Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | CELSO MANATA | ||
Descritores: | RECURSO PER SALTUM CÚMULO JURÍDICO PERDÃO DESCONTO MEDIDA CONCRETA DA PENA PENA ÚNICA PREVENÇÃO ESPECIAL PREVENÇÃO GERAL PROCEDÊNCIA PARCIAL | ||
Data do Acordão: | 07/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO EM PARTE | ||
Sumário : | I - Tendo sido o recorrente condenado, no âmbito de dois processos, em várias penas parcelares e, em consequência, em duas penas únicas, a nova pena única a estabelecer deve ter em conta em conta, apenas, as penas parcelares acima referidas. II - É admissível incluir num cúmulo jurídico penas parcelares de prisão cuja execução foi suspensa, desde que ainda não tenha decorrido o decurso do tempo de suspensão e esta não tenha sido revogada; III - A não aplicação da amnistia ou perdão aos membros das forças de segurança prevista no disposto na al. k), do n.º 1, do art. 7º da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08, carece da verificação de dois requisitos: i) que, independentemente da pena, as infrações constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos; ii) e que aqueles tenham cometidos os crimes no exercício das suas funções; IV - Tendo-se apurado que arguido, embora não se encontrasse escalado para o serviço, praticou os factos no interior do posto da GNR, na qualidade de funcionário e no uso (incorreto) dos poderes de autoridade que o cargo de militar daquela corporação conferia, há que concluir que o mesmo se encontrava “no exercício de funções”; V - Ao crime de falsificação de documento, previsto e punível pelo art. 256.º, n.º 1, al. d) e n.º 4 do CP, não é possível aplicar a amnistia prevista no art. 40.º da Lei n.º 38-A/2023, de 02/08– dado ser punível com pena superior a 1 ano - mas à pena de 2 anos em que o recorrente foi condenado deve ser aplicado o perdão previsto no art. 3.º, n.os. 1 e 4 do mesmo diploma legal; VI - Nos termos do disposto no art. 81º, n.º 2 do CP, o período de suspensão da pena, com regime de prova, a que o recorrente foi condenado em anterior condenação deve ser descontado, de forma equitativa, na pena única, resultante de cúmulo superveniente, de forma equitativa | ||
Decisão Texto Integral: | ACÓRDÃO Acordam, em conferência, na 5ª secção do Supremo Tribunal de Justiça: A - Relatório A1. Através de acórdão proferido a 12 de janeiro de 2024, pelo Juízo Central Cível e Criminal ..., foi feito o cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas, designadamente, a AA e BB, nos seguintes processos e nos termos que a seguir se reproduzem: i. Nos presentes autos (Acórdão proferido a 10 de janeiro de 2023, transitado em julgado a 18 de setembro 2023 e relativo a factos ocorridos a 12 de setembro e a 11 de novembro de 2018, 13 de janeiro e a 17 de março de 2019) • AA1: • Cinco meses de prisão pela prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382º do Cód. Penal; • Um ano de prisão pela prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382º do Cód. Penal; • Três anos de prisão pela prática de um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158º, nº.1 e n.º 2, alínea g), in fine, do Cód. Penal; • Um ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º nº.1, 145º, n.º 1, alínea a) por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea m), todos do Cód. Penal; • Dois anos de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º nº.1, 145º, n.º 1, alínea a) por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea m), todos do Cód. Penal. • BB 2 • Três anos de prisão pela prática de um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158º, nº.1 e n.º 2, alínea g), in fine, do Cód. Penal; • Um ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º nº.1, 145º, n.º 1, alínea a) por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea m), todos do Cód. Penal; ii. No processo nº. 11/18.0... (Acórdão proferido a 3 de julho de 2020, transitado em julgado, quanto a estes arguidos a 11 de janeiro de 20213 e relativo a factos ocorridos a 30 de setembro e em 1 de outubro de 2018) • AA4 • Oito meses de prisão pela prática de um crime de violação de domicílio por funcionário p. e p. pelo art. 378.º do C.P.; • Nove meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.; • Três meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.; • Dois anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 e 2, al. g) do C.P.; • Dois anos e quatro meses de prisão pela prática de um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 e 2, al. g) do C.P.. • BB 5 • Dez meses de prisão pela prática de um crime de violação de domicílio por funcionário p. e p. pelo art. 378.º do C.P.; • Um ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.; • Seis meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.; • Dois anos e dez meses de prisão pela prática de um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 e 2, al. g) do C.P.; • Dois anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 e 2, al. g) do C.P. • Dois anos de prisão pela prática de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d) e n.º 4 do C.P.. Feito o cúmulo jurídico de todas as penas parcelares atrás referidas através do referido acórdão de 12 de janeiro de 2024, ficaram os mesmos condenados, designadamente, nas penas únicas de, respetivamente, 8 (oito) anos e 8 (oito) meses de prisão (AA) e 8 anos e 7 meses de prisão, que a final ficaram reduzidos a 7 (sete) anos e 7 (sete) meses de prisão após desconto de um ano de prisão por força do perdão concedido pela Lei 38-A/2023, de 2 de agosto (BB). O aludido acórdão decidiu ainda, com interesse para o presente recurso: Manter os demais segmentos decisórios das condenações objeto do presente cúmulo, nomeadamente a condenação solidária de AA, BB e CC com os demais arguidos no pagamento das seguintes indemnizações: • € 85,91 (oitenta e cinco euros e noventa e um cêntimos) à demandante U..., a que acrescem juros de mora à taxa legal, contados desde a data da notificação para contestarem até integral pagamento; • €5.000,00 (cinco mil euros) a favor de DD, a título de danos não patrimoniais, sob a qual incidem juros de mora à taxa legal, contados desde a data da prolação do acórdão até integral pagamento; • €2.000,00 (dois mil euros) a favor de EE, a título de danos não patrimoniais, sob a qual incidem juros de mora à taxa legal, contados desde a data da prolação do acórdão até integral pagamento. Declarar perdoado um ano de prisão à pena única fixada ao condenado BB sob as seguintes condições resolutivas: • não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei 38-A/2023 (01 de setembro de 2023), caso em que à pena aplicada à infração superveniente acresce o cumprimento de um ano de prisão; • comprovar, no prazo de 90 dias a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, o pagamento integral da indemnização fixada a favor de cada um dos supra identificados lesados, sem prejuízo do seu direito de regresso em relação aos coarguidos.” A2. Os arguidos AA e BB não se conformaram com essa decisão pelo que vieram da mesma recorrer para este Supremo Tribunal de Justiça nos termos seguintes: A.2.1. Recurso do arguido AA Este arguido termina a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição integral): “f) Em conclusão: i. As penas de substituição são verdadeiras penas autónomas e não meras formas de execução da pena, in casu de prisão, não devendo ser englobadas no cúmulo jurídico superveniente quando não se mantenha e respeite a sua natureza, sendo-o, viola o acórdão a quo os princípios da confiança e da segurança jurídica; ii. Aqui estão em causa dois prévios cúmulos jurídicos cuja pena única foi, em ambos os casos, suspensa na sua execução, importando manter a sua natureza; iii. Admitindo-se o cúmulo jurídico superveniente de penas de prisão suspensas na sua execução e daí resultando uma alteração da sua natureza impõem-se, em momento anterior à realização de tal cúmulo ter de se revogar a(s) suspensão de execuçãodepenadeprisãoanteriormentedeterminadassobpenadesedesvirtuar o que esteve na base das opções de política criminal plasmadas na legislação vigente e o juízo de prognose e finalidades que com as mesmas se pretendeu alcançar; iv. O acórdão a quo é omisso relativamente a qualquer decisão nos termos dos artigos 56º do CP e 492º do CPP respeitante às penas suspensas pretéritas, as quais não foram revogadas ou prorrogadas, violando, por isso, os citados dispositivos legais; v. A decisão recorrida, não contém elementos que permitam apreender, os factos e as circunstâncias em que ocorreram e que foram objeto de condenação nos processos anteriores, o mesmo se diga das circunstâncias pessoais que permitam construir uma base de juízo e decisão sobre a personalidade, necessária para a determinação da pena do concurso; vi. Não se mostra cumprida a exigência de fundamentação acrescida, nomeadamente no que interessa à compreensão da personalidade do condenado manifestada nos factos; vii. O tribunal a quo limitou-se a transcrever o relatório social que mandou elaborar ao arguido, não valorando o mesmo e não o apreciando enquanto coadjuvante na fixação da pena única; viii. IncorreoAcórdãoaquoemviciodeomissãodepronuncia,cominadocomnulidade pelo artigo 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal; ix. O recorrente foi condenado pela prática de dois crimes de abuso de poder por factualidade ocorrida no dia 12 de setembro de 2018 e 13 de janeiro de 2019; x. No dia 12 de setembro de 2018, pelas 19:30 aquando do cometimento da infração o recorrente não estava no exercício das suas funções; xi. A expressão “infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos”, não pode deixar de ser entendida relativamente ao tipo legal e ao bem jurídico protegido pelas normas incriminadoras, e não dos seus efeitos reflexos sob pena de constituir uma expansão interpretativa inadmissível, até porque estamos perante um crime de mera atividade e não de resultado; xii. Obem jurídicoprotegidoatravésdotipodecrimedeabusodepoderéaautoridade e a credibilidade da administração do Estado; xiii. Não estão preenchidos os requisitos cumulativos – prática no exercício de funções infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos – para fazer operar a exceção constante da alínea k) do nº 1 do artigo 7.º da Lei nº 38-A/2023, devendo o arguido beneficiar de perdão de pena de um ano a incidir sobre a pena única relativamente aos crimes de abuso de poder; xiv. Violou o Acórdão revidendo o disposto nos artigos 3.º, nº 1 e 4 e artigo 7.º, nº 1, alínea k) da Lei nº 31-/2023, devendo o arguido beneficiar de perdão de pena relativamente aos crimes de abuso de poder; xv. Ao determinar a pena única resultante do cúmulo superveniente o Tribunal deve fazer um desconto equitativo da pena suspensa já cumprida parcialmente pelo arguido, desde logo em homenagem aos princípios da proporcionalidade, igualdade e de proibição do ne bis in idem e em cumprimento do disposto no nº 2 do artigo 81.º do Código Penal; xvi. No âmbito do Processo nº 11/18.0... foi o arguido condenado na pena única de 4 anos de prisão, suspensa por igual período e sujeita a regime de prova, iniciando o cumprimento da mesma em 11 de janeiro de 2021, tendo decorrido até agora mais de 3 anos do período de 4 de suspensão determinado e ainda em curso; xvii. O arguido tem correspondido aos objetivos estabelecidos no regime probatório, mantendo ocupação laboral regular, assegurando a sua autonomia económica, assumindo uma postura de colaboração, iniciativa e responsabilidade face ao acompanhamento dos serviços de reinserção social, retomou os estudos, ingressando em licenciatura em direito onde tem obtido aproveitamento em cada ano letivo e encontrando-se a frequentar o 4º ano; xviii. O Acórdão a quo violou o artigo 81.° n.º 2 do Código Penal, na medida em que, existindo penas suspensas na sua execução que foram englobadas no cúmulo jurídico que aplicou uma pena única de prisão, aquele têm que ser interpretado e aplicado no sentido de que têm que ser efetuados os descontos do tempo que o arguido já tenha sofrido à ordem de qualquer processo, bem como tem que ser efetuado um desconto equitativo pelos períodos de tempo de suspensão sujeito a regime de prova que cumpriu nas penas suspensas englobadas no cúmulo jurídico; xix. O arguido deverá beneficiar, na determinação da pena a aplicar, de um desconto equitativo, pelo menos, proporcional aos ¾ do período de suspensão sujeito a regime de prova já cumprido, sob pena de se terem por violados os princípios da proporcionalidade, da igualdade e ne bis in idem; xx. Pelo menos, porquanto na fixação do cúmulo jurídico não poderá omitir-se prejudicialmente para o recorrente o decurso do tempo necessário à douta ponderação e decisão deste Supremo Tribunal; xxi. Mostra-se incorretamente determinada a moldura da pena do concurso porquanto é necessário proceder, previamente, ao desconto equitativo nas penas parcelares que o compõem respeitantes ao processo nº 11/18.0... da parte das penas suspensas já cumprida, assim se podendo definir os seus limites mínimo e máximo; xxii. No que concerne a pena única, a decisão em crise limita-se a reproduzir o texto legal, sem fazer uma avaliação concreta dos específicos fatores a que a lei manda atender; xxiii. A pena alcançada pelo coletivo a quo de 8 anos e 8 meses de prisão mais não é do que a soma das penas de 4 anos e de 4 anos e 8 meses, suspensasna sua execução, determinadas, já em cúmulo, no âmbito dos dois processos que determinaram a realização deste cúmulo superveniente; xxiv. A pena única aplicada ao arguido revela-se eivada de injustificável severidade e desproporcional face aos critérios que presidem à sua determinação; xxv. O acórdão revela um entendimento puramente repressivo e sancionatório do direito penal, violando o disposto nos artigos 77.º e 78.º do Código Penal e 18.º, nº 2 e 29.º, nº 4 da Constituição da República Portuguesa; xxvi. As finalidades das penas e das medidas de segurança são a proteção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade xxvii. O tribunal a quo limitou-se a uma mera revogação da forma de execução das penas anteriormente determinadas – prisão suspensa – e à sua aglutinação conjunta resultando na efetivação do cumprimento de ambas; xxviii. A determinação da pena única de concurso não pode ser uma mera operação aritmética; xxix. No caso concreto, transformar duas penas suspensas na sua execução, numa única pena de prisão efetiva, mostra-se excessivo e desproporcional, considerando até os fins últimos que presidem ao cúmulo jurídico de penas, sempre sendo mais benéfico ao arguido o cumprimento sucessivo das penas anteriormente determinadas; xxx. O acórdão recorrido padece de vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP quando considera como relevante para fundamentar a sua decisão a alegada falta de pagamento das indemnizações arbitradas a vítimas e despesas hospitalares sem que tal conste da factualidade provada; xxxi. Decorreram cerca de seis anos desde a prática dos factos sendo o tempo um fator de diluição da necessidade de tutela penal; xxxii. A conduta do arguido surge num período circunscrito no tempo, que não pode deixar de se considerar episódico na vida deste arguido, familiar, profissional e socialmente enquadrado, e cujos crimes que formam todo o espectro delituoso mereceram penas singularmente aplicadas que oscilam entre três meses e 3 anos deprisão,nãorevelandoum traçodepersonalidadepropensaàcondutacriminosa, mas antes uma mera pluriocasionalidade; xxxiii. Mesmo no âmbito do exercício de funções o arguido não exibiu uma propensão para condutas avessas ao direito, consubstanciadas em comportamentos desviantes, sendo bem visto pelos seus pares e superiores hierárquicos; xxxiv. À data da prática dos factos o arguido AA tinha 22 anos de idade, contando atualmente com 27 anos de idade, não registando quaisquer antecedentes criminais; xxxv. É possível circunscrever a sua atuação ao período de início de funções como militar da ..., inexistindo qualquer noticia de comportamentos desviantes antes e após este período de tempo xxxvi. O AA, não obstante esta situação, continuou a promover a sua formação académica, ingressando no ensino superior, encontrando-se no final da licenciatura e a trabalhar num escritório de ... após o fim da sua condição de militar da ...; xxxvii. O Relatório social elaborado é favorável quanto à socialização personalidade e estabilidade familiar e profissional do arguido; xxxviii. O arguido refletiu, nestes anos, sobre a censurabilidade da sua atuação e interiorizou o desvalor das suas condutas em causa em ambos os autos e isso mesmo transmitiu na audiência de cúmulo; xxxix. As condutas do arguido não tiveram reflexos indeléveis nas vitimas, resultando o empolamento mediático da sua condição profissional, desgarrada de qualquer contextualização no que é o seu percurso de vida; xli. O acórdão ora em crise viola, igualmente, o disposto nos artigos 29.º, 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal, sendo a pena aplicada ao arguido manifestamente excessiva e desproporcionada; xlii. Considerando as condições pessoais do arguido AA, avaliando os factos na sua globalidade, é justo, adequado e proporcional aplicar ao arguido uma pena única que não exceda os 5 anos de prisão, a qual deve ser suspensa na sua execução, sem que a defesa do ordenamento jurídico saia beliscada; xliii. Ao decidir por uma pena única de 8 anos e 8 meses, mais adequada a um quadro de alta e grave criminalidade, o tribunal a quo violou o disposto no artigo 77.º do Código Penal, devendo a mesma situar-se a meio da moldura da pena do concurso; xliv. Deve o acórdão revidendo ser revogado e substituído por outro consentâneo com o arrazoado supra, aplicando-se ao arguido a pena única de 5 anos de prisão suspensa na sua execução.” A.2.2. Recurso do arguido BB O arguido BB requereu a realização de audiência, na qual declarou pretender ver abordados os seguintes pontos da sua motivação de recurso: (transcrição integral): - Erro na aplicação da lei n.º Lei n.º 38-A/2023, de 2 de agosto; - Erro na falta de desconto à pena aplicada do período de pena suspensa já cumprido (3 anos); - Possibilidade de o Arguido ser absolvido dos Crimes de ofensa à integridade física, com base no princípio da Reformatio in Mellius; - Erro na determinação da medida da pena; – Substituição da pena de prisão – suspensão da execução da pena. Por outro lado, terminou as aludidas motivações com as seguintes conclusões: “Conclusões a. O Acórdão recorrido condenou o Arguido na pena de 7 anos e três meses de pena de prisão; b) Nos autos de Processo Comum Colectivo nº. 11/18.0..., por acórdão transitado em julgado a 11 de Janeiro de 2021, e por factos praticados em 30 de Setembro e 01 de Outubro de 2018 o Recorrente foi condenado a dois anos de prisão pela prática de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d) e n.º 4 do C.P.. c) Ou seja, quando o crime de falsificação de documentos tenha sido cometido isoladamente, sem colocar em causa direitos liberdades e garantias dos cidadãos está abrangido pelo perdão. d) O Tribunal “ad quo” refere que apesar do crime de falsificação de documento in casu estar abrangido pela chamada lei da Amnistia, porquanto o Recorrente, à data dos factos tinha menos de 31 anos, esta não é de aplicar, porquanto, já foi alvo de perdão. e) Parece-nos que, o tribunal “Ad quo” comete um tremendo erro de interpretação. f) Na verdade, inverte a ordem e aplicação da já invocada lei. g) Primeiro aplica o perdão e depois é que analisa se é ou não perdoado este crime. h) Ora, o que decorre da letra e do ratio legal é precisamente o contrário do defendido na decisão recorrida. i. O que decorre da lei da amnistia é que num caso de cúmulo jurídico ainda não transitado em julgado, em prima facie devem ser “eliminados” os crimes perdoados e só depois se fará o cômputo do referido cúmulo. j) Assim e sem mais delongas parece-nos que ao limite máximo da pena treze anos e onze meses há que subtrair dois anos de prisão. k) Como há que descontar de forma equitativa o tempo de pena suspensa (3 anos) já decorridos sobre o primeiro cúmulo jurídico; l) O Recorrente discorda da posição processual do Tribunal a quo. m) Na verdade, entende o Recorrente que, a ser como defende o douto Acórdão ora Recorrido haveria uma violação, manifesta e irrefutável, do princípio da igualdade plasmado no artigo 13º da CRP. n) Parece-nos que o disposto no artigo 81º do CP consiste em que há que descontar no cumprimento da pena aplicada o período de pena suspensa já cumprida. o) Uma vez fixada a pena conjunta, descontam-se no seu cumprimento as penas parcelares cumpridas que, em cúmulo jurídico, nela se “fundiram”. p) O acórdão cumulatório deve determinar e quantificar esse desconto. q) Uma vez fixada a pena conjunta, descontam-se no seu cumprimento as penas parcelares cumpridas que, em cúmulo jurídico, nela se “fundiram”. r) O acórdão cumulatório deve determinar e quantificar esse desconto. s) Acresce que, o Arguido deve ser absolvido dos Crimes de ofensa à integridade física, com base no princípio da Reformatio in Mellius; t) O Recorrente bem sabe que os acórdãos alvo de cúmulo jurídico já transitaram em julgado. u) O que per si, implicaria, sem mais, a sua intangibilidade e imodificabilidade. v) Sucede porém que em ambos os acórdãos o Arguido, ora Recorrente, foi condenado pelo crime sequestro ou sequestro agravado e Ofensa à Integridade Física. w) Ora, é entendimento do Recorrente que a condenação simultânea pelos referidos crimes constitui uma violação grosseira do princípio ne bis in idem. x) Como resulta da matéria de facto provada, estamos perante uma pluralidade de crimes praticados pelo arguido. Assim, importa averiguar em que medida os mesmos se subsumem no conceito constante do nº 1 do artº 30º do Cód. Penal – concurso de crimes. y) Os problemas dogmáticos relativos ao concurso de crimes (unidade e pluralidade de infracções), dos mais complexos na teoria geral do direito penal, têm no artigo 30º do Código Penal a indicação de um princípio geral de solução: o número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente. z) O critério determinante do concurso é, assim, no plano da indicação legislativa, o que resulta da consideração dos tipos legais violados e efectivamente violados, o que aponta decisivamente para a consagração de um critério teleológico referido ao bem jurídico. aa) No caso sub judice, importa enquadrar jurídico-penalmente a conduta do arguido, tendo como ponto de partida a matéria de facto que considerada provada e que, por não impugnada validamente, se tem como definitivamente assente. bb) Não temos dúvidas, por isso, que o arguido se constituiu autor de um crime de sequestro p. e p. no artº 158º do Cód. Penal. cc) No caso em apreço, como se viu, o arguido agrediu o ofendido. dd) Ou seja, o arguido privou o ofendido da liberdade, obrigando-o a permanecer no veículo, tendo para o efeito agredido aquele na face e na cabeça. ee) As referidas lesões e sequelas integram-se, sem dúvida, no conceito de ofensa grave. ff) Atendendo a que a aludida privação da liberdade foi precedida e acompanhada das supra descritas ofensas à integridade física grave, o crime de sequestro é agravado nos termos do disposto no artº 158º nº 2 al. b) do Cód. Penal. gg) A decisão recorrida condenou o arguido, para além do mais, como autor material de um crime de sequestro agravado p. e p. no artº 158º nº 2 al. b) do Cód. Penal, mas simultaneamente, pela autoria de um crime de ofensa à integridade física grave p. e p. nos artºs 143º e 144º al. b) do C.Penal. hh) Pese embora o recorrente não questione, neste aspecto, o enquadramento jurídico efectuado na decisão recorrida, o certo é que ao valorar duplamente as ofensas à integridade física, a decisão violou o princípio “ne bis in idem”. iii. Com efeito, como decidiu o Ac. do STJ de 09.01.1997 “o crime de sequestro agravado por ofensas à integridade física não concorre com o de ofensa a essa integridade, pois que estas já estão valoradas como circunstância qualificativa do sequestro”. jj) Estamos perante uma relação de consunção, que ocorre quando o preenchimento de um tipo legal inclui já o preenchimento de outro tipo legal. kk) No caso sub-judice, como vimos, tendo-se demonstrado que a privação da liberdade por parte do arguido, foi acompanhada de actos que constituem uma ofensa à integridade física grave, impõe-se a absolvição do arguido como autor material de dois crimes de ofensa à integridade física grave. ll) Por força do princípio da reformatio in melius, pode o arguido ser absolvido, no Tribunal de recurso, de um crime por que vinha condenado, não obstante não ter havido recurso, oportuno, dessa matéria. mm) O que se pede. nn) A pena de prisão determinada pela Sentença Recorrida é manifestamente exagerada relativamente ao Arguido. oo) É nosso entendimento que tal pena é manifestamente excessiva e desproporcional face aos factos apurados e que deverá ser reduzida. pp) O Recorrente está integrado familiar e socialmente, nunca teve qualquer problema com a justiça, confessou parte dos factos, não tirou qualquer proveito económico dos factos praticados e mostrou-se arrependido. qq) Assim sendo, a medida da pena aplicada, bem acima do limite mínimo, é desadequada e desajustada face aos factos dados como provados e ao mal evitado. rr) Entendemos que o Acórdão ora recorrido é desarrazoado na fixação da pena. ss) No que corresponde à determinação da medida concreta da pena que se adeque ao comportamento do arguido, deve atender-se, em conformidade com o estipulado no n.º 1 do artigo 71.º do Código Penal, à culpa do agente e às exigências de prevenção de futuros crimes. tt) Sabendo nós que a medida da pena não pode jamais ultrapassar a medida da culpa (artigo 40.º, n.º 2 do CP). uu) Na determinação concreta da pena, conforme positivado no artigo 71.º, n.