Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
20106/23.7T8SNT.L1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: LUIS CORREIA DE MENDONÇA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL DE COMÉRCIO
DIREITOS SOCIAIS
PROCEDIMENTOS CAUTELARES
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
PATRIMÓNIO
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Data do Acordão: 09/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :
I. Para determinar a competência material para conhecimento dos procedimentos cautelares ante causam, a jurisprudência tem recorrido ao princípio da coincidência com a acção principal.

II. Estando em causa contrato de compra e venda, por preço baixo (pretium vilis), entre a sociedade 1.ª Requerida e a sua então administradora única, a 2.ª Requerida, por pessoa interposta -a 3.ª Requerida-, e o 4.º Requerido, mediante o qual a 2.ª Requerida, administradora única da 1.ª, retirou todos imóveis do património desta, para os integrar no seu próprio património, o tribunal de comércio não é competente, em razão da matéria, para conhecer do procedimento.

Decisão Texto Integral: Processo n.º 20106/23.7T8SNT.L1

Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça


***


AA instaurou, no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, Juízo de Comércio de ..., procedimento cautelar comum contra Yellow Pumpkin, SA, BB, J... Unipessoal, Lda.. e CC, tendo formulado os seguintes pedidos:

«A) Deve o presente procedimento cautelar ser julgado provado e procedente e, em consequência, serem ORDENADAS as seguintes PROVIDÊNCIAS:

Ser a 3.ª Requerida, J... Unipessoal, Lda. (…), a qualquer título e por qualquer fundamento, impedida de transmitir e/ou prometer transmitir, onerar e/ou prometer onerar, e/ou criar constrição por qualquer outra forma, independentemente do fundamento e causa, sobre os 11 (onze) imóveis a seguir identificados, até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na acção principal de que este procedimento cautelar será dependente: 1) Fração autónoma D, edifício –A – rés-do-chão frente (…); 2) Fração autónoma E, Segundo andar esquerdo (…); 3) Fração autónoma F (…); 4) Fração autónoma O (…); 5) Fração autónoma E, primeiro andar esquer-o (…); 6) Fração autónoma AB (“...”) (…); 7) Fração autónoma AI (“...”) (…); 8) Fração autónoma GAZ (…); 9) Fração autónoma L (“...”) (…); 10) Fração autónoma D, terceiro andar (…); 11) Fração autónoma AB (…).

B) A 3.ª Requerida, no prazo a ser determinado pelo Tribunal, mas nunca superior a 05 (cinco) dias, a contar da notificação da decisão do decretamento da providência,- notificação por carta com aviso de recepção ou, no caso de a notificação por carta resultar frustrada (mas disso fazendo prova), por agente de execução-, aos arrendatários dos imóveis nesta data arrendados ao abrigo dos contratos de arrendamento celebrados com a 1.ª Requerida -, identificados nos números 1), 2), 4), 5), 10) e 11) do pedido A) precedente, que, durante o presente procedimento cautelar, todas as rendas dos arrendamentos que incidem sobre os identificados imóveis, vencidas e vincendas, eventuais juros e quaisquer parcelas devidas que emerjam dos contratos de arrendamento, devem ser depositadas em conta à ordem do presente procedimento cautelar, a ser indicada por este Tribunal, até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na ação principal de que este procedimento cautelar será dependente, juntando aos autos prova do cumprimento da providência decretada, no prazo que vier a ser determinado pelo Tribunal;

C) A 3.ª Requerida, no prazo a ser determinado pelo Tribunal, mas nunca superior a 05 (cinco) dias, a contar da notificação da decisão do decretamento da providência, notificação por carta com aviso de recepção ou, no caso de a notificação por carta resultar frustrada (mas disso fazendo prova), por agente de execução – a H..., Unipessoal, Lda. (…)... (H...), que todos os valores, a qualquer título, devidos pela gestão ou sublocação do imóvel identificado no número 9) do pedido A) precedente, devem ser depositados em conta à ordem do presente procedimento cautelar, a ser indicada por este Tribunal, durante todo o curso do presente procedimento cautelar, até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na ação principal de que este procedimento cautelar será dependente, juntando aos autos prova do cumprimento da providência decretada, no prazo que vier a ser determinado pelo Tribunal.

D) A 3.ª Requerida, no prazo a ser determinado pelo Tribunal, mas nunca superior a 05 (cinco) dias, informar ao Tribunal se, com a transmissão dos 11 imóveis, foi celebrado contrato de arrendamento ou de qualquer direito de uso e gozo e/ou de serviços para a exploração, a qualquer título, dos imóveis identificados nos números 3), 6) 7) e 8), do pedido A), em data anterior à notificação da decisão do decretamento da providência. Em caso positivo, notificação- por carta com aviso de recepção ou, no caso de a notificação por carta resultar frustrada (mas disso fazendo prova), por agente de execução – os arrendatários ou os prestadores de serviços, de que todas as receitas, de qualquer natureza, oriundas dos referidos imóveis, devem ser depositadas em conta à ordem do presente procedimento cautelar, a ser indicada por este Tribunal, até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na ação principal de que este procedimento cautelar será dependente, juntando aos autos prova do cumprimento da providência decretada, no prazo que vier a ser determinado pelo Tribunal.

E) Até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na ação principal de que este procedimento cautelar será dependente, juntar aos autos qualquer aditamento e/ou novo contrato de arrendamento e/ou de prestação de serviços relativos aos imóveis identificados no pedido de letra A) precedente, e depositar as receitas oriundas das RENDAS E/OU DOS CONTRATOS DE PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS, em conta à ordem do presente procedimento cautelar, a ser indicada por este Tribunal, durante todo o curso do presente procedimento cautelar, até decisão final transitada em julgado, a ser proferida na ação principal de que este procedimento cautelar será dependente, juntando aos autos prova do cumprimento da providência decretada, no prazo que vier a ser determinado pelo Tribunal.

F) Devendo, em qualquer dos casos (pedidos de letras A) a E)), as providências serem decretadas com dispensa da audiência prévia da 1.ª Requerida e da 3.ª Requerida, nos termos do artigo 366.º, n.ºs 1 parte final e 6 do Código de Processo Civil, com as legais consequências.

G) Mais se requer a emissão imediata de certidão para efeitos de registo, nos termos dos artigos 3.º, n.º 1, alínea d) c/c 8.º-A, n.º 1, alínea b) e 53.º, todos do Código do Registo Predial.

