Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 5ª SECÇÃO | ||
Relator: | MANUEL BRAZ | ||
Descritores: | ACÓRDÃO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA GRAFITOS CRIMES DE DANO DESCRIMINALIZAÇÃO CONTRA-ORDENAÇÃO CONTRAORDENAÇÃO PRINCÍPIO DA SUBSIDIARIEDADE | ||
Data do Acordão: | 09/26/2018 | ||
Votação: | MAIORIA COM * DEC VOT E * VOT VENC | ||
Referência de Publicação: | DR, I SÉRIE, 205, 24.10.2018, P. 5068-5076 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PARA FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA | ||
Decisão: | FIXADA JURISPRUDÊNCIA | ||
Área Temática: | DIREITO PROCESSUAL CIVIL – PROCESSO DE DECLARAÇÃO / RECURSOS / RECURSO PARA UNIFORMIZAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. DIREITO PROCESSUAL PENAL – RECURSOS / RECURSOS EXTRAORDINÁRIOS / FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA. | ||
Doutrina: | - Augusto da Silva Dias, Direito das Contra-Ordenações, Almedina, 2018, p. 154; - Costa Andrade, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, 1999, p. 207. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO DE PROCESSOS CIVIL (CPP): - ARTIGO 692.º, N.º 4. CÓDIGO DE PROCESSO PENAL (CPP): - ARTIGOS 4.º, 437.º, N.ºS 1, 2, 4 E 5 E 438.º, N.º 1. PROPOSTA DE LEI DO GOVERNO N.º 158/XII | ||
Sumário : | «A Lei 61/2013, de 23-08, não descriminalizou qualquer das condutas típicas do crime de dano, nomeadamente a de desfiguração». | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
AA, na qualidade de arguido, interpôs, em 16/11/2017, recurso extraordinário para fixação de jurisprudência do acórdão da Relação do Porto de 11/10/2017, proferido no processo n.º 319/16.9GBPNF.P1-B, transitado em julgado em 27/10/2017, alegando que se encontra em oposição com o acórdão da Relação de Lisboa de 18/2/2015, proferido no processo n.º 1593/11.2S6LSB.L1-3, igualmente transitado em julgado.
Por acórdão de 15/03/2018, o Supremo Tribunal de Justiça, considerando não ocorrer motivo de inadmissibilidade e haver oposição de julgados, decidiu que o recurso prosseguisse.
Foram notificados os sujeitos processuais interessados, nos termos e para os efeitos do artigo 442.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, tendo sido apresentadas alegações pelo Ministério Público e pelo recorrente, concluindo nos termos que se transcrevem: O Ministério Público: «1. A Lei n.º 61/2012, de 23 de Agosto, visou conferir às autoridades administrativas e policiais os meios adequados para melhor prevenir e reprimir a acção deliberada dos agentes, que utilizando a pintura, o desenho, as assinaturas, a picotagem e a afixação, descaracterizem, alterem, manchem ou conspurquem, de forma temporária ou permanente, monumentos, imóveis, mobiliário e equipamento urbano, degradando o ambiente urbano prejudicando entidades públicas e privadas. 2. Tal diploma visou devolver o espaço urbano a todos os cidadãos, bem como promover a utilização temporária e controlada de determinados espaços livres ou devolutos, em espaço urbano, como espaços de exposição e divulgação de arte, que se enquadravam na Resolução do Conselho de Ministros n.º 11/2013, de 5 de Março, na sequência da elaboração do Livro Branco, das orientações estratégicas de intervenção para a política da juventude 3. O artigo 6.° da Lei n.º 61/2012, de 23 de Agosto, define os casos em que a actuação do agente que descaracterize, altere, manche ou conspurque, a aparência exterior do bem móvel ou imóvel, configura a prática de uma contra-ordenação muito grave, grave ou leve. 4. As modalidades de acção que se encontram previstas no Código Penal, no crime de dano são: danificar, desfigurar ou tornar não utilizável, enquanto na Lei n.º 61/2013, de 23 de Agosto, as modalidades de acção aí previstas são: descaracterizar, alterar, manchar ou conspurcar. 5. Verifica-se, assim, que as normas em apreço se propõem sancionar condutas distintas, o que resulta de uma clara intenção do legislador de punir de forma diferente a conduta do agente consoante a modalidade de acção por aquele praticada. 6. Tal opção legislativa deve-se ao facto de, no caso do crime de dano, a acção do agente, pela sua natureza, apresentar maior gravidade, atingindo a integridade do próprio bem, enquanto, nos casos previstos na Lei n.º 61/2013, de 23 de Agosto, a actuação dos agentes não revestir tanta gravidade, não atingindo a integridade do próprio bem. 7. Com a Lei n.º 61/2013, de 23 de Agosto, o legislador pretendeu ainda punir a título de contra-ordenação modalidades de acção que não se encontravam abrangidas pelo crime de dano. 8. Nos casos em que a conduta do agente seja susceptível de configurar a prática de um ilícito criminal e um ilícito contra-ordenacional o artigo 6.° da Lei n.º 61/2013, de 23 de Agosto, estabelece no seu proémio uma situação de subsidiariedade expressa da contra-ordenação face ao ilícito penal. 9. No anteprojecto de proposta de lei que visava estabelecer o regime aplicável aos grafitos, afixações selvagens e picotagem, o legislador previa, no artigo 6.