lugar provados ocorreu devido à instabilidade e irregularidade da condução decorrente do tractor se encontrar acoplado a um reboque carregado de estrume, à forma como BB era transportado, e porque CC conduzia desatento, a velocidade superior a 40 km/h, o que provocou o desequilíbrio (e posterior queda) de BB.

c. Que o desequilíbrio e queda de BB vieram a ocorrer por via do estado de influência do álcool e de substâncias em que se encontrava.

d. Que BB teve percepção da queda;

e. Que, após esta e antes do falecimento teve dores, sentiu ansiedade, angústia, medo da morte e sentimentos de incapacidade de evitar a sua morte;

f. Que BB mantinha ligação afectiva com as irmãs e com o A.

g. Telefonava todos os dias para o A. de quem era o melhor amigo, companheiro e confidente

h. Que o A. tinha por BB afecto e amor.

i. Que o A e BB prestavam mutuamente, consolo e apoio.

j. Que BB era uma pessoa alegre,

k) Era considerado pelo A. um filho extremoso, meigo e exemplar.

l) O falecimento de BB, provocou no A., dor, angústia e saudade;

m) Que, após o falecimento de BB, o A. deixou de ter alegria e confiança no futuro,

n) Deixou de dormir e sofre de pesadelos constantes desde a morte do filho,

o) Deixou de conviver socialmente e raramente sai de casa.

p) Chora diariamente e não tem vontade de falar ou conversar com outras pessoas.

q) Que antes da morte de BB, o A. era uma pessoa alegre e com vontade de viver.

r) Que o A. gastou em ramos e coroas de flores para o funeral uma quantia não inferior a € 300,00 e com ornamentações e velas a quantia de € 200,00.

s) Que o A, na compra de roupa de luto, umas calças, camisa e casaco, o A. gastou a quantia de € 150,00;

t) Por via da queda ficaram inutilizáveis um casaco, camisa, calças, cinto, um relógio e um telemóvel de marca Samsung, no valor de € 50,00, € 20,00, € 30,00, €10,00, €100,00, €150,00, respectivamente, que BB trazia consigo.


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II - Fundamentação

1. Culpa do lesado

Considera a recorrente que “se impunha a absolvição da Apelante do pedido na dupla perspectiva: por força da culpa exclusiva na queda que se ficou a dever unicamente ao facto do infeliz BB se encontrar a ser transportado no reboque embriagado e tendo consumido estupefacientes; por força da culpa do lesado/vítima que insistiu e acedeu a ser transportado nas condições que sabia que não lhe garantiam segurança no caso de um eventual acidente, o que é agravado pela circunstância de assim ter ocorrido quando o mesmo estava embriagado e havia consumido estupefacientes, pelo que é a vítima culpada na produção dos danos nos termos do artigo 570.º do Código Civil.

Ao decidir como fez, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 342.º, 349.º 487.º e 570.º, todos do Código Civil.”.

Para tanto requer “que seja fiscalizada a observância das regras de direito probatório material, porquanto no seu entender, a fundamentação apresentada na decisão proferida pelo Tribunal a quo quanto ao pedido de prova de um facto por presunção judicial, padece de evidente contradição, mostra-se ilógica e, mais ainda, não se mostra devidamente fundamentada.”.

Pretende a recorrente que o Supremo Tribunal de Justiça considera como provado “ que o desequilíbrio e queda de BB vieram a ocorrer por via do estado de influência do álcool e de substâncias em que se encontrava”, com base em presunção judicial a retirar dos seguintes factos:

16) O pavimento era composto de um aglomerado asfáltico e encontrava-se em regular estado

de conservação.

(17) O pavimento estava limpo e seco.

(18) A estrada apresenta uma configuração recta, em patamar

(19) Aquando da queda o tractor pelo arguido seguia a uma velocidade não concretamente apurada

20) Já após a queda, mas em momento que, em concreto, não se logrou apurar, foi colhida uma amostra de sangue a BB que revelou a presença de metabolitos activos e inactivos de canabinoides e etanol (álcool) sob uma concentração de 1,18 g/l de sangue, considerando um erro de 0,15 g/l.