Alega que:

O presente procedimento cautelar é preliminar de uma acção declarativa a ser proposta e visa assegurar a efectividade da decisão a ser proferida na acção a propor, tendo em vista obter a declaração de nulidade e, subsidiariamente, de anulabilidade, do negócio de venda de 11 (onze) imóveis que integravam o (a totalidade do) património da 1.ª Requerida, titulado na escritura de Compra e Venda, outorgada no dia 04/12/2023 entre a 1.ª Requerida, como vendedora, e a 3.ª Requerida, como compradora e consequente cancelamento dos respectivos registos de transmissão efectuados ao abrigo da referida Escritura.

A requerente é accionista da 1.ª Requerida e detém 60% do seu capital social.

A 1.ª Requerida tem o objecto social que consta da sua certidão comercial, incluindo a compra e venda de Imóveis.

No âmbito da sua actividade adquiriu vários imóveis, sendo que a 04/12/2023 possuía o total de 11 imóveis que lhes geravam receitas mensais.

A 2.ª Requerida também é accionista da 1.ª Requerida e detém 20% do seu capital social, tendo sido administradora única da Sociedade até a sua destituição por justa causa na Assembleia Geral de Accionistas realizada no dia 05.12.2023 (“AG”).

A 3.ª Requerida é uma sociedade unipessoal por quotas constituída às vésperas da celebração da Escritura Pública referida e que tem como sócio único e gerente o 4.º Requerido.

Este é neto da 2.ª Requerida e beneficia de um «contrato de trabalho» celebrado com a 1.ª Requerida e, de um contrato de arrendamento sobre uma fracção habitacional, celebrado pela 1.ª Requerida no ..., onde o mesmo começou a cursar a universidade.

No dia 04/12/2023 (véspera da AG), foi outorgada uma Escritura de Compra e Venda entre a 1.ª Requerida, representada pela 2.ª Requerida, então administradora única da Sociedade, na qualidade de vendedora, e a 3.ª Requerida, representada por seu sócio único e gerente único, na qualidade de compradora, por meio da qual a 1.ª Requerida vendeu à 3.ª Requerida, todos os imóveis de que era proprietária (11), pelo preço global de € 3.036.000,00, correspondente ao seu valor contabilístico (inferior ao valor de mercado), a ser integralmente pago pouco mais de cinco anos após a celebração da Escritura.

Está em causa contrato celebrado entre a sociedade 1.ª Requerida e a sua então administradora única, a 2.ª Requerida, por pessoa(s) interposta(s), a 3.ª Requerida e o 4.º Requerido, de forma que o ato praticado, que não é usual no comércio jurídico, foi feito em violação do artigo 397.º n.º 2 do CCS, e em detrimento dos interesses da sociedade 1.ª Requerida e dos deveres consignados no artigo 64.º do CSC.

Com tal venda, a sociedade 1.ª Requerida ficou sem os imóveis, sem dinheiro e sem capacidade para desenvolver a sua actividade, tal como prevista no artigo 3.º dos seus Estatutos Sociais, o que denota a prática de ato em violação do CSC e dos Estatutos por atingir directamente e esvaziar o seu objecto social, haja em vista que a sociedade ficou impedida de exercer a sua actividade e obter receitas.

Consequentemente, o direito dos sócios previsto no artigo 21.º n.º 1 alínea a) do CSC, de quinhoar nos lucros, foi afectado directamente.

Acresce que, com o fito de beneficiar a si própria por interposta pessoa, a administradora 2.ª Requerida violou, também, o n.º 3 do artigo 23.º dos Estatutos da Sociedade, porquanto a forma como o pagamento do preço foi acordado corresponde a uma concessão de financiamento pela 1.ª Requerida, à “3.ª Requerida”.

Deste modo, o ato de compra e venda, foi intencionalmente praticado pela 2.ª Requerida, administradora única da1.ª Requerida, por interposta pessoa, com abuso de personalidade da sociedade, para retirar os 11 imóveis do património da 1.ª Requerida, e os integrar no seu próprio património. Subsidiariamente, alegou que, caso não se entenda que o negócio é nulo à luz do disposto no n.º 2 do artigo 397º do CSC, o negócio é nulo porque simulado nos termos previstos no artigo 240.º do Código Civil, ou se assim não se entender, à luz do disposto no artigo 334.º do CC, o negócio foi praticado com abuso de direito, por violação clara da boa-fé por parte da 2.ª Requerida, administradora única, ao intervir no ato de venda, para que, quando muito, estaria formalmente legitimada, mas nunca para poder dispor dos bens da1.ª Requerida como dispôs.

O primeiro grau indeferiu liminarmente a petição inicial com fundamento na incompetência do tribunal em razão da matéria.

Inconformada, interpôs a requerente competente recurso. O Tribunal da Relação de Lisboa julgou, com voto de vencido, improcedente o recurso e, consequentemente, manteve a decisão recorrida.

De novo inconformada, interpôs a apelante recurso de revista, cuja minuta concluiu da seguinte forma:

1.ª a 4.ª (…)

5.ª Não se pode concordar com o entendimento do Tribunal da Relação quanto ao Juízo de Comércio não ser o competente para julgar o presente procedimento cautelar e a acção principal. Desde logo, um dos fundamentos invocados pela Relação no Acórdão Recorrido prende-se com o objecto da acção principal, mais concretamente, visando a acção a ser proposta a declaração da nulidade de um contrato de compra e venda imóveis, entendeu a Relação que se configura mais como uma questão de direito civil do que direito societário específico e que não estaria em causa o exercício de direitos sociais. Ora, pese embora o que se pretenda na ação principal seja a declaração de nulidade de um ato de compra e venda de imóveis, não se pode esquecer que formalmente o ato foi praticado entre duas sociedades comerciais – dois comerciantes - que possuem, como objeto social, a compra e venda de imóveis, portanto, sempre estaria em causa um ato de comércio corporizado numa compra e venda comercial (ex vi do disposto nos artigos1.º, 2.º, 13.º n.º 2, 463.º 4.º do Código Comercial c/c artigo 1.º, n.º 2 do CSC), sendo que a Recorrente sempre sustentou que tal compra e venda foi praticada com abuso de personalidade da1.ª Requerida, no interesse da administradora 2.ª Requerida, por interposta(s) pessoa(s), a 3.ª Requerida e o 4.º Requerido, ou seja, com violação do disposto no artigo 397.º n.º 2 do CSC, o que desloca a apreciação da nulidade da compra e venda do regime civil para o regime das sociedades e comercial. De mais a mais, não se pode confundir o negócio celebrado, compra e venda, no caso de imóveis entre duas sociedades comerciais, cuja regulação principal do ato em si mesmo tem matriz civilística, com o fundamento e a lei reguladora da nulidade do ato e as especificidades e motivações da sua celebração. No caso concreto o ato foi celebrado entre duas sociedades, sendo o fundamento de sua nulidade estabelecido na lei societária (artigo 397.º n.º 2 do CSC), sem prejuízo de se admitir integração com o direito civil, o que não altera a natureza do fundamento da nulidade (cf artigos 3.º e 463.º 4.º do Código Comercial).