° que: 1- Fora dos casos permitidos, a realização de grafitos e picotagem, ou outra intervenção de natureza similar, constitui contra-ordenação [muito grave, grave, leve] a acção do agente que descaracterize, altere, desfigure, adultere, manche ou conspurque. 10. Tal redacção do artigo 6.° do anteprojecto revogava tacitamente o artigo 212.° do Código Penal, na parte relativa à actividade de desfiguração, passando a existir um mero ilícito de ordenação social. 11. Face à controvérsia que a redacção do artigo 6.° suscitou, o legislador procedeu à sua alteração, que se concretizou através da proposta de Lei n.º 158/XII, que esteve na origem da presente Lei n.º 61/2013, optando por eliminar expressamente a expressão desfigurar do artigo 6.° da Lei n.º 61/2013 e acrescentando no proémio do referido dispositivo legal ".... Quando não for aplicável sanção mais grave por força de outra disposição legal, a realização de afixação, grafito e ou picotagem constitui...". 12. Com esta alteração que introduziu ao anteprojecto verifica-se que, claramente, não foi intenção do legislador revogar, tacitamente, o artigo 212.° do Código Penal, pois caso contrário teria mantido a redacção que constava do anteprojecto. 13. Propõe-se, pois, que o conflito de jurisprudência existente entre o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto e o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do recurso com o NUIPC 1593/11.2S6LSB.L1-3 seja resolvido nos seguintes termos: “A entrada em vigor da Lei n.º 61/2013, de 23 de Agosto, não procedeu à revogação tácita parcial do artigo 212.° do Código Penal, no segmento relativo à desfiguração da coisa por meio de grafito”». O recorrente: «Pelo exposto entende o recorrente que com a entrada em vigor da Lei n.º 61/2013, de 23 de Agosto, se operou a despenalização da conduta pela qual foi acusado nos autos, tendo a mesma sido convertida em contra-ordenação, devendo, portanto, a jurisprudência fixar-se no sentido da descriminalização da conduta, conforme douta sentença proferida pelo tribunal “a quo” e pelo Acórdão proferido pelo TRL de 18/05/2015 no âmbito do processo 1593/11.2SLSB.L1-3 (Acórdão Fundamento)».
Colhidos os vistos, o processo foi apresentado à conferência do pleno das secções criminais, cumprindo decidir.
Fundamentação: I. A conferência considerou estarem verificados os pressupostos do recurso, designadamente a oposição de julgados. Este pleno pode decidir em sentido contrário, como resulta do n.º 4 do artigo 692.º do Código de Processo Civil, aqui aplicável por força do disposto no artigo 4.º do Código de Processo Penal. Mas não é caso disso. Os pressupostos formais estão verificados, à luz dos artigos 437.º, n.ºs 1, 2, 4 e 5, e 438.º, n.º 1, ambos do Código de Processo Penal: o recorrente tem legitimidade, os acórdãos em conflito são de tribunal de relação, transitaram em julgado, não eram passíveis de recurso ordinário, e o recurso para fixação de jurisprudência foi interposto do acórdão proferido em último lugar, dentro do prazo de 30 dias a contar do seu trânsito em julgado. E ver-se-á que existe também oposição de julgados. No caso do acórdão recorrido, o Ministério Público deduziu acusação imputando ao arguido a prática de um crime de dano, com fundamento na realização de grafitos em duas composições ferroviárias, que assim teriam sido desfiguradas. Requerida a abertura de instrução, foi proferida decisão de não pronúncia, na consideração de que a conduta do arguido configurava somente uma contra-ordenação da previsão da Lei n.º 61/2013, que teria revogado tacitamente o n.º 1 do artigo 212.º do Código Penal, no segmento da desfiguração por grafitos. O acórdão recorrido, julgando o recurso interposto pelo Ministério Público do despacho de não pronúncia, decidiu que a Lei n.º 61/2013 não descriminalizou qualquer das condutas típicas do crime de dano. No caso do acórdão-fundamento, foi designada data para a audiência de julgamento, no seguimento de acusação deduzida pelo Ministério Público imputando ao arguido a prática de um crime de dano, com base na realização de grafitos na parede de um edifício, que assim teria sido desfigurado. Posteriormente, o juiz do processo julgou extinto o procedimento criminal, com o fundamento de que a Lei n.º 61/2013 descriminalizou a conduta atribuída ao arguido. O acórdão-fundamento, em recurso, confirmou essa decisão, considerando que, efectivamente, a Lei n.º 61/2013 revogou tacitamente o n.º 1 do artigo 212.º do Código Penal, “no segmento relativo à desfiguração da coisa por meio de grafito”. Assim, ambos os acórdãos se defrontaram com mesma questão de direito, que é a de saber se a Lei n.º 61/2013 revogou tacitamente o n.º 1 do artigo 212.º do Código Penal, no segmento da desfiguração, quando esta seja realizada por meio de grafitos, descriminalizando essa conduta. E solucionaram-na em sentido oposto, sem que tenha havido modificação legislativa relevante entre a prolação de um e de outro.
