Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3262/07.9TVLSB.L1
Nº Convencional: 2ª SECÃO
Relator: JOÃO BERNARDO
Descritores: JOGO
OBRIGAÇÃO
NATUREZA JURÍDICA
CLÁUSULAS CONTRATUAIS GERAIS
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 06/17/2010
Votação: MAIORIA COM 2 VOTOS DE VENCIDO
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA
Sumário :
1 . O jogo de fortuna e azar, quando lícito nos termos da “Lei do Jogo”, encerra um contrato válido gerador de obrigações jurídicas e não naturais.
2 . A natureza jurídica das obrigações é extensiva às “Modalidades Afins do Jogo de Fortuna e Azar e Outras Formas de Jogo” previstas em tal lei.
3 . Nestas se compreendendo os concursos televisivos.
4 . Nestes concursos, a entidade promotora deve comunicar aos concorrentes, adequadamente e com a antecedência necessária, as cláusulas contratuais em ordem a que, tendo em conta a importância do contrato e a complexidade daquelas, torne possível o seu completo e efectivo conhecimento por quem use de comum diligência.
5 . Num concurso televisivo, com uma cláusula que veda a participação a quem tiver vínculo de parentesco com responsáveis, empregados ou colaboradores da empresa de televisão, a comunicação, por parte desta, não fica preenchida, nos termos exigidos, se:
Numa fase liminar, em que foi testada a cultura geral duma concorrente, lhe foi comunicado pela empresa que tinha ficado apurada para participar no concurso e que devia apresentar-se nos dias e local indicados em tal comunicação;
No dia aprazado, a 45 minutos de entrar no concurso, lhe foi entregue um texto, para assinar, com um cabeçalho “Atenção, não assine este documento antes de o ler com atenção…” e 25 cláusulas, cada uma tendo, em média, 7 ou 8 linhas, entre elas uma a dizer “Declaro que não tenho qualquer vínculo de parentesco com os responsáveis, empregados os colaboradores das seguintes empresas…” tendo um elemento da entidade promotora estado presente e referido que lessem com toda a atenção, antes de assinarem, disponibilizando-se para qualquer esclarecimento.
A concorrente assinou esse texto, tendo o concurso sido adiado por dois dias;
No dia novamente fixado, foi repetida a entrega do documento em idênticas circunstâncias;
A concorrente assinou-o convencida de que se tratava duma mera formalidade necessária para que a empresa pudesse transmitir o programa, não tendo lido as cláusulas nele insertas.
8 . A recusa de pagamento do montante de € 65.000 correspondentes ao prémio ganho em tal concurso, frustrando, embora, os planos da concorrente em, com tal dinheiro, fazer face a alguns problemas financeiros e fazer uma viagem que há muito almejava e, bem assim, impondo o recurso à via judicial para ser paga, não é suficientemente grave para merecer a tutela do direito, não determinando, por isso, o nascimento da obrigação de indemnização por danos não patrimoniais.
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:

I -
AA intentou a presente acção declarativa, sob a forma ordinária, contra:

Radiotelevisão Portuguesa – Serviço Público de Televisão SA e
NPE – Novas Produções de Espectáculos SA.

Alegou, em síntese, que:

As rés emitiram um programa denominado “A Herança”, o qual consistia num concurso com perguntas e respostas, cabendo ao vencedor um prémio em dinheiro.
Candidatou-se e, após ter superado uma selecção inicial, foi apurada.
Dirigiu-se às instalações onde seria gravado o concurso, no dia aprazado, mas o mesmo não se realizou, designando-se nova data.
Nessa nova data, antes da gravação do concurso, foi-lhe dado um documento para assinar, dizendo um elemento da produção que tal se destinava a permitir a utilização da imagem dela.
Assinou o documento convencida de que se tratava de mera formalidade para utilização da imagem, sem contudo ler o mesmo, não lhe tendo sido explicado o respectivo conteúdo nem, de resto, aos demais concorrentes. Além disso, o documento foi entregue antes de se iniciar a gravação, quando ela, autora, estava a tentar controlar os nervos.
Iniciou-se o programa e superou as várias etapas, tendo ganho o prémio final de € 65.000,00. Foi-lhe, então, dito que o programa iria ser emitido pela RTP na 2ª feira subsequente.
Porém, a ré não transmitiu tal programa.
Contactou as rés e foi informada de que o programa não seria emitido, nem o prémio pago, pelo facto de ela, autora, ter uma familiar na RTP e ter omitido tal facto.
Com efeito, uma irmã sua trabalha para a RTP, no Porto, na área da informação. Mas, no regulamento do concurso, não existe a norma em causa. E no documento que lhe foi dado a assinar foi-lhe dito que apenas estariam causa os direitos de imagem.
Pediu, em conformidade:
A condenação solidária das rés a pagarem-lhe € 65.000,00, bem como o montante de € 25.000,00 a título de danos não patrimoniais, com acréscimo de juros.
A RTP contestou, alegando que a autora tinha plena consciência do documento que assinou, até porque já havia assinado outro idêntico. De qualquer modo, os elementos da produção alertaram-na, assim como aos demais concorrentes, para a necessidade de lerem o documento no qual se previa que, caso fosse familiar de algum dos funcionários das rés, deveria indicar tal situação.
Apesar disso, não declarou que a sua irmã trabalhava na RTP. Perante tais falsas declarações, não podia vir a ser considerada vencedora do concurso.
Pede ainda, em sede de reconvenção, uma indemnização de montante igual ao do preço do programa que teve de pagar à 2.ª ré, ou seja, € 22.150,00.

II -
O processo seguiu os seus termos, realizando-se o julgamento e vindo a ser proferida sentença que julgou quer a acção, quer a reconvenção improcedentes.