º 2, do Código Penal, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor do agente ou contra ele. vv) O Arguido como se disse não tem antecedentes criminais. ww) Acresce que, não existem quaisquer factos nos atos que indiciem que o Arguido tem uma personalidade tendencialmente criminosa. xx) Tal conclusão é meramente especulativa e desprovida de qualquer meio probatório. yy) Ponderadas todas as circunstâncias referidas, as concretas exigências de prevenção geral e especial e a moldura penal em causa, afigura-se suficiente para satisfazer, de forma adequada, as exigências de prevenção especial que se fazem sentir, nomeadamente, para a “educação” do arguido para o direito e para determinar que a mesma se abstenha de continuar a adoptar este tipo de condutas, a aplicação ao mesmo da pena de 5 anos; zz) Em conclusão, entendemos que no caso sub judice o Tribunal a quo, ao decidir nos termos em que o fez, violou o estabelecido nos artigos 40º e 71º do Código Penal ao fixar uma pena bastante acima do mínimo legal. aaa) Em suma repete-se, é manifesta a desadequação e desproporcionalidade da pena aplicada pelo Acórdão Recorrido pelo que deverá ser revista nos termos supra elencados. bbb) Esta pena admite a suspensão da execução, por força do art. 50º, nº 1, do CP, medida expressamente solicitada pelo arguido e que sempre teria que ser ponderada, por força da mesma disposição legal. ccc) A atividade criminosa do arguido decorreu num período em que ele se encontrava sem vínculo laboral, longe da família, sem “pouso certo”. ddd) Era imaturo profissionalmente e pessoalmente. eee) Perante esta factualidade, é possível concluir que há fundamento para formular um juízo favorável quanto ao comportamento futuro do arguido. Um juízo arriscado, porventura bastante arriscado, mas que vale a pena assumir, em nome do princípio da ressocialização do condenado, que também integra os fins das penas. fff) Sendo certo que, a suspensão não deverá ser negada quando o risco não seja excessivo, quando não seja temerário. ggg) É o que se afigura acontecer no caso dos autos. hhh) Em face da pena de 5 anos de prisão, no contorno da caracterização jurídica pugnada pelo arguido, apenas importa aqui refletir a pena de substituição correspondente à suspensão da execução da pena. iv. O artigo 50.º, n.º 1, do Código Penal, estabelece que “o tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.” jjj) A opção pela suspensão da execução da pena depende de um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu previsível comportamento futuro. kkk) A suspensão da pena tem um conteúdo pedagógico e reeducativo, que se mostra orientado pelo desígnio de afastar o delinquente da via do crime, tendo em consideração as concretas circunstâncias do caso. lll) Trata-se, por conseguinte, de uma convicção subjetiva, embora fundada, do julgador, que não deixa de encerrar, decerto, um risco, emergente, nomeadamente, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso. mmm) Nesse domínio, importa assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não afronte ou postergue as finalidades da punição, devendo ela, na óptica da prevenção especial, beneficiar a reinserção social do condenado. nnn) De outra parte, atendendo às imposições da prevenção geral, compete acautelar que a comunidade não perspetive a suspensão, na situação concreta, como indício/sinal de indulgência ou impunidade, assim se evitando o desenvolvimento de qualquer desconfiança no atinente ao sistema repressivo penal. ooo) Por fim, assinale-se que a opção pela suspensão há de fundamentar-se nos elementos previstos no predito artigo 50.º, n.º 1: na personalidade do agente, nas condições da sua vida, na sua conduta anterior e posterior ao crime e nas circunstâncias deste. jjj) A opção pela suspensão da execução da pena depende de um juízo de prognose favorável, centrado na pessoa do arguido e no seu previsível comportamento futuro6. kkk) A suspensão da pena tem um conteúdo pedagógico e reeducativo, que se mostra orientado pelo desígnio de afastar o delinquente da via do crime, tendo em consideração as concretas circunstâncias do caso. lll) Trata-se, por conseguinte, de uma convicção subjetiva, embora fundada, do julgador, que não deixa de encerrar, decerto, um risco, emergente, nomeadamente, dos elementos de facto mais ou menos limitados a que se tem acesso. mmm) Nesse domínio, importa assegurar que a suspensão da execução da pena de prisão não afronte ou postergue as finalidades da punição, devendo ela, na óptica da prevenção especial, beneficiar a reinserção social do condenado. nnn) De outra parte, atendendo às imposições da prevenção geral, compete acautelar que a comunidade não perspetive a suspensão, na situação concreta, como indício/sinal de indulgência ou impunidade, assim se evitando o desenvolvimento de qualquer desconfiança no atinente ao sistema repressivo penal. ooo) Por fim, assinale-se que a opção pela suspensão há de fundamentar-se nos elementos previstos no predito artigo 50.º, n.º 1: na personalidade do agente, nas condições da sua vida, na sua conduta anterior e posterior ao crime e nas circunstâncias deste.considerações de prevenção especial de socialização recomendam, pois, a suspensão da execução da pena de prisão pelo período de tempo correspondente à pena de 5 anos que deve ser aplicada. rrr) Conclui-se, assim, por ser justo, adequado, equitativo e razoável, que a censura do facto e a ameaça da pena são bastantes para afastar o arguido da delinquência e satisfazer as necessidades de reprovação e de prevenção, geral e especial, do crime. sss) Observe-se também que, nos termos do estabelecido no artigo 50.º, n.º 5, do Código Penal, “o período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.” ttt) Assim, ao abrigo do disposto no artigo 50.º, números 1, 4 e 5, do Código Penal, a execução da pena de prisão a aplicar ao arguido deverá ser suspensa, na sua execução, pelo período de 5 anos, com sujeição a um estreito regime de prova.” A.3. A propósito destes recursos foram apresentadas, no Tribunal a quo, respostas pelo Ministério Público, nas quais se concluiu da seguinte forma: A.3.1. Resposta ao recurso do Arguido AA “6) Em primeiro lugar e quanto ao aludido vício de “omissão de pronúncia”, por se entender que o Tribunal apenas reproduziu o relatório social, sem olhar à personalidade do arguido, o mesmo não se verifica. 7) De facto, o Tribunal não só reproduziu o relatório social como o analisou e daí retirou consequências. 8) Diz-se na decisão ora em crise que: “Não milita a favor dos condenados AA e BB o arrependimento e sentimento de vergonha verbalizados nesta audiência de cúmulo jurídico superveniente. Aliás, o tribunal não pôde considerar provado mais do que isso, ou seja, mera verbalização. Com efeito, não se trata de sentimentos genuínos porquanto a postura de ambos ao longo dos dois processos foi sempre a de procurarem eximir-se às suas responsabilidades, escapar a uma condenação, sem nunca terem contribuído para a descoberta da verdade e sem nunca terem revelado réstia de compaixão, empatia, solidariedade para com as vítimas dos seus crimes. Recorde-se a este propósito que, no âmbito do Proc. 11/18.0... AA, BB e CC foram ainda condenados, solidariamente com os demais arguidos naqueles autos, no pagamento de indemnizações às vítimas, pagamento esse que até hoje não demonstraram ter realizado, no todo ou em parte.” 9) Foi analisada a personalidade do arguido e por isso não existiu qualquer vício. 10) Quanto ao perdão de penas, acompanhamos a decisão do Tribunal, já sufragada pelo Tribunal da Relação de Évora, que disse: Qualquer dos três condenados não tinha 30 anos de idade à data da prática dos factos. As respectivas defesas pugnam pela aplicação do perdão relativamente aos crimes de abuso de poder (AA e CC) e de falsificação de documento (BB). Ou seja, excluem à partida, por a tanto não oferecer qualquer dúvida, a aplicação do perdão com respeito aos crimes de ofensa à integridade física qualificada, violação de domicílio por funcionário e sequestro, atento o disposto no art. 7º nº.1 a) iii) e k) do referido diploma legal. Ora, quanto ao crime de abuso de poder, como tivemos oportunidade de escrever na fundamentação de direito do acórdão condenatório proferido nestes autos 371/19.5T9ODM, «(…) reduzir o crime de abuso de poder às situações em que ficasse demonstrada a intenção de obter benefício ou causar prejuízo apenas de carácter patrimonial, tratando-se de um crime que, na própria letra da lei, frequentemente surge numa relação de concurso aparente, de consumpção e subsidiariedade, em relação a outros tipos legais, então o seu espectro de enquadramento factual seria residual ou nulo. A letra da lei, por comparação a outros tipos legais (v.g. recebimento ou oferta indevidos de vantagem art. 372º; corrupção arts. 373º e 374º; participação económica em negócio art. 377º; concussão art. 379º), não deixa dúvidas de que sempre que o legislador quis especificar que o benefício/prejuízo visado pelo agente do crime é de carácter patrimonial, fala em vantagem patrimonial/lesão de interesses patrimoniais; quando o benefício/prejuízo visado é de qualquer natureza (que também pode ser de carácter patrimonial) ou não o caracteriza, como sucede no crime de abuso de poder, ou então refere “vantagem patrimonial ou não patrimonial”. Donde, fica desde logo afastada a tese defendida por algumas das defesas dos arguidos, em alegações, de que não poderia haver lugar ao cometimento dos imputados crimes de abuso de poder por não existir intenção de obter benefício/causar prejuízo de carácter patrimonial. (…) Os factos provados a respeito, conjugados com a simples leitura dos deveres éticos e profissionais pelos quais o arguido devia ter pautado a sua conduta, para mais no interior do Posto da ..., não deixam dúvidas quanto à verificação do elemento objectivo do tipo de crime imputado. Quanto ao elemento subjectivo, ficou demonstrado tanto o benefício ilegítimo como o prejuízo para a vítima. Quanto ao benefício, o arguido agiu sob uma motivação torpe, para seu gáudio e de terceiros, com desprezo para com o indivíduo que subjugou e humilhou, registando em vídeo essa humilhação, que passou a constituir um troféu. Quanto ao prejuízo, a vítima padeceu humilhação, receio, vendo atingida a própria dignidade.» Posição esta que foi sufragada pelo Tribunal da Relação de Évora, quando escreve a propósito do recurso apresentado pelo condenado AA «(…) Salvo o devido respeito, não é de acolher o entendimento defendido pelo recorrente no sentido de que quando a intenção do arguido é humilhar a vítima, sendo o prejuízo daí decorrente a inerente ofensa à dignidade desta, esse prejuízo não integra a tipicidade do crime de abuso de poder.» Entendimento que estendeu em relação a todos os condenados pelo mesmo tipo de crime, entre eles CC. Ora, perante esta realidade, não se nos afigura defensável a tese de que os crimes de abuso de poder cometidos por AA e CC não constituam uma violação de direitos, liberdades e garantias das suas vítimas. Donde, por força do disposto daquele mesmo art. 7º nº.1 k), consideramos excluídos da aplicação do perdão os crimes de abuso de poder.” 11) Quanto ao desconto da pena anterior, também o Tribunal respondeu à questão, que acompanhamos na íntegra: “Já com respeito aos condenados AA e BB, existe uma crescentetendênciada jurisprudênciadostribunaissuperioresemadmitir,nostermosdonº.2daquela mesma disposição legal, que haja lugar a desconto de tempo de prisão em penas efectivas resultantes de cúmulos que englobem penas suspensas. Contudo, limita esses casos a situações em que o regime de suspensão anteriormente fixado acarrete sacrifício/prejuízo para os condenados, nomeadamente através da demonstração de terem sido cumpridas, enquanto perdurou a suspensão, obrigações, deveres, regras de conduta donde decorra esse sacrifício/prejuízo – veja-se a título de exemplo o Ac. TRG Proc. 1165/09.8TDPRT-A.G1, de 30 de Junho de 2022, disponível em www.dgsi.pt. Apesar de se discordar de tal posição, por a mesma não ser coerente com o disposto no art. 56º nº.2 do CP, sempre se dirá que, no caso dos autos, AA e BB foram condenados em penas suspensas, sujeitas a regime de prova definido pela DGRSP, sem que em concreto tivessem sido fixadas quaisquer obrigações, deveres, regras de conduta que importassem qualquer sacrifício/prejuízo. Por outro lado, como é sabido, o plano de reinserção social é fixado exclusivamente em benefício do condenado, e não em seu prejuízo, colhendo inclusive o seu acordo prévio (arts. 53º nºs. 1 e 2 e 54º nºs. 1 e 2 do CP), não se podendo considerar relevante ao ponto de justificar um “abatimento” numa pena de prisão o mero “incómodo” (se a tanto pudermos chegar) de o condenado responder a convocatórias da entidade que o vigia e apoia, e de manter adequada conduta social. Pelo que se entende não haver lugar a qualquer desconto na pena única de prisão fixada aos condenados AA e BB.”. 12) Já quanto à medida da pena a aplicar, resulta que o acórdão recorrido referiu expressamente os fundamentos da medida da pena, designadamente o grau de ilicitude o dolo directo e intenso e as necessidades de prevenção geral e as condições pessoais do condenado. 13) Consideramos assim que a pena aplicada é justa e equilibrada, nada havendo a censurar nesse tocante.” A.3.2. Resposta ao recurso do Arguido BB “6) Quantoaoperdãodepenas,acompanhamosadecisãodoTribunal,quedisse:”Resta, assim, o crime de falsificação de documento pelo qual foi condenado BB. Nos termos do disposto no art. 7º nº.1 b) i), considera-se excluído do perdão o crime falsificação de documentos quando cometido como meio para a prática de crimes de abuso de confiança e burla – neste sentido Ac. STJ de 12-02-1998, Proc. 97P1244 e de 09-04-2003, Proc. 03P402, que podem ser consultados em www.dgsi.pt. Ou seja, quando o crime de falsificação de documentos tenha sido cometido isoladamente, sem relação com aqueloutros, então está abrangido pelo perdão. No caso concreto, ao condenado BB foi fixada uma pena parcelar de dois anos de prisão com respeito a tal crime. Donde, nada obsta à aplicação do perdão de um ano, nos termos do disposto no art. 3º nºs. 1 e 4 da Lei sob referência, porquanto daí não resulta afectada a parte da pena correspondente aos crimes dele excluídos. Porém, além da condição resolutiva geral (art. 8º nº.1), tendo BB sido condenado no pagamento de indemnizações, a aplicação do perdão ficará ainda sujeita à condição resolutiva de pagamento, no prazo de 90 dias após trânsito em julgado do presente acórdão, dessas mesmas indemnizações (nºs. 2 a 5 do mesmo preceito legal). Porém, além da condição resolutiva geral (art. 8º nº.1), tendo BB sido condenado no pagamento de indemnizações, a aplicação do perdão ficará ainda sujeita à condição resolutiva de pagamento, no prazo de 90 dias após trânsito em julgado do presente acórdão, dessas mesmas indemnizações (nºs. 2 a 5 do mesmo preceito legal).” 7) Quanto ao desconto da pena anterior, também o Tribunal respondeu à questão, que acompanhamos na íntegra: “Já com respeito aos condenados AA e BB, existe uma crescente tendência da jurisprudência dos tribunais superiores em admitir, nos termos do nº.2daquela mesma disposição legal, que haja lugar a desconto de tempo de prisão em penas efectivas resultantes de cúmulos que englobem penas suspensas. Contudo, limita esses casos a situações em que o regime de suspensão anteriormente fixado acarrete sacrifício/prejuízo para os condenados, nomeadamente através da demonstração de terem sido cumpridas, enquanto perdurou a suspensão, obrigações, deveres, regras de conduta donde decorra esse sacrifício/prejuízo – veja-se a título de exemplo o Ac. TRG Proc. 1165/09.8TDPRT-A.G1, de 30 de Junho de 2022, disponível em www.dgsi.pt. Apesar de se discordar de tal posição, por a mesma não ser coerente com o disposto no art. 56º nº.2 do CP, sempre se dirá que, no caso dos autos, AA e BB foram condenados em penas suspensas, sujeitas a regime de prova definido pela DGRSP, sem que em concreto tivessem sido fixadas quaisquer obrigações, deveres, regras de conduta que importassem qualquer sacrifício/prejuízo. Por outro lado, como é sabido, o plano de reinserção social é fixado exclusivamente em benefício do condenado, e não em seu prejuízo, colhendo inclusive o seu acordo prévio (arts. 53º nºs. 1 e 2 e 54º nºs. 1 e 2 do CP), não se podendo considerar relevante ao ponto de justificar um “abatimento” numa pena de prisão o mero “incómodo” (se a tanto pudermos chegar) de o condenado responder a convocatórias da entidade que o vigia e apoia, e de manter adequada conduta social. Pelo que se entende não haver lugar a qualquer desconto na pena única de prisão fixada aos condenados AA e BB.”. 8) Já quanto à medida da pena a aplicar, resulta que o acórdão recorrido referiu expressamente os fundamentos da medida da pena, designadamente o grau de ilicitude o dolo directo e intenso e as necessidades de prevenção geral e as condições pessoais do condenado. 9) Consideramos assim que a pena aplicada é justa e equilibrada, nada havendo a censurar nesse tocante.” A.4. O parecer do Ministério Público junto deste Supremo Tribunal de Justiça Neste Supremo Tribunal de Justiça o Digníssimo Procurador-Geral Adjunto apôs o seu vito, relativamente ao recurso apresentado por BB e, quanto ao recorrente AA, emitiu o seguinte parecer (transcrição): a. “Da inadmissibilidade do cúmulo jurídico superveniente Diz o recorrente que sendo as penas de substituição verdadeiras penas autónomas e não meras formas de execução da pena substituída, não devem ser englobadas no cúmulo jurídico superveniente quando não se mantenha e respeite a sua natureza. Se assim não acontecer, afirma, ficam violados os princípios da confiança e da segurança jurídica. Não tem, porém, em nosso entender, razão no que alega. Diz o artigo o artigo 77º do Código Penal: “1 - Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente. 2 - A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes. 3 - Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores. 4 - As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.” Se, no entanto, já depois de transitada em julgado a condenação, chegar ao conhecimento Tribunal que o agente havia praticado anteriormente outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo 77º, “(…) sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.” – artigo 78º, nº 1, do citado diploma. A imposição do desconto da pena cumprida ou do segmento já cumprido da pena englobada no concurso resulta igualmente do disposto no artigo 81º do Código Penal que, para além disso, refere a necessidade de se proceder a um desconto equitativo quando a pena anterior ao concurso e a pena posterior forem de natureza diferente. Do quadro legal que sucintamente se acaba de referir resulta – sem grande margem para dúvidas – que na formação da pena única entram todas as penas de prisão de prisão parcelares, tenham ou não sido substituídas, contanto que não tenham sido declaradas prescritas ou extintas por motivo diferente do cumprimento. O Supremo Tribunal de Justiça tem-se pronunciado consistentemente no sentido de que as penas de prisão suspensas na sua execução devem integrar o cúmulo, sempre que não se encontrem extintas. Como se refere no Acórdão do STJ de 11.10.20177, proferido no processo 72/11.2GCGMR, relatado por Francisco Caetano, “Não é nova a questão da inclusão das penas suspensas nos cúmulos jurídicos supervenientes e sobre cuja possibilidade este Supremo se tem pronunciado, de forma largamente maioritária, se não mesmo uniforme, em que enfileiramos, desde que o prazo de suspensão se mantenha em curso, só não devendo ser englobadas as penas já declaradas extintas nos termos do art.º 57.º, n.º 1, do CP, nada obstando a que no julgamento conjunto determinante da pena única, se conclua pela necessidade de aplicação de uma pena de prisão efectiva, isto é, seja precludida a suspensão.[1] 8” Também o acórdão do STJ de 13.02.20199, proferido no processo 1205/15.5T9VIS.S1 e relatado por Lopes da Mota aborda esta questão com indiscutível clareza: “A questão da consideração da pena de prisão suspensa na sua execução nas operações de cúmulo tem sido objecto de vasta elaboração jurisprudencial, sendo hoje uniforme o entendimento de que, estando os crimes numa relação de concurso e estando a decorrer o período de suspensão, deverá a pena de prisão substituída concorrer para a determinação da pena única, nos termos do artigo 77.º do Código Penal (como se afirmou no acórdão de 12.7.2018, proc. 281/14.2PBBJA.S1, sumário publicado em www.stj.pt/wp-content/uploads/2018/11/criminal_sumarios_julho_ 2018.pdf; cfr., por todos, os acórdãos de 4.11.2015, no proc. 1259/14.1T8VFR.S1, rel. Cons. Manuel Matos, e de 14.5.2009, no proc. 6/03.8TPLSB.S1, da 3.ª Secção, rel. Cons. Armindo Monteiro, bem como a numerosa jurisprudência neles citada).” b. Do desconto equitativo nos termos do artigo 81.º, nº 2 do Código Penal A lei não estabelece, porém, como e com base em que critérios deve ser efetuado o desconto de uma pena suspensa de prisão quando, havendo conhecimento superveniente do concurso, a pena de substituição (suspensão) é anulada pelo tribunal que, no mesmo ato, integra a pena substituída (de prisão) na pena única que aplica aos crimes em concurso. “Se é certo que, neste caso, o cumprimento da pena de suspensão (pena de substituição) não se confunde nem reconduz a um cumprimento da pena de prisão em liberdade – sob pena de contradição nos próprios termos e de negação da natureza da pena de suspensão como pena autónoma –, que o cumprimento da pena de prisão não resulta de comportamento ou de razão imputável ao condenado – o que pode ser tido como motivo de justificação da não previsão de desconto na pena de prisão substituída – e se também é certo que, em caso de revogação, o condenado não pode “exigir a restituição de prestações que haja efetuado” (artigo 56.º, n.º 2, do CP), abre-se, neste ponto, um espaço de dúvida, a que a jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça tem vindo a dar resposta com base num critério de “equitatividade” adiantado, noutro contexto (em 1993, como se viu – supra, 15), por Figueiredo Dias.” 10 No caso dos autos, o Tribunal a quo apreciou expressamente – e bem – a questão do desconto aqui em apreço. Com efeito, pode ler-se na motivação do acórdão, com respeito ao arguido aqui recorrente, que “(…) existe uma crescente tendência da jurisprudência dos tribunais superiores em admitir, nos termos do nº.2 daquela mesma disposição legal, que haja lugar a desconto de tempo de prisão em penas efectivas resultantes de cúmulos que englobem penas suspensas. Contudo, limita esses casos a situações em que o regime de suspensão anteriormente fixado acarrete sacrifício/prejuízo para os condenados, nomeadamente através da demonstração de terem sido cumpridas, enquanto perdurou a suspensão, obrigações, deveres, regras de conduta donde decorra esse sacrifício/prejuízo – veja-se a título de exemplo o Ac. TRG Proc. 1165/09.8TDPRT-A.G1, de 30 de Junho de 2022, disponível em www.dgsi.pt. Apesar de se discordar de tal posição, por a mesma não ser coerente com o disposto no art. 56º nº.2 do CP, sempre se dirá que, no caso dos autos, AA e BB foram condenados em penas suspensas, sujeitas a regime de prova definido pela DGRSP, sem que em concreto tivessem sido fixadas quaisquer obrigações, deveres, regras de conduta que importassem qualquer sacrifício/prejuízo. Por outro lado, como é sabido, o plano de reinserção social é fixado exclusivamente em benefício do condenado, e não em seu prejuízo, colhendo inclusive o seu acordo prévio (arts. 53º nºs. 1 e 2 e 54º nºs. 1 e 2 do CP), não se podendo considerar relevante ao ponto de justificar um “abatimento” numa pena de prisão o mero “incómodo” (se a tanto pudermos chegar) de o condenado responder a convocatórias da entidade que o vigia e apoia, e de manter adequada conduta social. Pelo que se entende não haver lugar a qualquer desconto na pena única de prisão fixada aos condenados AA e BB.” Vem o recorrente atacar, também nesta parte, a decisão recorrida alegando que “O tribunal a quo, erradamente e tomando uma posição essencialmente retributiva (como mais à frente se aprofundará aquando da abordagem da pena determinada), considerou não haver lugar a um qualquer desconto equitativo a ponderar. Porém, entende-se que ao determinar a pena única resultante do cúmulo superveniente o Tribunal deve fazer um desconto equitativo da pena suspensa já cumprida parcialmente pelo arguido, desde logo em homenagem aos princípios da proporcionalidade, igualdade e de proibição do ne bis in idem.” A construção jurisprudencial do “desconto equitativo” encontra-se hoje consolidada nas decisões do Supremo Tribunal de Justiça e vai, claramente, no sentido acolhido pelo Tribunal a quo no acórdão recorrido. Se não, vejamos: Em acórdão recente deste Tribunal11, relatado por Ana Brito, pode ler-se: “Se processualmente não se aceita que o arguido possa responder mais do que uma vez pelos mesmos factos, também materialmente não se pode fazer corresponder à conduta delituosa uma punição a cumprir por mais do que uma vez. Do que se trata é sempre de procurar assegurar que “qualquer efeito já sofrido pelo delinquente deve ser considerado na sentença posterior” (Eduardo Correia, Actas das Sessões da Comissão Revisora do CP, II, p. 166). Daí que o princípio penal geral do “desconto” encontre previsão nos arts. 80º a 82º do CP. Este “princípio fundamental” – princípio fundamental e, não, uma regra de excepção, que, esta sim, poderia colocar entraves à analogia – abrange “não apenas a prisão preventiva, mas outros efeitos já sofridos pelo mesmo facto” (Eduardo Correia, loc. cit.).” O desconto só será, porém, admissível se o condenado, durante período da suspensão, tiver cumprido deveres e regras de conduta que lhe tenham sido impostos e que constituam um sacrifício em que se possa identificar um sentido sancionatório12. “As disposições que regem sobre o desconto em situações como esta são as dos nºs 1 e 2 do artº 81º do CP: «Se a pena imposta por decisão transitada em julgado for posteriormente substituída por outra» e «se a pena anterior e a posterior forem de diferente natureza, é feito na nova pena o desconto que parecer equitativo». Este desconto não pode assentar simplesmente no decurso do tempo de suspensão, sem qualquer sacrifício para o condenado, por nisso não haver justificação, tendo de haver o cumprimento de qualquer imposição decretada ao abrigo dos artºs 51º a 54º do mesmo código. E o artº 81º, nºs 1 e 2, nesta interpretação, não fere os ditos princípios constitucionais, na medida em que o simples não fazer nada para que não seja determinada a revogação da suspensão não é mais do que aquilo que se exige a qualquer cidadão sobre o qual não impenda a ameaça da execução de pena de prisão.”13 c. - Do perdão de pena – Lei nº 38-A/2023 de 02 de agosto Entende o recorrente que, não obstante a sua condição de militar da ..., a pena que lhe foi aplicada como autor material de crimes de abuso de poder deve beneficiar do perdão de pena nos termos da Lei nº 38-A/2023. Sobre esta questão debruçou-se em profundidade o Tribunal a quo no acórdão recorrido. Citamos: “Qualquer dos três condenados não tinha 30 anos de idade à data da prática dos factos. As respectivas defesas pugnam pela aplicação do perdão relativamente aos crimes de abuso de poder (AA e CC) e de falsificação de documento (BB). Ou seja, excluem à partida, por a tanto não oferecer qualquer dúvida, a aplicação do perdão com respeito aos crimes de ofensa à integridade física qualificada, violação de domicílio por funcionário e sequestro, atento o disposto no art. 7º nº.1 a) iii) e k) do referido diploma legal. Ora, quanto ao crime de abuso de poder, como tivemos oportunidade de escrever na fundamentação de direito do acórdão condenatório proferido nestes autos 371/19.5T9ODM, «(…) reduzir o crime de abuso de poder às situações em que ficasse demonstrada a intenção de obter benefício ou causar prejuízo apenas de carácter patrimonial, tratando-se de um crime que, na própria letra da lei, frequentemente surge numa relação de concurso aparente, de consumpção e subsidiariedade, em relação a outros tipos legais, então o seu espectro de enquadramento factual seria residual ou nulo. A letra da lei, por comparação a outros tipos legais (v.g. recebimento ou oferta indevidos de vantagem art. 372º; corrupção arts. 373º e 374º; participação económica em negócio art. 377º; concussão art. 379º), não deixa dúvidas de que sempre que o legislador quis especificar que o benefício/prejuízo visado pelo agente do crime é de carácter patrimonial, fala em vantagem patrimonial/lesão de interesses patrimoniais; quando o benefício/prejuízo visado é de qualquer natureza (que também pode ser de carácter patrimonial) ou não o caracteriza, como sucede no crime de abuso de poder, ou então refere “vantagem patrimonial ou não patrimonial”. Donde, fica desde logo afastada a tese defendida por algumas das defesas dos arguidos, em alegações, de que não poderia haver lugar ao cometimento dos imputados crimes de abuso de poder por não existir intenção de obter benefício/causar prejuízo de carácter patrimonial. (…) Os factos provados a respeito, conjugados com a simples leitura dos deveres éticos e profissionais pelos quais o arguido devia ter pautado a sua conduta, para mais no interior do Posto da ..., não deixam dúvidas quanto à verificação do elemento objectivo do tipo de crime imputado. Quanto ao elemento subjectivo, ficou demonstrado tanto o benefício ilegítimo como o prejuízo para a vítima. Quanto ao benefício, o arguido agiu sob uma motivação torpe, para seu gáudio e de terceiros, com desprezo para com o indivíduo que subjugou e humilhou, registando em vídeo essa humilhação, que passou a constituir um troféu. Quanto ao prejuízo, a vítima padeceu humilhação, receio, vendo atingida a própria dignidade.» Posição esta que foi sufragada pelo Tribunal da Relação de Évora, quando escreve a propósito do recurso apresentado pelo condenado AA «(…) Salvo o devido respeito, não é de acolher o entendimento defendido pelo recorrente no sentido de que quando a intenção do arguido é humilhar a vítima, sendo o prejuízo daí decorrente a inerente ofensa à dignidade desta, esse prejuízo não integra a tipicidade do crime de abuso de poder.» Entendimento que estendeu em relação a todos os condenados pelo mesmo tipo de crime, entre eles CC. Ora, perante esta realidade, não se nos afigura defensável a tese de que os crimes de abuso de poder cometidos por AA e CC não constituam uma violação de direitos, liberdades e garantias das suas vítimas. Donde, por força do disposto daquele mesmo art. 7º nº.1 k), consideramos excluídos da aplicação do perdão os crimes de abuso de poder.” Foram duas as situações que determinaram a condenação do recorrente AA pela prática de crimes de abuso de poder. A primeira ocorreu no dia 12 de setembro de 2018 e, sobre ela ficaram definitivamente provados os seguintes factos: “1.1 No dia 12 de Setembro de 2018, cerca das 19h20, o arguido AA, sem estar escalado de serviço para aquela hora, estava no interior do Posto ... da ... em .... 