6.ª Também não se pode admitir que o simples facto de o artigo 579.º n.º 2 do CC elencar entidades a serem consideradas como interposta pessoa, remeta a apreciação da situação concreta para normas civilísticas, tanto o quanto não se pode aceitar que estando em causa um contrato de compra e venda, pelo simples facto de o artigo 397.º do CSC ou outro qualquer do Código das Sociedades Comerciais não indicar expressamente o direito a peticionar a nulidade de tal contrato retire que a apreciação do caso deva ser à luz de normas jus-societárias.

7.ª Em nenhum momento a Recorrente invocou que a nulidade da compra e venda dos imóveis decorreria do não pagamento do preço e que o pagamento seria essencial para a transmissão dos imóveis. A invocação quanto à violação do n.º 3 do artigo 23.º dos Estatutos serve para sustentar que o ato de compra e venda praticado também o foi com violação dos Estatutos, e reforçar que a venda foi feita por interposta pessoa, no interesse próprio da administradora. Naturalmente esta apreciação não compagina com o julgamento da causa pelo juízo cível, antes pelo juízo de comércio, por estar em causa a apreciação de disposição dos estatutos Sociais da 1.ª Requerida, o que vem de conformar a competência do juízo de comércio.

8.ª Acresce que, se é facto que os «fundamentos invocados para a nulidade do contrato de compra e venda não são especificamente societários» (pág. 18), não é verdade que o fundamento principal do pedido de decretação das medidas cautelares e do que sustentará o pedido de nulidade da compra e venda, considerem, stricto sensu, «estar em causa a celebração de um negócio consigo mesmo», caso em que «a norma convocada será o artigo 261.º do CCivil» e «o invocado instituto do levantamento ou da desconsideração da personalidade jurídica o qual, não obstante não ter expressa consagração legal, fundamenta-se nos princípios gerais de abuso de direito, má fé e intuito de prejudicar terceiros (os quais são, todos eles, conceitos civilisticos)» (pág. 18). Também não resulta das alegações da Recorrente que o pedido de nulidade e causa de pedir imponha «aferir da celebração de um negócio simulado ou em abuso de direito, as normas serão as dos artigos 240.º e 334.º, respectivamente, do mesmo código». Se é facto que estes institutos civilísticos foram convocados, ou foram-no para preenchimento das disposições societárias abertas, ou como fundamento para pedido subsidiário. Acresce que a atribuição de competência ao juízo de comércio para processar e julgar uma acção não exige que o pedido deduzido e a respectiva causa de pedir respeitem a matéria especificamente regulada pelo direito societário. Exemplo clássico são as ações de responsabilidade previstas nos artigos 77.º e ss do CSC, que vão buscar integração dos pressupostos da responsabilidade no direito civil, mas nem por isto deixam de ser acções a serem julgadas pelo juízo de comércio.

9.ª Efectivamente, para efeito do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ, a competência será do juízo de comércio sempre e quando se tratar de acções cujo fundamento emerja directamente do regime jurídico das sociedades comerciais (e, acrescentamos, e/ou do contrato social / estatutos sociais, até porque tais decorrem daquele regime jurídico), ou seja, de acções que tenham como fundamento normas de direito societário ou que, pese embora possam tratar de regime jurídico que emerge do direito civil, exista uma especial conexão com o regime que emerge do Código das Sociedades Comerciais. Seja de uma forma ou de outra, é exactamente o caso dos presentes autos, o que também vem confirmar a competência do juízo de comércio.

10.ª Ao decidir como decidiu, a Relação desconsiderou, em absoluto, que os fundamentos que, na verdade, integram a causa de pedir essencial e particularizam o caso concreto, decorrem da lei societária e não do regime civil geral, não sendo possível aceitar, como se pode ler na Sentença e se vê reproduzido no Acórdão ora objecto da presente Revista, que o artigo 397.º do CSC limita-se a «reforçar a ilicitude da conduta alegada», porquanto a matriz da nulidade é este artigo e o preenchimento da disposição decorre da verificação de pressupostos específicos concernentes à lei societária, maxime dos deveres e limitações dos administradores de sociedades comerciais. E, mesmo que assim fosse, o que não se consente, as ações que, pese embora possam tratar de regime jurídico que emerge do direito civil, mas nas quais exista uma especial conexão com o regime que emerge do Código das Sociedades Comerciais são também da competência dos juízos de comércio. Na verdade, a Relação abstraiu, por completo, a essencialidade das questões de cariz eminentemente societário que moldarão o pedido principal na acção de nulidade a ser proposta. Só tal abstracção justifica a Relação ter entendido que estando em causa uma compra e venda entre sociedades, e não sendo a compra e venda regulada pela lei societária, mas antes pela lei civil, a competência para julgar a acção principal e de resto o procedimento cautelar é do juízo de comércio.

11.ª Há, assim, erro de julgamento pelas seguintes ordens de razão:

Em primeiro lugar, considerando a causa de pedir sumariada nos pontos 2 e 4 da Parte II das alegações, está em causa o exercício de um direito social, porquanto o fundamento principal da nulidade da compra e venda dos imóveis a ser peticionada na ação principal é a prática do ato em violação do disposto no artigo 397.º, n.º 2 do Código das Sociedades Comerciais (“CSC”) e remete sempre para questões societárias relacionadas com violação do interesse social da sociedade 1.ª Requerida, dos Estatutos Sociais e de normas societárias e, nomeadamente, para o comportamento da 2.ª Requerida, sua então administradora única que, com abuso da personalidade da sociedade, utilizando interposta(s) pessoa(s) – a 3.ª Requerida e o 4.º Requerido - , no seu interesse próprio, alienou os onze imóveis da 1.ª Requerida, por forma a manter tais imóveis na sua esfera jurídica, o que culminou no esvaziamento e descapitalização da sociedade 1.ª Requerida por actuação daquela, em prol do seu próprio interesse e em detrimento dos interesses sociais e de direitos sociais dos accionistas, máxime do direito aos lucros (artigo 21.º n.º 1 alínea a) do CSC).