III –
Apelou a autora e o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu julgar o recurso parcialmente procedente, condenando-se as rés RTP e NPE- Novas Produções de Espectáculos S.A. a pagarem-lhe € 65.000,00, acrescidos de juros de mora à taxa legal desde data de citação e até integral pagamento e absolvendo-as do demais peticionado.

IV –
Pedem revista:
Cada uma das rés;
A autora (esta subordinadamente).

Vamos conhecer primeiro do recurso da Rádio e Televisão de Portugal, SA.

V -
Conclui ela as alegações do seguinte modo:

1. O passatempo em causa é uma modalidade afim do jogo de fortuna ou azar, a que se aplica o regime do Decreto-Lei n.º 422/89, de 2 de Dezembro.
2. Assim, nos termos do artigo do artigo 1245.°, 2.ª parte, do CC, constitui somente fonte de obrigações naturais, pelo que, nos termos do artigo 402.°, do mesmo diploma, o seu cumprimento não é judicialmente exigível.
3. No caso de o enquadramento jurídico acima exposto não ser procedente, o que só por mero dever de patrocínio jurídico se equaciona, sem conceder, admitindo-se que a Lei das Cláusulas Contratuais se aplica analogicamente, na parte respeitante aos deveres de informação - ao acordo de participação - não é defensável o entendimento de que esses deveres tenham sido desrespeitados, uma vez que, se por um lado se exige ao proponente que dê às cláusulas a visibilidade e cognoscibilidade adequadas, por outro, exige-se ao aderente o dever de procurar conhecer o teor dessas cláusulas de forma diligente.
4. Não faz sentido que quem nem sequer procedeu à leitura das referidas cláusulas, apesar de expressamente alertado para o fazer, venha, em momento posterior, alegar que as mesmas não cumprem o disposto no diploma acima mencionado.
5. Nem todo o clausulado do concurso tem que constar do anúncio, uma vez que esse encargo colocaria em causa as finalidades e eficácia do mesmo.
6. Assim, nada obsta a que parte do clausulado atinente às regras de participação no concurso seja dado a conhecer em momento ulterior.
7. Não faz sentido o argumento utilizado pelo Tribunal recorrido que entende dever- se aplicar o disposto no artigo 22.°, alínea c), da Lei das Cláusulas Contratuais Gerais ao acordo de participação entregue algum tempo antes da realização das gravações do programa.
8. Tal circunstância exige a demonstração da realização de um investimento de confiança que mereça ser tutelado.
9. O investimento de confiança foi interrompido no momento em que a Recorrida não diligenciou no sentido de procurar compreender (sequer ler) o teor das cláusulas que lhe foram apresentadas em tempo oportuno, porque actualizadas à necessidade de garantir o zelo e a imparcialidade dos concorrentes.
10. Cláusulas que permitam ao proponente decidir unilateralmente pela passagem do concurso na televisão, já foram entendidas pelo Supremo Tribunal de Justiça como sendo cláusulas próprias do concurso público.

Contra-alegou a autora, rebatendo a argumentação da recorrente.

VI –
Ante as conclusões das alegações, a primeira das questões que se nos deparam consiste em saber se a obrigação cujo cumprimento a autora pede tem natureza de obrigação natural, não sendo, por isso, exigível judicialmente.
Entendendo-se que é exigível, há ainda que tomar posição sobre se:
Não foi violado o regime das cláusulas contratuais gerais;
Impendia sobre a autora o dever de ler a cláusula que a obrigava a declarar que tinha uma irmã a trabalhar para a RTP.

VII –
Vem provada a seguinte matéria de facto:

1) A 1.ª Ré é uma empresa de capitais públicos e tem a designação de “Rádio e Televisão de Portugal S.A.” cujo objecto social consiste no exercício da actividade de televisão, nos domínios da emissão e produção de programas, bem como na exploração do serviço público de televisão.
2) A 2ª Ré é uma sociedade comercial que se dedica à concepção, produção e realização de conteúdos televisivos para posterior transmissão por outras empresas.
3) No exercício das suas actividades, a 2ª Ré concebeu, produziu e realizou e a 1ª Ré emitiu um concurso televisivo denominado “ A Herança”, transmitido pelo canal 1 da RTP.
4) Esse concurso consistia numa competição com questões de cultura geral, dividido em cinco rondas e um jogo final, tudo nos termos do regulamento do mesmo, junto a fls. 18 a 23 dos autos.
5) A A. candidatou-se ao concurso e foi contactada pela produção do concurso, que lhe comunicou que a sua candidatura tinha sido aceite e que tinha de fazer as provas de selecção.
6) No dia 18/4/2006 a A. deslocou-se a um centro de reuniões, situado na zona de Santos, em Lisboa, onde efectuou as referidas provas de selecção, que testavam a sua cultura geral.
7) Passados dois dias, a A. foi informada que tinha ficado apurada para participar no concurso e que devia apresentar-se no dia 8 de Maio nos estúdios da Edipim em Albarraque.
8) No dia 8/5/2006 a A. deslocou-se a tais estúdios para participar no concurso, mas a prova não chegou a iniciar-se, tendo o concurso sido adiado para o dia 11 do mesmo mês.
9) No dia 11/5/2006 a A. deslocou-se novamente aos estúdios da Edipim.
10) No dia 11/5/2006, um membro da direcção da Ré entregou à A., para ser assinado por esta, o documento cuja cópia consta de fls. 25 a 28 dos autos, do qual consta, além do mais, o seguinte: “ATENÇÃO: NÃO ASSINE ESTE DOCUMENTO ANTES DE O LER COM ATENÇÃO (...) ACORDO DE PARTICIPAÇÃO E DE CEDÊNCIA DE DIREITOS”, seguindo-se a identificação da A. e prosseguindo: “venho por este meio acordar a minha participação no passatempo de televisão com o nome “A Herança” (...) “Pelo presente instrumento são acordadas as condições de participação do signatário nas edições do passatempo “A Herança”, nos termos das cláusulas seguintes: 1. declaro que aceito participar no passatempo “A Herança”. 2. Declaro que sou maior de dezoito anos e que não sou empregado, membro, agente, que não tenho qualquer interesse financeiro e que não tenho qualquer vínculo de parentesco com os responsáveis, empregados ou colaboradores das seguintes empresas: RTP – Rádio Televisão de Portugal, com sede na Avenida Marechal Gomes da Costa, 37, 1849-030 LISBOA e NPE – Novas Produções de Espectáculo S.A. com sede em Estrada de Paço de Arcos nº 26, Paço de Arcos (...) 8. Declaro prestar o meu acordo relativamente a todas as condições constantes neste acordo e à sua assinatura (...) 14. Declaro que todas as informações referentes à minha pessoa mencionadas neste acordo são verdadeiras e que quaisquer prémios que me possam ser devidos serão recebidos por mim de acordo com as instruções, às quais terei acesso, estabelecidas pela RTP e que respeitarei todas as especificações decididas pelos responsáveis da RTP para a sua (do prémio) atribuição. 15. Declaro que terei um comportamento correcto segundo as regras da lealdade e da boa fé (...) 16. Fui informado de que os eventuais ganhos em dinheiro são da exclusiva responsabilidade da RTP e conforme as suas normas (...) Os vencedores adquirem o direito ao prémio apenas após a verificação por parte da RTP da regularidade da participação no passatempo e receberão a comunicação através de carta (...)”. O documento finaliza a fls. 28 com os dizeres “Tomei conhecimento e dou o meu acordo” seguido da data e da assinatura da A.
11) A A. ultrapassou com êxito as várias fases intermédias e, na última prova, também denominada “Guilhotina”, decifrou o termo escondido, vencendo o jogo final, a que seria atribuído o valor de € 65.000,00.
12) A A. é viúva, desde 3/2/2005, tendo sido casada com BB desde 11/3/1989 e até ao falecimento deste naquela data, e é mãe de CC e AA.
13) No dia 16/5/2006 saiu um artigo no jornal “Destak” com uma foto da A e com uma chamada na 1.ª página, em que se noticiava a vitória da A. e de um outro concorrente (noutra sessão).
14) A 1ª Ré não transmitiu o programa em que a A. participou, nem foi entregue ou depositada pelas RR. qualquer quantia na conta da A.
15) No dia 22 de Maio, a A. foi contactada por DD – a funcionária da 2ª Ré que lhe entregara o documento para assinar – a comunicar que o concurso não tinha sido transmitido porque a A. tinha um familiar que era “funcionário da RTP” e que tinha assinado um documento em que declarava o contrário.
16) A A. foi ainda esclarecida que o familiar em causa era a sua irmã, que é funcionária da “RTP – Serviço Público de Televisão SA”,EE, que trabalha no Porto e exerce funções na área da informação.
17) A A. tem como habilitações literárias o Curso Superior de Línguas e Secretariado do I.S.L.A.
18) A A. nas deslocações referidas, fez-se sempre acompanhar de sua mãe, FF, a qual preencheu e assinou o mesmo documento preenchido e assinado pela A. e referido em 10.
19) A A., na data da filmagem do programa, no dia 11/5/2006, foi encaminhada pela Ré para uma sala com os outros cinco concorrentes e com os seus acompanhantes.
20) E nessa sala os participantes esperaram o início da prova.
21) A espera é rodeada de um ambiente agitado, porquanto os participantes são chamados à vez para a sala de maquilhagem e receberem instruções da produção.
22) Quando se encontravam na referida sala, aguardando o início da prova, um membro da produção apresentou o documento referido em 10) à A. e aos outros cinco concorrentes.
23) A A. assinou o documento convencida de que se tratava de uma mera formalidade, necessária para que a 1ª Ré pudesse transmitir o programa, pelo que se limitou a preencher os seus dados e a assinar o exemplar que lhe foi entregue, sem ler as cláusulas que dele constavam.
24) Depois de ter sido dado à A. o documento para assinar e passado um tempo não superior a 45 minutos, iniciaram-se as rondas do concurso.
25) Depois de vencer o concurso, a A. ficou muito emocionada e extremamente feliz.
26) A quantia permitiria à A. fazer face a alguns problemas financeiros.
27) A A. pretendia ainda, com o montante ganho, cumprir um sonho de percorrer os Estados Unidos da América, de uma costa à outra.
28) A seguir ao concurso, espalhou-se a notícia de que a A. tinha ganho o concurso e veio a ser contactada por muitos familiares, amigos, vizinhos e conhecidos, a dar-lhe os parabéns pela vitória.
29) E os dois filhos da A., naturalmente orgulhosos da sua mãe, partilharam o acontecimento com os amigos e os colegas da escola.
30) A A., depois de tomar conhecimento que as RR. não iam emitir o concurso nem pagar o prémio, sentiu-se perturbada, humilhada e revoltada.
31) E tal atitude privou a A. de concretizar os projectos referidos que já tinha idealizado depois da sua participação no concurso.
32) E a recusa em liquidar o prémio e transmitir o programa fizeram com que a A. e os seus filhos se vissem forçados a dirigir-se aos familiares, conhecidos e colegas, a comunicar-lhes o sucedido, o que muito envergonhou a A.
33) Na sequência da recusa das RR., a A. sofreu momentos de angústia e desalento.
34) A A. assinou um documento idêntico ao referido em 10) no dia 8/5/2006, tendo-lhe sido facultados cerca de 45 minutos em cada um dos dias para ler e assinar tal documento.
35) Em outras sessões do passatempo “A Herança” outros concorrentes foram impedidos de participar por terem declarado conhecer quer colaboradores da ora Ré, quer colaboradores da Ré NPE, quer, ainda, por serem conhecidos do apresentador do passatempo.
36) Na sala onde a A. e os outros concorrentes foram encaminhados encontrava-se um elemento da produção para esclarecer os mesmos de alguma dúvida que se suscitasse no âmbito da participação do concurso em causa.
37) E o mesmo elemento da produção acompanhou sempre a A. e demais concorrentes no momento em que distribuiu “O Acordo de Participação e de Cedência de Direitos” pelos mesmos, alertando-os expressamente para a necessidade de lerem com toda a atenção o respectivo texto.
38) Mais esclarecendo que estaria sempre disponível para quaisquer dúvidas que se suscitassem.
39) A não participação de familiares de trabalhadores/colaboradores/responsáveis, constitui prática generalizada em todas as entidades que promovem concursos e passatempos.
40) O passatempo “A Herança” é um programa televisivo não transmitido em directo, já que a regularidade de participação dos seus concorrentes carece de ser verificada pela Ré.
41) A gravação de cada uma das sessões do passatempo é previamente visionada pela Direcção de Programas da Ré e é, depois, entregue na Supervisão de Emissão para ser emitido.
42) Face à omissão por parte da A. do seu grau de parentesco com uma trabalhadora da Ré, a mesma transmitiu o programa nº 77 do passatempo e, logo após, o programa nº 79, tendo “saltado” a emissão do programa nº 78 – aquele em que participou a A.
43) O passatempo “A Herança” foi encomendado pela então Radiotelevisão Portuguesa – Serviço Público de Televisão S.A. à ora Ré NPE, para uma série de 80 programas.
44) Cada um dos 80 programas comprados pela Ré à NPE tinha um custo de € 15.000,00 acrescido de IVA, ou seja, cada programa custou à Ré € 18.150,00.
45) E a Ré efectua ainda o pagamento de € 400,00 por programa, valor este correspondente ao cachet pago pela Ré ao apresentador.