1.2 Nesse local, este, acompanhado de terceiros não identificados, dirigiu-se a um cidadão de nacionalidade presumivelmente..., cuja identidade não se logrou apurar e que ali se encontrava por causa desconhecida, não reportada em expediente de serviço, e obrigou-o a dizer correctamente em português “FF fode-me os cornos”. 1.3 Enquanto tal sucedia, AA dava gargalhadas, juntamente com os terceiros não identificados e o indivíduo permanecia em atitude submissa. 1.4 AA voltou a instar tal indivíduo a dizer “Mestre, és uma máquina” “desgraça” e “FF, eu quero ir para ...”, o que aquele, em atitude submissa, fez. 1.5 Enquanto isto sucedia, AA filmava, com o seu telemóvel, em sete vídeos, todos os actos a que sujeitava aquele indivíduo. 1.6 O arguido AA agiu com satisfação e desprezo pelo indivíduo que subjugou, obrigando-o a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentava – autoridade policial. 1.7 O arguido AA sabia que ao agir sobre o indivíduo vítima das suas condutas, da forma como o fez, na qualidade de funcionário, nas instalações do Posto da ... de ..., fê-lo em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhe confere, que devia respeitar e honrar. 1.8 Actuou o arguido AA em manifesto aproveitamento da situação, frágil e desprotegida do visado, aproveitando-se da pouca ou nenhuma capacidade daquele em a tal se opor, o que sabia facilitar a execução e consumação das suas condutas reprováveis, violando frontalmente os deveres que lhe incumbiam na protecção e respeito pela população. 1.9 Actuou o arguido AA em evidente prejuízo do visado, subjugando-o às condutas que por caprichos lhe impôs. 1.10 Ao actuar da forma como actuou, o arguido AA visou e conseguiu atingir a dignidade da vítima, causando-lhe a consequente humilhação, ciente que o mesmo tinha nacionalidade estrangeira e que estava numa situação fragilizada perante si, tornando-o um alvo fácil. 1.11 Agiu de forma livre e deliberada, consciente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.” Por sua vez, a segunda situação teve lugar no dia 13 de janeiro de 2019, e os factos desenrolaram-se do seguinte modo, como ficou provado: “1.28 No dia 13.01.2019, no horário das 16h00 às 24h00, estavam escalados de serviço no Posto da ... de ..., os arguidos CC no atendimento, AA, GG e HH em patrulha. 1.29 Em circunstâncias não concretamente apuradas encontravam-se no interior do Posto da ... de ... pelo menos três indivíduos cuja identidade não se conseguiu apurar, mas presumivelmente de nacionalidades..., sem que tal tenha sido reportado em expediente de serviço. 1.30 No referido Posto estava, ainda, o arguido II, com roupa civil. 1.31 No pátio/estacionamento interior, os arguidos CC, II e AA, em comunhão de esforços e intentos, dispuseram os três indivíduos lado a lado e AA ordenou-lhes que se agachassem e que se remetessem ao silêncio. 1.32 De seguida, o arguido II, empunhando uma régua de plástico, transparente, de pequenas dimensões, desferiu diversas reguadas na palma das mãos de cada um daqueles indivíduos e obrigou-os a repetirem “thank you”, o que aqueles fizeram. 1.33 Ordens e agressões que ambos os arguidos AA e II dirigiram àqueles por várias vezes. 1.34 Enquanto tal decorria, o arguido CC, munido de uma embalagem spray de gás pimenta aproximou-a da nuca de um daqueles indivíduos. 1.35 Os arguidos II e AA, ordenaram então aos três indivíduos que se colocassem na posição “prancha” e acto contínuo, o arguido II desferiu várias palmadas no corpo daqueles. 1.36 Durante todos estes actos os arguidos riam-se e divertiam-se com a subjugação que impunham àqueles três indivíduos, sem qualquer justificação e sem que qualquer deles levasse a cabo qualquer acção para fazer cessar tais condutas. 1.37 O arguido GG assistiu a tais actos e nada fez para os impedir. 1.38 Os arguidos CC, II e AA agiram com satisfação e desprezo pelos indivíduos que subjugaram, obrigando-os a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentavam – autoridade policial – sem que qualquer deles tivesse tomado uma qualquer medida para terminar com tais condutas. 1.39 Os arguidos CC, II e AA sabiam que ao agirem sobre os indivíduos vítimas das suas condutas, da forma como fizeram, quando se encontravam ao serviço do Estado, na qualidade de funcionários, fardados e/ou no interior do Posto da ... de ..., faziam-no em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhes confere e que exerciam, que deviam respeitar e honrar. 1.40 Os arguidos CC, II e AA fizeram-no em manifesto aproveitamento da situação, frágil e desprotegida dos visados, aproveitando-se da pouca ou nenhuma capacidade daqueles em se defenderem, o que sabiam facilitar a execução e consumação das suas condutas reprováveis, violando frontalmente os deveres que lhes incumbiam na proteção e respeito pela população. 1.41 Os arguidos CC, II e AA agiram em evidente prejuízo dos visados, subjugando-os às condutas que por caprichos lhes impuseram. 1.42 Os arguidos CC, II e AA ao actuarem da forma como actuaram, visaram e conseguiram, em conjugação de esforços e intentos, atingir o corpo e a dignidade das vítimas, causando-lhe sofrimento e humilhação, cientes que os mesmos tinham nacionalidade estrangeira e que estavam numa situação fragilizada perante si, tornando-os um alvo fácil. 1.43 Os arguidos CC, II e AA actuaram de forma livre e deliberada, conscientes de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 1.44 O arguido GG sabia que por força do exercício das suas funções de militar da ... estava obrigado a intervir por forma a não permitir ou fazer cessar a actuação daqueloutros. 1.45 O arguido GG estava ciente que ao nada fazer contribuía para que os demais levassem a cabo as descritas condutas, atitude que tomou de forma livre, voluntária e consciente de que era proibida e punida por lei penal.” Perante estes factos, defende o recorrente que não se verifica a causa de exclusão do perdão contida no artigo 7º, nº 1, al. k), da Lei nº 38-A/2023, aplicável aos “membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários relativamente à prática, no exercício das suas funções, de infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena”. Isto porque, alega o recorrente, na primeira situação não se encontrava de serviço e, na segunda situação, por não constituir o tipo legal da condenação a violação de direitos liberdades e garantias pessoais. Com efeito, pode ler-se nas conclusões que formulou: “xi. A expressão “infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos”, não pode deixar de ser entendida relativamente ao tipo legal e ao bem jurídico protegido pelas normas incriminadoras, e não dos seus efeitos reflexos sob pena de constituir uma expansão interpretativa inadmissível, até porque estamos perante um crime de mera atividade e não de resultado; xii. O bem jurídico protegido através do tipo de crime de abuso de poder é a autoridade e credibilidade da administração do Estado; xiii. Não estão preenchidos os requisitos cumulativos – prática no exercício de funções infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos – para fazer operar a exceção constante da alínea k) do nº 1 do artigo 7.º da Lei nº 38-A/2023, devendo o arguido beneficiar de perdão de pena de um ano a incidir sobre a pena única relativamente aos crimes de abuso de poder;” Não tem, porém, qualquer razão. A qualificação jurídica dos factos cometidos pelo recorrente não está aqui em causa e ficou definitivamente fixada pelas decisões, já transitadas em julgado, proferidas nos processos que originaram o cúmulo jurídico operado nos autos. O que aqui se discute é, pois, os crimes de abuso de poder praticados pelo recorrente devem, ou não, ser excluídos do perdão concedido pela Lei nº 38-A/2023. Como acabámos de ver, no entender do recorrente a expressão “infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos”, tem de reportar-se ao tipo legal e ao bem jurídico protegido pela norma incriminadora, e não aos seus efeitos reflexos. Daqui decorreria a impossibilidade de um crime que apenas lesa a autoridade e a credibilidade da administração do Estado poder violar direitos, liberdades e garantias fundamentais dos cidadãos. Entendemos exatamente o contrário. Paula Ribeiro de Faria, em anotação ao artigo 382º do Código Penal14, refere que “De uma forma geral poder-se-á definir o abuso de poderes como uma instrumentalização de poderes (inerentes à função), para finalidades estranhas ou contrárias às permitidas pelo direito administrativo (ou melhor dizendo, ilegítimas).” Seja, o bem jurídico protegido, a autoridade e credibilidade da administração do Estado15, seja “(…) a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário e acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outra pessoa”16, está sempre aqui em causa proteção da relação do Estado - que atua através dos seus agentes - com os cidadãos, a confiança que aquele deve merecer à coletividade, bem como a lisura e a legalidade dos meios que utiliza para a concretização das suas finalidades. É a esta luz que a qualidade de funcionário do agente deve ser encarada tanto mais que é essa qualidade que funda a ilicitude e confere tipicidade a uma conduta materializada no abuso dos poderes ou na violação dos deveres inerentes às respetivas funções. Por esta razão, as condutas integradoras do ilícito em apreço deverão corresponder, não apenas às especificas competências legais do funcionário, mas deverão abranger, também, a simples utilização, por parte deste, de meros "poderes de facto" decorrentes da sua posição "funcional". É, por isso, completamente irrelevante que o ora recorrente não estivesse na escala de serviço no dia em que ocorreu a primeira situação. O que aqui releva é que agiu enquanto se encontrava no interior do Posto da ... onde exercia funções e com perfeita consciência de que ao atuar “(…) sobre o indivíduo vítima das suas condutas, da forma como o fez, na qualidade de funcionário, nas instalações do Posto da ... de ..., fê-lo em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhe confere, que devia respeitar e honrar.” Para além disso, e continuamos a citar o acórdão recorrido, “agiu com satisfação e desprezo pelo indivíduo que subjugou, obrigando-o a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentava – autoridade policial.” A lesão do bem jurídico protegido importou aqui, em simultâneo com a degradação da autoridade do Estado e/ou da integridade do exercício das funções públicas, uma manifesta violação da dignidade do ser humano, do direito à integridade física e mental, do direito à liberdade e segurança e da proibição dos tratos desumanos ou degradantes que o Estado Português - de que o recorrente era, naquele momento, agente - tem por obrigação funcional tornar efetivos e proteger, por força da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia e da Constituição da República. Ou, dito de outro modo, a lesão do bem jurídico protegido incorpora, indissociavelmente, a violação dos direitos fundamentais das vítimas. É esta incindível relação entre a conduta do recorrente e a violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos que faz funcionar sem qualquer expansão interpretativa inadmissível, a cláusula de exclusão do perdão contida no artigo 7º da Lei nº 38-A/2023. d. - Da desproporcionalidade da pena Decidiu, o Tribunal recorrido em sede de pena a aplicar ao recorrente: “(…) operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas nestes autos e no processo nº. 11/18.0..., acordam os juízes que integram este tribunal colectivo em: - Condenar AA na pena única de 8 (oito) anos e 8 (oito) meses de prisão;” Contra esta decisão veio o recorrente dizer: “xxiii. A pena alcançada pelo coletivo a quo de 8 anos e 8 meses de prisão mais não é do que a soma das penas de 4 anos e de 4 anos e 8 meses, suspensas na sua execução, determinadas, já em cúmulo, no âmbito dos dois processos que determinaram a realização deste cúmulo superveniente; xxiv. A pena única aplicada ao arguido revela-se eivada de injustificável severidade e desproporcional face aos critérios que presidem à sua determinação;” Também aqui, entendemos que o recorrente não tem razão. Na verdade, a pena única que lhe foi aplicada teve como limites, nos termos do disposto no art. 77º, n.º 1, do Código Penal, o mínimo de 3 anos e o máximo de 13 anos e 11 meses de prisão; Na determinação da pena concreta a aplicar ao recorrente, o Tribunal teve em consideração todos elementos relativos aos factos praticados e à respetiva personalidade, procurando a justa medida “(…) em função do princípio da culpa, que constitui o limite e pressuposto de qualquer pena (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal) e as finalidades de prevenção que o caso demandar (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal).” Para além disso, o Tribunal a quo atendeu à “necessidade de ponderação e consideração, numa visão de conjunto, dos factos e da personalidade do condenado, como impõe o critério específico estatuído no artigo 77.º, n.º 1 do CP”. Neste contexto, havia que ter, e foi efetivamente tido em conta, no caso concreto destes autos que: - As exigências de prevenção geral são muito elevadas, considerando tratar-se de crimes contra pessoas em situação de grande vulnerabilidade, ao que tudo indica imigrantes, cujo aumento nos últimos anos tem sido muito elevado. A sociedade reclama aqui um expressivo rigor punitivo para desincentivar o seu cometimento. - O grau de ilicitude refletido no facto e no desvio de valores impostos pela ordem jurídica é chocantemente elevado; - A intensidade do dolo, é fortíssima porque o arguido representou os factos criminosos e atuou com intenção direta de os realizar; Já no tocante às exigências de prevenção especial, foi devidamente levado em conta o facto de que, como se lê no acórdão recorrido, “Não milita a favor dos condenados AA e BB o arrependimento e sentimento de vergonha verbalizados nesta audiência de cúmulo jurídico superveniente. Aliás, o tribunal não pôde considerar provado mais do que isso, ou seja, mera verbalização. Com efeito, não se trata de sentimentos genuínos porquanto a postura de ambos ao longo dos dois processos foi sempre a de procurarem eximir-se às suas responsabilidades, escapar a uma condenação, sem nunca terem contribuído para a descoberta da verdade e sem nunca terem revelado réstia de compaixão, empatia, solidariedade para com as vítimas dos seus crimes.” O Tribunal recorrido fez uma conscienciosa apreciação dos pertinentes elementos do caso concreto, bem como das circunstâncias em que o recorrente agiu, construindo uma coerente visão de conjunto, que lhe permitiu considerar os factos na sua totalidade e determinar a “gravidade do ilícito global perpetrado”17. Resulta do disposto no atrigo 71º do Código Penal, a medida concreta da pena resultará da ponderação conjunta das exigências de prevenção geral e especial que os factos que constituem os elementos do tipo de ilícito impõem, levando-se em conta todas as circunstâncias que, sendo extra típicas, possam depor a favor ou contra o seu autor, sempre contido, o resultado desta ponderação, dentro dos limites da culpa do arguido, como o impõe, também, o número 2 do artigo 40º do mesmo Código. Ora, como ensina, a este propósito, Figueiredo Dias, o substrato da culpa reside “(…) na totalidade da personalidade do agente, ético-juridicamente relevante, que fundamenta o facto, e, portanto, também na liberdade pessoal e no uso que dela se fez, exteriorizadas naquilo a que chamamos a “atitude” da pessoa perante as exigências do dever ser. Daí que o juiz, ao emitir o juízo de culpa ou ao medir a pena, não possa furtar-se a uma compreensão da personalidade do delinquente, a fim de determinar o seu desvalor ético-jurídico e a sua desconformação em face da personalidade suposta pela ordem jurídico-penal. A medida desta desconformação constituirá a medida da censura pessoal que ao delinquente deve ser feita, e, assim, o critério essencial da medida da pena”.18 A incapacidade de revisitar criticamente a sua conduta e de a analisar à luz dos mais elementares princípios de uma sociedade fundada em valores humanistas – que o recorrente, enquanto membro de uma força policial estava comprometido a defender – conduz-nos forçosamente à formulação de um juízo negativo sobre a sua “(…) sensibilidade à pena, a susceptibilidade de ser por ela influenciado e as qualidades da personalidade manifestadas no facto, nomeadamente a falta de preparação para manter uma conduta lícita (Figueiredo Dias, ob. cit., p. 248ss.)”19 A falta de empatia com as vítimas que maltratou é chocante, tanto mais que, como é sabido, e resulta expressivamente formulado num texto da Associação Portuguesa de Apoio à Vítima - APAV, “As pessoas afetadas por um crime podem apresentar algumas reações emocionais e até mesmo físicas, que resultam do impacto negativo da situação de vitimação. No caso das/dos cidadãs/ãos migrantes, estas reações podem ter algumas características específicas, eventualmente colocando em causa a perceção do/a migrante sobre si próprio/a e sobre a sua aceitação pela comunidade de acolhimento. IMEDIATAMENTE APÓS A OCORRÊNCIA DO CRIME, AS VÍTIMAS PODEM SENTIR: - Estado de choque emocional; - Pânico; - Fortes reações físicas e psicológicas (choro, falta de forças, apatia, tremor, etc.); - Medo de morrer; - Impressão de estar a viver um pesadelo; - Desejo de voltar imediatamente ao país/comunidade de origem; - Sentimento de que não é bem vindo pela comunidade portuguesa; - Desorientação; - Sentimento de solidão, principalmente se não tiver rede de amigos ou familiares em Portugal; - Sentimento de impotência; - Sentimentos de raiva e vontade de fazer justiça pelas próprias mãos. NOS DIAS E SEMANAS SEGUINTES AO CRIME: - Dúvida quanto à normalidade das suas reações; - Ambivalência emocional; - Mudanças bruscas de humor; - Reconsideração do seu projeto migratório (questionar se vale a pena continuar em Portugal); - No caso da discriminação e dos crimes de ódio, questionamentos sobre as suas características pessoais que foram atacadas com a prática do crime (cor da pele, religião, etnia, nacionalidade). REAÇÕES FÍSICAS COMUNS: - Perda de energia; - Apatia; - Insónia ou sono excessivo; - Diminuição dos níveis de resistência; - Dores musculares; - Dores de cabeça e/ou enxaquecas; - Distúrbios ao nível da menstruação; - Arrepios e/ou afrontamentos; - Problemas digestivos (aumento ou diminuição do apetite, náuseas); - Tensão arterial alta; - Mudanças no comportamento sexual. REAÇÕES PSICOLÓGICAS COMUNS: - Culpa; - Sentimento de ser injustamente tratado; - Raiva; - Desconfiança; - Tristeza; - Flashbacks (imaginação de imagens ou pensamento relacionados com o crime); - Falta de motivação. A NÍVEL PSICOSSOCIAL É COMUM: - Solidão; - Tensões familiares e conjugais; - Medo de estar sozinho; - Falta da família e rede de apoio do país ou comunidade de origem; - Sentimento de incompreensão por parte dos outros; - Evitamento de locais que causam um sentimento de insegurança.”20 O arguido era militar da ..., tendo por missão proteger e cuidar dos mais fracos e vulneráveis. Dir-se-á que ficou também provado que o recorrente é tido por aqueles que lhe são mais próximos como bom profissional, disciplinado, empenhado, de comportamento exemplar para com os colegas e público em geral. Como disse Lord Acton, “O poder corrompe e o poder absoluto tende a corromper absolutamente”. Decorre dos factos provados, numa leitura analítica, que o poder do recorrente sobre as suas vítimas era total, a ponto de o fazer desviar-se daquilo que são os nossos, comuns, valores básicos e inebriar-se com o domínio sobre essa vulnerabilidade, humilhando e maltratando pessoas indefesas, demostrando uma personalidade profundamente contrária ao direito e um absoluto desprezo pelos valores que regem a sociedade. Compete à sociedade que somos e aos Tribunais, enquanto órgãos do Estado não permitir a normalização, a relativização e a tolerância – enfim, a banalização – de condutas gritantemente anti-éticas e profundamente violadoras do direito. Entendemos, por tudo o que se deixa dito, que a medida concreta da pena aplicada – situada num patamar médio alto da moldura abstrata – reflete adequadamente o grau de culpa do recorrente e responde corretamente à necessidade de tutela dos bens jurídicos aqui violados. 5. Examinados os fundamentos do recurso, emite-se parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado improcedente mantendo-se, na íntegra, a decisão recorrida. “ A.5. Devidamente notificados nos termos do disposto no artigo 417º, nº 2 do Código de Processo Penal, apenas o recorrente AA apresentou resposta, na qual não apresentou nova argumentação, limitando-se a repetir o que já tinha consignado no seu recurso sobre a aplicação do perdão concedido pela Lei 38-A/2023, de 02 de agosto, sobre o desconto a que alude o artigo 81º, nº 2 do Código Penal e sobre a medida concreta da pena única em que foi condenado. * * * Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre apreciar e decidir. B - Fundamentação B.1. âmbito do recurso O âmbito do recurso delimita-se, como já atrás se referiu, pelas conclusões do recorrente (artigos 402º, 403º e 412º do Código de Processo Penal) sem prejuízo, se necessário à sua boa decisão, da competência do Supremo Tribunal de Justiça para, oficiosamente, conhecer dos vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410º, nº 2, do mesmo diploma legal, (acórdão de fixação de jurisprudência nº 7/95 in D.R. I Série de 28 de dezembro de 1995), de nulidades não sanadas (nº 3 do aludido artigo 410º) e de nulidades da sentença ( artigo 379º, nº do Código de Processo Penal). Assim e em suma, as questões a apreciar no presente recurso são as seguintes (indicação feita com respeito pela ordem que foram apresentadas nas conclusões): Quanto ao arguido AA: • Da admissibilidade ou não de se realizar cúmulo jurídico superveniente relativamente a penas de prisão cuja execução foi suspensa; • Omissão de pronúncia, geradora de nulidade prevista no artigo 379º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal, porquanto: – “O acórdão a quo é omisso relativamente a qualquer decisão nos termos dos artigos 56º do CP e 492º do CPP respeitante às penas suspensas pretéritas, as quais não foram revogadas ou prorrogadas, violando, por isso, os citados dispositivos legais”; – “O tribunal a quo limitou-se a transcrever o relatório social que mandou elaborar ao arguido, não valorando o mesmo e não o apreciando enquanto coadjuvante na fixação da pena única”; • Da aplicabilidade do perdão concedido pela Lei 38-A/2023, de 02 de agosto, aos dois crimes de abuso de poder, praticados em 12 de setembro de 2018 e 13 de janeiro de 2019, e pelos quais foi condenado • Do desconto a efetuar, nos termos do artigo 81º, nº 2 do Código Penal, na pena única, devido ao decurso do prazo de suspensão da execução das penas únicas anteriormente aplicadas; • Medida da pena única; • Do alegado vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do nº 2 do artigo 410º do Código de Processo Penal (por “fundamentar a sua decisão (n)a alegada falta de pagamento das indemnizações arbitradas a vítimas e despesas hospitalares sem que tal conste da factualidade provada”). Quanto ao arguido BB: • Da aplicação da amnistia concedida pelo artigo 4º da Lei 38-A/2023, de 02 de agosto, ao crime de falsificação, praticado em 30 de setembro e 01 de outubro de 2018; • Do desconto a efetuar, nos termos do artigo 81º, nº 2 do Código Penal, na pena única, devido ao decurso do prazo de suspensão da execução das penas únicas anteriormente aplicadas; • Da possibilidade de absolvição do crime de ofensa à integridade física grave, ao abrigo do Princípio da Reformatio in Mellius e por este crime estar numa relação de concurso aparente com o crime de sequestro agravado previsto e punível pelo artigo 158º, nº 1 aliena a) do Código Penal; • A medida e escolha da pena única; B.2. A decisão recorrida A decisão recorrida tem o seguinte teor (transcrição integral): “Acordam os Juízes que constituem o Tribunal Colectivo I. Para efeitos de cúmulo jurídico superveniente realizou-se audiência a que alude o art. 472º do CPP relativamente aos condenados AA, natural ..., nascido a ........1996, filho de JJ e KK, solteiro, residente na Rua ..., em ..., BB, natural ..., nascido a ........1991, filho de LL e MM, solteiro, residente na Av. ..., ..., e CC, natural ..., nascido a ........1992, filho de NN e de OO, casado, militar da ..., residente em Rua .... O Tribunal é competente por nos presentes autos ter sido proferida a última condenação (art. 471º do C.P.P.). Houve lugar a audiência de cúmulo jurídico de penas na presença dos condenados. Inexistem quaisquer nulidades, excepções ou questões prévias que obstem à prolação da decisão final. OS FACTOS Nos presentes autos (371/19.5T9ODM), por acórdão transitado em julgado a 18 de Setembro de 2023, e por factos praticados entre 12 de Setembro de 2018 e 17 de Março de 2019: - AA foi condenado nas seguintes penas parcelares: • Cinco meses de prisão pela prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382º do Cód. Penal; • Um ano de prisão pela prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382º do Cód. Penal; • Três anos de prisão pela prática de um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158º, nº.1 e n.