II. É esse conflito jurisprudencial que cabe aqui dirimir. O documento mais próximo que esteve na génese da Lei n.º 61/2013 foi a Proposta de Lei do Governo n.º 158/XII, em cuja Exposição de Motivos se pode ler: “Ao utilizar como suporte paredes de edificações abandonadas, e bem assim quaisquer outras superfícies disponíveis – como as de carruagens de comboios, de metropolitanos, de elétricos, de elevadores, de autocarros ou mesmo de barcos –, independentemente da utilização que se lhes encontra destinada, invadindo os espaços urbanos e pondo em causa a propriedade e os bens históricos, institucionais, culturais, ambientais, bem como a harmonia do ambiente urbano, tais práticas merecem uma resposta mais completa por parte do legislador, nomeadamente através de uma censura adequada do ponto de vista contraordenacional, censura esta que não exclui, evidentemente, a eventual aplicação, nos casos suscetíveis de qualificação como crime, das respetivas disposições da legislação penal. Dotam-se, assim, as autoridades administrativas e policiais de instrumentos que têm em vista melhor prevenir e reprimir estas ações, pretendendo-se devolver o espaço urbano a todos os cidadãos e contribuir para a melhoria do sentimento de segurança das populações” [cf. https://www.parlamento.pt//ActividadeParlamentar /Paginas/DetalheDiplomaAprovado.aspx? BID=17771]. À luz deste texto, parece não haver dúvidas de que o propósito do legislador da Lei n.º 61/2013 foi o de sancionar por via contra-ordenacional práticas censuráveis que, pondo em crise interesses em primeira linha de ordem administrativa, como a qualidade do espaço e do ambiente urbanos, ainda não se encontravam tipificadas como ilícito de qualquer espécie, ficando claro que as condutas até então puníveis como crime continuavam a sê-lo, nos mesmos termos em que o eram até ali, sendo inequívoca a passagem seguinte: “censura esta que não exclui, evidentemente, a eventual aplicação, nos casos suscetíveis de qualificação como crime, das respetivas disposições da legislação penal”. Esse propósito ficou bem expresso no texto da Lei n.º 61/2013, que, depois de no n.º 1 do artigo 1.º definir como seu objecto a previsão do «regime aplicável aos grafitos, afixações, picotagem e outras formas de alteração, ainda que temporária, das características originais de superfícies exteriores de edifícios, pavimentos, passeios, muros e outras infraestruturas, nomeadamente rodoviárias e ferroviárias, vedações, mobiliário e equipamento urbanos, bem como de superfícies interiores ou exteriores de material circulante de passageiros ou de mercadorias, quando tais alterações não sejam autorizadas pelos respectivos proprietários e licenciadas pelas entidades competentes», estabelece no artigo 6.º que, «fora dos casos permitidos, e quando não for aplicável sanção mais grave por força de outra disposição legal», constitui contra-ordenação muito grave, grave ou leve, consoante a intensidade da agressão e a natureza do bem objecto da agressão, «a realização de afixação, grafito e ou picotagem, quando descaracterize, altere, manche ou conspurque a aparência exterior do bem móvel ou imóvel, ou a aparência do exterior ou interior de material circulante de passageiros ou de mercadorias». De acordo com este preceito, qualquer das condutas descritas só é punível como contra-ordenação aí prevista, se não for punível mais gravemente a outro título, designadamente como crime de dano, a significar que a Lei n.º 61/2013 não se intrometeu na delimitação do âmbito de abrangência do tipo criminal de dano, que por via dela não sofreu qualquer redução. Em reforço desta conclusão pode apontar-se a evolução sofrida pelo processo legislativo até à Proposta de Lei n.º 158/XII. De facto, o anteprojecto de proposta de lei, que foi enviado pelo Governo à Procuradoria-Geral da República, para emissão de parecer, através do ofício 3610/2013, de 24/05/2013, no seu artigo 6.º, correspondente ao artigo 6.º da Proposta de Lei n.º 158/XII e da Lei n.º 61/2013, para além de não conter a ressalva de aplicação de sanção mais grave por força de outra disposição legal, previa como uma das modalidades de realização da contra-ordenação a desfiguração. O parecer emitido foi crítico da versão apresentada no anteprojecto, referindo que significaria a descriminalização do dano na modalidade de desfiguração, “passando a existir um mero ilícito de ordenação social”, designadamente no que respeita “a condutas actualmente puníveis com pena de 2 a 8 anos de prisão”, como nos casos do artigo 213.º, n.º 1, alíneas a) a e), do Código Penal. Foi no seguimento desse parecer que nos textos seguintes – Proposta de Lei n.º 158/XII e Lei n.º 61/2013 – deixou de constar a desfiguração como uma das modalidades de realização da contra-ordenação e se introduziu a salvaguarda de aplicação de sanção mais grave por força de outra disposição legal, num inequívoco sinal de que não se pretendeu descriminalizar qualquer das condutas típicas do crime de dano, nomeadamente a de desfiguração, descriminalização que, a acontecer, não se limitaria, como além se alertava, ao dano simples, mas se estenderia ao tipo qualificado do artigo 213.º, construído a partir daquele, transformando crimes puníveis com pena de prisão de 2 a 8 anos em meras contra-ordenações [cf. https://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa.aspx?BID=37808]. De tudo isso, só pode concluir-se que a Lei n.º 61/2013 não visou mais do que abranger e punir a título de contra-ordenação comportamentos associais que, causando prejuízos, não são abrangidos por qualquer dos conceitos através dos quais se realiza o crime de dano ou, sendo-o, não atingem o mínimo de danosidade social pressuposto nesse ilícito, ou, atingindo-o, ocorrem obstáculos à punição, como a ausência de queixa, nos casos em que é exigida para poder haver procedimento, ou a amnistia. Haverá casos em que o comportamento do agente preenche apenas uma contra-ordenação, leve ou grave, e será punido a esse título. Outros, porém, como os de descaracterização, alteração, maculação e conspurcação, de forma permanente e prolongada, pondo em grave risco a restauração do bem, pelo carácter definitivo ou irreversível do meio utilizado para a sua alteração, que preenchem simultaneamente uma contra-ordenação muito grave e um crime de dano, na modalidade de desfiguração, serão punidos apenas como crime, por força da regra da subsidiariedade do regime contra-ordenacional relativamente ao regime penal, expressamente prevista no artigo 6.º da Lei n.º 61/2013, não obstante a diversidade de fundamento de cada um dos ilícitos: enquanto o crime de dano protege o direito de propriedade numa das suas dimensões, ou seja, nas palavras de Costa Andrade, “o direito reconhecido ao proprietário de fazer da coisa (…) o que quiser, retirando dela, no todo ou em parte, as gratificações ou utilidades que ela pode oferecer” (Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, 1999, página 207), a contra-ordenação não tutela, pelo menos directamente, bens jurídicos individuais, mas interesses de índole administrativa, como se anuncia na Exposição de Motivos da Proposta de Lei e resulta desde logo do facto de poder haver contra-ordenação mesmo que a conduta típica seja autorizada pelo proprietário do bem. Nestes últimos casos, se por razões como as indicadas o facto não puder ser punido como crime de dano, será então accionado o regime contra-ordenacional, em nome dos interesses que Lei n.º 61/2013 visa proteger, como afirma Augusto da Silva Dias, a propósito do artigo 20.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, cujo alcance, no que aqui importa, é idêntico ao daquele artigo 6.º: “Neste caso a contra-ordenação tornar-se-á subsidiária do crime, adquirindo autonomia punitiva se por qualquer motivo a pena não for aplicada – por exemplo, em virtude de um obstáculo processual que afecta apenas o crime” (Direito das Contra-Ordenações, Almedina, 2018, página 154). Deve, pois, fixar-se jurisprudência em sentido oposto ao pretendido pelo recorrente, que por isso terá de ser condenado no pagamento das custas, nos termos dos artigos 513.º, n.º 1, e 448.º do Código de Processo Penal.