VIII –
A primeira das questões enunciadas em VI levanta uma questão processual.
Os recursos visam a reapreciação de questões já ventiladas no ou nos tribunais inferiores e não a colocação de questões novas. No entanto, como refere Castro Mendes (Recursos, 28) “são arguíveis e devem ser apreciadas ex novo em recurso as questões de conhecimento oficioso, entre as quais as excepções dilatórias e as construções de direito” (ambas com a ressalva, evidente, de não terem já sido decididas com trânsito em julgado).
Assim, não consideramos relevante que, na contestação e no recurso de apelação, tenha sido ignorada a questão da natureza da obrigação em discussão, nomeadamente que neste a ora recorrente não tenha lançado mão do disposto no artigo 684.º-A do Código de Processo Civil.
No fundo, a natureza da obrigação estava ínsita na construção jurídica que vem sendo feita.

IX – 1
Sobre a natureza da obrigação, sustenta a recorrente tratar-se de obrigação natural nos termos do artigo 1245.º do Código Civil. Não seria, assim, exigível judicialmente.

No artigo 1541.º do Código de Seabra dispunha-se que “o contrato de jogo não é permitido como meio de adquirir”, definindo-se, no artigo seguinte, § 1.º, o jogo de fortuna e azar.
O Decreto 14.643 também definia jogos de fortuna e azar (artigo 1.º) e proibia-os fora das zonas de jogo para o efeito criadas (artigo 2.º) considerando que dentro dessas mesmas zonas não valiam os mencionados preceitos do Código de oitocentos. Ou seja, que, dentro das zonas de jogo para o efeito criadas, o contrato de jogo seria fonte de obrigações civis.
A este Decreto sucedeu-se o Decreto-Lei n.º 41.562, de 18.3.1958, igualmente com a definição de jogos de fortuna e azar, permissão dos mesmos nas zonas de jogo e “a contrario sensu” do artigo 2.º, proibindo-os fora delas.
Veio, depois, a lume o Código Civil, com os artigos 1245.º e seguintes. O jogo e a aposta, quando lícitos, são fonte de obrigações naturais, com ressalva – no sentido da invalidade do contrato – que aqui não importa e com ressalva – essa já aqui importante – do que dispuser legislação especial sobre a matéria (esta consignada no artigo 1247.º).
Em 18.3.1969, foi publicado o Decreto-Lei n.º 48.912, que, já previa as “modalidades afins do jogo de fortuna ou azar, incluindo a aposta mútua” (artigo 43.º) e, no mais que aqui importa, nada alterou ao regime anterior.
Finalmente, temos o Decreto-Lei n.º422/89, de 2.12, conhecido como a “Lei do Jogo”. Define, no artigo 1.º “jogos de fortuna e azar” e, nos termos do n.º1 do artigo 3.º, autoriza-os nas zonas de jogo e nos casos excepcionados nos artigos 6.º e 7.º. Mais preocupado com a definição dos locais próprios dos jogos de fortuna e azar e inerente licitude, o legislador não cuidou de estatuir directamente que as quantias ganhas em tal tipo de jogos, nos locais autorizados, eram devidas e podiam ser exigidas judicialmente. Tinha, na verdade, o regime regra do mencionado artigo 1245.º e havia que tomar posição expressa, atento ainda o artigo 1247.º.