º 2, alínea g), in fine, do Cód. Penal; • Um ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º nº.1, 145º, n.º 1, alínea a) por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea m), todos do Cód. Penal; • Dois anos de prisão, pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º nº.1, 145º, n.º 1, alínea a) por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea m), todos do Cód. Penal. Em cúmulo jurídico de penas, AA foi condenado na pena única de quatro anos e oito meses de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova. - BB foi condenado nas seguintes penas parcelares: • Três anos de prisão pela prática de um crime de sequestro agravado, p. e p. pelo artigo 158º, nº.1 e n.º 2, alínea g), in fine, do Cód. Penal; • Um ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos artigos 143º nº.1, 145º, n.º 1, alínea a) por referência ao artigo 132º, n.º 2, alínea m), todos do Cód. Penal; Em cúmulo jurídico de penas, BB foi condenado na pena única de três anos e quatro meses de prisão, suspensa na execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova. - CC foi condenado na pena de um ano de prisão, suspensa por um ano e seis meses, sujeita a regime de prova, pela prática de um crime de abuso de poder, p. e p. pelo art. 382º do Cód. Penal. Resultou então provado que 1. No dia 12 de Setembro de 2018, cerca das 19h20, o arguido AA, sem estar escalado de serviço para aquela hora, estava no interior do Posto ... da ... em .... 1. Nesse local, este, acompanhado de terceiros não identificados, dirigiu-se a um cidadão de nacionalidade presumivelmente..., cuja identidade não se logrou apurar e que ali se encontrava por causa desconhecida, não reportada em expediente de serviço, e obrigou-o a dizer correctamente em português “FF fode-me os cornos”. 2. Enquanto tal sucedia, AA dava gargalhadas, juntamente com os terceiros não identificados e o indivíduo permanecia em atitude submissa. 3. AA voltou a instar tal indivíduo a dizer “Mestre, és uma máquina” “desgraça” e “FF, eu quero ir para ...”, o que aquele, em atitude submissa, fez. 4. Enquanto isto sucedia, AA filmava, com o seu telemóvel, em sete vídeos, todos os actos a que sujeitava aquele indivíduo. 5. O arguido AA agiu com satisfação e desprezo pelo indivíduo que subjugou, obrigando-o a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentava – autoridade policial. 6. O arguido AA sabia que ao agir sobre o indivíduo vítima das suas condutas, da forma como o fez, na qualidade de funcionário, nas instalações do Posto da ... de ..., fê-lo em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhe confere, que devia respeitar e honrar. 7. Actuou o arguido AA em manifesto aproveitamento da situação, frágil e desprotegida do visado, aproveitando-se da pouca ou nenhuma capacidade daquele em a tal se opor, o que sabia facilitar a execução e consumação das suas condutas reprováveis, violando frontalmente os deveres que lhe incumbiam na protecção e respeito pela população. 8. Actuou o arguido AA em evidente prejuízo do visado, subjugando-o às condutas que por caprichos lhe impôs. 9. Ao actuar da forma como actuou, o arguido AA visou e conseguiu atingir a dignidade da vítima, causando-lhe a consequente humilhação, ciente que o mesmo tinha nacionalidade estrangeira e que estava numa situação fragilizada perante si, tornando-o um alvo fácil. 10. Agiu de forma livre e deliberada, consciente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 11. No dia 11 de Novembro de 2018, no horário das 00h00 às 08h00, estavam escalados de serviço no Posto da ... de ..., PP no atendimento e os arguidos BB e AA em patrulha. 12. Nesse dia, cerca das 02h15, os arguidos BB, conhecido por “FF”, AA e um terceiro militar cuja identidade não foi possível apurar, devidamente fardados e em comunhão de esforços e intentos, em local não identificado, por motivos não apurados e não reportados em expediente, algemaram, atrás das costas, indivíduo não identificado, mas de nacionalidade presumivelmente.... 13. Após, ambos os arguidos e aquele terceiro militar, em comunhão de esforços e intentos, sentaram tal indivíduo, algemado, a chorar e contra a sua vontade, no banco de trás do veículo de matrícula L-...., Toyota ..., propriedade do Estado Português e que se encontrava adstrito ao serviço de patrulha daquele Posto. 14. Enquanto isto, o individuo não identificado permanecia a chorar e repetia “português nô malo, nô português” ao que um dos militares presentes responde “tu és uma miséria”, tendo de imediato aquele indivíduo sido atingido por uma forte palmada na cabeça. 15. A vítima repetiu “português nô malo, nô português” ao que os militares lhe disseram “então põe-te no caralho daqui para fora moço!” e “mata-te caralho!” “cala-te caralho, são duas e meia da manhã!”. 16. A vítima insistiu em desespero “nô português, no inglês” ao que um dos militares lhe disse “be quiet!” e, acto contínuo, desferiu diversas palmadas na cabeça daquele, o qual começou a chorar e a gemer, dobrando-se sobre os seus joelhos, e para que este se calasse o militar que seguia imediatamente ao seu lado encostou e esfregou repetidamente uma espingarda shotgun ao rosto daquele, que permanecia dobrado sobre os seus joelhos, a chorar e aterrorizado. 17. A vítima foi mantida pelos arguidos dentro do carro por período não determinado, mas sempre contra a sua vontade. 18. A referida espingarda shotgun é propriedade do Estado e fica depositada no Posto para ser usada, se necessário e unicamente em serviço e, não obstante, foi usada naquela ocasião para o referido fim. 19. Nenhum dos militares presentes fez algo para impedir que fossem levadas a cabo tais condutas. 20. Os arguidos BB, AA e o terceiro militar presente agiram com satisfação e desprezo pelo indivíduo que subjugaram, obrigando-o a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentavam – autoridade policial – sem que qualquer deles tivesse tomado uma qualquer medida para terminar com tais condutas. 21. Os arguidos BB, AA e o terceiro militar presente sabiam que ao agirem sobre o indivíduo vítima das suas condutas, da forma como fizeram, quando se encontravam ao serviço do Estado, na qualidade de funcionários, fardados, faziam-no em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhes confere e que exerciam, que deviam respeitar e honrar. 22. Os arguidos BB, AA e o terceiro militar presente fizeram-no em manifesto aproveitamento da situação, frágil e desprotegida do visado, aproveitando-se da pouca ou nenhuma capacidade daquele em se defender, o que sabiam facilitar a execução e consumação das suas condutas reprováveis, violando frontalmente os deveres que lhes incumbiam na proteção e respeito pela população. 23. Os arguidos BB, AA e o terceiro militar presente agiram em evidente prejuízo do visado, subjugando-o às condutas que por caprichos lhe impuseram. 24. Os arguidos BB, AA e o terceiro militar presente ao actuarem da forma como actuaram, visaram e conseguiram, em conjugação de esforços e intentos, atingir o corpo e a dignidade da vítima, causando-lhe as consequentes dores, sofrimento e humilhação, cientes que o mesmo tinha nacionalidade estrangeira e que estava numa situação fragilizada perante si, tornando-o um alvo fácil. 25. Os arguidos AA, BB e o terceiro militar presente ao algemarem o indivíduo visado nas suas condutas, meterem-no dentro do carro da ..., forçando-o a ali permanecer, contra a sua vontade e em terror e desespero, quer pelo facto de estar algemado, quer pelo facto de ter uma espingarda “shotgun” encostada ao rosto, quiseram unir a sua vontade e os seus esforços para privarem aquele da sua liberdade ambulatória, o que concretizaram. 26. Os arguidos BB, AA e o terceiro militar presente actuaram de forma livre e deliberada, conscientes de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 27. No dia 13.01.2019, no horário das 16h00 às 24h00, estavam escalados de serviço no Posto da ... de ..., os arguidos CC no atendimento, AA, GG e HH em patrulha. 28. Em circunstâncias não concretamente apuradas encontravam-se no interior do Posto da ... de ... pelo menos três indivíduos cuja identidade não se conseguiu apurar, mas presumivelmente de nacionalidades..., sem que tal tenha sido reportado em expediente de serviço. 29. No referido Posto estava, ainda, o arguido II, com roupa civil. 30. No pátio/estacionamento interior, os arguidos CC, II e AA, em comunhão de esforços e intentos, dispuseram os três indivíduos lado a lado e AA ordenou-lhes que se agachassem e que se remetessem ao silêncio. 31. De seguida, o arguido II, empunhando uma régua de plástico, transparente, de pequenas dimensões, desferiu diversas reguadas na palma das mãos de cada um daqueles indivíduos e obrigou-os a repetirem “thank you”, o que aqueles fizeram. 32. Ordens e agressões que ambos os arguidos AA e II dirigiram àqueles por várias vezes. 33. Enquanto tal decorria, o arguido CC, munido de uma embalagem spray de gás pimenta aproximou-a da nuca de um daqueles indivíduos. 34. Os arguidos II e AA, ordenaram então aos três indivíduos que se colocassem na posição “prancha” e acto contínuo, o arguido II desferiu várias palmadas no corpo daqueles. 35. Durante todos estes actos os arguidos riam-se e divertiam-se com a subjugação que impunham àqueles três indivíduos, sem qualquer justificação e sem que qualquer deles levasse a cabo qualquer acção para fazer cessar tais condutas. 36. O arguido GG assistiu a tais actos e nada fez para os impedir. 37. Os arguidos CC, II e AA agiram com satisfação e desprezo pelos indivíduos que subjugaram, obrigando-os a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentavam – autoridade policial – sem que qualquer deles tivesse tomado uma qualquer medida para terminar com tais condutas. 38. Os arguidos CC, II e AA sabiam que ao agirem sobre os indivíduos vítimas das suas condutas, da forma como fizeram, quando se encontravam ao serviço do Estado, na qualidade de funcionários, fardados e/ou no interior do Posto da ... de ..., faziam-no em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhes confere e que exerciam, que deviam respeitar e honrar. 39. Os arguidos CC, II e AA fizeram-no em manifesto aproveitamento da situação, frágil e desprotegida dos visados, aproveitando-se da pouca ou nenhuma capacidade daqueles em se defenderem, o que sabiam facilitar a execução e consumação das suas condutas reprováveis, violando frontalmente os deveres que lhes incumbiam na proteção e respeito pela população. 40. Os arguidos CC, II e AA agiram em evidente prejuízo dos visados, subjugando-os às condutas que por caprichos lhes impuseram. 41. Os arguidos CC, II e AA ao actuarem da forma como actuaram, visaram e conseguiram, em conjugação de esforços e intentos, atingir o corpo e a dignidade das vítimas, causando-lhe sofrimento e humilhação, cientes que os mesmos tinham nacionalidade estrangeira e que estavam numa situação fragilizada perante si, tornando-os um alvo fácil. 42. Os arguidos CC, II e AA actuaram de forma livre e deliberada, conscientes de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. 43. O arguido GG sabia que por força do exercício das suas funções de militar da ... estava obrigado a intervir por forma a não permitir ou fazer cessar a actuação daqueloutros. 44. O arguido GG estava ciente que ao nada fazer contribuía para que os demais levassem a cabo as descritas condutas, atitude que tomou de forma livre, voluntária e consciente de que era proibida e punida por lei penal. 45. No dia 17 de Março de 2019, no horário das 16h00 às 24h00, estavam escalados de serviço no Posto da ... de ..., II no atendimento, e os arguidos PP, AA e HH em patrulha. 46. Os arguidos PP, AA e HH deslocaram-se no veículo de matrícula L-...., Toyota ..., propriedade do Estado Português, e parquearam na rotunda da entrada de ..., na EN..., .... 47. Previamente e cerca das 22H30, os referidos arguidos, em comunhão de esforços e intentos, colocaram gás pimenta no tubo de plástico de um aparelho de medição de taxa de alcoolemia e, após, mandaram parar um indivíduo não identificado, mas de nacionalidade presumivelmente..., e um destes arguidos deu-lhe tal aparelho a usar, como se de uma fiscalização de álcool se tratasse. 48. Tal indivíduo colocou o tubo de plástico na boca e enquanto isso um dos arguidos dizia-lhe “filho de uma ganda puta” e “gás pimenta aí, oh animal, filho de uma ganda puta…. animal”. 49. Ao inspirar o gás pimenta que os arguidos haviam colocado no tubo de plástico daquele aparelho, o indivíduo visado sentiu-se mal, tendo ainda um destes arguidos, em resposta, dito àquele “seu burro do caralho!” 50. No decurso desta situação, o telefone da vítima tocou por duas vezes, tendo sido impedida de atender por ordem destes arguidos. 51. Os arguidos PP, AA e HH agiram com satisfação e desprezo pelo indivíduo que subjugaram, obrigando-o a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentavam – autoridade policial - não havendo um que tivesse tomado uma qualquer medida para terminar com tais condutas. 52. Os arguidos PP, AA e HH sabiam que ao agirem sobre o indivíduo vítima das suas condutas, da forma como fizeram, quando se encontravam ao serviço do Estado, na qualidade de funcionários, fardados, faziam-no em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhes confere e que exerciam, que deviam respeitar e honrar. 53. Os arguidos PP, AA e HH agiram em manifesto aproveitamento da situação, frágil e desprotegida do visado, aproveitando-se da pouca ou nenhuma capacidade deste em se defender, o que sabiam facilitar a execução e consumação das suas condutas reprováveis, violando frontalmente os deveres que lhes incumbiam na proteção e respeito pela população. 54. Os arguidos PP, AA e HH agiram em evidente prejuízo do visado, subjugando-o às condutas que por caprichos lhe impuseram. 55. Os arguidos PP, AA e HH ao actuarem da forma como actuaram, visaram e conseguiram, em conjugação de esforços e intentos, atingir o corpo e a dignidade da vítima, causando-lhe as consequentes dores, sofrimento e humilhação, cientes que o mesmo tinha nacionalidade estrangeira e que estava numa situação fragilizada perante si, tornando-o um alvo fácil. 56. Os arguidos PP, AA e HH actuaram de forma livre e deliberada, conscientes de que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal. Nos autos de Processo Comum Colectivo nº. 11/18.0..., por acórdão transitado em julgado a 11 de Janeiro de 2021, e por factos praticados em 30 de Setembro e 01 de Outubro de 2018: - AA foi condenado nas seguintes penas parcelares: • Oito meses de prisão pela prática de um crime de violação de domicílio por funcionário p. e p. pelo art. 378.º do C.P.; • Nove meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.; • Três meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.; • Dois anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 e 2, al. g) do C.P.; • Dois anos e quatro meses de prisão pela prática de um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 e 2, al. g) do C.P. Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova. - BB foi condenado nas seguintes penas parcelares: • Dez meses de prisão pela prática de um crime de violação de domicílio por funcionário p. e p. pelo art. 378.º do C.P.; • Um ano de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.; • Seis meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.; • Dois anos e dez meses de prisão pela prática de um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 e 2, al. g) do C.P.; • Dois anos e seis meses de prisão pela prática de um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 e 2, al. g) do C.P. • Dois anos de prisão pela prática de um crime de falsificação de documento p. e p. pelo art. 256.º, n.º 1, al. d) e n.º 4 do C.P.. Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de cinco anos de prisão, cuja execução se suspende por igual período de tempo, sujeita a regime de prova. - CC foi condenado nas seguintes penas parcelares: • Oito meses de prisão pela prática de um crime de violação de domicílio por funcionário p. e p. pelo art. 378.º do C.P.; • Nove meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.; • Três meses de prisão pela prática de um crime de ofensa à integridade física qualificada p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.; • Dois anos e três meses de prisão pela prática de um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 e 2, al. g) do C.P.; • Dois anos e dois meses de prisão pela prática de um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º, n.º 1 e 2, al. g) do C.P. Em cúmulo jurídico, foi condenado na pena única de três anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, sujeita a regime de prova. AA, BB e CC, foram ainda condenados, solidariamente com os demais arguidos, no pagamento das seguintes indemnizações: - € 85,91 (oitenta e cinco euros e noventa e um cêntimos) à demandante U..., a que acrescem juros de mora à taxa legal, contados desde a data da notificação para contestarem até integral pagamento; - €5.000,00 (cinco mil euros) a favor de DD, a título de danos não patrimoniais, sob a qual incidem juros de mora à taxa legal, contados desde a data da prolação do acórdão até integral pagamento; - €2.000,00 (dois mil euros) a favor de EE, a título de danos não patrimoniais, sob a qual incidem juros de mora à taxa legal, contados desde a data da prolação do acórdão até integral pagamento. Resultou então provado que 1. Na noite de 30-SET-2018 decorreu um jantar convívio no restaurante denominado «M...», sito na Rua .... 1. Entre os participantes no jantar, a convite de QQ, esteve o RR, militar da ... do Posto ... de ..., que se encontrava de folga. 2. No final desse jantar gerou-se discussão entre os organizadores e o dono do restaurante por questões relacionadas com a qualidade da comida e valor da conta a pagar. 3. Tal discussão foi sanada com a intervenção do arguido RR que, nessa mesma ocasião, facultou o seu contacto ao dono do restaurante, SS, para que este lhe ligasse caso tivesse problemas uma vez que é militar da .... 4. Após todos os participantes no jantar terem ido embora, incluindo o arguido RR, este recebeu uma chamada do SS solicitando ajuda em virtude de um grupo de indivíduos, diferentes daqueles que tinham participado no jantar, ter ido ao estabelecimento provocar desacatos, partindo algumas garrafas. 5. De imediato o arguido RR, assumindo as suas funções de militar da ..., decidiu-se a regressar ao restaurante, onde chegou já após as 00H00, tendo entretanto contactado o Posto ... da ... de ..., identificando-se e solicitando auxílio. 6. Momentos depois da chegada ao local do arguido RR, ali compareceram duas patrulhas da ... de ..., uma composta pelos … BB e AA (que compunham a patrulha para esse dia 01-OUT, a partir das 00h00, sendo o arguido BB o ... dessa patrulha), e que se fazia transportar num ... caracterizado de marca ..., modelo ..., outra composta pelos … TT e CC (que tinham acabado de sair da patrulha do dia 30-SET, período das 16h00 às 23h59), que se fazia transportar numa ... caracterizada de marca ..., modelo .... 7. Uma vez que nenhum dos indivíduos intervenientes nos desacatos se encontrava no local, os arguidos decidiram-se a ir à procura dos mesmos no local onde residiriam, segundo informações que recolheram junto do dono do restaurante e de outras pessoas que ali permaneciam, assumindo o arguido RR o comando dessa ocorrência sem oposição dos demais. 8. O RR entrou no ... Land Rover, juntando-se aos militares que estavam no seu interior, e seguiram todos, nas duas viaturas, em direcção à residência sita na Avenida ..., que dista dali cerca de 500m. 9. Aí residiam, pelo menos, os seguintes indivíduos: - DD; - UU; - VV; - WW; - XX. 10. Ali chegados, entre as 00H00 e as 00H30, o RR seguido dos restantes arguidos, estes devidamente uniformizados, entraram por um portão que dá acesso ao pátio da residência e, depois, subiram ao primeiro andar onde se situam duas fracções habitacionais. 11. Aí chegados pelo menos um dos arguidos bateu vigorosamente na janela de uma das residências, vindo à porta YY que aí residia. 12. Foi então que os arguidos apuraram que os indivíduos que procuravam residiam na porta ao lado, altura em que o arguido RR bateu repetida e vigorosamente nessa porta ao mesmo tempo que dizia que se não abrissem a iria arrombar. 13. Porque tinha uma chave em seu poder e para evitar o arrombamento da porta, YY abriu-a, altura em que todos os arguidos irromperam casa adentro. 14. Uma vez localizado o DD no interior do seu quarto e deitado na cama, o RR, empunhando um bastão extensível, desferiu-lhe vários golpes pelo corpo todo, incluindo na cabeça, provocando-lhe dor e sangramento, e amarrou-lhe as mãos atrás das costas, após o que o levou à força até à rua enquanto lhe desferia chapadas na cabeça, sentando-o nos bancos traseiros do ... ... contra a sua vontade. 15. Dirigiram-se então as duas viaturas até junto do restaurante M..., tendo o arguido RR, durante o percurso, desferido pelo menos uma chapada no DD. 16. Chegados a esse local, cerca de 15 minutos depois de dali terem saído, mesmo em frente ao restaurante «M...», onde ainda se encontravam algumas pessoas, um dos … uniformizados que seguia no ... retirou o DD à força da viatura, atirando-o para o chão onde caiu desamparado, visto ainda estar com as mãos amarradas atrás das costas. 17. Após o levantarem, e já com todos os arguidos em redor do DD, levaram-no até junto de uns contentores, desamarraram-lhe as mãos e, revezando-se os arguidos entre si, enquanto uns lhe desferiam murros e pontapés por todo o corpo e golpes com o bastão, outros asseguravam-se que ninguém perturbava aquela acção. 18. Como resultado da actuação dos arguidos, DD sofreu dores e as seguintes lesões: (no crânio) equimose frontal direita, (na face) equimose orbitária direita, (no pescoço) escoriação na nuca, (no tórax) escoriação na região axilar direita, escoriação desde a região escapular esquerda até à face posterior do ombro direito, (no membro superior direito) escoriação do cotovelo e (no membro inferior esquerdo) escoriação do joelho e da perna, que levaram o DD a ter que receber tratamento e cuidados médicos na U... e lhe determinaram um período de 8 dias de doença; 19. Cerca de 15 minutos depois, os militares arguidos levantaram o DD do chão e, de novo com as mãos amarradas atrás das costas, meteram-no no ... da ... e transportaram-no de volta para sua residência. 20. Chegados à casa do DD perto da 01H00, todos os arguidos irromperam novamente pela casa adentro na busca por mais alguém. 21. Localizaram, então, o EE no interior do seu quarto, deitado na cama, sendo que o RR jogou-lhe as mãos ao pescoço e levou-o à força até à rua enquanto lhe desferia chapadas na parte de trás da cabeça. 22. Sentou-o nos bancos traseiros do ... da ... e transportaram-no, contra sua vontade, até junto do restaurante «M...», apoiados pela patrulha na segunda viatura, tal como haviam feito instantes antes com o DD. 23. Junto do restaurante os arguidos levaram EE à presença de dois indivíduos, os quais, depois de o RR lhes ter perguntado se «é este?», fizeram sinal de que não era, altura em que acabaram por deixar o EE ir embora pelo seu pé. 24. Ainda no dia 01 de Outubro de 2018, o arguido BB, na qualidade de participante e enquanto ... de patrulha, elaborou o relatório de serviço n.º ....18, e entre outras situações relatadas, o participante, ora arguido, descreveu os seguintes factos: «[…] No local […] estava o Sr. ZZ, proprietário do restaurante, e um grupo de indivíduos que informaram que os indivíduos que tinham provocado os desacatos […] dois deles se chamavam DD e EE, informando esta patrulha que alguns habitavam na Avenida ... […] […], as patrulhas e o … RR à civil deslocaram-se à morada referida afim de tentar identificar os indivíduos. (…)Chegados à referida morada, […] Os militares perguntaram pelo DD, os habitantes da residência responderam que estava na cama, mas que podíamos entrar para falar com ele. […]. Quando chegados ao quarto onde o mesmo estava, deparam-se com a cama cheia de sangue e logo se aperceberam que aquele indivíduo tinha estado envolvido nos desacatos […]. Os militares conseguiram fazer com que o mesmo se acalmasse de forma a acompanhá-los ao local dos referidos desacatos […] O DD possuía muitos ferimentos […] O DD […] acompanhou os militares ao referido local afim de poder ser identificado […] procedeu-se à identificação do mesmo e […] o mesmo foi conduzido novamente á sua habitação. […] No local estava também o EE, que também foi identificado. […]» 25. Nesse relatório de serviço n.º ....18, o arguido BB, na qualidade de participante, ainda fez constar que: «Em anexo seguem autos de inquirição efectuados […] à Sr.ª YY». 26. O participante e ora arguido, assinou, no final, o relatório de serviço e efectivamente a ele anexou o auto de inquirição de testemunha referente a YY da Costa Fernandes. 27. Nesse suposto auto de inquirição referente a YY constam os seguintes factos: «Por volta das 00:30 encontrava-se em casa a dormir quando lhe bateram á porta militares da ... enquanto procuravam o senhor que tinha sido interveniente em desacatos afim de o identificarem. O mesmo estava na casa do lado e foi questionado e identificado pelos militares da .... O senhor DD já tinha ferimentos na cara, dos dois lados, vários golpes nas pernas e muitos hematomas resultantes dos desacatos no restaurante M.... Afirma que não viu nenhum militar fazer uso excessivo da força.» 