Em segundo lugar, os pedidos cautelares foram sustentados e o pedido de nulidade da compra e venda a ser peticionado na ação principal têm como fundamento, como norma estruturante da nulidade, como se afirmou, a violação do artigo 397.º, n.º 2, portanto o abuso de personalidade da 1.ª Requerida pela sua então administradora única, 2.ª Requerida, e não simulação, a violação dos artigos 64.º e 21.º n.º 1 alínea a) do CSC e, ainda, a violação de normas Estatutárias, nomeadamente, artigos 3.º, 8.º e 23.º n.º 3 dos Estatutos da 1.ª Requerida (juntos como DOC 02 ao RI), o que remete para um regime específico da legislação sobre sociedades comerciais, que exige especial preparação técnica, experiência e sensibilidade do julgador para a resolução do litígio, que compete aos juízos de comércio.

Em terceiro lugar, apenas a título subsidiário é que, por dever de cautela e patrocínio se veio a invocar a nulidade da compra e venda dos 11 imóveis com fundamento no artigo 240.º (simulação) e, caso assim não se entenda, no artigo 334.º (abuso de direito) Código Civil, para efeito de dedução de pedidos subsidiários na ação principal a ser oportunamente proposta.

Em quarto lugar, como atrás se referiu, não se pode confundir o negócio celebrado, compra e venda, cuja regulação principal do ato em si mesmo tem matriz civilística, com o fundamento e a lei reguladora da nulidade do ato e as especificidades e motivações da sua celebração (artigo 397.º n.º 2 do CSC), sem prejuízo de se admitir integração com o direito civil, o que não altera a natureza do fundamento da nulidade (cf artigos 3.º e 463.º 4.º do Código Comercial).

Em quinto lugar, também como atrás se referiu, sempre estaria em causa um ato de comércio corporizado numa compra e venda comercial (ex vi do disposto nos artigos1.º, 2.º, 13.º n.º 2, 463.º 4.º do Código Comercial c/c artigo 1.º, n.º 2 do CSC), sendo que a Recorrente sempre sustentou que tal compra e venda foi praticada com abuso de personalidade da 1.ª Requerida, no interesse da administradora 2.ª Requerida, por interposta(s) pessoa(s), a 3.ª Requerida e o 4.º Requerido, o que desloca a apreciação da nulidade da compra e venda do regime civil para o regime das sociedades e comercial.
12.ª. Assim sendo, cabe a este Superior Tribunal considerar o efectivo fundamento da nulidade do contrato, que, sendo societário, deve ser apreciado e solucionado no quadro deste ramo do Direito, até porque, o que releva para a decisão sobre a competência não é a valorização ou desvalorização patrimonial da sociedade, com reflexos na participação social e no direito aos lucros do sócio/accionista autor da medida judicial. Antes, o que releva é o critério, a base legal mobilizada para a aferição da validade do negócio jurídico e, indirectamente, da conduta do gerente/administrador, que, em nome da sociedade, celebrou o negócio. Também o facto de, em termos patrimoniais, ser a sociedade a beneficiar do desfecho «positivo» da acção, ou seja, da anulação da escritura de compra e venda, e de tal só reflexamente beneficiar os seus sócios. A adequada interpretação do caso concreto só pode conduzir a que estão em causa direitos sociais nos termos e para os efeitos previstos na alínea c) do n.º 1 do artigo 128.º da LOSJ.

13.ª Acresce ainda que a análise do comportamento dos Requeridos, em particular da 2.ª Requerida, dependeria sempre da análise de questões jus societárias, como seja a da legalidade e validade da venda da totalidade dos imóveis que eram da 1.ª Requerida, do fim do negócio, da intenção da 2.ª Requerida com a prática do mesmo, da vantagem especial obtida neste negócio, dos Estatutos Sociais da 1.ª Requerida, do cumprimento, ou não, dos condicionalismos impostos pelo artigo 397.º do CSC, pelo que, também por isto, a competência para julgar a acção principal a ser proposta pertence aos juízos de comércio.

14.ª Pelo que, atendendo a causa de pedir dos presentes autos, está em causa o exercício do direito de acção em que acabam por dominar regras do direito societário, desde logo porque o pedido e a causa de pedir se baseiam na violação do artigo 397.º do CSC e, de resto, do artigo 64.º também do CSC, que são normas com finalidades societárias específicas, pelo que estão integradas no domínio da jurisdição do Tribunal de Comércio, à luz do disposto nos artigos 40.º, 78.º e 128, n.º 1 alínea c) da LOSJ. Deste modo, só se pode entender que o juízo de comércio é materialmente competente.

Acresce que, nos termos dos artigos 1.º, 2.º e 463.º 4.º do Código Comercial estará sempre em causa uma venda comercial e do artigo 1.º n.º 1 do CSC, as normas contempladas neste Código aplicam-se às sociedades comerciais, tendo o ato sido praticado entre sociedades comerciais –pelo menos formalmente-, sendo a capacidade de uma sociedade comercial conferida pela lei para o exercício de direitos obrigações necessários ou convenientes à prossecução do seu fim, de forma que os actos que extrapolem as liberalidades que possam ser consideradas usuais, são havidos como contrários ao fim desta, estando os órgãos de uma sociedade comercial obrigados a não excederem o objeto social e a não praticarem actos que levem à impossibilidade de prossecução do seu fim, o que decorre do disposto no artigo 6.º n.ºs 1, 2 (a contrário) e 4 c/c com os anteriores, do CSC, o que vem a confirmar a competência do juízo de comércio para a ação principal e, consequentemente, para o procedimento cautelar.

NESTES TERMOS,

Requer-se o provimento do presente recurso, devendo ser revogado o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa em 21 de maio de 2024, e sua substituído por outro, com as legais consequências.

JULGANDO NESTA CONFORMIDADE FARÃO V. EXCELÊNCIAS JUSTIÇA!

Não houve contra-alegações.


***


A única questão decidenda consiste em saber qual o tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer da presente acção, se os juízos de competência cível, como decidiram as instâncias, ou se o juízos de competência especializada do comércio, conforme entendem a recorrente (e o Sr. Desembargador que votou vencido).

***


Para o conhecimento do recurso importa atender ao que anteriormente se refere, em síntese da petição inicial.