IX – 2
Já antes do Código Civil escreveu Manuel de Andrade (Teoria Geral das Obrigações, 81):
“A ideia da lei terá sido a de que as dívidas de jogo – não de azar – devem ser pagas, uma vez que foram contraídas e só não lhes deu eficácia civil para não afoitar os jogadores e até, de certo modo, coibir o jogo – actividade não recomendável ou, em todo o caso, pouco meritória.”
Vindo a lume o Código Civil, anotaram, no artigo 1245.º, Pires de Lima e Antunes Varela, até à 3.ª edição do Código Civil Anotado, o seguinte:
“O artigo 1245.º não está plenamente em vigor. Contém apenas direito-regra. Na verdade, o artigo 63.º do Decreto n.º 14 643, de 3 de Dezembro de 1927, que instituiu as zonas de jogo, considerou revogados os artigos 1541.º e 1542.º do Código de 1867, cujas disposições correspondem às daquele artigo 1245.º, nas zonas em que é autorizado o jogo de fortuna ou azar, e esse decreto foi ressalvado pelo artigo 1247.º do novo Código. Ora, por força do artigo 4.º da lei preambular, deve considerar-se hoje revogado em parte, ou, com mais rigor, inaplicável em parte, este artigo 1245.º. No caso, portanto, previsto no diploma de 1927, o jogo e a aposta são contratos, como quaisquer outros, produtores de efeitos civis.”
Este texto foi retirado na 4.ª edição, mas não cremos poder daí retirar argumento no sentido de que deixou de valer o entendimento manifestado.
Aliás, a páginas 750 do I Volume de Das Obrigações em Geral, 9.ª edição, Antunes Varela afirma:
“Nos casos abrangidos pela legislação especial, a excepção (do artigo 1247.º) atinge não só a regra da invalidade geral do contrato de jogo ou de aposta, mas também a regra igualmente consagrada no artigo 1245.º para os casos de jogo lícito ou tolerado: o contrato de jogo legalmente autorizado não só é válido como constitui fonte de obrigações civis, não de meras obrigações naturais.”
Ainda a propósito dos preceitos do Código Civil, Almeida Costa (Direito das Obrigações, 6.ª edição, 151, nota 2 de pé de página) refere que estes só contemplam os casos de jogo e aposta proibidos e os casos de jogo e aposta tolerados. Relativamente ao jogo e aposta autorizados (ou seja, aqueles “cuja licitude assenta no reconhecimento de alguma utilidade social e que se permitem, designadamente, em zonas turísticas ou sob determinadas modalidades (lotaria, apostas mútuas)”o artigo 1247.º ressalva a legislação especial. “Neste caso – continua aquele Ilustre Professor – “surgem autênticas obrigações civis que também representam excepções ao disposto no artigo 1245.º.”
Por sua vez, Carlos Mota Pinto, Pinto Monteiro e Calvão da Silva (Jogo e Aposta – Subsídios de Fundamentação Ética e Histórico-Jurídica, apontamentos copiografados, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, página 29) escrevem:
“Por isso se entende, mesmo por quem considera o jogo em si próprio uma actividade reprovável, que existe um dever moral de cumprir a dívida de jogo. Se o jogo é uma actividade reprovável, mais reprovável será não pagar aquilo que se perdeu, desde que se trate de jogo lícito…”
E, mais adiante:
“Mas há jogos…válidos e produtivos de obrigações civis. Jogos que, mesmo que sejam de fortuna e azar, por dependerem exclusivamente da sorte (a roleta, p.ex.) são válidos deles emergindo verdadeiras obrigações jurídicas, garantidos pela acção creditória.
Trata-se, como já dissemos, de jogos lícitos, não meramente tolerados, antes a sua prática está, em certos termos, autorizada – estão nessas condições v.g., os jogos de fortuna e azar praticados em zonas de jogo, o direito conferido à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa de explorar em regime de monopólio a lotaria nacional e os concursos de prognósticos em competições desportivas (totobola), etc.”
As dívidas de jogo são, neste caso, judicialmente exigíveis, estando o seu cumprimento garantido pela ameaça de execução do património do devedor.”
No mesmo sentido se tendo pronunciado Manuel Trigo, Homenagem aos Professores Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo Xavier, III, 372, ainda que em tema de Estudo reportado ao jogo e aposta em Macau.
E, bem assim, Januário Pinheiro (Lei do Jogo Anotada e Comentada, 41).

Aliás, e não obstante a já referida inexistência de estatuição explícita, há a considerar que a vigente “Lei do Jogo”, não só não colide com o entendimento que já vem solidificado de longe, como traça um regime jurídico que mal – ou mesmo muito mal – se compreenderia no caso de as dívidas a quem ganhou não poderem ser exigidas judicialmente. No artigo 4.º refere-se que, nos casinos, é autorizada a “exploração dos seguintes jogos”, entre eles se referenciando os “jogos em máquinas pagando directamente prémios em fichas ou moedas”, nos artigos 6.º e 7.º, volta-se a aludir a “exploração” dos jogos, no artigo 11.º fala-se, a propósito da abertura de concurso de exploração, de “montante de caução de seriedade a prestar pelos concorrentes”, no artigo 27.º, a propósito da definição de casinos, refere-se que visam, fundamentalmente, “assegurar a honestidade do jogo…”, no artigo 64.º, a propósito da “caixa compradora” determina-se que “nas salas de jogos haverá uma caixa compradora de fichas, destinada à troca por dinheiro das fichas na posse dos jogadores” e que “ a caixa compradora deve ter sempre em cofre, no início de cada sessão, a importância que for determinada pela Inspecção-Geral de Jogos…tendo em conta o movimento dos casinos.”, no artigo 66.º dispõe-se que “as importâncias ou fichas encontradas no chão, deixadas sobre as mesas…cujo dono não seja possível determinar, serão logo entregues ao director do serviço de jogos, devendo os valores correspondentes ser entregues à Misericórdia local…” e “caso o legítimo proprietário de alguma das importâncias ou fichas… se faça reconhecer e prove o seu direito até ao fim da partida, deverão as mesmas ser-lhe entregues.”