28. Esse auto de inquirição surge assinado no final pela YY. 29. O auto de inquirição referente a YY foi igualmente forjado pelo arguido BB. 30. A YY apenas lhe forneceu a sua identificação, com o que o arguido preencheu os campos do auto a fls. 452 que dizem respeito à identificação da pessoa visada, e sendo levada a acreditar que era só disso que se tratava, ou seja, de a autoridade policial obter a sua identificação, assinou o seu nome no final de fls. 452v.. 31. Foi o arguido quem, depois, preencheu o campo «À MATÉRIA DOS AUTOS DISSE:» fazendo crer que se tratavam das declarações da YY. 32. Sucede que a YY não prestou, perante o arguido, quaisquer declarações acerca dos acontecimentos daquela madrugada. 33. O arguido sabia, pois, que fazia ali constar um facto (a inquirição da YY) que simplesmente não tinha acontecido, da mesma forma que sabia que estava a atribuir à YY uma versão dos acontecimentos que tão pouco correspondia à verdade e teve como única intenção encobrir os crimes que lhe podiam ser imputados, como foram. 34. Os arguidos agiram de forma livre, deliberada e consciente, em comunhão de esforços e intentos, com o propósito concretizado de manietarem e de desferirem murros, pontapés, chapadas e golpes com o cassetete contra o corpo das vítimas, bem sabendo que desse modo atingiam a integridade física das mesmas, o que quiserem e conseguiram, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e nem por isso se abstiveram de o fazer; 35. Da mesma forma, agiram livre, deliberada e conscientemente, em comunhão de esforços e intentos, com o propósito concretizado de entrarem à força na casa das vítimas sem disporem de qualquer mandado ou ordem de autoridade judiciária nesse sentido e sem que nada o justificasse, bem sabendo que estavam a violar o domicílio das mesmas, o que quiserem e conseguiram, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e nem por isso se abstiveram de o fazer; 36. Agiram ainda de forma livre, deliberada e consciente, em comunhão de esforços e intentos, com o propósito concretizado de levarem à força as vítimas da sua casa, de as manietarem e deterem sem disporem de qualquer mandado ou ordem de autoridade judiciária nesse sentido e sem que nada o justificasse, bem sabendo que desse modo as privavam da sua liberdade, o que quiserem e conseguiram, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei e nem por isso se abstiveram de o fazer. 37. O arguido BB agiu ainda de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito de forjar o relatório de serviço n.º ....18----- e o auto de inquirição de testemunha referente a YY, bem sabendo que num e noutro relatava factos que não correspondiam à verdade e teve como única intenção a de encobrir os crimes que, de outro modo, lhe podiam ser imputados, como foram, e sabia ainda que os factos que falsamente fez aí constar eram juridicamente relevantes, pois evitavam procedimento criminal contra ele e os demais arguidos. Mais se provou: Para além destas condenações, AA, BB e CC não foram alvo de outras. Quanto ao condenado AA É tido por aqueles que lhe são mais próximos como bom profissional, disciplinado, empenhado, de comportamento exemplar para com os colegas e público em geral. Na presente audiência de cúmulo jurídico superveniente verbalizou sentimentos de arrependimento e vergonha de uma actuação que não corresponde aos valores que lhe foram incutidos. AA habita na morada dos autos. Trata-se de casa pertença da avó materna, com quem vive há cerca de cinco meses, não possuindo encargos com o imóvel. À data dos factos pelos quais foi condenado nos presentes autos e no Proc. 11/18.0..., AA, residia em imóvel de tipologia T2, arrendado pelo próprio, situado na mesma rua (Rua ...) onde actualmente reside. Habitou sozinho nesse imóvel, onde mais tarde passou a residir a companheira AAA, com a qual manteve relacionamento afectivo durante cerca de dois anos e meio, tendo terminado em meados de 2023. Tal relacionamento era satisfatório e isento de conflitualidade, mantendo relação de amizade após término do namoro. Exercia funções como militar da ..., no posto de .... Este foi o primeiro local onde exerceu funções após o curso para militar da ... e do estágio de 3 (três) meses, que realizou no posto da .... Em 2020, AA passou a estar colocado na Unidade de Emergência Protecção e Socorro da ... de .../ Unidade de ..., adstrito ao Posto de Intervenção Protecção e Socorro de .... Esta atividade está direccionada para o combate a incêndios florestais, sendo desenvolvida num horário de seis dias de trabalho e três dias de folga, variando a remuneração entre 1000€ e 1300€ mensais. Em Setembro de 2022, o condenado deixou de exercer funções nessa Unidade por motivo de baixa médica, estando sob supervisão da junta médica da ..., e auferindo nesse período um vencimento de cerca de 900€ mensais. Iniciou por vontade própria, em Junho de 2022, acompanhamento com o Dr. BBB (Psiquiatra do Hospital 1) devido a uma situação psicológica frágil. AA integrou-se bem nas funções que lhe foram distribuídas na Unidade de ..., onde não há registo de qualquer procedimento disciplinar ou comportamental. No início de Outubro de 2023 cessou o vínculo à ... em virtude de lhe ter sido aplicada pena disciplinar de “separação de serviço”, associada aos factos dos presentes autos, sanção da qual recorreu. Nos últimos quatro anos, o condenado tem vindo a conciliar a sua atividade profissional com os estudos universitários, encontrando-se atualmente a frequentar o ... ano do Curso de ... na Universidade ... Actualmente presta serviços para uma sociedade de ..., auferindo remuneração mensal de €600,00. Paralelamente, conta com o apoio económico da mãe para fazer face às suas despesas. Afastou-se do círculo de amizades que mantinha, privilegiando o convívio com a sua família de origem, essencialmente com a mãe e com o padrasto, o qual faleceu em ... passado. AA viveu, desde sempre, em ..., localidade onde decorreu o seu processo de socialização, junto da progenitora e do padrasto na sequência da separação dos pais, quando este tinha 11 anos de idade. Tem um irmão consanguíneo e mantém boa relação familiar com ambos os progenitores, bem como com a família alargada. Concluiu o 12º ano no final da adolescência e frequentou o ... ano da licenciatura ..., cujos estudos abandonou para frequentar o Curso de Formação na .... O momento do início da sua carreira profissional, coincidiu com a sua autonomização relativamente ao agregado de origem. Nos tempos livres costuma ter por hábito praticar desporto, desde canoagem, futebol e corrida/jogging, embora nos últimos anos tal prática seja menos regular. Por força das condenações de que foi alvo, num primeiro momento foi afastado do exercício de funções por 90 dias (punição que cumpriu entre Dezembro de 2021 e Março de 2022), e posteriormente suspenso provisoriamente de funções (180 dias), entre Março e Setembro de 2022. Quanto ao condenado BB É tido por aqueles que lhe são mais próximos como pessoa íntegra, ponderada, bom profissional. Na presente audiência de cúmulo jurídico superveniente verbalizou sentimentos de arrependimento e vergonha de uma actuação que não corresponde aos valores que lhe foram incutidos. BB é o segundo elemento (mais novo 4 anos) de dois elementos, oriundo de casal de média condição socioeconómica; o pai de 63 anos é empregado de balcão há vários anos, durante 26 anos exerceu o cargo de presidente da junta de ..., a mãe de 64 anos exerce profissão de educadora de infância. O período de infância e adolescência foi passado junto dos progenitores e irmã, beneficiando de um ambiente estruturado, transmissor de valores socialmente aceites e emocionalmente gratificante. A nível escolar/formativo ingressou na escola em idade própria, sem registo de problemas no ensino primário. No ensino secundário regista 3 retenções por desinteresse e falta de empenho nas actividades lectivas, mas sem registo de problemas disciplinares. Com 20 anos, enquanto frequentava a disciplina de matemática a fim de concluir o ensino secundário (que acabou por não concluir) fez uma formação de nadador-salvador, actividade que exerceu durante 3 anos. Em 2012 e em 2014, por opção, concorreu ao corpo da ..., tendo ficado apto em todas as provas, mas não foi colocado por falta de vagas. Como forma de subsistir passou a exercer a actividade de recepcionista num hotel em ... e em 2015, no âmbito de um novo concurso, foi admitido no curso de formação da .... No mesmo ano frequentou o curso teórico em ... e o estágio foi realizado em .... Em Outubro de 2017 foi colocado em ..., posto onde permaneceu 2 anos. Em Dezembro de 2018 foi admitido no posto da .... A nível afectivo mantém uma relação desde 2018 com a companheira, também ..., tendo iniciado vivência em comum em ..., onde ambos exerciam actividade profissional, e mais tarde na .... Em Fevereiro de 2020 BB alterou de residência para casa do pais, por ter sido colocado no posto da ... de ... e, em Novembro desse ano, a companheira foi colocada no posto da ... de ..., tendo o casal passado a viver de novo em regime de comunhão de bens em ..., situação que se mantém. BB foi suspenso de funções de forma preventiva entre Maio de 2019 e Janeiro de 2021, tendo-se apresentado em funções no dia 4 de Janeiro no posto da ... de .... Em Janeiro de 2023 passou a estar de baixa médica. Entre Dezembro de 2021 e Agosto de 2022 esteve a cumprir 210 dias de suspensão no âmbito do processo interno, situação em que auferia um terço do ordenado (280 euros/mensais). Em Julho de 2021 o condenado e a companheira foram pais. A nível laboral retomou actividade como ... no posto de ... a 4 de Janeiro de 2021, e a 12 de Janeiro de 2023 ficou de baixa médica psiquiátrica, situação que se mantém. No passado dia 15 de Novembro apresentou-se em ... em nova junta médica, tendo sido prolongada a baixa pelo período de mais 90 dias. O condenado sofre de um quadro ansioso-depressivo, com evolução desfavorável apesar do tratamento instituído. Foi acompanhado em consultas de psicologia na ... até Agosto de 2020; em 2022 foi a nova consulta por se sentir emocionalmente instável e frágil. É detentor de uma imagem social favorável, sendo considerado uma pessoa trabalhadora e respeitadora e com adequada integração social. Em contexto laboral é descrito como leal, cumpridor, de boa relação com colegas e superiores. Os pais residem próximo e mostram-se totalmente disponíveis para o apoiar em tudo o que for necessário, assim como companheira. No final de Novembro tomou conhecimento através do seu advogado que tinha sido desvinculado da ..., decisão essa que não pretende contrariar. Quanto ao condenado CC É tido por aqueles que lhe são mais próximos como pessoa pacata, de bom trato, empenhado. Na presente audiência de cúmulo jurídico superveniente não prestou declarações. À data dos factos residia com CCC em casa arrendada (...), de onde saíram porque adquiriram casa própria (...). Há cerca de dois anos e meio venderam o referido imóvel e adquiriram outro que representa um encargo mensal menor e que corresponde à morada actual. Trata-se de habitação de tipologia T2 com garagem, da qual pagam cerca de 850€ (oitocentos e cinquenta) euros de prestação bancária mensal. Mantêm relacionamento afetivo desde Fevereiro de 2018 e contraíram matrimónio em Setembro último. O relacionamento é gratificante e isento de conflitualidade. O casal mantém convivência próxima com a família de origem da esposa, onde o condenado se sente bem integrado. CC exercia funções como militar da ... no posto de ..., desde 2017. Este foi o primeiro posto da … onde exerceu funções após o curso de 6 (seis) meses e do estágio de 3 (três) meses, que se seguiu, realizado em .... Actualmente exerce funções como militar da ... no posto do ..., onde está colocado desde Fevereiro de 2020, auferindo cerca de 1200€ líquidos. A esposa exerce actividade como gestora processual na empresa R...., auferindo cerca de 900€ (novecentos) euros mensais. O condenado integrou-se na equipa e adaptou-se às tarefas que lhe estão atribuídas, sendo aí considerado como um profissional competente, não havendo registo de qualquer incumprimento no âmbito das funções aí exercidas. Na sequência de processo disciplinar interno, CC foi alvo de punição disciplinar durante de 90 dias (que cumpriu entre Dezembro de 2021 e Março de 2022). Posteriormente, foi alvo de suspensão provisória de funções (180 dias) por decisão interna da ... Retomou funções, a 05/09/2022, no posto de ..., onde ainda se mantém. CC é natural da ..., onde cresceu junto dos progenitores e da sua única irmã. O pai é camionista, profissão que ainda hoje exerce. A mãe dedicou-se inicialmente à educação dos filhos e mais tarde começou a trabalhar como empregada de limpeza, profissão que actualmente não está a exercer por motivos de saúde. O desenvolvimento do arguido decorreu num seio familiar conservador e com padrões de educação rígidos. Teve uma infância pautada por padrões normativos, que lhe transmitiram o valor das regras sociais. O agregado de origem apresenta condição económica suficiente, embora existindo pouca proximidade afectiva com os progenitores. A primeira situação processual, em que CC esteve envolvido (Proc. 11/18.0...), repercutiu-se negativamente no relacionamento com os progenitores, tendo sido sentida por estes como uma situação penosa, embora o passar do tempo tenha vindo a amenizar este sentimento. Iniciou a escolaridade em idade própria, tendo concluído o 12º ano, com 18 anos de idade, registando um percurso escolar normativo e com aproveitamento satisfatório. Logo de seguida, integrou o ..., no ..., onde permaneceu durante cerca de 6 anos. Em 2016, com 24 anos de idade, deixou o seio familiar e a ... onde foi criado e veio viver para ..., onde iniciou o curso de Formação de .... Após a conclusão do curso e do período de estágio, CC foi colocado no posto da ... de .... Fundamentação dos factos: Para o apuramento destes factos, o Tribunal tomou em consideração o teor do acórdão proferido nestes autos, bem como a certidão extraída do outro processo em causa, os CRC, relatórios sociais, o documento junto pelo condenado AA quanto ao seu actual enquadramento profissional, e as declarações prestadas por este último e pelo condenado BB na presente audiência de cúmulo jurídico superveniente. O Direito Estabelecem os arts. 77º e 78º, do Código Penal, por diante CP, que: “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente - art. 77º, n. 1. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa; e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes - art. 77º, n. 2. Se as penas aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação dos critérios estabelecidos nos números anteriores - art. 77º, n. 3. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis - art. 77º, n. 4. E, “Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes. – art. 78º, n. 1; e. O disposto no número anterior só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado. - n. 2”. Assim, verificamos que as decisões acima referidas transitaram em julgado e encontram-se em relação de concurso (superveniente). Na verdade, os crimes pelos quais aqueles arguidos foram condenados nestes autos foram cometidos em data anterior à do trânsito em julgado daqueloutra decisão supra referenciada (cf. arts. 77º e 78º, n. 1 e 2, do CP). Sendo este o Tribunal competente para operar o cúmulo jurídico, terá de aplicar uma única pena pela prática de todos crimes constantes das sobreditas condenações. Com base nestes pressupostos, a pena única a aplicar aos condenados tem como limites, nos termos do disposto no art. 77º, n. 1 do CP: - AA: de 3 anos a 13 anos e 11 meses de prisão; - BB: de 3 anos a 13 anos e 8 meses de prisão; - CC: de 2 anos e 3 meses a 7 anos e 1 mês de prisão. Na determinação da pena concreta a aplicar ao arguido o Tribunal terá em consideração todos elementos relativos aos factos praticados e à respectiva personalidade, supra expostos. A medida concreta da pena do concurso, dentro da moldura abstracta aplicável deverá ser determinada nos exactos termos e prosseguindo idêntico processo de aplicação de penas singulares, isto é, em função do princípio da culpa, que constitui o limite e pressuposto de qualquer pena (artigo 40.º, n.º 2, do Código Penal) e as finalidades de prevenção que o caso demandar (artigo 71.º, n.º 1, do Código Penal). Acresce a isto a necessidade de ponderação e consideração, numa visão de conjunto, dos factos e da personalidade do condenado, como impõe o critério específico estatuído no artigo 77.º, n.º 1 do CP21. Ou seja, importar ponderar os factos em relação uns com os outros, por forma a inferir qual a relação de conexão que existe entre os mesmos (“conexão autoris causa”), apreciando a totalidade da actuação dos condenados como unidade de sentido (culpa pelos factos em relação). Como ensina o Professor Figueiredo Dias, “tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique” (cfr. “As Consequências Jurídicas Do Crime”, Editorial de Notícias, pág. 291, com a devida adaptação para a lei actual). No que respeita à consideração da personalidade do agente, importa, acima de tudo, determinar se a imagem do conjunto factual é reconduzível a uma ideia de tendência criminosa, ou, ao invés, se se verifica somente uma “pluriocasionalidade” que não radica na personalidade. Só no primeiro caso será adequado atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente, fazendo apelo, nesta sede, às exigências de prevenção especial de socialização que o caso específico demanda. No caso concreto - Quanto à homogeneidade das condutas ilícitas dos condenados, verifica-se que os crimes em concurso têm um traço comum: a prática de actos criminosos contra cidadãos estrangeiros, em situação de vulnerabilidade, em manifesto abuso da condição de militares da ... em que estavam investidos; - A repetição de tais condutas, quer em termos temporais, quer em diferentes contextos (nas habitações das vítimas, na rua, no interior de veículos da ... e no interior do Posto de ...), evidencia que estamos perante personalidades que revelam tendência criminosa, e não apenas alguém que num determinado contexto, isolado ou delimitado num curto espaço de tempo, cometeu crimes. - Qualquer dos crimes em concurso reclama elevadas exigências de prevenção geral, sendo fonte de grande comoção social e, simultaneamente, geradores de forte sentimento de repulsa; - Ao nível da culpa, os condenados agiram sempre com dolo directo e intenso. - Há que atender ainda às condições socioeconómicas dos condenados, sendo de destacar que aqueles que enfrentam condenações mais gravosas, AA e BB, foram, entretanto, desvinculados da .... - Não milita a favor dos condenados AA e BB o arrependimento e sentimento de vergonha verbalizados nesta audiência de cúmulo jurídico superveniente. Aliás, o tribunal não pôde considerar provado mais do que isso, ou seja, mera verbalização. Com efeito, não se trata de sentimentos genuínos porquanto a postura de ambos ao longo dos dois processos foi sempre a de procurarem eximir-se às suas responsabilidades, escapar a uma condenação, sem nunca terem contribuído para a descoberta da verdade e sem nunca terem revelado réstia de compaixão, empatia, solidariedade para com as vítimas dos seus crimes. Recorde-se a este propósito que, no âmbito do Proc. 11/18.0... AA, BB e CC foram ainda condenados, solidariamente com os demais arguidos naqueles autos, no pagamento de indemnizações às vítimas, pagamento esse que até hoje não demonstraram ter realizado, no todo ou em parte. Pretendem as defesas dos três condenados que as respectivas penas únicas não sejam fixadas acima dos 5 anos de prisão, por forma a possibilitar a suspensão da sua execução. Ora, se tal se afigura compreensível no que respeita ao condenado CC, já quanto aos demais trata-se de algo absolutamente despropositado, incompreensível aos olhos da comunidade, porquanto seria manifestamente desproporcional face às prementes exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, e que iria muito além de qualquer perdão de penas ou amnistia, de que os condenados nem sequer beneficiam, como se verificará infra (salvo uma situação em concreto). Importa também aqui recordar que no âmbito do Proc. 11/18.0... um outro militar da ..., entretanto desvinculado, foi condenado e encontra-se a cumprir pena de 6 anos de prisão por factos praticados em coautoria com os demais, pena essa fixada no âmbito de um cúmulo jurídico que teve como limite mínimo a pena de 3 anos e 6 meses de prisão, e como limite máximo 10 anos e 6 meses de prisão (vide certidão do acórdão). Pelo que, qualquer decisão que implicasse tamanha desproporção, irrazoabilidade e desigualdade só contribuiria para minar a confiança que os cidadãos depositam na acção dos tribunais. Donde, consideramos que a pena única a aplicar a cada um dos condenados deverá situar-se num patamar médio-superior por referência aos limites mínimo e máximo atrás referidos. Assim, considera-se adequada a condenação: - de AA na pena única de 8 (oito) anos e 8 (oito) meses de prisão; - de BB na pena única de 8 (oito) anos e 7 (sete) meses de prisão, e - de CC na pena única de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão, cuja execução ficará suspensa na sua execução por 5 (cinco) anos, sujeita a regime de prova a definir pela DGRSP, em coerência com o decidido nos dois processos, não existindo qualquer circunstância superveniente que imponha o cumprimento efectivo desta pena. Mantêm-se os demais segmentos decisórios das condenações objecto de cúmulo, designadamente a condenação solidária de AA, BB e CC no pagamento de: - € 85,91 (oitenta e cinco euros e noventa e um cêntimos) à demandante U..., a que acrescem juros de mora à taxa legal, contados desde a data da notificação para contestarem até integral pagamento; - €5.000,00 (cinco mil euros) a favor de DD, a título de danos não patrimoniais, sob a qual incidem juros de mora à taxa legal, contados desde a presente data até integral pagamento; - €2.000,00 (dois mil euros) a favor de EE, a título de danos não patrimoniais, sob a qual incidem juros de mora à taxa legal, contados desde a presente data até integral pagamento. Do desconto de pena anterior (art. 81º do CP): Quanto ao condenado CC, considerando que a pena única mantém a mesma natureza, o prazo de suspensão decorrido desde o primeiro trânsito em julgado será integralmente descontado, nos termos do nº.1 daquela disposição legal, o que na prática implica que o início do prazo de cinco anos fixado para a suspensão da execução da pena única de prisão ora determinada se reportará a 11 de Janeiro de 2021. Já com respeito aos condenados AA e BB, existe uma crescente tendência da jurisprudência dos tribunais superiores em admitir, nos termos do nº.2 daquela mesma disposição legal, que haja lugar a desconto de tempo de prisão em penas efectivas resultantes de cúmulos que englobem penas suspensas. Contudo, limita esses casos a situações em que o regime de suspensão anteriormente fixado acarrete sacrifício/prejuízo para os condenados, nomeadamente através da demonstração de terem sido cumpridas, enquanto perdurou a suspensão, obrigações, deveres, regras de conduta donde decorra esse sacrifício/prejuízo – veja-se a título de exemplo o Ac. TRG Proc. 1165/09.8TDPRT-A.G1, de 30 de Junho de 2022, disponível em www.dgsi.pt. Apesar de se discordar de tal posição, por a mesma não ser coerente com o disposto no art. 56º nº.2 do CP, sempre se dirá que, no caso dos autos, AA e BB foram condenados em penas suspensas, sujeitas a regime de prova definido pela DGRSP, sem que em concreto tivessem sido fixadas quaisquer obrigações, deveres, regras de conduta que importassem qualquer sacrifício/prejuízo. Por outro lado, como é sabido, o plano de reinserção social é fixado exclusivamente em benefício do condenado, e não em seu prejuízo, colhendo inclusive o seu acordo prévio (arts. 53º nºs. 1 e 2 e 54º nºs. 1 e 2 do CP), não se podendo considerar relevante ao ponto de justificar um “abatimento” numa pena de prisão o mero “incómodo” (se a tanto pudermos chegar) de o condenado responder a convocatórias da entidade que o vigia e apoia, e de manter adequada conduta social. Pelo que se entende não haver lugar a qualquer desconto na pena única de prisão fixada aos condenados AA e BB. Do perdão de penas (Lei 38-A/2023, de 02 de Agosto): Qualquer dos três condenados não tinha 30 anos de idade à data da prática dos factos. As respectivas defesas pugnam pela aplicação do perdão relativamente aos crimes de abuso de poder (AA e CC) e de falsificação de documento (BB). Ou seja, excluem à partida, por a tanto não oferecer qualquer dúvida, a aplicação do perdão com respeito aos crimes de ofensa à integridade física qualificada, violação de domicílio por funcionário e sequestro, atento o disposto no art. 7º nº.1 a) iii) e k) do referido diploma legal. Ora, quanto ao crime de abuso de poder, como tivemos oportunidade de escrever na fundamentação de direito do acórdão condenatório proferido nestes autos 371/19.5T9ODM, «(…) reduzir o crime de abuso de poder às situações em que ficasse demonstrada a intenção de obter benefício ou causar prejuízo apenas de carácter patrimonial, tratando-se de um crime que, na própria letra da lei, frequentemente surge numa relação de concurso aparente, de consumpção e subsidiariedade, em relação a outros tipos legais, então o seu espectro de enquadramento factual seria residual ou nulo. A letra da lei, por comparação a outros tipos legais (v.g. recebimento ou oferta indevidos de vantagem art. 372º; corrupção arts. 373º e 374º; participação económica em negócio art. 377º; concussão art. 379º), não deixa dúvidas de que sempre que o legislador quis especificar que o benefício/prejuízo visado pelo agente do crime é de carácter patrimonial, fala em vantagem patrimonial/lesão de interesses patrimoniais; quando o benefício/prejuízo visado é de qualquer natureza (que também pode ser de carácter patrimonial) ou não o caracteriza, como sucede no crime de abuso de poder, ou então refere “vantagem patrimonial ou não patrimonial”. Donde, fica desde logo afastada a tese defendida por algumas das defesas dos arguidos, em alegações, de que não poderia haver lugar ao cometimento dos imputados crimes de abuso de poder por não existir intenção de obter benefício/causar prejuízo de carácter patrimonial. (…) Os factos provados a respeito, conjugados com a simples leitura dos deveres éticos e profissionais pelos quais o arguido devia ter pautado a sua conduta, para mais no interior do Posto da ..., não deixam dúvidas quanto à verificação do elemento objectivo do tipo de crime imputado. Quanto ao elemento subjectivo, ficou demonstrado tanto o benefício ilegítimo como o prejuízo para a vítima. Quanto ao benefício, o arguido agiu sob uma motivação torpe, para seu gáudio e de terceiros, com desprezo para com o indivíduo que subjugou e humilhou, registando em vídeo essa humilhação, que passou