***


1. A competência como medida de jurisdição de um tribunal

O juiz, ao qual seja apresentado a demanda judicial, deve estabelecer se é competente.

A competência de um tribunal é a medida de jurisdição desse tribunal.

Ou dito de outro modo, a competência é a quantidade de poder jurisdicional reconhecida a qualquer órgão judicial no confronto com outro órgão judicial.

A divisão do trabalho entre os vários órgãos e entidades que integram o sistema de justiça, de que resultam diferentes âmbitos ou perímetros de intervenção, não é uma realidade sem importância.

Está em causa o interesse público na salvaguarda da adequação técnica desses órgãos e entidades e na boa administração da justiça.

Este interesse reflecte-se na exigência da competência (absoluta) como pressuposto processual.

Compreende-se assim que a incompetência absoluta seja insanável, que se lhe aplique a regra da prioridade e, por conseguinte, que, logo que constatada, deva o juiz declará-la com consequente termo do processo (artigos 97.º, 99.º e 278, n.º 1, alínea a), 590.º, 1 do Código de Processo Civil – serão deste código os artigos ulteriormente citados, sem diferente menção).

2. Competência e especialização dos tribunais judiciais

Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens jurídicas (artigo 211.º,1 CRP).

São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional (artigos 40.º, 1 LOSJ e 64.º).

As regras de competência não delimitam apenas a esfera de actuação entre tribunais judiciais e ouros tribunais. Também o fazem no plano da actuação entre si dos tribunais de primeiro grau (artigo 211.º,2 CRP).

É a Lei da Organização do Sistema Judiciário (LOST, Lei n.º 62/2013 de 26 de Agosto) que determina quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada (artigo 65.º ).

O artigo 128.º, 1, al. c) da LOSJ preceitua que compete aos juízos de comércio preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais.

3. Critério aferidor da competência em razão da matéria.

3.1. Em geral

Tem sido entendido, de forma pacífica, que a competência material de um tribunal se afere pela forma como o autor configura a acção, definida pelo pedido e causa de pedir (cfr., v.g., entre muitos outros, Acórdãos do Tribunal de Conflitos, disponíveis em www.dgsi.pt: de 10.02.1998, Proc. 000319, de 18.06.2002, Proc. 02/02, de 23.09.2004, Proc. 05/04 e de 29.11.2006, Proc. 016/03, do Supremo Tribunal de Justiça de 3.2.1987, BMJ, 364:591, de 9.5.1995, CJ/STJ, 1995, II:68, e de 23.09.2003, Proc. 04B188 e do Supremo Tribunal Administrativo de 10.3.1988, Proc.25.468, de 27.11.1997, Proc. 34.366, e de 28.5.1998, Proc. 41.012)

3.2. Nos procedimentos cautelares

Para determinar a competência material para conhecimento dos procedimentos cautelares, a jurisprudência tem recorrido ao princípio da coincidência o qual tem consagração expressa no artigo 78.º, 1, c) do CPC: á excepção do arresto, do arrolamento e do embargo de obra nova, para os procedimentos cautelares ante causam é competente o tribunal em que deva ser proposta a acção respectiva (acção principal).

Veja-se, por todos, o acórdão do STJ de 1.3.2007, Proc. 07A4669: «Daí que o tribunal competente para o procedimento cautelar comum seja o da acção de que é instrumental e, quando requerido antes de instaurada essa lide, a competência material deve determinar-se face ao pedido, e causa de pedir, da acção, que devem ser alegados no requerimento da medida preventiva».

Mesma posição no agravo de 8.3.2001, Proc. 3275/00: «Uma providência cautelar tem de ser proposta no tribunal que seja competente em razão da matéria para julgar a causa principal de que aquela é dependência».

Esta orientação parece ser completamente coerente com o carácter instrumental em relação á acção principal da tutela cautelar.

4. Concretização
Vejamos qual a jurisdição competente para conhecer do procedimento.

Como se viu, prevaleceu a tese de que os juízos de comércio não eram competentes para conhecer do procedimento.

Vejamos em que bases assenta esta posição.

O núcleo da argumentação que prevaleceu, nos dois graus, resume-se assim:

i) O artigo 128.º, 1, al. c) da LOSJ preceitua que compete aos juízos de comércio preparar e julgar as acções relativas ao exercício de direitos sociais.

ii) Os Direitos sociais são todos aqueles que os sócios de uma determinada sociedade têm, pelo facto de o serem, enquanto titulares dessa mesma qualidade jurídica, dirigidos à protecção dos seus interesses sociais, ou seja, são direitos que nascem na esfera jurídica do sócio, enquanto tal, por força do contrato de sociedade, baseados nessa particular titularidade.

iii) No caso dos procedimentos cautelares a competência afere-se, conforme resulta do disposto no art.º 364.º, n.ºs 1 a 3, do CPC, pela competência para a acção principal.

iv) No caso sujeito, não obstante o ênfase colocado no requerimento inicial na qualidade de accionistas da Requerente e da 2.ª Requerida, no carácter prejudicial do negócio para a 1.ª Requerida e na violação do art.º 397.º, n.º 2, do CSC, o que está em causa é o pedido de declaração de nulidade de um contrato de compra e venda de imóveis realizado pela sociedade 1.ª Requerida a favor da sociedade 3.ª Requerida que, de acordo com o alegado, dissimula alienação da totalidade do património da empresa vendedora a favor da sua então administradora, com prejuízo para a sociedade.

v) A violação da norma do art.º 397.º, do CSC não descaracteriza a nulidade invocada, limitando-se a reforçar a ilicitude da conduta alegada. vi) Além de na acção também ser parte uma sociedade comercial na qual o A. não detém qualquer participação, o facto de estar em causa o vício de nulidade decorrente de simulação contratual afasta qualquer especificidade da matéria, objectivo que presidiu à delimitação da competência especializada dos juízos do comércio, inscrevendo-se a referida acção na competência residual dos juízos cíveis.

vii) Conclusão: a questão suscitada pela Requerente não se enquadra na previsão de qualquer das normas do art.º 128.º, da LOSJ, nomeadamente do seu n.º 1, al. c), o que conduz à incompetência para a causa do Juízo de Comércio, em razão da matéria.