Corroborando o entendimento que vimos acolhendo, temos o princípio da boa fé, traduzido no comportamento que é legítimo expectar relativamente à contraparte. Quem joga em local legalmente autorizado – nomeadamente num casino - está perante uma situação de confiança perfeitamente justificada. De tal modo que o não pagamento das quantias ganhas encerrará uma absoluta surpresa para ao cidadão comum, jogador ou não. Depois, o próprio acto de jogar revela o investimento nessa confiança, a qual emerge da natureza do local. Estão aqui, claramente, os requisitos da tutela da confiança apontados por Menezes Cordeiro, no Tratado de Direito Civil, I, I, 237).
Será mesmo até de ponderar o papel da confiança que o próprio Estado proporciona ao permitir e taxar os jogos, bem realçado no apontado Estudo dos Professores Mota Pinto, Pinto Monteiro e Calvão da Silva, página 30 e, bem assim, em Estudo – recolhido pela Assessoria deste Tribunal - de Audrey Ayoun, La Protection du Consommateur en Matiere de Jeux et Loteries, 2002-2003, da Faculdade de Direito e Ciência Política d’Aix Marseille III (França), página 83.
Não devendo ser até enjeitada, se necessário, a ideia de protecção do jogador, enquanto consumidor, que constitui o tema geral deste Estudo francês.

Assim, entendemos que o jogo de fortuna e azar, quando lícito nos termos da “Lei do Jogo”, encerra um contrato válido gerador de obrigações jurídicas e não naturais.

X –
No capítulo XI desta Lei dispõe-se sobre as “Modalidades Afins do Jogo de Fortuna e Azar e Outras Formas de Jogo”.
A ressalva da parte final do n.º1 do artigo 161.º, conjugado com a definição do n.º1 do artigo 159.º, apontam, necessariamente, para a inclusão dos concursos televisivos, como o que está em discussão no presente caso, naquele conceito.
“Mutatis mutandis” valem para aqui as razões acabadas de expender sobre a natureza das obrigações que impendem sobre a entidade que levou a cabo o concurso relativamente ao pagamento do que for ganho. Sendo aqui também particularmente nítidos os requisitos da tutela da confiança, a qual seria incompreensivelmente violada se se acolhesse, à letra, o ponto 3.4 do Regulamento do Concurso, segundo o qual, no final da gravação, a produção e a RTP podiam, discricionariamente, decidir não emitir o programa e consequentemente não pagar o prémio, sendo o ganhador apenas convidado a participar no programa num outro episódio (convite, aliás, que aqui não sequer foi invocado). Haveria até aqui um desequilíbrio prestacional gerador de abuso do direito, nos termos do artigo 334.º do Código Civil.

Por isso, improcede a primeira das questões levantadas pela recorrente.

XI –
Relativamente à segunda das questões enunciadas em VI, subscrevemos inteiramente o que nos chega da Relação.
O artigo 1.º do DL n.º 446/85, de 25.10, contém implicitamente a enumeração dos requisitos para que determinada cláusula seja considerada como cláusula contratual geral.
São eles a pré-elaboração, a generalidade e a rigidez.
Sobre a pré-elaboração, não restam dúvidas, face aos factos provados.
Sobre a generalidade, há a considerar a alteração daquele normativo pelo Decreto-Lei n.º 220/95, de 31.8, o qual “tornou explícito que o regime das cláusulas contratuais gerais é também aplicável a casos em que o número de destinatários seja circunscrito, quando, mesmo assim, se justifique essa aplicação. Exemplo: concursos limitados por qualificação prévia.”( Galvão Teles, Manual dos Contratos em Geral, 318, nota de pé de página).
Também resulta dos factos que a autora e demais concorrentes não tinham a possibilidade de discutir e de alterar o clausulado.
Estava, pois, a ré vinculada ao que tal Decreto-Lei determina, mormente à comunicação adequada e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência – artigo 5.º, n.º2.
Em causa está o documento de folhas 25 a 29, com 25 cláusulas, cada uma tendo em média, 7 ou 8 linhas. A cláusula relativa ao não parentesco com responsáveis, empregados ou colaboradores não deixava de ser uma cláusula-surpresa. Como está redigida (“Declaro que não tenho qualquer vínculo de parentesco…”) parece não o ser, mas não se trata de matéria a “declarar”. Trata-se antes duma realidade objectiva, cujo papel do concorrente não é declará-la ou não, mas apenas trazê-la ao conhecimento da entidade que realizava o concurso. Havia, logo na fase da selecção dos concorrentes, que ser levantada a hipótese de tal relação de parentesco e não se apurar quem a tivesse. Uma vez apurada a pessoa, não lhe será exigível, a 45 minutos de entrar no programa, com todo o nervosismo que envolve normalmente tal situação, uma atenção a tal incompatibilidade. Tanto mais que o elemento da produção não explicou cláusula por cláusula, tendo apenas referido que lessem, com toda a atenção, antes de assinarem e que se disponibilizava para qualquer esclarecimento. Aliás, a cláusula omite as consequências de eventualmente haver o mencionado parentesco, o que, se não devidamente esclarecido, mormente por iniciativa de quem apresentava o documento, podia até levar a pensar serem outras as consequências. Tanto mais que a cláusula aparece, depois de outra que refere que “aceito participar no passatempo “A Herança”.
Não foi cumprido aquele n.º2 do artigo 5.º.