a constituir um troféu. Quanto ao prejuízo, a vítima padeceu humilhação, receio, vendo atingida a própria dignidade.» Posição esta que foi sufragada pelo Tribunal da Relação de Évora, quando escreve a propósito do recurso apresentado pelo condenado AA «(…) Salvo o devido respeito, não é de acolher o entendimento defendido pelo recorrente no sentido de que quando a intenção do arguido é humilhar a vítima, sendo o prejuízo daí decorrente a inerente ofensa à dignidade desta, esse prejuízo não integra a tipicidade do crime de abuso de poder.» Entendimento que estendeu em relação a todos os condenados pelo mesmo tipo de crime, entre eles CC. Ora, perante esta realidade, não se nos afigura defensável a tese de que os crimes de abuso de poder cometidos por AA e CC não constituam uma violação de direitos, liberdades e garantias das suas vítimas. Donde, por força do disposto daquele mesmo art. 7º nº.1 k), consideramos excluídos da aplicação do perdão os crimes de abuso de poder. Resta, assim, o crime de falsificação de documento pelo qual foi condenado BB. Nos termos do disposto no art. 7º nº.1 b) i), considera-se excluído do perdão o crime falsificação de documentos quando cometido como meio para a prática de crimes de abuso de confiança e burla – neste sentido Ac. STJ de 12-02-1998, Proc. 97P1244 e de 09-04-2003, Proc. 03P402, que podem ser consultados em www.dgsi.pt. Ou seja, quando o crime de falsificação de documentos tenha sido cometido isoladamente, sem relação com aqueloutros, então está abrangido pelo perdão. No caso concreto, ao condenado BB foi fixada uma pena parcelar de dois anos de prisão com respeito a tal crime. Donde, nada obsta à aplicação do perdão de um ano, nos termos do disposto no art. 3º nºs. 1 e 4 da Lei sob referência, porquanto daí não resulta afectada a parte da pena correspondente aos crimes dele excluídos. Porém, além da condição resolutiva geral (art. 8º nº.1), tendo BB sido condenado no pagamento de indemnizações, a aplicação do perdão ficará ainda sujeita à condição resolutiva de pagamento, no prazo de 90 dias após trânsito em julgado do presente acórdão, dessas mesmas indemnizações (nºs. 2 a 5 do mesmo preceito legal). II- Decisão Pelo exposto, operando o cúmulo jurídico das penas aplicadas nestes autos e no processo nº. 11/18.0..., acordam os juízes que integram este tribunal colectivo em: - Condenar AA na pena única de 8 (oito) anos e 8 (oito) meses de prisão; BB na pena única de 8 (oito) anos e 7 (sete) meses de prisão, e CC na pena única de 4 (quatro) anos e 2 (dois) meses de prisão, cuja execução ficará suspensa na sua execução por 5 (cinco) anos, sujeita a regime de prova a definir pela DGRSP. - Manter os demais segmentos decisórios das condenações objecto do presente cúmulo, nomeadamente a condenação solidária de AA, BB e CC com os demais arguidos no pagamento das seguintes indemnizações: • € 85,91 (oitenta e cinco euros e noventa e um cêntimos) à demandante U..., a que acrescem juros de mora à taxa legal, contados desde a data da notificação para contestarem até integral pagamento; • €5.000,00 (cinco mil euros) a favor de DD, a título de danos não patrimoniais, sob a qual incidem juros de mora à taxa legal, contados desde a data da prolação do acórdão até integral pagamento; • €2.000,00 (dois mil euros) a favor de EE, a título de danos não patrimoniais, sob a qual incidem juros de mora à taxa legal, contados desde a data da prolação do acórdão até integral pagamento. - Descontar na pena fixada ao condenado CC o período de suspensão já decorrido e, em consequência, reportar o início do prazo de cinco anos ora fixado a 11 de Janeiro de 2021; - Declarar perdoado um ano de prisão à pena única fixada ao condenado BB sob as seguintes condições resolutivas: • não praticar infração dolosa no ano subsequente à entrada em vigor da Lei 38-A/2023 (01 de Setembro de 2023), caso em que à pena aplicada à infracção superveniente acresce o cumprimento de um ano de prisão; • comprovar, no prazo de 90 dias a contar do trânsito em julgado do presente acórdão, o pagamento integral da indemnização fixada a favor de cada um dos supra identificados lesados, sem prejuízo do seu direito de regresso em relação aos coarguidos. Deposite. Após trânsito: - emita mandados de condução dos condenados AA e BB ao EP; - remeta certidão ao processo supra indicado. - comunique ao TEP e ao EP, e - comunique ao registo criminal. ..., 12 de Janeiro de 2024.” B.3. O Direito B.3.1. O recurso de AA B.3.1.1. Vícios e nulidades invocados O recorrente AA veio, com atrás se referiu, alegar que o acórdão recorrido padece do vício a que alude o artigo 410º. nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal e, bem assim, que o mesmo está ferido da nulidade a que se reporta o artigo 379º, nº 1 alínea c) do mesmo diploma legal. Assim e face ao disposto nos artigos 434º e 432º, nº 1, alínea c) do Código de Processo Penal há que apreciar e decidir sobre a existência ou não dos aludidos vícios e nulidades. B.3.1.1.1. Vício previsto no artigo 410º. nº 2, alínea a) do Código de Processo Penal O arguido alega a este propósito que: “xxx. O acórdão recorrido padece de vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na al. a) do n.º 2 do artigo 410º do CPP quando considera como relevante para fundamentar a sua decisão a alegada falta de pagamento das indemnizações arbitradas a vítimas e despesas hospitalares sem que tal conste da factualidade provada;” Antes de mais e para sermos rigorosos, importa esclarecer que o acórdão recorrido não alude à falta de pagamento das aludidas indemnizações. Com efeito, o que consta na decisão é o seguinte: “(…) no âmbito do Proc. 11/18.0... AA, BB e CC foram ainda condenados, solidariamente com os demais arguidos naqueles autos, no pagamento de indemnizações às vítimas, pagamento esse que até hoje não demonstraram ter realizado, no todo ou em parte.” Ou seja, no acórdão não se refere que o arguido não pagou as indemnizações, mas, apenas e tão só, que, até à data em o mesmo foi proferido, o arguido não tinha demonstrado ter pagado as aludidas quantias. Por outro lado, não nos parece que a ausência de referência a essa não comprovação de pagamento na factualidade provada constitua impedimento para a decisão de direito a tomar. Com efeito, o vício acima aludido apenas se verifica quando o tribunal deixa de apurar ou de se pronunciar sobre factos relevantes para a decisão, alegados pela acusação, pela defesa ou resultantes da discussão da causa, ou ainda quando o tribunal não investigou factos essenciais para a decisão que deviam ter sido apurados em julgamento. Ou seja, tal vício apenas existe quando não seja possível tomar uma decisão de direito em virtude de a matéria de facto ser manifestamente insuficiente, necessitando de indagação adicional. Na verdade, e como escreve Pereira Madeira22, “A afirmação do vício ora em causa, importa, sim, sempre, uma adequada perspetiva do objeto do processo, cujos confins são fixados pela acusação e ou pronúncia complementada pela pertinente defesa. A partir daí, impõe-se o confronto de tal objeto processual com o que o tribunal de julgamento em concreto indagou, independentemente de o resultado dessa indicação ter tido ou não êxito, isto é independentemente dos factos indagados terem sido dados como provados ou não provados. Importa, sim, que estes factos pertinentes ao objeto do processo tenham sido averiguados em julgamento do facto e obtido a necessária resposta, seja positiva ou negativa. Se se constata que o tribunal averiguou toda a matéria postulada pela acusação/defesa pertinente - afinal o objeto do processo - ainda que toda ela tenha porventura obtido resposta de não provado, então o vício de insuficiência está afastado. Os factos pertinentes obtiveram resposta do Tribunal, a matéria de facto é bastante para a decisão. Já assim não será se o tribunal de julgamento de deixou de dar resposta é um facto essencial postulado pelo referido objeto do processo, isto é, deixou por esgotar o thema probando. Ora, no caso em apreço, não estava em discussão a condenação nem a correção do montante das indemnizações arbitradas, destinando-se o processo, exclusivamente, a realizar o cúmulo jurídico de penas parcelares em que o arguido fora condenado e a fixar a respetiva pena única. Ou seja, o tribunal a quo não tinha de tomar, nem tomou, qualquer decisão sobre as indemnizações anteriormente arbitradas. Com efeito, o pagamento ou não das indemnizações, para além de não ter sido invocado pela acusação nem pela defesa, não foi objeto de investigação / apreciação pelo tribunal a quo, nem se afigurava essencial para a decisão a tomar. Aliás e complementarmente, acrescente-se que, na decisão proferida no Proc. 11/18.0..., não foi consignado qualquer prazo para o pagamento dessas indemnizações, nem, sobretudo, foi decidido que a suspensão da execução da pena única nele estabelecida ficava condicionada pela realização desse pagamento num dado prazo.23 Em suma, a matéria de facto dada como provada é suficiente para as decisões jurídicas proferidas no acórdão recorrido, não constituindo a omissão na factualidade provada da não comprovação do pagamento das indemnizações arbitradas o vício a que alude o artigo alínea a) do nº 1 do artigo 410º do Código de Processo Penal. Portanto e quanto a esta matéria, improcede o recurso. B.3.1.1.2. As nulidades do artigo 379º, nº 1 alínea c) do Código de Processo Penal B.3.1.1.2.1. A omissão quanto a eventual prorrogação ou revogação das penas únicas suspensas. Entende o Recorrente que o acórdão recorrido esta ferido de nulidade por ser “omisso relativamente a qualquer decisão nos termos dos artigos 56º do CP e 492º do CPP respeitante às penas suspensas pretéritas, as quais não foram revogadas ou prorrogadas, violando, por isso, os citados dispositivos legais.” Antes de mais importa referir que a nulidade a que se reporta a al. c) do nº 1 do artigo 379º do Código de Processo Penal ocorre quanto o Tribunal deixa de se pronunciar sobre questões que devesse conhecer, sendo que, in casu, em momento algum, se colocou a questão de saber se as penas únicas suspensas haviam sido revogadas ou prorrogadas. Aliás, nem tal faria sentido já que, ao proceder a um novo cúmulo das penas parcelares englobadas nesses dois cúmulos anteriores, os mesmos são desfeitos, sendo apenas consideradas na nova decisão as penas parcelares que o integravam. Ora, in casu, nenhuma das penas parcelares de prisão aplicadas nesses dois cúmulos foi suspensa na sua execução, pelo que a questão colocada pelo recorrente perde qualquer sentido. Na verdade, tal questão parece partir do pressuposto de que é possível realizar fazer “cúmulos de cúmulos” pois as únicas penas de prisão que foram suspensas na sua execução foram as penas únicas aplicadas nos dois processos. Mas tal constitui um pressuposto errado. Com efeito, como refere Nuno Miguel Loureiro:24 “10. Os cúmulos anteriores Aquando do conhecimento superveniente de um (ou mais) concursos de crimes, pode suceder que algumas das penas aplicadas a estas infracções tenham já sido englobadas em anteriores cúmulos. Em tal hipótese, é uniforme o entendimento de que «o tribunal deve “desfazer” o anterior concurso e formar um novo concurso (constituído pelos crimes anteriores e pelos crimes novos que se encontrem, com eles, em relação de concurso) realizando um novo cúmulo jurídico de penas em que atenderá às penas englobadas no anterior concurso e às penas dos crimes novos que passam a integrar o novo concurso»25, mesmo que isso «implique desfazer um cúmulo jurídico anterior cuja pena única tenha já sido julgada cumprida e extinta»26. Deste modo, as penas parcelares aplicadas ao condenado pelos crimes em concurso readquirem autonomia («não há cúmulos de cúmulos»27), visto a decisão sobre o cúmulo jurídico constituir uma decisão rebus sic stantibus28: «o caso julgado formado quanto ao cúmulo jurídico vale apenas se e enquanto não se alterarem as circunstâncias que determinaram a sua elaboração, ou seja, se e enquanto não houver notícia superveniente da existência de outras penas que integrem o concurso»29. Anulados os cúmulos anteriores, a moldura da nova pena única será apurada apenas com base nas penas parcelares de todos os crimes em concurso.” No mesmo sentido veja-se a seguinte decisão do Supremo Tribunal de Justiça: “VIII - Na reformulação de um cúmulo jurídico, as penas a considerar são sempre as penas parcelares, não as penas conjuntas anteriormente fixadas. É que, no sistema da pena conjunta, consagrado na nossa lei, e contrariamente ao que sucede com o sistema da pena unitária, as penas parcelares não perdem a sua autonomia, não se “dissolvem” no cúmulo. Assim, em caso de conhecimento superveniente de concurso, sendo a pena anterior uma pena conjunta, há que anulá-la, “desmembrá-la” nas respetivas penas parcelares, e são estas, individualmente consideradas, que vão “entrar” no novo cúmulo (…).”30 Concluindo, não existe a nulidade invocada improcedendo também o recurso quanto a esta matéria. B.3.1.1.2.2. A omissão quanto à falta de fundamentação dos factos e das condições pessoais do arguido. Entende o Recorrente que o acórdão recorrido está ferido de nulidade nos seguintes termos: “v. A decisão recorrida, não contém elementos que permitam apreender, os factos e as circunstâncias em que ocorreram e que foram objeto de condenação nos processos anteriores, o mesmo se diga das circunstâncias pessoais que permitam construir uma base de juízo e decisão sobre a personalidade, necessária para a determinação da pena do concurso; vi. Não se mostra cumprida a exigência de fundamentação acrescida, nomeadamente no que interessa à compreensão da personalidade do condenado manifestada nos factos; vii. O tribunal a quo limitou-se a transcrever o relatório social que mandou elaborar ao arguido, não valorando o mesmo e não o apreciando enquanto coadjuvante na fixação da pena única; viii. IncorreoAcórdãoaquoemvíciodeomissãodepronúncia,cominadocomnulidade pelo artigo 379.º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Penal;” Como atrás deixámos consignado, a nulidade estabelecida na al. c) do nº 1 do artigo 379 do Código de Processo Penal ocorre quando o tribunal “deixe de se pronunciar sobre questões que devesse conhecer” ou quando “conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.“ Ora, in casu, não indica o recorrente quais as questões que o Tribunal deixou de apreciar, parecendo-nos evidente que todas as questões que deviam ter sido apreciadas o foram adequadamente, tendo o acórdão recorrido apreciado e valorado todos os comportamentos adotados pelo arguido, bem como a sua personalidade, decidindo condená-lo, designadamente, na pena única de 8 anos e 8 meses de prisão. Assim, o que parece ressaltar dos trechos atrás transcritos é que o recorrente entenderá que a decisão de condenação na aludida pena única não se mostra devidamente fundamentada, o que consubstanciaria a nulidade a que se reportam os artigos 379º, nº 1 alínea a) e 374º, nº 2, ambos do Código de Processo Penal. Com efeito, é isso que decorre, designadamente, da conclusão VI, na qual se alude à falta de uma “fundamentação acrescida”. Porém, também nesta matéria, não assiste razão ao recorrente. Com efeito: • no que concerne aos factos que consubstanciam os crimes por que foi condenado nas penas parcelares que foram integradas no cúmulo jurídico, o acórdão recorrido reproduziu, na integra, todos os factos dados como provados nos processos nºs 11/18.0... e 371/19.5T9ODM. • e no que tange à sua personalidade e condições de vida é o próprio recorrente que reconhece que a decisão recorrida transcreve o novo relatório social pedido para a realização do acórdão cumulatório, sendo ainda certo que também foi tido em conta – como é referido na fundamentação dos factos - o teor do seu certificado de registo criminal, o documento junto pelo próprio quanto ao seu atual enquadramento profissional, e as declarações prestadas durante a audiência de discussão e julgamento. Finalmente, esses factos foram subsequentemente apreciados criticamente. Com efeito, • no que concerne aos factos consubstanciadores dos crimes por que foi condenado refere-se, designadamente, que “(q)uanto à homogeneidade das condutas ilícitas dos condenados verifica-se que os crimes em concurso têm um traço comum: a prática de actos criminosos contra cidadãos estrangeiros, em situação de vulnerabilidade, em manifesto abuso da condição de militares da ... em que estavam investidos”; • e quanto à personalidade do arguido é, também designadamente, referido que “(a) repetição de tais condutas, quer em termos temporais, quer em diferentes contextos (nas habitações das vítimas, na rua, no interior de veículos da ... e no interior do Posto de ...), evidencia que estamos perante personalidades que revelam tendência criminosa, e não apenas alguém que num determinado contexto, isolado ou delimitado num curto espaço de tempo, cometeu crimes.”, que “(h)á que atender ainda às condições socioeconómicas dos condenados, sendo de destacar que aqueles que enfrentam condenações mais gravosas, AA e BB, foram, entretanto, desvinculados da ....” e que (n)ão milita a favor dos condenados AA e BB o arrependimento e sentimento de vergonha verbalizados nesta audiência de cúmulo jurídico superveniente” e ainda que “(…) o tribunal não pôde considerar provado mais do que isso, ou seja, mera verbalização. Com efeito, não se trata de sentimentos genuínos porquanto a postura de ambos ao longo dos dois processos foi sempre a de procurarem eximir-se às suas responsabilidades, escapar a uma condenação, sem nunca terem contribuído para a descoberta da verdade e sem nunca terem revelado réstia de compaixão, empatia, solidariedade para com as vítimas dos seus crimes.” Portanto e em conclusão, entende-se que igualmente nesta parte improcede o recurso. B.3.1.2. Da (in)admissibilidade de se realizar cúmulo jurídico relativamente a penas de prisão cuja execução foi suspensa. O arguido AA defende que: “i. As penas de substituição são verdadeiras penas autónomas e não meras formas de execução da pena, in casu de prisão, não devendo ser englobadas no cúmulo jurídico superveniente quando não se mantenha e respeite a sua natureza, sendo-o, viola o acórdão a quo os princípios da confiança e da segurança jurídica;” É conhecida a discussão sobre esta matéria, sendo a doutrina e jurisprudência maioritárias defensoras de que devem ser incluídas no cúmulo jurídico superveniente penas cuja execução foi suspensa, desde que as mesmas não tenham sido, entretanto, declaradas extintas pelo decurso do prazo da suspensão. Nesse sentido veja-se por exemplo e para comodidade de citação, o estudo de Nuno Miguel Loureiro atrás referido31 ou, por todos, o seguinte acórdão do Supremo Tribunal de Justiça: I - O STJ tem examinado a questão da inclusão de uma pena suspensa numa decisão de cúmulo jurídico de penas, no âmbito de um concurso superveniente de crimes, entendendo que as penas suspensas deverão ser englobadas no cúmulo jurídico desde que não tenham sido declaradas extintas pelo decurso do prazo de suspensão. II – De acordo com a posição predominante, no sentido da inclusão da pena de prisão suspensa na execução, defende-se que a “substituição” deve entender-se, sempre, resolutivamente condicionada ao conhecimento superveniente do concurso e que o caso julgado forma-se quanto à medida da pena e não quanto à sua execução. III - O STJ tem entendido de forma dominante que não é possível considerar na pena única as penas suspensas cujo prazo de suspensão já findou, enquanto não houver no respectivo processo despacho a declarar extinta a pena nos termos do art.º 57.º, n.º 1, do Código Penal, ou a mandá-la executar ou a ordenar a prorrogação do prazo de suspensão, pois no caso de extinção nos termos do artigo 57.º, n.º 1, a pena não é considerada no concurso, mas já o será nas restantes hipóteses.32 Ora, no caso em apreço, o prazo de suspensão das penas únicas aplicadas ao arguido ainda tinha terminado. Porém, a falta de razão do recorrente decorre de uma outra circunstância, a qual decorre de errado pressuposto sobre que penas devem ser incluídas no novo cúmulo realizado pelo acórdão recorrido. Com efeito, o recorrente reporta-se às penas únicas aplicadas nos processos 11/18.0... e 371/19.5T9ODM mas, como atrás já se referiu, as penas que devem ser consideradas na realização do aludido cúmulo são, exclusivamente, as penas parcelares aplicadas nesses processos e não as penas únicas. Com efeito e citando o mesmo aresto deste Supremo Tribunal de Justiça: V - As penas conjuntas aplicadas em anteriores cúmulos jurídicos de penas perdem a sua subsistência, devendo desaparecer, perante a necessidade de uma nova recomposição de penas já que na reformulação de um cúmulo jurídico, as penas a considerar são sempre as penas parcelares, não as penas conjuntas anteriormente fixadas. VI -Havendo lugar à elaboração de um cúmulo jurídico, por conhecimento superveniente de mais situações em concurso (artigo 78.º do Código Penal), são desfeitos os cúmulos anteriores que hajam sido realizados, e todas as penas parcelares readquirem a sua autonomia, devendo todas elas ser ponderadas na determinação da pena única conjunta, a qual se move numa moldura penal abstracta balizada pela pena parcelar mais grave e pela soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, sem que possa ser ultrapassado o limite máximo de 25 anos, conforme artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, preceito que alude às «penas concretamente aplicadas aos vários crimes» e nunca em penas únicas conjuntas.” Ora, no caso em apreço, nenhuma das penas parcelares aplicadas ao arguido nos aludidos dois processos foi suspensa na sua execução, pelo que a sua crítica perde todo o sentido. Razão pela qual também neste ponto o recurso não pode proceder. B.3.1.3. Da aplicabilidade da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, aos crimes de abuso de poder praticados a 12 de setembro de 2018 e em 13 de janeiro de 2019 O acórdão recorrido não aplicou o perdão acima aludido, por entender que a tal se opunha o disposto na alínea k) do nº 1 do artigo 7º do mencionado diploma legal, cujo texto a seguir se reproduz, para maior comodidade de leitura: “Artigo 7.º Exceções 1 - Não beneficiam do perdão e da amnistia previstos na presente lei: (…) k) Os membros das forças policiais e de segurança, das forças armadas e funcionários relativamente à prática, no exercício das suas funções, de infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos, independentemente da pena;” Ora, o Recorrente entende, relativamente aos aludidos dois crimes de abuso de poder, que “xiii. Não estão preenchidos os requisitos cumulativos – prática no exercício de funções infrações que constituam violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos – para fazer operar a exceção constante da alínea k) do nº 1 do artigo 7.º da Lei nº 38-A/2023, devendo o arguido beneficiar de perdão de pena de um ano a incidir sobre a pena única relativamente aos crimes de abuso de poder” Concorda-se com a alegação segundo a qual os dois requisitos são cumulativos e, por isso, há que os apreciar separadamente. Assim e quanto ao primeiro requisito – constituírem os crimes praticados pelo recorrente (crime de abuso de poder previsto e punível pelo artigo 382º do Código Penal) violação de direitos, liberdades e garantias –, adere-se à posição assumida no acórdão recorrido33, e que surge reafirmada nas resposta e parecer do Ministério Público. Por isso, remetendo para o que nessas peças processuais é escrito, limitar-nos-emos a breves referências sobre esta matéria. Com efeito, por um lado e como refere Paulo Pinto de Albuquerque34, “(o) bem jurídico protegido pela incriminação é a integridade do exercício das funções públicas pelo funcionário (ver a anotação ao artigo 372º) e, acessoriamente, os interesses patrimoniais ou não patrimoniais de outra pessoa.” No caso dos autos, entre os interesses não patrimoniais violados, constam a honra e dignidade das vítimas e, bem assim, a sua integridade física. Na verdade e como bem refere o Digno Procurador-Geral Adjunto, é “incindível a relação entre a conduta do recorrente e a violação de direitos, liberdades e garantias pessoais dos cidadãos” que foram suas vítimas, já que, por exemplo, foi através das reguadas no corpo destes (factos cometidos a 13 de janeiro de 2019), das humilhações a que os submeteram e das palavras com que violaram o seu direito à sua honra e dignidade humanas (factos de dia 12 de setembro de 2018) que se consumou o crime de abuso de poder por que foram condenados. Quanto ao requisito “exercício de funções” desde logo há que distinguir as duas situações. Com efeito, no dia 13 de janeiro de 2019 o recorrente encontrava-se “escalado de serviço no Posto da ... de ...” (facto 1.28 da matéria dada como provada no Processo 371/19.5T9ODM.S1) e manteve-se nessa situação durante todo o tempo em que foram cometidos os factos que lhe foram imputados e pelos quais foi condenado. Portanto, e quanto ao crime de abuso de poder cometido nessa data, dúvidas não restam da impossibilidade de lhe ser aplicado o perdão pretendido. Já quanto ao crime de abuso de poder relativo a factos cometidos no dia 12 de setembro de 2018, a situação carece de uma análise mais minuciosa já que, na matéria dada como provada, se escreveu, designadamente, que “(…) o arguido AA sem estar escalado de serviço para aquela hora, estava no interior do Posto ... da ... em ...” (facto 1.28 da matéria dada como provada no Processo 371/19.5T9ODM.S1) Ou seja, coloca-se a questão de saber se, por não estar escalado para o serviço, o recorrente estava ou não “em exercício de funções”. A circunstância de se encontrar no seu posto de trabalho é um indicador de que assim seria. Por outro lado, o não estar em escala de serviço, não permite concluir o contrário, dado que a natureza da função de militar da ... implica que estes profissionais estejam obrigados a exercer as suas funções fora do que normalmente se designa por “horário normal de serviço”. Com efeito e para dar um exemplo, o nº 3 do artigo 5º do Regulamento Geral de Serviço da ...35 (sob a epígrafe “Regras para a organização do serviço”) estabelece que: “O serviço desenvolve- se no estrito cumprimento da missão, não podendo ser condicionado por limitações de horário. As prescrições de horário que forem estabelecidas terão em vista a coordenação de esforços e o melhor processo para o cabal cumprimento da missão.” E, noutro exemplo, o artigo 27º nº 3 (sob a epigrafe “Continuidade do serviço”) do mesmo Regulamento estabelece que: “3 - Nenhum militar pode abandonar o serviço sem fazer entrega do mesmo ao seu devido sucessor.” Aliás, é sabido que os militares da ... estão sujeitos ao dever de disponibilidade permanente. Com efeito, desde logo estabelece o nº 4 do artigo 11º do Estatuto dos Militares da ...36 que: “4 - O militar da ... está permanentemente disponível para o serviço, ainda que com o sacrifício dos interesses pessoais.” E que o artigo 13º desse mesmo Estatuto – cuja epígrafe é “Deveres especiais” – estabelece na al. g) o dever de disponibilidade. Dever que também se encontra inscrito na al g) do artigo 13º do Regulamento de Disciplina da ...37 e que está explicitado no artigo 15º do mesmo Regulamento, nos seguintes termos: “Artigo 15.