A este núcleo argumentativo, a Relação aditou alguns outros argumentos, tais como:

viii) «Se é certo que o n.º 2 do artigo 397.º do CSC refere serem nulos os contratos celebrados entre a sociedade e os seus administradores, mesmo que por pessoa interposta, sempre se terá que recorrer aos critérios gerais civilísticos para aferir se assim sucedeu, designadamente ao n.º 2 do artigo 579.º do CCivil (e mesmo que no conceito de pessoa interposta se venham a abranger outras situações para além das previstas neste n.º 2)».

ix) «O direito de peticionar a nulidade da compra e venda não se mostra expressamente conferido pela lei societária (ou pelo contrato de sociedade) e o teor do artigo 397.º do CSC não obsta a que assim se conclua».

x) «Igualmente não nos leva a concluir em sentido diverso do decidido pela 1.ª instância o facto de a apelante invocar a violação do n.º 3 do artigo 23.º dos Estatutos da 1.ª requerida, segundo o qual, «Em matérias que envolvam a contratação ativa ou passiva, pela Sociedade, de financiamentos superiores a €100.000 (cem mil euros) ou a prestação de qualquer tipo de garantia pessoal ou real pela Sociedade, a Administração deverá informar os Acionistas com uma antecedência de, pelo menos, quinze dias a contar da data presumida para realizar a operação projectada»».

Com efeito, com a celebração da escritura de compra e venda, a propriedade dos imóveis transmite-se imediatamente para a terceira sociedade, sem prejuízo de gerar como obrigações a entrega daqueles bens e o pagamento do preço – cfr. artigo 879.º do CCivil. Ou seja, o não cumprimento desta segunda obrigação (não pagamento do preço), não obsta à transmissibilidade.

Daí que, como decorre do invocado pela apelante, é o negócio de compra e venda que a mesma visa atacar – a transmissão dos imóveis -, por via da sua invocada nulidade. Saber se o preço foi pago ou não (por forma a poder traduzir um qualquer “financiamento” da primeira à terceira sociedades) é já questão distinta – cfr. artigos 883.º, 885.º e 886.º do CCivil».

xi) «E, a estar em causa a celebração de um negócio consigo mesmo (como defende a apelante), a norma convocada será o artigo 261.º do CCivil (só sendo de recorrer ao disposto no n.º 2 do artigo 397.º, n.º 2 do CSC, se se demonstrar que o negócio foi celebrado por pessoa interposta, o que nos conduz à lei civil».

xii) «Assim como para aferir da celebração de um negócio simulado ou em abuso de direito, as normas serão as dos artigos 240.º e 334.º, respectivamente, do mesmo código [Código Civil].

xiii) Assim também sucede com o invocado instituto do levantamento ou da desconsideração da personalidade jurídica o qual, não obstante não ter expressa consagração legal, fundamenta-se nos princípios gerais de abuso de direito, má fé e intuito de prejudicar terceiros (os quais são, todos eles, conceitos civilísticos).

A posição contrária da recorrente, expressa nas conclusões da recorrente acima reproduzidas, pode resumir-se nos termos do voto de vencido do sr. Desembargador Manuel Marques: «Votei vencido por entender que, fundando-se a causa de pedir invocada a título principal em factos integradores da nulidade prevista no art. 397º, n.º 2, do CSC, nos encontramos perante um procedimento relativo ao exercício de direitos sociais, dado emergir do regime jurídico das sociedades comerciais (art. 128º, n.º 1, al. c) da LOSJ).

Daria, por isso, provimento ao recurso».

Qual será a melhor posição?

Cremos que é de seguir a posição das instâncias. Vejamos porquê

Para o tribunal de competência especializada de comércio ser materialmente competente, necessário se torna, como dissemos, que estejamos diante de uma «acção relativa ao exercício dos direitos sociais» (artigo 128.º, 1, c) LOSJ)

O que se deve entender por direitos sociais?

No Ac. STJ de 26.10.2022, Proc. 4583/21.3T8VNF-B.G1.S1, explica-se que «a expressão «direitos sociais» surge, pela primeira vez, numa Lei de Organização Judiciária (LOFTJ), na alínea c) do art. 89.º/1 (alínea que o atual art. 128.º/1/c) da LOSJ reproduz) da Lei 3/99, de 13-01, mas não era, importa sublinhá-lo, uma expressão desconhecida do legislador adjetivo e/ou que este haja então “cunhado” ex novo (e porventura sem o devido cuidado e rigor).
Desde 1939 (pelo menos) que entre os processos de jurisdição voluntária do CPC (atualmente, nos artigos 1048.º a 1071.º do CPC) se contam os respeitantes ao “exercício de direitos sociais”, sendo certo – é o aspeto que aqui cumpre salientar – que entre os direitos exercitáveis através de tais processos de jurisdição voluntária se contam, ao lado de direitos dos sócios (como é claramente o caso do direito de pedir inquérito judicial à sociedade, exercitável pelo processo previsto no art. 1048.º), direitos dos credores (como é o caso do direito de oposição à distribuição de reservas ou lucros ou de oposição à fusão e cisão de sociedade, exercitáveis pelos processos previstos pelos artigos 1058.º e 1059.º) e/ou de terceiros (como é o caso do direito à liquidação de participação social, exercitável pelo processo previsto no art. 1068.º), o que muito claramente significa que o legislador (do CPC) englobou no conceito/expressão “direitos sociais” outros direitos para além dos direitos dos sócios, tendo, porém, todos eles (tais “direitos sociais” exercitáveis por tais processos de jurisdição voluntária) como ponto comum serem direitos que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais.
Em todo caso, há que admitir – até por a noção jurídica societária de
direitos sociais surgir, por vezes, no direito substantivo, reportada e associada aos direitos dos sócios – que, por interpretação, se possa concluir que o legislador de 99 se equivocou, que ignorava que ele próprio já utilizava o conceito/expressão com um significado diferente de “direitos dos sócios” e que, por isso, não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Sucede que nada disto se verifica.
A expressão “direitos sociais” (utilizada no art. 89.º/1/c) da LOFTJ e reproduzida no art. 128.º/1/c) da LOSJ), com o sentido subjacente ao atual Capítulo XIV do CPC, é totalmente (e até a mais) congruente com o confessado pensamento legislativo de 99: exprime acertada e adequadamente a solução decorrente do pensamento legislativo explicitamente manifestado na LOFTJ.
Efetivamente, a alínea c) do n.º 1 do art.º 89º da Lei n.º 3/99 teve origem na Proposta de Lei n.º 182/VII/3, na qual se consignava:
«A criação, por iniciativa do XIII Governo, dos tribunais de recuperação da empresa e de falência, por ora territorialmente competentes nas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto, tem-se revelado positiva, na prática. É altura de lhes ampliar prudentemente a competência em razão da matéria, não para se reatar o antigo modelo dos clássicos tribunais de comércio, mas fazendo-os atuar em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade. Assim, os tribunais de recuperação da empresa e de falência, que passam a designar-se por tribunais de comércio, serão competentes para as ações relativas ao contencioso das sociedades comerciais, ao contencioso da propriedade industrial, às ações e aos recursos previstos no Código de Registo Comercial, aos recursos das decisões em processo de contra-ordenação no âmbito da defesa e promoção da concorrência. (…)”
Ou seja, o pensamento legislativo (que presidiu à redação do texto da alínea c) sob apreciação), claramente revelado e manifestado, era o de conferir competência aos tribunais de comércio para as “ações relativas ao contencioso das sociedade comerciais”, pelo que, sendo o legislador fiel a tal pensamento legislativo, não era expetável que, na letra da lei, viesse dizer que são da competência dos tribunais de comércio apenas as ações relativas ao exercício dos direitos dos sócios, na medida em que, assim, deixava de fora uma parte significativa do contencioso societário (ao arrepio do que antes havia dito sobre a competência que pretendia atribuir aos tribunais do comércio).
Mais, a teleologia de conceder competência aos tribunais de comércio para as ações relativas ao contencioso das sociedade comerciais –
fazê-los atuar em questões para que se requer especial preparação técnica e sensibilidade – vale e é identicamente aplicável quer para os “direitos sociais” de que são titulares os sócios, quer para os direitos de que forem titulares a sociedade, os credores sociais ou mesmo terceiros, desde que, como é evidente, tais direitos resultem e sejam conferidos a todos eles pela lei societária (ou pelo contrato de sociedade).
A criação dos juízos do comércio foi orientada pelo objetivo de melhorar a administração da justiça quando os conflitos emergem de aspetos específicos do direito comercial (aqui se incluindo o direito das sociedades comerciais): deu-se por adquirido que a especialização (decorrente da criação de juízos com competência especializada) se estende aos juízes que procedem à composição dos correspondentes conflitos de interesses e que assim se criam as sinergias que permitam uma melhor aplicação da lei e uma resolução mais célere dos litígios».