O Tribunal recorrido em impugnação da matéria de facto em sede de apelação apresentada pela recorrente quanto à consideração de não provado -

c) Que o desequilíbrio e queda de BB vieram a ocorrer por via do estado de influência do álcool e de substâncias em que se encontrava.

apesenta a seguinte argumentação para continuar a considerar não provado tal facto:

“(…) Quanto à factualidade que se julgou não provada em b) e c), assim como no processo crime sucedera, não foi nestes autos produzida prova que a permitisse afirmar. (…)

Por outro lado, das imagens do reboque resulta que, pese embora este estivesse cheio, mesmo formando uma cúpula para lá dos limites dos taipais laterais, verificamos que a superfície horizontal é extensa, pelo menos correspondente a superfície do próprio atrelado. O que quer dizer, uma vez mais recorrendo às regras da experiência e respeitando as regras da física – por via do plano de inclinação da cúpula gerada pela carga - que o simples facto de o trator iniciar a marcha e fazer a marcha, CC viesse necessariamente a cair. Para

tanto, seria necessário que o plano de inclinação formado pela carga fosse de tal ordem – por exemplo, em plano quase vertical - que a mera movimentação provocasse a perda de aderência do corpo de CC à carga.

Por outro, lado ainda, a perda de capacidades de equilíbrio geradas pela ingestão de bebidas alcoólicas e consumo de canabinoides não ocorre automaticamente. Antes, o que o saber comum e experiência dizem, porque são realidades observáveis no dia-a-dia, é que quer um quer outro ou a cumulação de ambos, terão de atingir níveis elevados de saturação no sangue; e, para além desses níveis, os efeitos variam em gravidade consoante a composição de cada pessoa e o concreto nível saturação, indo da mera sensação de tontura ou perda de equilíbrio, até à incapacidade motora total, isto é, ao ponto de não haver equilíbrio para manter qualquer postura posicional vertical, senão a de repouso total.

Ora, se ficou claro pelo depoimento de CC que BB, pelos seus próprios meios, subiu para o reboque e se acomodou; e, se antes disso, esteve a desenvolver atividade física, carregando estrume, podemos com segurança afastar a possibilidade de uma perda incontrolável de equilíbrio. E, podemos com segurança reconhecer que as capacidades motoras de BB estariam quase integralmente salvaguardadas.

Caso contrário nem a tarefa de carregar estrume nem a tarefa de subir para o reboque seriam exequíveis sem quer fosse percetível para terceiro a perda de equilíbrio ou qualquer outra capacidade motora, nomeadamente força muscular.

Demonstrativo este raciocínio é, por exemplo, a circunstância de que nem todos os condutores que manobram veículos com TAS de 1,18 g/l, têm acidentes rodoviários– senão mesmo uma ínfima parte deles é que têm – e, para o ato da condução, a acuidade visual, a destreza de movimentação e o tempo de reação, são essenciais.

Logo, parece-nos, não só o mero estado de embriaguez, ainda que adicionado à influência de substâncias, não pode ser considerado como causa inevitável do desequilíbrio, como apenas e só um estado de influência com repercussões notórias, visíveis e percetíveis por terceiro nos poderia dar, no caso, a necessária segurança para afirmar que o desequilíbrio, e inevitável queda, se ficou a dever a esse estado de influência alcoólica e de substâncias.”.

A recorrente considera que “(…) este juízo de indução impunha-se, à luz das regras da experiência, pois que em virtude da taxa de alcoolemia e o consumo de canabinoides, a capacidade de reacção do malogrado BB e os seus os reflexos estavam fortemente diminuídos, bem como a sua capacidade de se concentrar e de se equilibrar em cima do reboque estavam francamente prejudicadas”.