Decisão: Em face do exposto, os juízes que constituem o pleno das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça, confirmando o acórdão recorrido, fixam a seguinte jurisprudência: «A Lei n.º 61/2013, de 23 de Agosto, não descriminalizou qualquer das condutas típicas do crime de dano, nomeadamente a de desfiguração». As custas são da responsabilidade do recorrente, fixando-se em 3 UC a taxa de justiça.
Lisboa, 26/09/2018 Manuel Braz (relator) * Declaração Voto vencido, por concordar integralmente com as razões alegadas no projecto que não logrou obter vencimento, em que era Relator o Exmo. Conselheiro Souto de Moura (nesta data jubilado), e, por isso, em síntese, explicito transcrição de extracto do mesmo, no qual me louvo:
“Importa adiantar, entretanto, que não foi encontrada jurisprudência relevante, especificamente sobre esta matéria[1].
Dispõe o art. 9.º, do CC, em matéria de interpretação da lei: “1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.”.
O art. 1.º da Lei 61/2013, delimita o seu objecto nos seguintes termos: “1 - A presente lei estabelece o regime aplicável aos grafitos, afixações, picotagem e outras formas de alteração, ainda que temporária, das caraterísticas originais de superfícies exteriores de edifícios, pavimentos, passeios, muros e outras infraestruturas, nomeadamente rodoviárias e ferroviárias, vedações, mobiliário e equipamento urbanos, bem como de superfícies interiores e ou exteriores de material circulante de passageiros ou de mercadorias, quando tais alterações não sejam autorizadas pelos respetivos proprietários e licenciadas pelas entidades competentes conforme nela definido. 2 - A presente lei não se aplica: a) À afixação e à inscrição de mensagens de publicidade e de propaganda, nomeadamente política, regime consagrado na Lei n.º 97/88, de 17 de agosto, alterada pela Lei n.º 23/2000, de 23 de agosto, e pelo Decreto-Lei n.º 48/2011, de 1 de abril; b) Às formas de alteração legalmente permitidas.”
O art. 2.º, da Lei referida, estabelece as definições de “Afixação”, “Grafitos”, “Mobiliário urbano” e “Picotagem”, interessando-nos a respectiva al. b) reportada aos “Grafitos”, e que considera como tal, “(…) os desenhos, pinturas ou inscrições, designadamente de palavras, frases, símbolos ou códigos, ainda que tenham caráter artístico, decorativo, informativo, ou outro, efetuados através da utilização de técnicas de pintura, perfuração, gravação ou quaisquer outras que permitam, de uma forma duradoura, a sua conservação e visualização por terceiros, apostos nas superfícies a que se refere o n.º 1 do artigo anterior e que defrontem com a via pública, sejam elas de acesso público ou de acesso restrito, ou nela se situem”.
Por sua vez, estabelece o art. 6.º do mesmo diploma, em sede de previsão de contra-ordenações: “ 1 - Fora dos casos permitidos, e quando não for aplicável sanção mais grave por força de outra disposição legal, a realização de afixação, grafito e ou picotagem constitui: a) Contraordenação muito grave, quando descaracterize, altere, manche ou conspurque, de forma permanente ou prolongada, a aparência exterior do bem móvel ou imóvel, ou a aparência do exterior ou interior de material circulante de passageiros ou de mercadorias, pondo em grave risco a sua restauração, pelo caráter definitivo ou irreversível do meio utilizado para a sua alteração; b) Contraordenação grave, quando descaracterize, altere, manche ou conspurque, de forma prolongada, a aparência exterior do bem móvel ou imóvel, ou a aparência do exterior ou interior de material circulante de passageiros ou de mercadorias, mas sendo reversível por via da simples limpeza ou pintura; c) Contraordenação leve, quando descaracterize, altere, manche ou conspurque a aparência exterior do bem móvel ou imóvel, ou a aparência do exterior ou interior de material circulante de passageiros ou de mercadorias, mas sendo reversível por via da simples remoção, limpeza ou pintura. 2 - As intervenções a que se referem as alíneas b) e c) do número anterior que descaracterizem, alterem, manchem ou conspurquem a aparência de monumentos, edifícios públicos, religiosos, de interesse público e de valor histórico ou artístico, constituem sempre contraordenação muito grave.”.
O art. 7º da Lei prevê a apreensão e perda de equipamentos e materiais que tenham sido usados ou que se destinavam a ser usados nas actividades proibidas pela Lei, o art. 8º trata de matéria processual, designadamente pelo que respeita à instrução dos processos e aplicação das coimas, o art. 9º estabelece os montantes, em euros, das coimas aplicáveis para as contra-ordenações leves (100 a 2 500), graves (150 a 7 500) e muito graves (1 000 a 25 000), o art. 10º estabelece as sanções acessórias, o art. 11º prevê a suspensão de execução da sanções, o art. 12º a prática das contra-ordenações por parte e menores em geral e por menores de entre 12 a 16 anos de idade, quando o facto constitua simultaneamente crime, e o art. 13º reporta-se aos custos com os encargos da remoção e ou reparação das formas de alteração de que a Lei se ocupa.