Passemos agora ao recurso da outra ré:

XII -
Conclui ela as alegações nos seguintes termos:

1. O Tribunal da Relação no seu douto Acórdão, entendeu que o documento entregue à Recorrida para esta assinar, não o foi em "condições adequadas para (esta) entender do modo mais conveniente o teor da declaração negocial".
2. Considera a Recorrente, tal como doutamente considerou o Tribunal de 1.ª Instância, que os 45 minutos dados aos concorrentes, para lerem e assinarem o documento, são mais do que suficientes para a total apreensão do seu conteúdo, não sendo o nervosismo e o ambiente de gravações existente em redor, impedi ti vos desta apreensão.
3. A Recorrida leu e assinou tal documento duas vezes, em momentos distintos!
4. Teve a Recorrida, conforme provado, contacto com o documento nos dias 08 e 11 de Maio de 2006, tendo-o assinado das duas vezes.
5. Foi a Recorrida amplamente advertida para ler o documento e questionar o seu conteúdo caso entendesse que tal era necessário.
6. Na referência que o douto Acórdão faz ao facto de todas as testemunhas ouvidas, e que participaram noutras sessões do concurso, terem dito que assinaram a declaração sem a ler, não é referido que todas elas também esclareceram que não o assinaram porque não quiseram, e não porque não tinham condições para o fazer. Pelo contrário, todas elas afirmaram que poderiam ter lido e apreendido o conteúdo do documento se assim o quisessem.
7. Considera a Recorrente, não estarmos perante uma questão de indisponibilidade emocional ou intelectual da Recorrente no momento em que assinou o documento (diga-se duas vezes!), como é dito no douto Acórdão, mas sim uma questão de desinteresse, ou, até, da prestação de uma falsa declaração por parte desta.
8. Trata-se de alguém com uma formação superior e uma inteligência acima da média, que foi suficientemente alertada (das duas vezes) pelos membros da produção, para a importância de ler o documento antes de o assinar.
9. A Recorrente estava de boa-fé e convicta da veracidade das declarações contidas no documento, até porque a declaração é bem clara quanto à impossibilidade de participação no concurso de pessoas com vínculos de parentesco a funcionários da RTP, como é o caso da Recorrida.
10. A Recorrente está convicta de que a Recorrida leu e assinou o documento conscientemente, e, se por hipótese, não o fez, não pode tal facto ser imputado à Recorrente.
11. Entendeu ainda o Tribunal da Relação no seu douto Acórdão, que o documento entregue, "antes do concurso constitui uma verdadeira modificação contratual, ao regulamento inicialmente publicado" e que, tratando-se aquele de uma nova cláusula negocial, não poderia ter sido apresentado naquela altura mas apenas até ao momento em que se seleccionavam os concorrentes.
12. Não concorda a Recorrente com a posição adoptada pelo Tribunal da Relação, porquanto no seu douto Acórdão, tal como havia sido defendido nas contra-alegações apresentadas o "acordo e o regulamento são requisitos cumulativos, ambos, "parte integrante das normas do concurso em causa", funcionando o regulamento quase como um pré-requisito, e o acordo a confirmação de que estão reunidas todas as condições para que alguém possa concorrer ao cobiçado prémio", tendo inclusivamente sido este o entendimento da Meritíssima Juiz a quo.
13. A Recorrida foi considerada, numa primeira fase, "apta" a concorrente do programa, mas a sua participação no mesmo estava condicionada por essa última declaração complementar ao Regulamento, funcionando este como um último requisito.
14. A Recorrida sabia perfeitamente ao que se destinava o documento e que este era a última exigência concursal que a separava de participar no programa e habilitar-se ao prémio.
15. Tal como ficou provado, este requisito é prática recorrente naquele tipo de concursos.
16. A declaração negocial não se formou, nem acabou no primeiro momento, de leitura do regulamento e nas provas de selecção.
17. A declaração negocial apenas se formou, e concluiu, no momento da assinatura da declaração denominada "Acordo de participação e de cedência de direitos", sendo que, só após a sua assinatura a Recorrida podia participar no concurso.
18. Não se verificou, assim, qualquer revogação unilateral da declaração da Recorrente.
19. Entende a Recorrente ser inadmissível que a Recorrida ao aperceber-se da regra do parentesco, nada tenha dito, tendo ao invés mantido o silêncio e assinado uma declaração que sabia não corresponder à verdade.
20. Entende o Tribunal de Relação no seu douto Acórdão, estarmos perante uma situação de aplicação analógica do regime jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais.
21. Não pode a Recorrente deixar de discordar, entendendo não poder ser aplicável ao negócio jurídico em questão, o regime jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais, quer por estarmos perante um negócio jurídico unilateral e não um perante um contrato, quer porque a aplicação analógica do regime jurídico de um determinado instituto jurídico, a outro, só se verifica quando estamos perante uma lacuna na lei ou perante um caso omisso, o que não se verifica no caso dos presentes autos.
22. Assim, a apresentação da declaração nos moldes em que foi feita pela Recorrente não viola qualquer disposição do regime jurídico das Cláusulas Contratuais Gerais.
23. O caso dos presentes autos enquadra-se, como bem refere a douta sentença da Meritíssima Juiz a quo, no disposto no artigo 463.° do Código Civil, nos precisos termos por esta invocados.

Contra-alegou também este recurso a autora, contrariando os argumentos expendidos.

XIII –
A única questão levantada no presente recurso diz respeito à aplicabilidade ou não do regime das cláusulas contratuais gerais.