As instâncias analisaram a prova produzida tendo acesso directo aos depoimentos prestados em audiência, o que se mostra vedado ao Supremo Tribunal de Justiça, e, em total consonância decidiram que está indemonstrado que a queda da vítima do tractor se deveu a taxa de alcoolemia e ao consumo de canabinoides que apresentava depois do acidente. Não há dúvida que a ciência aponta para que o álcool e os canabinoides podem diminuir a capacidade de reacção e os reflexos, mas não há uma métrica dessa influência. Como analisa o Tribunal recorrido, a influência das ditas substâncias produz resultados diferentes em diversas pessoas e há vários indícios de que a vítima, até subir para o atrelado, tinha um comportamento que não evidenciou um estado de perturbação motora ou mental.

Não se apurou a velocidade a que seguia o veículo, sendo razoável supor que seria, pelas razões analisadas pelo Tribunal recorrido, inferior a 40 km/hora. Apesar de o tractor e do reboque circularem num pavimento de asfalto, em regular estado de conservação que poderá significar que não apresentava buracos significativos, limpo e seco, isto é, sem obstáculos e não escorregadio, tendo a estrada uma configuração recta, em patamar, o certo é que o reboque do tractor é um veículo de grande oscilação e a vítima encontrava-se em cima do estrume que não é um material compacto e pode apresentar viscosidade, ter abatido nalguma parte e causar rampa, e, sobre um oleado que favorece o escorregamento. Não sabemos se a vítima se sentou junto ao tractor ou mais junto ao extremo oposto do atrelado, se fez algum movimento para se acomodar melhor, e não tinha nada onde se agarrar para se defender das oscilações provocadas pela marcha do reboque e do eventual deslizamento que elas viessem a provocar a um corpo colocado em cima do oleado. Ninguém viu a queda e não poderemos dizer que outra pessoa, transportada nas mesmas circunstâncias, não cairia também, mesmo sem álcool e sem canabinoides.

As condições instáveis em que era transportada a vítima resultam claramente da matéria provada:

6. Durante essa actividade foi carregado estrume para um reboque, matriculado como C-4911, que estava acoplado a um tractor agrícola matriculado como GR-19- 36;

7. Quando o reboque ficou cheio, foi tapado na parte superior, sobre o estrume, com uma cobertura maleável e amovível, comumente identificada como "oleado".

9. Antes do início da marcha, BB subiu para o reboque, com o conhecimento e autorização do CC e posicionou-se sobre o oleado.

10. A parte superior do reboque assim carregado ficava a cerca de um 1,60 m de altura em relação ao solo.

11. Nem o GR nem o reboque acoplado tinham qualquer lugar específico para o transporte de passageiros, antes e só para o respectivo condutor, o que era do conhecimento de CC.

12. Depois de BB se ter posicionado no reboque, nos anteditos termos, CC iniciou a marcha, manobrando o tractor e o reboque acoplado, entrando na Estrada Nacional ... em direcção à sua residência na localidade de ....

Assim, a situação em análise, à luz das regras da experiência, face aos factos provados, não permite presumir judicialmente que a queda se ficou a dever à ingestão de álcool e canabinoides, porque é razoável admitir que na sua ausência daqueles produtos em circulação no sangue da vítima, a queda poderia também ter ocorrido. O juízo formulado pelo Tribunal recorrido a este propósito não se apresenta, pois como contraditório, ilógico ou infundamentado.

Por último, refere a recorrente, que:” sempre será de censurar a culpa do lesado/vítima nos danos ocorridos.

Era exigível a um bom pai de família colocado naquelas concretas situações de facto que não se fizesse voluntariamente transportar naquele reboque, não só porque estava exposto ao risco de queda pela ausência de uma qualquer segurança, mas também porque a vítima não podia desconhecer que estava embriagado e que havia consumido estupefacientes, o que potencia ainda mais o risco de queda.

o que agrava a censura a fazer ao comportamento da vítima, pois que, mesmo assim, acedeu em ser transportado no reboque, donde os danos sofridos pela vítima apenas ocorreram em consequência das condições de transporte que assumidamente aceitou, associadas ao estado de alcoolemia e de consumo de estupefacientes.