Quando uma lei não menciona ela mesma o tempo da sua vigência (o que faria da mesma uma lei temporária), tal vigência pode cessar através da revogação, operada por outra lei posterior de valor hierárquico igual ou superior. Resulta, então, a revogação, da nova manifestação de vontade do legislador num sentido contrário, ou seja, diferente e incompatível com o da lei que estava em vigor. A determinação da extinção da vigência pode ser implícita ou explícita o que se traduz em revogação expressa ou tácita, isto quanto à forma da revogação.[2] Expressa, quando a lei revogatória determina explicitamente a cessação da vigência da lei revogada, e tácita quando não ocorre essa verbalização, na lei posterior, e a cessação da vigência advém da mera incompatibilidade das disposições da lei nova com as disposições da lei anterior ou leis anteriores. E quando é todo o conteúdo da lei ou leis anteriores que se suprime a revogação é total, surgindo como revogação parcial a supressão apenas de uma parte da lei anterior. Mas, ainda quanto ao âmbito da revogação, esta pode ir para além de uma concreta lei que se revoga e atingir todo um conjunto legislativo. Acontece, quando o legislador pretendeu com a lei nova regular por completo uma matéria, um instituto, um conjunto de relações ou situações jurídicas. Assim, toda a legislação anterior regulando essa matéria, instituto ou conjunto de relações ou situações jurídicas fica afastada, mesmo sem menção nesse sentido da lei nova, pu incompatibilidade com as disposições da lei antiga. A própria revogação pode ser definitiva se é para sempre, ou suspensiva se apenas paralisa a sua aplicação por certo período, mantendo a lei antiga em estado latente, até que no termo da vigência da lei nova aquela ressurja e retome a sua primitiva aplicabilidade.[3] É bom de ver que, a seguir a tese da revogação do acórdão fundamento, teremos que nos ater por um lado à forma tácita de revogação e por outro a uma revogação meramente parcial. Na verdade, a Lei 61/2013, não menciona nenhuma norma ou lei que concretamente pretendesse revogar e concretamente o art. 212.º, do CP. Acresce que, no seu nº 1, este preceito fala em “destruir”, “danificar”, “desfigurar” e “tornar não utilizável” coisa alheia. Assim, só interessa que nos centremos no segmento respeitante à desfiguração da coisa, especificamente por meio de grafito, porque é aí que poderia surgir incompatibilidade, tendo em conta as previsões jurídicas aplicáveis ao concreto comportamento levado a cabo, tanto no acórdão recorrido como no acórdão fundamento.
Do que ficou dito, resulta que a revogação tácita só actua na estrita medida da incompatibilidade ou contrariedade: é revogado tudo aquilo que for incompatível com a lei nova; tudo o mais continua a vigorar. Lei nova e lei antiga coexistirão, conjugando-se de maneira a formar um todo. E citando Baptista Machado: “O intérprete recorrerá a tal forma de interpretação, é claro, apenas quando só por essa via seja possível alcançar o fim visado pelo legislador. A interpretação revogatória ou ab-rogante terá lugar apenas quando entre duas disposições legais existe uma contradição insanável.” [4]. Ou seja, face à inexistência de norma revogatória expressa, por parte da Lei 61/2013, de 23-08, quanto ao art. 212.º, do CP, no segmento respeitante à desfiguração da coisa por meio de grafito, apenas se poderá proceder a uma tal interpretação revogatória do art. 212.º, do CP, se do labor interpretativo se verificar existir, entre as duas disposições legais, uma contradição insanável ou uma impossibilidade de conciliação.
Como refere o Acórdão de Fixação de Jurisprudência (AFJ) nº 7/2001, de 27de Abril, (publicado no DR 1.ª série, n.º 105, de 31 de Maio), “O bem jurídico, como critério e fundamento de tutela penal (concepção teleológico-funcional e racional do bem jurídico), assume um conteúdo material de corporização de valores que possam servir de indicador útil do conceito material de crime.(…)” A inserção sistemática do art. 212.º e os seus elementos típicos mostram que o bem jurídico protegido pelo crime de dano é a propriedade, sendo certo que o conceito de propriedade terá aqui de ser entendido, não num significado puramente civilístico (com o conteúdo do art. 1305.º, do CC), mas antes num significado próprio e autónomo para efeitos criminais, como “poder de facto sobre a coisa, com fruição das utilidades da mesma” [5]. Concluiu o referido AFJ que está então em causa, “(…) a relação jurídica entre uma pessoa e uma coisa; a relação do homem com as suas coisas e as coisas dos outros, enquanto permissão de fruição e proibição de intromissão. (…) Nesta dimensão, o dano corresponde a uma certa forma de agressão, ilegítima e, por isso, susceptível de censura jurídico-penal, ao estado actual das relações correctamente estabelecidas, dos homens com os bens materiais, valendo, nesta perspectiva, o valor de uso (mais relevante no domínio das coisas móveis, onde existe uma proliferação acentuada de tipos contratuais), de forma que, existindo um dano, quem sente o sacrifício da privação da coisa é quem dela podia retirar utilidades.”. A conduta típica do dano, em qualquer uma das suas quatro modalidades (destruir, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheio) tem ainda de atingir um limiar mínimo de danosidade social, de modo que só as lesões minimamente significativas interessam ao preenchimento do tipo. Questão mais difícil que a da aceitação do princípio será, porém, “definir a linha divisória que o concretiza e mais inseguro [é] levá-la à prática. Em tese, deve assinalar-se que se trata de uma questão de facto e, como critério, deve assentar-se na relevância típica das lesões não reparáveis ou só reparáveis com custos significativos de tempo, trabalho ou dinheiro.” [6]. Uma vez que estará apenas em causa a eventual revogação tácita do crime de dano no que respeita à concreta acção de “desfigurar”, cumpre precisar o que é que se encontra compreendido em tal acção. De acordo com o AFJ 7/2011 atrás citado, “(…)«desfigurar» traduz uma ofensa irremediável da estética da coisa, mesmo ainda que a sua estrutura não seja afectada, e a alteração da imagem exterior da coisa, relativamente àquela que possuía originariamente”. E do mesmo modo, Costa Andrade diz-nos a propósito que aqui se incluem “os atentados à integridade física que alteram a imagem exterior da coisa, querida pelo respectivo proprietário” [7]. Concluindo, dir-se-á que o bem jurídico protegido pelo crime de dano é o património, entendido num sentido lato, próprio e autónomo para efeitos criminais. É um crime que visa proteger a relação jurídica entre uma pessoa e uma coisa, a relação do homem com as suas coisas e as coisas dos outros, com vista a proporcionar a fruição da coisa e a proibição da interferência de outrem nessa fruição. E quanto à acção de “desfigurar”, para efeitos do tipo objectivo do crime de dano, consiste ela numa ofensa da estética da coisa, numa alteração da imagem exterior da coisa, relativamente àquela que possuía originariamente e que o fruidor da coisa queria que permanecesse. Certo que, para que tal conduta consubstancie a prática do crime de dano, a mesma tem de atingir um limiar mínimo de danosidade social.