XIV –
Sobre esta questão já discorremos no ponto XI, a propósito do outro recurso, em termos que aqui damos como reproduzidos.
Decerto que estamos perante um concurso público, mas a aplicação do artigo 463.º do Código Civil não contende com o que se referiu a propósito das ccg. Na sequência do concurso, foi lavrado um contrato e aqui está o círculo de abrangência das ccg.

Resta o recurso da autora.

XV –
Conclui ela as alegações do seguinte modo:

A) O presente recurso de revista vem interposto do douto Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa na parte em que absolveu as Rés do pedido de atribuição de uma indemnização relativa aos danos não patrimoniais;
B) Com efeito, resultou provado que a Autora sofreu significativos danos morais em resultado da atitude das Rés de não reconhecerem a vitória da Autora e de não lhe pagarem o respectivo prémio;
C) Ora, tendo em conta as circunstâncias do evento ilícito e de acordo com o critério da causalidade adequada (mesmo na sua formulação positiva), é incontestável que o comportamento das Rés é uma causa adequada da verificação dos danos morais sofridos pela Autora;
D) Ao não condenar as Rés ao pagamento de uma indemnização a título de danos morais, o Acórdão violou os art.ºs 483.°, 496.0 e 563.0 do Código Civil;
E) Por conseguinte, deve o Acórdão ser alterado e ser atribuído à Autora uma indemnização equitativa pelos danos morais que também sofreu.

Não houve contra-alegações

XVI –
No n.º1 do artigo 146.º, o legislador deixou aos tribunais a fixação dos limites correspondentes ao que seja a gravidade mínima para efeitos de tutela dos danos não patrimoniais.
Esta tutela é traduzida em montante indemnizatório e este, no caso dos danos não patrimoniais (excepto quanto ao dano de morte, “strictu sensu”) visa a obtenção de prazeres que, de algum modo, compensem a dor que se considera.
Será, então, justificável - não obstante a inversão dos elementos de raciocínio que traduz - que se pense na aferição da mencionada gravidade, ponderando a necessidade que o cidadão de reacção normal tem de despender dinheiro para procurar colmatar ou diminuir o negativismo psíquico que o facto danoso lhe produziu (cfr-se, em www.dgsi.pt, o Ac. deste Tribunal de 15.3.2007, processo n.º 07B220).
No presente caso, ao contrário do que acontece no vulgar dos danos submetidos à apreciação do seu valor não patrimonial, não se partiu do normal da vida psíquica da autora, para se percorrer um caminho descensional.
Na vida psíquica da autora introduziu-se um elemento de ascensão traduzido pela possibilidade de ganhar dinheiro em quantidade muito relevante, depois, pelo seu ganho e depois, ainda, pela recusa no seu pagamento. Uma pessoa normal não fica indiferente, no plano psicológico, a tal sucessão de factos, mas, para efeitos de aferição da gravidade prevista no mencionado preceito, sempre há a ter em conta que, afinal, o que foi posto em perigo, foi um monte de sonhos que, apesar de toda a insegurança gerada pela recusa no pagamento, ainda tem foros de subsistência. Face ao resultado da presente causa, o que afecta a autora não é o não recebimento da quantia que ganhou, mas apenas o “stress” do que teve de fazer para ter lugar tal recebimento. No fundo, a velha questão da gravidade dos danos não patrimoniais porque o titular do direito teve de recorrer a tribunal. Casos que ficam aquém da exigência legal, sob pena se se abrir um caminho desaconselhadamente largo de tutela.

XVII –
Face a todo o exposto, negam-se todas as revistas.

Custas de cada uma por cada recorrente.

Lisboa, 17 de Junho de 2010


João Bernardo (Relator)
Serra Baptista
Álvaro Rodrigues
Oliveira Rocha -(Vencido), entendo que o acórdão recorrido deveria ter sido revogado, pois ficou claramente provado que a autora não reunia condições para participar no mesmo.
Antes de assinar o doe. de fls 25-28, onde constavam tais condições de participação, foi--lhe chamada a atenção, bem como dos demais concorrentes, para a necessidade de ler, com toda a atenção, o respectivo teor, ficando ao seu dispor um elemento da produção para esclarecer os concorrentes sobre qualquer dúvida que se suscitassem no âmbito da participação no referido concurso.
Todavia, a autora, convencida, sem qualquer razão para isso, de que se tratava de uma mera formalidade, acabou por assinar o documento e aceder ao concurso para o qual não reunia condições, pois que era irmã de uma funcionária da RTP, facto que omitiu.
Anote-se que, em outra sessão do passatempo "A Herança", outros concorrentes foram impedidos de participar por terem declarado não satisfazer essas condições.

Oliveira Vasconcelos (Vencido) - Votei vencido porque considero que foi convenientemente comunicada à autora a cláusula contratual que a sujeitava a declarar a existência de uma sua familiar como funcionária da RTP.

Na verdade, está provado que em 8 de Maio de 2006, altura em que pela primeira vez se deslocou aos estúdios da RTP para participar no concurso - que não chegou a iniciar-se nesse dia – foi apresentado à autora o documento onde constava essa cláusula, tendo-lhe sido facultados cerca de 45 minutos para o ler e assinar e sido expressamente alertada para a necessidade de ler com toda a atenção o referido documento.
Está também provado que três dias depois, no dia em se realizou o concurso, foi entregue novamente à autora o referido documento, para ser assinado por esta, em que se alertava novamente a autora para não o assinar sem o ler com atenção.
Perante estes factos, não podemos deixar de concluir que a autora não leu a referida cláusula - como está provado - porque não quis.
E assim, que o seu eventual desconhecimento dela apenas a si deve ser imputado.
Julgaria, assim, a acção improcedente, por considerar lícita e não culposa a actuação da ré RTP.

Oliveira Vasconcelos