Com este enquadramento histórico, o acórdão sustentou que «a expressão «direitos sociais» (constante da alínea c) do art. 128.º/1 da LOSJ) não significa «direitos dos sócios»; quando a lei fala em tal alínea em «ações relativas ao exercício de direitos sociais», deve entender-se que está a querer referir-se às acções que emergem do regime jurídico das sociedades comerciais, que está a querer referir-se às acções em que estão em causa e são invocados os direitos sociais emergentes de tal regime jurídico, sendo que podem ser titulares de tais direitos sociais quer os sócios, quer a sociedade, quer os credores sociais quer mesmo terceiros (cfr., v. g., arts. 78.º e 79.º do CSC)».

No caso em análise neste acórdão, como estava em discussão «a aplicação do disposto no artigo 403.º, 1 do CSC – ou seja, o exercício do direito indemnizatório (de administrador destituído sem justa causa) invocado pelo A, o que acabaria por se traduzir na discussão sobre a existência ou não de justa causa, a qual está definida no art. 403.º/4 do CSC como “a violação grave dos deveres de administrador”, sendo que os deveres de administrador (quer os deveres legais gerais constantes do art. 64.º do CSC, quer os deveres legais específicos constantes de disposições esparsas do CSC) [considerou-se] que constitui matéria própria/exclusiva do regime jurídico societário– o mesmo é dizer, é no campo das regras jurídicas próprias do CSC que o pedido/direito indemnizatório do A. se baseia e é também no campo próprio das regras jurídicas do CSC que tal pedido/direito pode ser afastado – pelo que a atribuição de competência aos tribunais de comércio (para conhecer dum tal pedido indemnizatório) é chamá-los a apreciar e decidir questões para que têm a tal «especial preparação técnica e sensibilidade» que esteve na base do supra referido pensamento legislativo».

Esta compreensão da expressão «ações relativas ao exercício de direitos sociais» já tinha sido seguida pelo acórdão do STJ de 24.2.2022, Proc. 1044/214T8LRA-A.C1.S1, onde se pode ler: «a expressão exercício de direitos sociais, utilizada pelo legislador na alínea c), do n.º 1, do artigo 128.º, da LOSJ, para delimitar a competência dos tribunais de comércio, não deve ser equiparada a direitos dos sócios, mas sim a direitos específicos do regime do direito das sociedades, competindo àqueles tribunais decidir os litígios emergentes de relações jurídicas conformadas pela legislação que especificamente rege as sociedades comerciais, designadamente o Código das Sociedades Comerciais».

Por sua vez, no acórdão desta 6.ª Seccção do STJ de 22.2.2024, num caso «em que as autoras sustentaram a sua pretensão normativa [a declaração de nulidade dos contratos celebrados entre autoras e ré] na demonstração dos pressupostos da figura jurídica da simulação, regulada no artigo 240º e seguintes do CC», seguindo a orientação jurisprudencial anterior, sublinhou-se que «múltiplas decisões tomadas no âmbito da vida das sociedades (que podem implicar também a violação de normas de direito societário) acabam por ter consequências de natureza normativa diversa, como, por exemplo, contraordenacional, fiscal, laboral, etc., não sendo, portanto, os tribunais de comércio os competentes para apreciar tal tipo de conflitos»; «de igual modo, quando o resultado normativo que o autor pretende alcançar convoca, essencialmente (e, portanto, a título não subsidiário) quadros jurídicos de direito civil, a correspondente acção tem, consequentemente, natureza civil (ou dominantemente civil), sendo, portanto, adequada a intervenção dos tribunais de competência genérica»; «por outro lado, considerando o modo como o art.128º da LOSJ define a competência do tribunal de comércio (espartilhando-a em diferentes alíneas), conclui-se que o legislador não pretendeu consagrar um critério de abrangência total dessa competência a todos os conflitos de origem societária (ou gerados no âmbito da vida ou da dinâmica das sociedades comerciais). Se tivesse sido esse o propósito, certamente que o legislador o teria enunciado de forma clara, dizendo que os tribunais de comércio são competentes para conhecer de todos os conflitos respeitantes a matéria societária, em vez de ter estabelecido diferentes hipóteses de ações nas várias alíneas»; «a configuração das alíneas dessa norma (que não tem natureza exemplificativa) leva, portanto, a concluir que as ações que não couberem nas diferentes hipóteses a que correspondem tais alíneas, serão reconduzidas ao critério supletivo que convoca os tribunais de competência genérica. É assim que a jurisprudência tem decidido (como supra citado)». No caso sujeito, a requerente está consciente, e di-lo expressamente, que a acção principal de que o procedimento cautelar instaurado está dependente é uma acção que tem em vista obter a declaração de nulidade e, subsidiariamente, a anulabilidade, do negócio de venda de 11 (onze) imóveis que integravam a totalidade do património da 1.ª Requerida, titulado na escritura de Compra e Venda, outorgada no dia 04/12/2023 entre a 1.ª Requerida, como vendedora, e a 3.ª Requerida, como compradora e consequente cancelamento dos respectivos registos de transmissão efectuados ao abrigo da referida Escritura.