Ao abrigo do disposto no artigo 570.º, n.º 1 do Código Civil, considerando a concorrência de um facto culposo do lesado para a produção dos danos, o seu grau de culpa e a contribuição do mesmo para as consequências verificadas, deve a indemnização ser totalmente excluída.”.

Como decorre do disposto no art.º 131.º do Código da Estrada, “Constitui contra ordenação rodoviária todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de norma do Código da Estrada ou de legislação complementar e legislação especial cuja aplicação esteja cometida à ANSR, e para o qual se comine uma coima.” sendo, nestas situações, sempre punível a negligência – art.º 133.º do Código da Estrada -. Os agentes que pratiquem os factos constitutivos de qualquer contra-ordenação rodoviária são por elas responsáveis - art.º 135.º, n. 1 do Código da Estrada -.

O Título II - Do trânsito de veículos e animais – do Código da Estrada estatui no que no transporte de pessoas diz respeito – art.º 54.º, n.º 3 - 3 –, a proibição do transporte de pessoas de modo a comprometer a sua segurança, prevendo no seu n.º 6 – o sancionamento com coima de (euro) 60 a (euro) 300, aplicável por cada pessoa transportada indevidamente.

Tratando-se do transporte de uma pessoa adulta no reboque de um tractor, adequado exclusivamente ao transporte de carga, que não dispunha de qualquer lugar específico para o transporte de passageiros, esta (vítima) não podia ignorar o risco da sua queda durante o percurso a efectuar pelo tractor. A dinâmica apurada do acidente em que não se revelou existir qualquer outra causa para os danos para além do transporte indevido da vítima num reboque não preparado para assegurar qualquer condição de segurança no transporte de passageiros, não permite olvidar que o comportamento desta, ao aceitar ser conduzida na viatura em tais circunstâncias, é também ele ilícito e censurável, e contribuiu para o agravamento dos danos. Sendo certo que competia ao condutor do tractor não permitir o transporte deste passageiro, sendo grave a sua conduta complacente, para a produção dos danos que vieram a registar-se contribuiu também o comportamento ilícito da vítima. Com efeito, o comportamento da vítima, na presente situação cifra-se por uma omissão grave e culposa do dever de cuidado exigíveis a uma pessoa medianamente cuidadosa e diligente, colocada na situação da lesado. É do conhecimento geral que é perigoso fazer-se transportar no reboque de um tractor pelo que tal conduta sempre terá que ser tida como contributiva, pelo menos para o agravamento dos danos verificados em percentagem que, nos termos do disposto no art.º 570.º do Código Civil computamos em 30% em sintonia com anteriores posições adoptadas pelo Supremo Tribunal de Justiça, em situações similares de que destacamos, a título meramente exemplificativo, o acórdão proferido em 14 de Julho de 2021 no processo 1382/17.0T8BGC.G1.S1, acessível em www.dgsi.pt., que segue uma longa e anterior orientação do Supremo Tribunal de Justiça em acidentes similares, sem que os elementos constantes da matéria de facto permitam afastar totalmente a responsabilidade do condutor do tractor na produção do evento danoso, como pretendido pela recorrente.

Procede, pois, parcialmente a revista pelo que o valor da indemnização global devida ao autor se computa em 59 848,60€ (70% x 85.498,00 € = 59 848,60€).


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III – Deliberação

Pelo exposto acorda-se em conceder parcial provimento à revista, revogar parcialmente o acórdão recorrido e condenar a Ré Generali Seguros, S.A., a pagar ao A. a indemnização global de 59 848,60€ (cinquenta e nove mil oitocentos e quarenta e oito euros e sessenta cêntimos), acrescida dos respectivos juros de mora, à taxa legal, vencidos desde a citação e até integral pagamento, mantendo-o no mais decidido.

Custas pela partes, em todas as instâncias, na proporção do respectivo decaimento.


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Lisboa, 7 de Dezembro de 2023

Ana Paula Lobo (relatora)

Catarina Serra

Afonso Henrique