Conforme se pode ler na Exposição de Motivos da Proposta de Lei que deu origem à Lei 61/2013, [8] foi intenção do legislador, com este diploma, combater “O vandalismo e a sua associação a uma utilização desregulada dos espaços públicos, ao desrespeito pelo património, pela propriedade e pela privacidade dos particulares”. Considera-se que “De entre os atos de vandalismo mais visíveis e invasivos encontram-se as mais diversas formas de grafitos” que não só degradam o ambiente urbano, como também contribuem para a “construção do sentimento de insegurança das populações.”. Pode-se, ainda, ler em tal Exposição de Motivos que: “Ao utilizar como suporte paredes de edificações abandonadas, e bem assim quaisquer outras superfícies disponíveis – como as de carruagens de comboios, de metropolitanos, de elétricos, de elevadores, de autocarros ou mesmo de barcos –, independentemente da utilização que se lhes encontra destinada, invadindo os espaços urbanos e pondo em causa a propriedade e os bens históricos, institucionais, culturais, ambientais, bem como a harmonia do ambiente urbano, tais práticas merecem uma resposta mais completa por parte do legislador, nomeadamente através de uma censura adequada do ponto de vista contraordenacional, censura esta que não exclui, evidentemente, a eventual aplicação, nos casos suscetíveis de qualificação como crime, das respetivas disposições da legislação penal.” Dotam-se, assim, as autoridades administrativas e policiais de instrumentos que têm em vista melhor prevenir e reprimir estas ações, pretendendo-se devolver o espaço urbano a todos os cidadãos e contribuir para a melhoria do sentimento de segurança das populações.” O art. 1.º da Lei 61/2013, delimita o seu objecto nos termos já referidos (supra, 3.1.4.) do que resulta que nele se inclui, para o que agora mais releva, “(…) o regime aplicável aos grafitos”, como “formas de alteração, ainda que temporária, das caraterísticas originais de superfícies exteriores de edifícios, (…) bem como de superfícies interiores e ou exteriores de material circulante de passageiros ou de mercadorias, quando tais alterações não sejam autorizadas pelos respetivos proprietários e licenciadas pelas entidades competentes conforme nela definido”. Também já se transcreveu a definição de “grafitos”, do art. 2.º, al. b), da Lei (igualmente, supra, 3.1.4.). Assim, fica claro que se visou proteger, como bens jurídicos, um feixe de interesses que dizem respeito à utilização regulada dos espaços públicos, ao respeito pelo património e pela propriedade pública e privada, à privacidade, à protecção do ambiente, designadamente urbano, e ainda ao próprio sentimento de segurança das populações. Estão em causa superfícies visíveis pelo público em geral e que não têm que ser forçosamente interiores, como aliás de explicita a propósito do “material circulante”. Também é certo que a Lei quis estabelecer o regime aplicável, não só numa vertente preventiva como também repressiva, entre o mais, aos “grafitos” não autorizados pelos proprietários e licenciados pelas entidades competentes.
O art. 6º da Lei, ao prever as contra-ordenações reputadas de muito graves, graves ou leves, condicionou a sua aplicação, em primeiro lugar, ao facto de se estar “Fora dos casos permitidos”. Depois, exigiu que não fosse “aplicável sanção mais grave por força de outra disposição legal”. Finalmente, as sanções previstas acompanham a gravidade dos efeitos do comportamento.