E, na verdade, a acção principal não poderia deixar de ser esta, dado que o que está em causa é um contrato de compra e venda de imóveis realizado pela sociedade 1.ª Requerida a favor da sociedade 3.ª Requerida que, de acordo com a causa de pedir, dissimula alienação da totalidade do património da empresa vendedora a favor da sua então administradora, com prejuízo para a sociedade.

Como já foi dito, «a violação da norma do art.º 397.º, do CSC não descaracteriza a nulidade invocada».

Numa acção instaurada pelo sócio de uma sociedade comercial, contra essa sociedade e uma outra, na qual é formulado o pedido de declaração de nulidade de acordos que celebraram, alegadamente inseridos numa actuação concertada de ambas com o objectivo de descapitalizarem a primeira sociedade, o acórdão do STJ de 5.7.2018, Proc. 111411/16.0T8LSB.L1.S1, considerou ser a jurisdição civil a competente em razão da matéria, para dela tomar conhecimento,

Argumentou-se que «embora ao caso presente esteja subjacente a existência de um conflito entre um dos sócios-gerentes e outros sócios gerentes da 1ª R., relativamente a medidas de gestão adotadas no seio da administração da 1ª R., não assoma nele qualquer especificidade que justifique que a resolução do litígio seja atribuída a juízos do comércio»; «na realidade, considerando quer o pedido quer a respetiva fundamentação, estamos perante uma ação na qual o A. ocupa uma posição semelhante àquela em que porventura estaria qualquer outro interessado, sendo que apenas de modo reflexo dela podem emergir efeitos que se reflictam na sua esfera jurídica»; «estão fundamentalmente em causa actos praticados por certos gerentes da 1ª R. em alegado conluio com a gerência da 2ª R. na qual o A. não tem qualquer participação social, sendo-lhe aplicável um regime jurídico que emerge do direito civil em geral, sem especial conexão com o regime que emerge do Cód. das Sociedades Comerciais e, dentro deste, com o preceituado acerca de direitos sociais»; «enfim, para além de a ação também ser dirigida contra uma outra sociedade comercial, não está verdadeiramente em causa o exercício de um direito social, antes o exercício do direito de acção numa área em que acabam por dominar as regras gerais do direito civil».

Não se vê que a razão de decidir deva ser diferente no caso presente, pela razão nuclear invocada neste aresto, que o acórdão recorrido seguiu de perto, acrescentando, de resto, bons argumentos adicionais, como indícios da não subsunção do caso concreto na factispécie abstracta do artigo 128, n.º 1 alínea c) da LOSJ,

E não se diga da conjugação do disposto nos artigos 1.º, 2.º e 463.º 4.º do Código Comercial, e estando sempre em causa o regime de uma compra e venda comercial, se deverá concluir pela competência da jurisdição comercial.

Elucida Nuno Pinto Oliveira «O artigo 463.º do código comercial liga a comercialidade da compra e venda a um particular fim, que é o lucro , e liga esse particular fim a um particular processo que é da compra e venda para revenda. A compra e venda comercial será um contrato de compra e venda comercial ao qual subjaz um intuito de lucro –as operações de aquisição e de alienação são realizadas com vista a um emprego especulativo»; «no artigo 463.º são consideradas comerciais as compras de coisas imóveis , desde que tenham um particular fim; desde que tendam para um particular efeito. O seu particular fim, há-de ser a venda – há-de ser a revenda»; «o n.º 4, ao dizer que são consideradas comerciais, a compra e venda, quando aquela, para esta, houver sido feita, está a dizer que são consideradas comerciais a compra e venda, quando a compra tiver sido feita para a venda, quando a compra tiver sido feita com o fim ou com a intenção de vender, - de revender a coisa comprada» (Contrato de Compra e Venda, Vol. 1, 1.ª ed., Gestlegal, Coimbra, 2021, respectivamente págs. 95,96 e 97).

Por sua vez, o acórdão do STJ de 6.11.2003, Proc. 02834669, sublinhou que «a normação da compra e venda constante dos artigos 463º e segs. do Código Comercial está longe de ser completa, limitando-se, como lex mercatoria, à regulação de aspectos muito específicos implicados no cosmos da actividade comercial.
O que, aliás, faz todo o sentido, posto ser a lei civil vocacionada para a disciplina em geral das relações de direito privado.
Por isso mesmo se compreende a necessidade do recurso ao direito civil sentida pelo Código Comercial, que o seu artigo 3º interpreta ao preceituar: «Se as questões sobre direitos e obrigações comerciais não puderem ser resolvidas, nem pelo texto da lei comercial, nem pelo seu espírito, nem pelos casos análogos nela prevenidos, serão decididas pelo direito civil».

Ora, no caso sujeito, a questão litigiosa definida não se apresenta portadora de especialidade que convoque qualquer uma das disposições relativas à compra e venda comercial plasmadas nos artigos 465º a 476º do referido Código Comercial.

É a requerente que alega que «o ato de compra e venda, foi intencionalmente praticado pela 2.ª Requerida, administradora única da1.ª Requerida, por interposta pessoa, com abuso de personalidade da sociedade, para retirar os 11 imóveis do património da 1.ª Requerida, e os integrar no seu próprio património».

Em conclusão: é competente para conhecer do procedimento a jurisdição civil.


***


Vencida, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas respectivas (artigo 527º, 1 e 2, do Código de Processo Civil).

***


Pelo exposto, acordamos em julgar improcedente a revista, e, consequentemente, em confirmar o acórdão impugnado.

***


17.09.2024

Luís Correia de Mendonça (Relator)

Maria Olinda Garcia

Luís Espírito Santo