º Dever de disponibilidade 1 - O dever de disponibilidade consiste em o militar da ... manter-se permanentemente pronto para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais. 2 - No cumprimento do dever de disponibilidade, cabe ao militar da ..., designadamente: a) Apresentar-se com pontualidade no lugar a que seja chamado ou onde deva comparecer em virtude das obrigações de serviço; b) Comparecer no comando, unidade ou estabelecimento a que pertença sempre que circunstâncias especiais o exijam, nomeadamente em caso de grave alteração da ordem pública, de emergência ou de calamidade; c) Não se ausentar, sem a devida autorização, do posto ou local onde deva permanecer por motivo do serviço ou por determinação superior.” Acresce que os militares da ... também se encontram submetidos a esse dever de disponibilidade por força do estabelecido no artigo 12º, nº 1, al. c) do Estatuto dos Militares das Forças Armadas38 – que lhes é aplicável por força do disposto no artigo 5º do Estatuto do Militar da ... -, o qual remete para o Regulamento de Disciplina Militar39 que o consigna no seu artigo 11º, nº 2, al. c) e o define no artigo 14º nos seguintes termos: “Artigo 14.º Dever de disponibilidade 1 - O dever de disponibilidade consiste na permanente prontidão para o serviço, ainda que com sacrifício dos interesses pessoais. 2 - Em cumprimento do dever de disponibilidade incumbe ao militar, designadamente: a) Apresentar-se com pontualidade no lugar a que for chamado ou onde deva comparecer em virtude das obrigações de serviço; b) Não se ausentar, sem autorização, do lugar onde deve permanecer por motivo de serviço ou por determinação superior; c) Comunicar a sua residência habitual ou ocasional; d) Comunicar superiormente o local onde possa ser encontrado ou contactado no caso de ausência por licença ou doença; e) Conservar-se pronto e apto, física e intelectualmente, para o serviço, nomeadamente abstendo-se do consumo excessivo de álcool, bem como do consumo de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, salvo por prescrição médica; f) Comunicar com os seus superiores quando detido por qualquer autoridade, devendo esta facultar-lhe os meios necessários para o efeito.” Finalmente, estabelece o artigo 27º do Estatuto do Militar da ... o seguinte: “Artigo 27.º Horário de referência semanal 1 - O exercício de funções policiais pelos militares da ... atende a um horário de referência. 2 - Na regulamentação do horário de referência, a aprovar por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas das finanças e da administração interna, sob proposta do comandante-geral, serão tidos em conta critérios de eficácia funcional, a natureza das funções desempenhadas pelo militar e o serviço efetivo prestado mensal ou trimestralmente, devendo ser assegurado tempo para repouso entre serviços. 3 - A prestação de serviço para além do período normal de exercício de funções é compensada pela atribuição de crédito horário, nos termos a definir por despacho do comandante-geral, sem qualquer redução da remuneração. 4 - O disposto nos números anteriores não pode prejudicar, em caso algum, o dever de disponibilidade permanente, nem o serviço da .... 5 - O disposto nos números anteriores não é aplicável ao exercício de funções militares pelos militares da ..., nem aos militares em funções de comando, direção ou chefia, em períodos de estado de sítio ou de emergência, em situações inopinadas que determinem um imediato e extraordinário empenhamento operacional, aos militares em missões internacionais, em formação e exercícios, e quando empenhados em missões militares.” Portanto e em conclusão, da referência a que o recorrente não se encontrava escalado para o serviço quando ocorreram os factos, não é possível concluir que aquele não se encontrava em “exercício de funções”. Pelo contrário, o circunstancialismo em que ocorreram os factos e a forma como os mesmos se desenvolveram, permite-nos concluir que o recorrente se encontrava “em exercício de funções”. Com efeito, para além de a relação entre o recorrente e a vítima se ter estabelecido no interior do posto da ... de ..., foi dado com o provado que: 1. “O arguido AA agiu com satisfação e desprezo pelo indivíduo que subjugou, obrigando-o a suportar tais comportamentos atenta a qualidade que no momento ostentava – autoridade policial. 2. O arguido AA sabia que ao agir sobre o indivíduo vítima das suas condutas, da forma como o fez, na qualidade de funcionário, nas instalações do Posto da ... de ..., fê-lo em manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhe confere, que devia respeitar e honrar.” (sublinhados nossos) Ora, o ter atuado na qualidade de “funcionário” e em “manifesto uso excessivo do poder de autoridade que o cargo de militar lhe confere”, conduz a que se conclua que os comportamentos ilícitos que lhe foram imputados o foram no (incorreto) “exercício de funções.” Com efeito e abordada a situação noutra perspetiva, os comportamentos excluídos da al. k) do nº 1 do artigo 7º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, - e que, por conseguinte, permitem beneficiar do perdão na mesma previsto - são as condutas adotadas pelos membros das forças de segurança na sua vida particular, quando não estão no uso (correto ou incorreto) de poder de autoridade. E compreende-se que assim seja pois, nessas situações, não poderem beneficiar do perdão consubstanciaria uma evidente violação ao princípio da igualdade, previsto no artigo 13º da Constituição da República Portuguesa. Em suma, o recorrente também não tem direito a beneficiar do aludido perdão relativamente aos factos ocorridos a 12 de setembro de 2018 Portanto e em conclusão, também nesta parte o recurso é completamente improcedente. * * B.3.2. O recurso de BB B.3.2.1. Da aplicação da amnistia ao crime de falsificação Em síntese, o recorrente entende que o Tribunal a quo devia ter declarado amnistiado o crime de falsificação de documento previsto e punível pelo art. 256.º, n.º 1, al. d) e n.º 4 do Código Penal, pelo qual foi condenado na pena de 2 anos de prisão no âmbito do Proc. 11/18.0... Nos termos do artigo 4º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto, foram amnistiados: Artigo 4.º Amnistia de infrações penais São amnistiadas as infrações penais cuja pena aplicável não seja superior a 1 ano de prisão ou a 120 dias de multa. Ora, o crime pelo qual o recorrente foi condenado é punível com pena de 1 (um) a 5 (cinco) ano de prisão. Razão pela qual jamais poderia ser objeto de amnistia. Complementarmente refira-se que a pena que foi aplicada ao recorrente, devido à prática desse crime, foi – e bem – objeto de perdão porque assim o permitia o disposto no art. 3º nºs. 1 e 4 da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto. Tanto basta para que, nesta parte, o recurso improceda, considerando despiciendas outras considerações. B.3.2.2. Da possibilidade de absolvição do crime de ofensa à integridade física grave, ao abrigo do Princípio da Reformatio in Mellius Vem o recorrente solicitar a sua absolvição do crime de ofensa à integridade física grave (p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.) pelo qual foi condenado, ao abrigo do princípio da Reformatio in Mellius e por entender que esta infração se encontra numa relação de concurso aparente com o crime de sequestro agravado (p. e p. pelo art. 145.º, n.º 1, al. a) e n.º 2 do C.P.) pelo qual também foi condenado. Antes de mais, importa observar – e sublinhar - que o recorrente não suscitou esta questão quando recorreu dos acórdãos proferidos inicialmente pelo Juízo Central Cível e Criminal ... para o Tribunal da Relação de Évora, tendo deixado que os mesmos tenham transitado em julgado a 11 de janeiro de 2021 e a 18 de setembro de 2023… Ou seja, tendo deixado que sobre essa questão se tivesse formado caso julgado… Ora, sobre a noção e as implicações da formação de caso julgado recordamos, citando acórdão proferido pelo Juiz Conselheiro Santos Cabral40 o seguinte: “II - Na verdade, o caso julgado enquanto pressuposto processual, conforma um efeito negativo que consiste em impedir qualquer novo julgamento da mesma questão. É o princípio do ne bis in idem, consagrado como garantia fundamental pelo art. 29°, n.° 5, da CRP: ninguém pode ser julgado mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. III - Com os conceitos de caso julgado formal e material descrevem-se os diferentes efeitos da sentença. Com o conceito de caso julgado formal refere-se a inimpugnabilidade de uma decisão no âmbito do mesmo processo (efeito conclusivo) e converge com o efeito da exequibilidade da sentença (efeito executivo). Por seu turno, o caso julgado material tem por efeito que o objecto da decisão não possa ser objecto de outro procedimento. O direito de perseguir criminalmente o facto ilícito está esgotado. IV - No que concerne à extensão do caso julgado pode distinguir-se entre caso julgado em sentido absoluto e relativo: no primeiro caso a decisão não pode ser impugnada em nenhuma das suas partes. O caso julgado relativo é objectivamente relativo quando só uma parte da decisão se fixou e será subjectivamente relativo quando só pode ser impugnada por um dos sujeitos processuais. V - Há caso julgado formal quando a decisão se torna insusceptível de alteração por meio de qualquer recurso como efeito da decisão no próprio processo em que é proferida, conduzindo ao esgotamento do poder jurisdicional do juiz e permitindo a sua imediata execução (actio judicati). O caso julgado formal respeita, assim, a decisões proferidas no processo, no sentido de determinação da estabilidade instrumental do processo em relação à finalidade a que está adstrito. VI - Em processo penal o caso julgado formal atinge, pois, no essencial, as decisões que visam a prossecução de uma finalidade instrumental que pressupõe estabilidade – a inalterabilidade dos efeitos de uma decisão de conformação processual ou que defina nos termos da lei o objecto do processo –, ou, no plano material, a produção de efeitos que ainda se contenham na dinâmica da não retracção processual, supondo a inalterabilidade sic stantibus aos pressupostos de conformação material da decisão. No rigor das coisas, o caso julgado formal constitui um efeito de vinculação intraprocessual e de preclusão, pressupondo a imutabilidade dos pressupostos em que assenta a relação processual.” Com efeito, através da formação do caso julgado põe-se fim à dúvida que existia sobre as questões decididas na respetiva sentença, alcançando-se, com essa indiscutibilidade, segurança no mundo jurídico, entre o Estado e os seus cidadãos (sujeitos processuais e comunidade em geral) e garante-se o Estado de Direito, na medida em que se assegura a força vinculativa das decisões do Poder Judicial e reforça o prestígio e o respeito devido a estes Órgãos de Soberania. Admite-se, com Eduardo Correia41, que o caso julgado pode, por vezes, ter na sua base “uma adesão à segurança com eventual detrimento da verdade” E é justamente por isso que, em casos absolutamente excecionais e anómalos, decisões flagrantemente injustas possam ser objeto de correção através do recurso excecional de revisão previsto nos artigos 449º e sgs. do Código de Processo Penal. Essa a “válvula de escape” concebida pelo nosso sistema jurídico para tais situações, repete-se, perfeitamente excecionais e anómalas, sendo o estabelecimento do aludido recurso de revisão comentado por Alberto dos Reis da seguinte forma: “(…) bem consideradas as coisas, estamos perante uma das revelações do conflito entre as exigências da justiça e a necessidade de segurança ou da certeza. Em princípio, a segurança jurídica exige que, formado o caso julgado, se feche a porta a qualquer pretensão tendente a inutilizar o benefício que a decisão atribuiu à parte vencedora. Mas pode haver circunstâncias que induzam a quebrar a rigidez do princípio. A sentença pode ter sido consequência de vícios de tal modo corrosivos, que se imponha a revisão como recurso extraordinário para um mal que demanda consideração e remédio. Quer dizer, pode a sentença ter sido obtida em condições tão estranhas e anómalas, que seja de aconselhar fazer prevalecer o princípio da justiça sobre o princípio da segurança. Por outras palavras, pode dar-se o caso de os inconvenientes e as perturbações resultantes da quebra do caso julgado serem muito inferiores aos que derivariam da intangibilidade da sentença»42 Contudo, a alteração do decidido com ofensa ao caso julgado só pode ocorrer, como desde logo estabelece o artigo 29º, nº 6 da Constituição da República, nos termos da lei, sendo que as possibilidades de interposição de recurso de revisão são muito limitadas, como decorre do disposto no artigo 449º e sgs. do Código de Processo Penal. Fora do e enquadramento nesse recurso de revisão – que in casu se não coloca -, só em situações muitíssimo excecionais e limitadas e sempre com suporte numa lei, é possível alterar decisão transitada em julgado. É, por exemplo, o caso da condenação, com trânsito em julgado, em pena aplicada por referência a crime que, tendo sido posteriormente amnistiado, já não poderá ser considerado em cúmulo jurídico superveniente (cfr. artigo 2º, nº 2, parte final, do Código Penal). Ora, a possibilidade de reformatio in mellius para além de não estar estabelecida em qualquer norma legal (ao contrário da reformatio in pejus – art. 409º do Código de Processo Penal), tem sido suscitada, sobretudo, a propósito da admissibilidade de recursos ordinários e, sempre, relativamente a decisões não transitadas em julgado. No caso em apreço - e como o próprio recorrente reconhece - ocorreu trânsito em julgado, sendo que a questão agora invocada nem foi oportunamente colocada nos recursos interpostos para o Tribunal da Relação de Évora. Assim, está este Supremo Tribunal de Justiça impedido de apreciar a demais argumentação expendida pelo recorrente.43 Termos em que se considera que, nesta parte, o recurso deve improceder. B.3.3. Do desconto a realizar, nos termos do artigo 81º, nº 2 do Código Penal, na pena única. Dado que esta questão foi colocada por ambos os recorrentes e por que a sua abordagem será, em termos teóricos, absolutamente igual, tratá-la-emos conjuntamente, finalizando com uma referência específica a cada um dos recorrentes Entende o recorrente AA que “xv. Ao determinar a pena única resultante do cúmulo superveniente o Tribunal deve fazer um desconto equitativo da pena suspensa já cumprida parcialmente pelo arguido, desde logo em homenagem aos princípios da proporcionalidade, igualdade e de proibição do ne bis in idem e em cumprimento do disposto no nº 2 do artigo 81.º do Código Penal; Por outro lado, e aderindo a esse entendimento, alega o recorrente BB que: “Parece-nos que o disposto no artigo 81º do CP consiste em que há que descontar no cumprimento da pena aplicada o período de pena suspensa já cumprida.” Na verdade, o nº 2 do artigo 81º do Código Penal estabelece, efetivamente, que: “Se a pena anterior e a posterior forem de diferente natureza, é feito na nova pena o desconto que parecer equitativo.” Contudo, antes de prosseguirmos, porque em momento anterior referimos que, ao desfazer os cúmulos anteriores, as penas únicas deixam de interessar para a realização do novo cúmulo jurídico, importa acrescentar que a tal não obsta que se entenda dever ter em consideração o eventual cumprimento das penas únicas, para descontar o que for devido na nova pena única. Com efeito, e como se refere em Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa: “ I. Depois de efectuado o cúmulo jurídico das várias penas parcelares que estejam numa relação de concurso, o que conta para efeitos de cumprimento é única e exclusivamente a pena única. II. A pena única traduz a efectiva punição pela globalidade da conduta criminosa, o que tem como consequência o desaparecimento das penas parcelares, que deixaram de ter qualquer relevância. Estas só renascerão em caso de novo concurso de crimes que abarque os ilícitos da condenação anterior, obrigando a um novo cúmulo jurídico que abranja também tais penas parcelares, assim se obtendo uma nova pena única mais abrangente. IV. Isto acontece porque a regra é o desconto ter lugar na mesma medida do cumprimento efectivo da pena - seja ela de prisão ou de multa - ou ainda do tempo em que efectivamente o arguido esteve detido ou restringido da sua liberdade por efeito da aplicação das medidas de coacção referidas no artº80º, do CP.” Voltando à questão colocada importa, portanto, decidir se o tempo de suspensão da execução das penas únicas aplicadas ao arguido, em cada um dos processos, deve ser descontado na nova pena única, ainda que de forma equitativa, já que é diversa a natureza das penas únicas aplicadas nos anteriores cúmulos e da que foi aplicada no acórdão recorrido. O acórdão recorrido, reconhecendo a existência de uma corrente jurisprudencial maioritária que vem determinando o desconto do tempo de suspensão de pena anterior na pena única de natureza diversa, no caso do recorrente não procedeu ao mesmo, com a seguinte fundamentação: “(…) AA e BB foram condenados em penas suspensas, sujeitas a regime de prova definido pela DGRSP, sem que em concreto tivessem sido fixadas quaisquer obrigações, deveres, regras de conduta que importassem qualquer sacrifício/prejuízo. Por outro lado, como é sabido, o plano de reinserção social é fixado exclusivamente em benefício do condenado, e não em seu prejuízo, colhendo inclusive o seu acordo prévio (arts. 53º nºs. 1 e 2 e 54º nºs. 1 e 2 do CP), não se podendo considerar relevante ao ponto de justificar um “abatimento” numa pena de prisão o mero “incómodo” (se a tanto pudermos chegar) de o condenado responder a convocatórias da entidade que o vigia e apoia, e de manter adequada conduta social. Pelo que se entende não haver lugar a qualquer desconto na pena única de prisão fixada aos condenados AA e BB.” Desde já se consigna não se concordar este entendimento, importando, contudo, começar pela alusão à jurisprudência, claramente maioritária deste Supremo Tribunal, segundo a qual a não há que proceder a qualquer desconto quando as penas de prisão foram suspensas sem que tal suspensão tivesse ficado condicionada pelo preenchimento de qualquer condição ou da sujeição do condenado a qualquer dever.44 Em suma, o que se defende é que o desconto a que alude o artigo 81º, nº 2 do Código Penal não pode assentar simplesmente no decurso do tempo de suspensão, sem que tenha existido qualquer sacrifício para o condenado, por nisso não haver justificação. Ou seja, o simples não cometimento de novos crimes não pode justificar qualquer desconto na nova pena única pois isso é o que se exige a qualquer cidadão. Contudo, no caso em apreço, as duas penas únicas aplicadas nos processos foram suspensas: • No que concerne ao AA: – por 4 (quatro) anos), sujeita a regime de prova por igual período (Proc. 371/19.5T9ODM.S1); – por 3 (três) anos e 4 (quatro) meses, sujeita a regime de prova por igual período (Proc. 11/18.0...). • No que concerne ao BB: – por 3 (três) anos) e 4 (quatro) meses, sujeita a regime de prova por igual período (proc. 371/19.5T9ODM.S1); – por 5 (cinco) anos meses, sujeita a regime de prova por igual período (Proc. 11/18.0...). Ou seja, não se tratou de uma simples suspensão da execução da pena, tendo sido o condenado sujeito a regime de prova. Entende o acórdão recorrido que a submissão a regime de prova não deve determinar qualquer desconto, por duas ordens de razões: • Por um lado, porque o plano de reinserção é estabelecido “exclusivamente em benefício do condenado, e não em seu prejuízo, colhendo inclusive o seu acordo prévio” • Por outro, porque “o mero incómodo” (se a tanto pudermos chegar) de o condenado responder a convocatórias da entidade que o vigia e apoia, e de manter adequada conduta social” também não o justifica. Ora, desde logo não é correta a afirmação de que o plano de reinserção é fixado com o acordo prévio do condenado. Com efeito, decorre claramente do disposto no do nº 2 do artigo 54º que tal acordo não é indispensável, embora seja desejável e deva ser obtido, sempre que possível. Por outro lado, sendo certo que tal plano é elaborado com vista a promover a reinserção do condenado, também isso acontece quando lhe são impostas regras de conduta como a frequência de certos programas ou atividades, sendo certo que, nesses casos, não há dúvida que há que proceder ao aludido desconto… Aliás, ainda a este propósito, recorde-se que, nos termos do disposto no nº 3 do artigo 54º do Código Penal o juiz pode, no âmbito do aludido plano de reinserção “impor os deveres e regras de conduta referidos nos artigos 51º, e 52º, e ainda outras obrigações que interessem ao plano de readaptação e ao aperfeiçoamento do sentido de responsabilidade social do condenado” Finalmente, mas não menos importante, há que sublinhar que o regime de prova implica para o condenado sujeitar-se à vigilância dos serviços de reinserção social durante o tempo que durar a suspensão da execução da pena. Ora essa vigilância constitui, de alguma forma e em alguma medida, uma restrição dos seus direitos e uma intromissão na sua vida privada. Ou seja, não se concorda com a perspetiva segundo a qual o regime de prova não implica qualquer sacrifício para o condenado, embora se reconheça que, na maioria dos casos, esse sacrifício tem uma importância de menor alcance relativamente, por exemplo a situações em que lhe são impostos deveres ou regras de conduta. Este entendimento vem, aliás sendo adotado por vária jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça. Assim e por exemplo: “II - O facto de existirem penas parcelares suspensas na sua execução não impede que sejam integradas no cúmulo; o que, porém, não constitui argumento para que se ignore que parte da pena já terá sido cumprida desse modo, pelo que o período de cumprimento daquela pena deverá ser relevante em sede de execução da nova pena única que venha a ser aplicada. IX - Sabendo que o arguido já tinha cumprido uma parte do período de suspensão da execução da pena de prisão (com regime de prova) - durante 1 ano, 6 meses e 23 dias - e uma vez que esta não foi revogada, mas o seu cumprimento não prosseguiu porque iniciou o cumprimento de outra pena em regime prisional, afigura-se-nos relevante aquele cumprimento, pelo que se deverá proceder ao respetivo desconto equitativo, em atenção ao disposto no art. 81.º, n.º 2, do CP.”45 “IV- Como vem sendo jurisprudência maioritária no STJ, quando na decisão de cúmulo jurídico de penas se englobam penas de prisão cuja execução foi suspensa com regime de prova e/ou sujeita ao cumprimento de deveres ou regras de conduta ou condições parcialmente cumpridas, sendo aplicada uma pena única de natureza distinta (como sucede neste caso em que foi aplicada pena de prisão efetiva), por aplicação do disposto no art. 81.º, n.º 2, do CP, importa avaliar a medida do desconto equitativo da pena anterior que vai ser imputado na nova pena. Isso mesmo é o que resulta do disposto no artigo 81.º, n.º 2, do CP, desde a versão introduzida pelo DL 48/95, de 15 de Março.”46 Finalmente, importa referir que os aludidos descontos devem ser feitos relativamente a cada uma das penas cuja execução foi suspensa e não de forma global47. Aqui chegados e retomando ao caso concreto, importa desde logo sublinhar que, como é referido no acórdão atrás citado, não é o mesmo sofrer uma privação da liberdade e admitir o seu desconto integral na pena de prisão em que venha a ser condenado e procurar fazer um desconto pelo tempo em que o condenado esteve sujeito à suspensão da execução da pena de prisão sujeita a regime de prova, o qual deve ser sempre reduzido. E essa redução deve ser tanto mais importante quanto, in casu, não lhe foram impostos quaisquer deveres ou regras de conduta. Face a todo o exposto e relativamente ao recorrente AA: • no que concerne à pena de prisão suspensa na sua execução por 4 anos, com regime de prova, aplicada no processo 371/19.5T9ODM.S1, tendo em conta que o acórdão que a aplicou transitou em julgado a 18 de setembro de 2023, julga-se equitativo, ao abrigo do disposto no artigo 81º, nº 2 do Código Penal, descontar 1 (um) mês na pena única em que vier a ser definitivamente condenado nos presentes autos; • Nos mesmos termos e tendo em conta que a pena de prisão suspensa na sua execução por 3 anos e 4 meses, com regime de prova, aplicada no processo 11/18.0..., tendo em conta que o acórdão que a aplicou transitou em julgado a 11 de janeiro de 202, julga-se equitativo, ao abrigo do disposto no artigo 81º, nº 2 do Código Penal, descontar 9 (nove) meses na pena única em que vier a ser definitivamente condenado nos presentes autos. Finalmente e relativamente ao recorrente BB • no que concerne à pena de prisão suspensa na sua execução por 3 anos e 4 meses, com regime de prova, aplicada no processo 371/19.5T9ODM.S1, tendo em conta que o acórdão que a aplicou transitou em julgado a 18 de setembro de 2023 julga-se equitativo, ao abrigo do disposto no artigo 81º, nº 2 do código Penal, descontar 1 (um) mês na pena única em que vier a ser definitivamente condenado nos presentes autos; • no que concerne à pena prisão suspensa na sua execução por 5 anos, com regime de prova, aplicada no processo 11/18.0... e considerando que o acórdão que a aplicou transitou em julgado a 11 de janeiro de 2021, julga-se equitativo, ao abrigo do disposto no artigo 81º, nº 2 do Código Penal, descontar 9 (nove) meses na pena única em que vier a ser definitivamente condenado nos presentes autos. B.3.4. Os recursos de ambos os arguidos sobre a medida das penas únicas B.3.4.1. Considerações gerais Nos termos do disposto no art. 78º do Código Penal, face o conhecimento superveniente de concurso de infrações proceder-se-á como determinado no artigo anterior que manda estabelecer uma pena única, na medida da qual “são considerados em conjunto, os factos e a personalidade do agente”. Na busca da pena do concurso, explicita Figueiredo Dias, que “Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta”. E acrescenta que “de grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).”48 No mesmo sentido refere Cristina Líbano Monteiro, que com o sistema da pena conjunta, perfilhado neste preceito penal, deve olhar-se para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.49 As conexões ou ligações fundamentais na avaliação da gravidade da ilicitude global, são as que emergem do tipo e número de crimes, dos bens jurídicos individualmente afetados, da motivação, do modo de execução, das suas consequências e da distância temporal entre os factos. Condutas muito gravosas para a comunidade, como as integradas no terrorismo, criminalidade violenta, criminalidade especialmente ou criminalidade altamente organizada, [definidas no art.1.