Existe um segmento comum a todas as contra-ordenações em apreço, que se reporta à acção do agente, “quando descaracterize, altere, manche ou conspurque (…) a aparência exterior do bem móvel ou imóvel, ou a aparência do exterior ou interior de material circulante de passageiros ou de mercadorias”. A seguir, o legislador estabeleceu uma gradação de gravidade do comportamento através dos seus efeitos. As contra-ordenações muito graves implicam que tais efeitos tenham lugar “de forma permanente ou prolongada (…) pondo em grave risco a sua restauração, pelo carácter definitivo ou irreversível do meio utilizado para a sua alteração;”. Está portanto em causa a impossibilidade ou extrema dificuldade em devolver a superfície atingida à sua anterior configuração. As contra-ordenações graves implicam que a alteração da aparência tenha lugar “de forma prolongada (…) mas sendo reversível por via da simples limpeza ou pintura;”. Aqui somos já confrontados com a reversibilidade do estrago, que porém se manteria prolongadamente. As contra-ordenações leves reclamam apenas que ocorra essa alteração da aparência “mas sendo reversível por via da simples remoção, limpeza ou pintura.” Trata-se então de uma alteração que pode ser pouco duradoura e que pode ser feita desaparecer facilmente. Conjugando estes critérios de gravidade do comportamento, com a pluralidade de bens jurídicos que as contra-ordenações querem proteger, vemos que o legislador foi sensível à dificuldade de remoção do estrago, o que significa que atentou na despesa a fazer para lograr essa remoção. No prejuízo patrimonial portanto. Daí que se nos afigure impensável que não tenha sido levado em conta, também (e sublinhamos, também), o dano causado, tal como releva no crime de dano do art. 212º, nº 1 do CP. O que, adiante-se desde já, implica nesse particular uma duplicação de protecção do mesmo bem jurídico. Acresce que surgirá como redutor dizer-se, como se disse no acórdão recorrido, que o diploma apenas pretendeu “regular/legalizar a actividade em causa independentemente do dano causado”. Por certo que a acção de “grafitar” (para além da “afixação”, “picotagem” ou “outras formas de alteração”), foi sujeita a regras de licenciamento e autorização. Estas porém constam dos arts. 3º e 4º da Lei, que ao todo tem quinze artigos. No conjunto do seu articulado, fica bem patente a preocupação em dizer o que o cidadão pode fazer e como, neste campo de actuação, mas ao lado daquilo que cabe às autoridades levar a cabo, para prevenir e reprimir o que se mostrar proibido. Finalmente, se o segmento “desfigurar”, do nº 1, do art. 212º, do CP, facilmente se faz coincidir com o segmento “realização de (…) grafito” do nº 1 do art. 6º da Lei 61/2013, não colherá o argumento de que sempre sobrará um “quid plus” para a previsão do crime, que se traduziria na necessidade de a sua prática atingir um limiar mínimo de danosidade social. Elemento que não é exigido pelas contra-ordenações previstas no art. 6º citado. Sublinhe-se que nada impede que esse limiar mínimo se introduza também em matéria de responsabilidade contra-ordenacional, porque se trata de requisito que está omisso na lei. Seja como for, o que nos pode ser proposto para vencer a dificuldade de medir o limiar mínimo de danosidade social é “a relevância típica das lesões não reparáveis ou só reparáveis com custos significativos de tempo, trabalho ou dinheiro.” Ora, este indicador vai exactamente de encontro ao que foi usado como critério de aferição da gravidade das contra-ordenações. Portanto, mesmo que de facto se aceitasse haver contra-ordenações “leves” que nunca integrariam o crime de dano, já no que se refere às “graves” e “muito graves” a sobreposição com o crime de dano por desfiguração sempre seria inevitável.
Claro que a punição pela prática de contra-ordenação terá que ocorrer, nos termos do nº 1, do art. 6º, da Lei 61/2013, “Fora dos casos permitidos”. Terá que ser portanto um comportamento ilícito. No entanto, esta menção do legislador relativa a uma exigência óbvia, enquadra-se na consideração de que o diploma, visto no seu conjunto, não se limita a regular e prevenir a actividade de “grafitagem”, entre outras. Preocupou-se também com a componente sancionatória repressiva, o que inevitavelmente nos aproxima do crime de dano por desfiguração da coisa do art. 212º, nº 1, do CP.
Por último, uma nota sobre o elemento “quando não for aplicável sanção mais grave por força de outra disposição legal”, do nº 1 do art. 6º da Lei 61/2013. Esta condição, que entre o mais nos arreda da disciplina das contra-ordenações ambientais, em que o agente pode ser responsabilizado pelo crime e cumulativamente pela contra-ordenação estabelece um regime de subsidiariedade para a contra-ordenação. O labor interpretativo a levar a cabo não pode perder de vista, que está aqui ao serviço de se saber se ocorreu ou não uma revogação tácita parcial. Em causa, portanto, a interpretação do art. 6º, nº 1 da Lei 61/2013, na sua potencialidade revogatória. Assim sendo, importa centrar-nos no que é que revoga o quê, e como já se fez notar, só nos interessa, no caso, apurar se o art. 6º, nº 1 da Lei 61/2013, no seu segmento “realização (…) de grafito”, revoga o nº 1 do art. 212º do CP no respectivo segmento “desfigurar”. Porque são só estes os segmentos que interessaram aos acórdãos recorrido e fundamento, para gerarem soluções opostas quanto à mesma questão de direito, a saber, a da revogação. Tem-se entendido que a previsão do nº 1, do art. 212º, do CP, usando as expressões “destruir, no todo ou em parte” e “danificar”, teve em mente a alteração da substância da coisa. Com a palavra “desfigurar” quis-se aludir à modificação da aparência, e com a expressão “tornar não utilizável”, pretendeu-se aludir à afectação da função da coisa [9]. Quando vemos a definição legal de “grafito”, do art. 2º, al. b), da Lei 61/2013 (contraposta aliás à de “afixação” ou de “picotagem”), temos que concluir que a realização dos ditos grafitos desfigura sempre a superfície em que são feitos. Desfigurar é alterar o aspecto, a figura de algo, “A aparência exterior desejada pelo sujeito passivo cuja utilidade não é posta em causa de forma irreversível com a actividade”.[10] E quanto à realização do grafito, o efeito pode ir para além disso, mas desfigurar desfigura sempre. Se desfigurar constitui um dano na medida em que altera o aspecto exterior da coisa, a “grafitagem” desfigura sempre, e então estaria sempre aberto o caminho, por essa porta, à tipificação do crime de dano. Quer dizer que, neste âmbito, a contra-ordenação nunca teria espaço para ser aplicada subsidiariamente, porque haveria sempre crime. Só teria lugar uma compatibilidade na aplicação, ora da previsão penal, ora da previsão contra-ordenacional, se pudessem conceber-se umas situações em que seria de aplicar o art. 212º do CP, e outras o art. 6º da Lei 61/2013, estando em causa sempre só a desfiguração por meio de grafito. Ora, a repressão da realização de grafito integra claramente, em face da punição da desfiguração em geral, prevista no crime de dano, uma norma especial e posterior. Assim sendo, já que, a nosso ver, pelo menos o segmento “desfigurar”, do nº 1, do art. 212º, do CP, sempre sobrelevaria, quando contraposto ao segmento “realização (…) de grafito” do art. 6º da Lei 61/2013, terá que concluir-se ter ocorrido revogação.
O elemento literal de interpretação, sobretudo quando centrado no sentido das expressões “desfigurar” e “realização de grafito”, cujo conteúdo já está suficientemente referido atrás, conforta a posição assumida. O elemento sistemático é aqui essencial enquanto visão global unitária do sistema, desde logo porque é da contraposição de normas que pode concluir-se a revogação de uma por outra. Dir-se-ia que em todo o raciocínio levado a cabo ele não pôde deixar de estar presente. Depois, para além do art. 6º, da Lei 61/2013, é toda a disciplina da mesma Lei que nos revela uma pretensão de regulamentação global do “vandalismo” [11] em questão, nas vertentes da autorização e licenciamento, prevenção, repressão, incluindo responsabilização de menores, remoção dos estragos, processo, ou destino do montante das coimas. Quanto ao carácter subsidiário das contra-ordenações previstas tal não significa mais, a nosso ver, que a introdução de uma válvula de segurança para situações em que a acção “descaracterize, altere, manche ou conspurque” [12] e, para além disso, atinja a substância da coisa ou impeça a sua função. [13] O elemento histórico de interpretação não representa um argumento suficientemente importante para sustentar a tese da não revogação. Poderá dizer-se que, no anteprojecto da proposta de lei,[14] o art. 6º continha a expressão “desfigure”, que depois foi eliminada. Mas esta expressão integrava-se num conjunto assim composto: “descaracterize, altere, desfigure, adultere, manche ou conspurque”. A redacção que passou para a Lei foi: “descaracterize, altere, manche ou conspurque”. Eliminou-se não só “desfigure” como “adultere” e percebe-se bem porquê: “descaracterize” ou “desfigure”, significam praticamente o mesmo, tal como “altere” e “adultere” são conceitos demasiado próximos. A multiplicação de expressões complicava, sem se obviar a uma boa dose de redundância. Quanto à introdução na Lei 61/2013, da expressão que salvaguarda a possibilidade de aplicação de sanção mais grave, por força de outra disposição legal, e que na aludida Exposição de Motivos já se referia,[15] tal não constitui razão que abale o antes defendido. Na verdade, foi à data pedido Parecer à Procuradoria- Geral da República (PGR) [16], pedido que alertava para as “dificuldades de relacionamento com o ordenamento penal vigente” a propósito da previsão na lei penal da conduta “desfigurar”. Refere-se, em tal parecer: “Ora, com a redacção introduzida pelo art.º 6.º do diploma legal em apreciação, claramente há uma revogação tácita do art. 213.º, n.º 1, als. a) a e), na parte relativa à actividade de desfiguração, passando a existir um mero ilícito de ordenação social numa actividade que seria, obrigatoriamente, punida com pena de prisão compreendida entre os 2 e os 8 anos (2). (…) Vislumbra-se, claramente, no diploma legal em apreciação, que o legislador pretende intervir em acções menos graves, e cuja natureza é de difícil integração no conteúdo conceptual da prática do crime de dano, o qual já se caracteriza pela previsão de modalidades de acção de maior gravidade e que atingem o âmago e as características inerentes ao próprio bem.” Saber se esta preocupação com a revogação recebeu do legislador uma resposta cabal que a afastasse só pode receber uma resposta negativa. Mas sempre se dirá que, em termos de teleologia da norma, especificamente do art. 6º da Lei 61/2013, no segmento relativo aos grafitos, uma vez afastada a possibilidade de responsabilização penal nos termos aludidos, fica um largo espectro de aplicação de contra-ordenações para os casos que afinal são os mais frequentes. Agiliza-se o sistema com a participação da autoridade administrativa, aplica-se um conjunto de normas articuladas entre si e a degradação de edifícios ou carruagens, porque é disso que principalmente se trata, pode ser combatida. Basta pensar que a remoção ou reparação que se imponha poderem ser levadas a cabo logo, por serviços públicos, se bem que, naturalmente, à custa dos responsáveis. A conjugação destes elementos de interpretação aponta a nosso ver para a inevitabilidade de se ver revogado o art. 212º, nº 1 do CP no segmento relativo à desfiguração, quando realizada por meio de grafito, acção prevista no art. 6º da Lei 61/2013.”
Por conseguinte, concederia provimento ao recurso; e fixaria a seguinte jurisprudência: “A Lei 61/2013, de 23 de Agosto, revogou tacita e parcialmente o nº 1, do art. 212.º, do Código Penal, estando em causa a simples desfiguração de uma coisa por meio de grafito”
Lisboa, 26 de Setembro de 2018 Pires da Graça ----------------------- [2] Cf. Eduardo Norte Santos Silva in “Introdução ao Estudo do Direito”, I vol., Sintra 1998, págs. 171 e segs., que neste particular seguiremos. [15] Aí se diz quanto á responsabilidade contra-ordenacional, “censura esta que não exclui, evidentemente, a eventual aplicação, nos casos suscetíveis de qualificação como crime, das respetivas disposições da legislação penal.” |