º, alíneas f) a m)] exigem, por respeito do princípio da proporcionalidade e exigências de prevenção, uma menor compressão das penas parcelares, na formação da pena única, do que condutas de agentes inseridas na chamada média ou pequena criminalidade. Ínsita nos factos ilícitos unificados no âmbito da pena de concurso, a personalidade do agente, é um fator essencial à formação da pena única. A revelação da personalidade global do agente, o seu modo de ser e atuar em sociedade, emerge essencialmente dos factos ilícitos praticados, mas também das suas condições pessoais e económicas e da sensibilidade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado. A interiorização das condutas ilícitas e consequentes penas parcelares que lhe foram aplicadas traduzidas na vontade clara de alteração do comportamento antissocial violador de bens jurídico criminais, assente em factos que o demonstrem, relevam assim, particularmente, no apuramento das exigências de prevenção no momento de determinar a pena única. Sendo as necessidades de prevenção mais exigentes quando o ilícito global é produto de tendência criminosa do agente, do que quando esse ilícito se reconduz a uma situação de pluriocasionalidade, a pena conjunta deverá refletir esta singularidade da personalidade do agente. B.3.4.2. A fundamentação do acórdão recorrido O acórdão recorrido fundamento, em concreto as penas aplicadas aos recorrentes da seguinte forma: “No caso concreto - Quanto à homogeneidade das condutas ilícitas dos condenados, verifica-se que os crimes em concurso têm um traço comum: a prática de actos criminosos contra cidadãos estrangeiros, em situação de vulnerabilidade, em manifesto abuso da condição de militares da ... em que estavam investidos; - A repetição de tais condutas, quer em termos temporais, quer em diferentes contextos (nas habitações das vítimas, na rua, no interior de veículos da ... e no interior do Posto de ...), evidencia que estamos perante personalidades que revelam tendência criminosa, e não apenas alguém que num determinado contexto, isolado ou delimitado num curto espaço de tempo, cometeu crimes. - Qualquer dos crimes em concurso reclama elevadas exigências de prevenção geral, sendo fonte de grande comoção social e, simultaneamente, geradores de forte sentimento de repulsa; - Ao nível da culpa, os condenados agiram sempre com dolo directo e intenso. - Há que atender ainda às condições socioeconómicas dos condenados, sendo de destacar que aqueles que enfrentam condenações mais gravosas, AA e BB, foram, entretanto, desvinculados da .... - Não milita a favor dos condenados AA e BB o arrependimento e sentimento de vergonha verbalizados nesta audiência de cúmulo jurídico superveniente. Aliás, o tribunal não pôde considerar provado mais do que isso, ou seja, mera verbalização. Com efeito, não se trata de sentimentos genuínos porquanto a postura de ambos ao longo dos dois processos foi sempre a de procurarem eximir-se às suas responsabilidades, escapar a uma condenação, sem nunca terem contribuído para a descoberta da verdade e sem nunca terem revelado réstia de compaixão, empatia, solidariedade para com as vítimas dos seus crimes. Recorde-se a este propósito que, no âmbito do Proc. 11/18.0... AA, BB e CC foram ainda condenados, solidariamente com os demais arguidos naqueles autos, no pagamento de indemnizações às vítimas, pagamento esse que até hoje não demonstraram ter realizado, no todo ou em parte. Pretendem as defesas dos três condenados que as respectivas penas únicas não sejam fixadas acima dos 5 anos de prisão, por forma a possibilitar a suspensão da sua execução. Ora, se tal se afigura compreensível no que respeita ao condenado CC, já quanto aos demais trata-se de algo absolutamente despropositado, incompreensível aos olhos da comunidade, porquanto seria manifestamente desproporcional face às prementes exigências de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir, e que iria muito além de qualquer perdão de penas ou amnistia, de que os condenados nem sequer beneficiam, como se verificará infra (salvo uma situação em concreto). Importa também aqui recordar que no âmbito do Proc. 11/18.0... um outro militar da ..., entretanto desvinculado, foi condenado e encontra-se a cumprir pena de 6 anos de prisão por factos praticados em coautoria com os demais, pena essa fixada no âmbito de um cúmulo jurídico que teve como limite mínimo a pena de 3 anos e 6 meses de prisão, e como limite máximo 10 anos e 6 meses de prisão (vide certidão do acórdão). Pelo que, qualquer decisão que implicasse tamanha desproporção, irrazoabilidade e desigualdade só contribuiria para minar a confiança que os cidadãos depositam na acção dos tribunais. Donde, consideramos que a pena única a aplicar a cada um dos condenados deverá situar-se num patamar médio-superior por referência aos limites mínimo e máximo atrás referidos.” B.3.4.3. O recurso de AA Da transcrição das conclusões das motivações do recurso interposto pelo recorrente, bem como da resposta que apresentou na sequência do parecer do Digno Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça – ambas integralmente transcritas supra – resulta que o recorrente entende que a pena que lhe foi aplicada é excessiva, desproporcional e injustificadamente severa, pedindo que a mesma seja substituída por outra, que não exceda os 5 anos de prisão, suspensa na sua execução. Desde já se consigna a nossa adesão à motivação acima transcrita e a consequente não adesão à argumentação do recorrente, entendendo-se que a medida concreta da pena única aplicada não merece censura. Assim e sem querer voltar a repetir tudo o que anteriormente já ficou exposto, sempre se consignará o seguinte: A moldura abstrata aplicável ao caso em apreço situa-se entre 3 (três) anos de prisão e 13 (treze) anos e 6 (seis) meses de prisão. E não 13 anos e 11 (onze) meses como, por manifesto lapso, se refere no acórdão recorrido. Numa apreciação global dos factos cometidos pelo recorrente verifica-se que os mesmos estão intimamente correlacionados entre si e todos se traduzem num manifesto e reiterado abuso da condição de militar da ..., consubstanciado na prática crimes que protegem bens jurídicos variados (Abuso de poder, Ofensa à integridade física qualificada, Sequestro agravado, e Violação de domicílio por funcionário) e que foram, alguns deles, praticados na sua forma agravada/qualificada. Tais comportamentos foram praticados de forma reiterada e em diversos locais, sendo as vítimas pessoas que se encontravam numa posição de manifesta vulnerabilidade. Ou seja, a ilicitude do comportamento global do arguido é grave. O arguido atuou, sempre, com dolo direto e muito intenso. A motivação da sua conduta foi extremamente censurável, pois teve como único escopo o divertimento do arguido através da humilhação das vítimas. Ao contrário do que alega o recorrente, os seus comportamentos tiveram reflexos nas vítimas que – como bem refere o Digno Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça – não são desprezíveis pois, para além das dores físicas nelas provocadas (Kildeep Kumar sofreu inclusivamente lesões que lhe determinara 8 dias de doença), é evidente que os maus tratos e humilhações a que foram submetidas (em alguns casos próximos da definição de tortura) tiveram e continuam a ter reflexos negativos na sua vida, os quais assumem ainda maior gravidade tendo em conta a sua condição de imigrantes. No que concerne à personalidade revelada pelos factos praticados verifica-se haver uma manifesta tendência para o abuso de poder. Decorre ainda desses factos um total e muito chocante desprezo do recorrente pela dignidade humana, bem como uma grave violação dos mais elementares direitos de imigrantes. A favor do arguido milita a sua falta de antecedentes criminais e disciplinares, a boa inserção familiar, social e profissional e o facto de, finda a sua condição de militar da ..., ter encetado frequência do curso de ... e estar a trabalhar num escritório de .... A circunstância de os factos terem sido praticados entre setembro de 2018 e março de 2019 tem de ser considerada, bem como o facto de, no âmbito do processo disciplinar contra si instaurado ter sido afastado do serviço em dezembro de 2021, suspenso entre março e setembro de 2023, e, não obstante o recurso interposto, definitivamente separado do serviço em outubro do mesmo ano. Finalmente, anote-se o facto de ter verbalizado sentimentos de arrependimento e vergonha na audiência de cúmulo jurídico superveniente mas, também, a circunstância de, no Acórdão recorrido, se referir que “(…) não se trata de sentimentos genuínos porquanto a postura de ambos ao longo dos dois processos foi sempre a de procurarem eximir-se às suas responsabilidades, escapar a uma condenação, sem nunca terem contribuído para a descoberta da verdade e sem nunca terem revelado réstia de compaixão, empatia, solidariedade para com as vítimas dos seus crimes.” Face a todo o exposto, considera-se que as necessidades de prevenção geral são muito intensas, porque foi gravemente posta em causa a confiança que a comunidade precisa de manter com os agentes da autoridade, porque importa reafirmar a proteção dos bens jurídicos colocados em causa e porque não devemos permitir a assunção de comportamentos xenófobos e racistas, claramente contrários à lei. As necessidades de prevenção especial são também acentuadas, tendo em conta o atrás referido e a falta de arrependimento sincero do recorrente, o qual transparece, novamente, nas suas alegações de recurso, nas quais revela – como bem refere o digno Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça - “incapacidade de revisitar criticamente a sua conduta e de a analisar à luz dos mais elementares princípios de uma sociedade fundada em valores humanistas – que o recorrente, enquanto membro de uma força policial estava comprometido a defender” Assim e tendo em conta que a apurada culpa do arguido a tal não se opõe, não se vislumbra fundamento para criticar a pena única de 8 (oito) anos e 8 (oito) meses aplicada ao recorrente, a qual se julga justa. Finalmente, do concluído no parágrafo anterior decorre a inutilidade de nos pronunciarmos sobre a pretendida suspensão da execução da pena, dada a mesma ser legalmente inviável, face ao disposto no nº 1 do artigo 50º do Código Penal. * * B.3.4.4. O recurso de BB Da transcrição das conclusões das motivações do recurso interposto pelo recorrente, - supra transcritas integralmente – resulta que o recorrente entende que a pena que lhe foi aplicada é excessiva, desproporcional e injustificadamente severa, pedindo que a mesma seja substituída por outra, que se situe nos 5 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeição a regime de prova. Desde já se consigna a nossa adesão à motivação acima transcrita e a consequente não adesão à argumentação do recorrente, entendendo-se que a medida concreta da pena única aplicada não merece censura. Assim e sem querer voltar a repetir tudo o que já anteriormente ficou exposto, sempre se consignará o seguinte: A moldura abstrata aplicável ao caso em apreço situa-se entre 3 (três) anos de prisão e 13 (treze) anos e 8 (oito) meses de prisão. Numa apreciação global dos factos cometidos pelo recorrente e à semelhança do anteriormente consignado, verifica-se que os mesmos estão intimamente correlacionados entre si e todos se traduzem num manifesto e reiterado abuso da condição de militar da ..., consubstanciado na prática crimes que protegem bens jurídicos variados (Abuso de poder, Falsificação de documento, Ofensa à integridade física qualificada, Sequestro agravado e Violação de domicílio por funcionário) e que foram, alguns deles, praticados na sua forma agravada/qualificada. Tais comportamentos foram, também, praticados de forma reiterada e em diversos locais, sendo as vítimas pessoas que se encontravam numa posição de manifesta vulnerabilidade. Ou seja, a ilicitude do comportamento global do arguido é grave. O arguido atuou, reiteradamente, com dolo direto e muito intenso. A motivação da sua conduta foi extremamente censurável, pois, tal como aconteceu com o outro recorrente, teve como único escopo o divertimento do arguido através da humilhação das vítimas. Os seus comportamentos tiveram reflexos nas vítimas que – como bem refere o digno Procurador-Geral Adjunto neste Supremo Tribunal de Justiça – não são desprezíveis pois, para além das dores físicas nelas provocadas (Kildeep Kumar sofreu inclusivamente lesões que lhe determinara 8 dias de doença), é evidente que os maus tratos e humilhações a que foram submetidas (em alguns casos próximos da definição de tortura) tiveram e continuam a ter reflexos negativos na sua vida, os quais assumem ainda maior gravidade tendo em conta a sua condição de imigrantes. No que concerne à personalidade revelada pelos factos praticados verifica-se haver uma manifesta tendência para o abuso de poder. Decorre ainda desses factos um total e muito chocante desprezo do recorrente pela dignidade humana, bem como uma grave violação dos mais elementares direitos de imigrantes, constituindo ainda agravante o facto de o arguido, no dia 30 de setembro de 2018, exercer funções de comando da respetiva patrulha. A favor do arguido milita a sua falta de antecedentes criminais e disciplinares, bem como a sua boa inserção familiar e social A circunstância de os factos terem sido praticados entre setembro e novembro de 2018 tem de ser considerada, bem como o facto de, no âmbito do processo disciplinar contra si instaurado ter sido afastado preventivamente do serviço entre maio e janeiro de 2019, de ter cumprido uma pena de suspensão durante 210 dias e, segundo notificação ocorrida em novembro, ter sido desvinculado da ..., não tendo interposto recurso dessa decisão. Finalmente e à semelhança do consignado relativamente a AA, anote-se o facto de ter verbalizado sentimentos de arrependimento e vergonha na audiência de cúmulo jurídico superveniente mas, também, a circunstância de, no Acórdão recorrido, se referir que “(…) não se trata de sentimentos genuínos porquanto a postura de ambos ao longo dos dois processos foi sempre a de procurarem eximir-se às suas responsabilidades, escapar a uma condenação, sem nunca terem contribuído para a descoberta da verdade e sem nunca terem revelado réstia de compaixão, empatia, solidariedade para com as vítimas dos seus crimes.” Face a todo o exposto, considera-se que as necessidades de prevenção geral são muito intensas, porque foi gravemente posta em causa a confiança que a comunidade precisa de manter com os agentes da autoridade, porque importa reafirmar a proteção dos bens jurídicos colocados em causa e porque não devemos permitir a assunção de comportamentos racistas e xenófobos, claramente contrários à lei. As necessidades de prevenção especial são também acentuadas, tendo em conta o atrás referido, a falta de arrependimento sincero do recorrente e o facto de se encontrar, no dia 30 de setembro de 2019, numa posição de comando e, por isso, com uma obrigação acrescida de zelar pelos direitos dos ofendidos. Assim e tendo em conta que a apurada culpa do arguido a tal não se opõe, não se vislumbra fundamento para criticar a pena única de 8 (oito) anos e 7 (sete) meses aplicada ao recorrente50, a qual se julga justa. Finalmente, do concluído no parágrafo anterior decorre a inutilidade de nos pronunciarmos sobre a pretendida suspensão da execução da pena, dada a mesma ser legalmente inviável, face ao disposto no nº 1 do artigo 50º do Código Penal. D – Decisão Por todo o exposto, decide-se: a. Corrigir, ao abrigo do disposto no artigo 380º, nºs 1 al. b), 2 e 3 do Código de Processo Penal, o manifesto lapso material contido no acórdão recorrido ao indicar como limite máximo, em termos abstratos, da pena única a aplicar ao recorrente AA 13 (treze) anos e 11 (onze) meses, em vez de 13 (treze) anos e 6 (seis) meses, sendo este, e não aquele, o total do somatório de todas as penas que lhe foram aplicadas nos processos acima identificados; b. Conceder provimento parcial ao recurso interposto por AA e determinar, ao abrigo do disposto no artigo 81º, nº 2 do Código Penal o desconto de 1 (um) mês (com referência ao tempo de suspensão da pena aplicada no Proc. 371/19.5T9ODM.S1 decorrido desde o respetivo trânsito em julgado) e de 9 (nove) meses (com referência ao tempo de suspensão da pena aplicada no Proc. 11/18.0... decorrido desde o respetivo trânsito em julgado) de prisão na pena única; c. Em consequência do acima exposto e face ao não provimento do recurso no que concerne à diminuição pena única de 8 (oito) anos e 8 meses, fica o recorrente condenado na pena única de 7 (sete) anos e 10 (dez) meses de prisão. d. Julgar, no mais, o recurso interposto por AA improcedente; e. Julgar o recurso interposto por BB parcialmente procedente e determinar, ao abrigo do disposto no artigo 81º, nº 2 do Código Penal o desconto de 1 (um) mês (com referência ao tempo de suspensão da pena aplicada no Proc. 371/19.5T9ODM.S1 decorrido desde o respetivo trânsito em julgado) e de 9 (nove) meses (com referência ao tempo de suspensão da pena aplicada no Proc. 11/18.0... decorrido desde o respetivo trânsito em julgado) de prisão na pena única; f. Em consequência do acima exposto e face ao não provimento do recurso no que concerne à diminuição pena única de 8 (oito) anos e 7 meses e mantendo-se o desconto do perdão de 1 ano, aplicado na decisão recorrida (ao abrigo ao abrigo do disposto no nº 1 do artigo 3º da Lei 38-A/2023, de 2 de agosto), fica o recorrente condenado na pena única de 6 (seis) anos e 9 (nove) meses de prisão. g. Julgar, no mais, o recurso interposto por BB improcedente; Sem tributação. Supremo Tribunal de Justiça, d.s. certificada (Processado e revisto pelo relator - artigo 94º, nº 2 do Código de Processo Penal) Celso Manata (Relator) Leonor Furtado (1º Adjunto) Vasques Osório (2º Adjunto) _______________________________________
1. Estas as penas aplicadas na sequência do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, a 28 de junho de 2023, o qual, dando provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido, reformulou o cúmulo jurídico e condenou-o na única de quatro anos e oito meses de prisão, suspensa na execução por igual período, sujeita a regime de prova (na primeira instância esta pena única tinha sido fixada em 6 anos de prisão, resultante de cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares: 1 ano de prisão – 1 crime de Abuso de poder (art. 382º do CP); 1 ano e 6 meses, 1 ano e 3 meses, 1 ano e 3 meses, 1 ano e 3 meses e 2 anos – Cinco crimes de Ofensa à integridade física qualificada (arts. 143º, nº 1, 145º, nº 1, al. a), por referência à al. m) do nº 2 do art. 132º do CP); 3 anos e 6 meses de prisão – 1 crime de Sequestro agravado (158º, nºs 1 e 2, al. g) in fine do CP).↩︎ 2. Estas as penas aplicadas na sequência do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, a 28 de junho de 2023, o qual, dando provimento parcial ao recurso interposto pelo arguido, reformulou o cúmulo jurídico e condenou-o na única de três anos e quatro meses de prisão, suspensa na execução por igual período, sujeita a regime de prova (na primeira instância esta pena única tinha sido fixada em 4 anos e 2 meses de prisão ,suspensa na execução por igual período, sujeita a regime de prova, resultante de cúmulo jurídico das seguintes penas parcelares: 1 ano e 6 meses de prisão – 1 crime de Ofensa à integridade física qualificada (arts. 143º, nº 1, 145º, nº 1, al. a), por referência à al. m) do nº 2 do art. 132º do C.P.); 3 anos e 6 meses de prisão – 1 crime de Sequestro agravado (158º, nºs 1 e 2, al. g) in fine do C.P.).↩︎ 3. Foi interposto recurso para o Tribunal da Relação de Évora o qual, por acórdão de 24 de novembro de 2020, manteve integralmente a decisão da primeira instância.↩︎ 4. Em cúmulo jurídico destas penas, foi condenado na pena única de quatro anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, sujeita a regime de prova.↩︎ 5. Em cúmulo jurídico destas penas, foi condenado na pena única de cinco anos de prisão, cuja execução foi suspensa por igual período, sujeita a regime de prova.↩︎ 6. A parte a sombreado consta da peça processual embora esteja repetida.↩︎ 7. Disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/dbb4e9cf625e5da5802581b70031705f?OpenDocument↩︎ 8. Nota [1] constante do texto do Acórdão: “Entre muitos outros e por mais recentes, v. Acs. ASTJ de 03.06.2015, Proc. 336/09.5GGSTB.S1, 17.06.2015, Proc. 1517/04.3GAVNG.S1 e 12.03.2015, Proc. 285/07.1JABRG-F.S1, in www.dgsi.pt. Na doutrina, Figueiredo Dias, “Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime”, 4.ª Reimp., Coimbra Editora, págs. 285, 290 e 295”↩︎ 9. Texto disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c7e01b57d95bc034802583a0004c8919?OpenDocument↩︎ 10. Acórdão STJ 12.10.2022, processo 277/08.3TAEVR.S1, relatado por Lopes da Mota, texto disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7c1d799d3b52d512802588da0050c7d2?OpenDocument↩︎ 11. Ac. STJ de 9.02.2022, processo 21461/21.9T8LSB.S1, disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/4f1a32439ca84b12802587e600811e0a?OpenDocument↩︎ 12. Neste sentido veja-se o Acórdão do STJ de 12.10.2022, relatado por Lopes da Mota, no processo 277/08.3TAEVR.S1. Texto integral disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/7c1d799d3b52d512802588da0050c7d2?OpenDocument↩︎ 13. Ac. STJ de 29.06.2017, proferido no processo 1372/10.4TAVLG.S1, relatado por Manuel Braz. Texto integral disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/3c311520a619344d8025815200369995?OpenDocument↩︎ 14. Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte especial, Tomo III - Artigos 308.º a 386.º -, Coimbra Editora, 2001, anotação 4, pág. 775↩︎ 15. Neste sentido, Paula Ribeiro de Faria, op. cit., pág. 774↩︎ 16. V. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, Universidade Católica Editora, 3.ª edição atualizada, novembro de 2015, pág. 1215↩︎ 17. F. Dias, As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011, p. 291.↩︎ 18. F. Dias, Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra Editora, 2.ª edição, 1983, págs. 183 a 185.↩︎ 19. Ac. STJ de 13.02.2019, relatado por Lopes da Mota, proc. 1205/15.5T9VIS.S1. A referência a F. Dias refere-se à obra “As Consequências Jurídicas do Crime, Coimbra Editora, 2011. Texto integral disponível em: https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/c7e01b57d95bc034802583a0004c8919?OpenDocument↩︎ 20. https://apav.pt/uavmd/index.php/pt/migrantes-vitimas-de-crime↩︎ 21. Como refere o Sr. Juiz Conselheiro António Artur Rodrigues Costa, “à visão atomística inerente à determinação da medida das penas singulares, sucede uma visão de conjunto, em que se consideram os factos na sua totalidade, como se de um facto global se tratasse, de modo a detetar a gravidade desse ilícito global, enquanto referida à personalidade unitária do agente” (cfr. “O Cúmulo Jurídico Na Doutrina e na Jurisprudência do STJ”, disponível para consulta no endereço eletrónico http://www.stj.pt/ficheiros/estudos/rodrigues_costa_cumulo_juridico.pdf).↩︎ 22. “Código de Processo Penal comentado”, António Henriques Gaspar e outros, pág. 1358.↩︎ 23. Com efeito, para beneficiar dessa suspensão o arguido ficou apenas sujeito a regime de prova.↩︎ 24. “A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre o cúmulo jurídico superveniente” Revista Julgar, dezembro de 2020↩︎ 25. 40 Ac. do STJ de 29-01-2015, proc. n.º 2495/08.5GBABF.S1. Neste sentido, v.g., Acs. do STJ de 18-10-2017, proc. n.º 8/15.1GAOAZ.P1.S1, de 09-01-2019, proc. n.º 142/12. 2PCLRS.S1, de 16-05-2019, proc. n.º 790/10.2JAPRT.S1, de 26-06-2019, proc. n.º 206/16.0PALGS.S2, e de 11-09-2019, proc. n.º 8329/18.5T8CBR.C1.S1.↩︎ 26. 41 Ac. do STJ de 11-03-2010, proc. n.º 19996/97.1TDLSB.S2. Esta interpretação foi julgada não inconstitucional pelo Ac. do TC n.º 112/2011.↩︎ 27. 42 Ac. do STJ de 16-05-2019, proc. n.º 790/10.2JAPRT.S1.↩︎ 28. 43 Ac. do STJ de 09-01-2019, proc. n.º 142/12. 2PCLRS.S1.↩︎ 29. 44 Ac. do STJ de 16-05-2019, proc. n.º 790/10.2JAPRT.S1.↩︎ 30. Ac. do STJ de 16 de outubro de 2013 – Proc. 19/09.6JBLSB.L1.S1 in www.dgsi.pt↩︎ 31. “A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça sobre o cúmulo jurídico superveniente” Revista Julgar, dezembro de 2020↩︎ 32. Ac. do STJ de 15 de julho de 2020 – Proc. 3325/19.8T8PNF.S1 in www.dgsi.pt↩︎ 33. E que , embora noutro enquadramento e com outro objetivo, também surge defendida no acórdão de 28 de junho de 2023 proferido pelo Tribunal da Relação de Évora (no âmbito do processo 371/19.5T9ODM.S1) quando refere que «(…) Salvo o devido respeito, não é de acolher o entendimento defendido pelo recorrente no sentido de que quando a intenção do arguido é humilhar a vítima, sendo o prejuízo daí decorrente a inerente ofensa à dignidade desta, esse prejuízo não integra a tipicidade do crime de abuso de poder.»↩︎ 34. “Comentário do Código Penal à luz da constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos Humanos”, 6ª edição, pág. 1378↩︎ 35. Aprovado pelo Despacho nº10393/2010, de 5 de maio de 2010, e publicado no Diário da República II série, de 22 de junho de 2010.↩︎ 36. Aprovado pelo Decreto-Lei nº 30/2017, de 22 de março.↩︎ 37. Aprovado pela Lei 145/99, de 1 de setembro, com as alterações introduzidas pela Lei 66/2014, de 28 de agosto↩︎ 38. Aprovado pelo Decreto-Lei 90/2015, de 29 de maio, na redação do Decreto-Lei 10/2018, de 2 de março.↩︎ 39. Aprovado pela Lei Orgânica 2/2019, de 22 de julho.↩︎ 40. Ac. do STJ de 20-10-2010 – Proc. 3554/02.3TDLSB.S2 in www.dgsi.pt↩︎ 41. “Caso Julgado e Poderes de Cognição do Juiz”, Coimbra, Livraria Atlântida, 1948, p. 7.↩︎ 42. Código de Processo Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1953, pp. 336-337.↩︎ 43. De qualquer forma, observa-se que, nos termos do acórdão recorrido, a agravação dos crimes de sequestro pelos quais o recorrente foi condenado foi fundamentada no disposto na alínea g) (e não na invocada alínea b)) do nº 2 do artigo 158º do Código Penal.↩︎ 44. Neste sentido veja-se, por todos, o Acórdão do STJ de 9 de fevereiro de 2022, – Proc. 21461 in www.dgsi.pt↩︎ 45. Ac. do STJ de 14 de janeiro de 2016 – Proc. 8/12.3PBBGC.B.G1.S1 in www.dgsi.pt↩︎ 46. Ac. do STJ de 7 de dezembro de 2022 – Proc. 3130/22.4T8BRG.S1 in www.dgsi.pt↩︎ 47. Neste sentido veja-se o Ac. do STJ de 7 de dezembro de 2022 atrás identificado↩︎ 48. Cf. “Direito Penal Português, “As Consequências Jurídicas do Crime”, Editorial Notícias, 1993, págs.290/2.↩︎ 49. Cf. “Revista Portuguesa de Ciência Criminal”, Ano 16, n.º1, , pág. 155 a 166 e acórdão do STJ, de 09-01-2008, CJSTJ 2008, tomo 1.↩︎ 50. À qual foi, como atrás se referiu, descontado um ano de prisão, ficando, a final, condenado a cumprir a pena única de 7 (sete) anos e 7 (sete) meses de prisão.↩︎ |