Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
Descritores: | HOMICÍDIO PROGENITOR DOENÇA MENTAL INIMPUTABILIDADE CAPACIDADE SUCESSÓRIA INDIGNIDADE ACEITAÇÃO DA HERANÇA ABUSO DO DIREITO PRESSUPOSTOS BONS COSTUMES ORDEM PÚBLICA ANALOGIA ABSOLVIÇÃO CRIME DIREITO À VIDA PRINCÍPIO DA IGUALDADE CONSTITUCIONALIDADE | ||
Data do Acordão: | 07/09/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | I – O artigo 2034.º do Código Civil, que consagra um elenco de causas de indignidade sucessória, não admite uma analogia livre, mas uma analogia mais limitada, a partir de alguma das causas previstas na lei. Por outras palavras, é permitida analogia legis, mas não a analogia iuris. II - Estamos perante uma questão de direito civil, de pendor marcadamente ético e moral, não sendo, portanto, aplicável, no domínio da indignidade sucessória, o princípio de direito penal da proibição da analogia in mala partem, ou seja, contra o autor do delito. É que, enquanto no direito penal estamos perante a tutela dos direitos dos cidadãos em face do poder punitivo do Estado, que lhes pode impor medidas restritivas da liberdade, no regime da indignidade sucessória apenas se nega a concretização de uma expetativa de herdar. III - A aplicação analógica surge como desajustada à solução do caso concreto, já que a absolvição do agente do crime de homicídio, por ausência de culpa, em virtude de inimputabilidade, não é semelhante à condenação de indivíduo imputável por homicídio doloso. IV – A solução de ser o julgador a criar uma norma ad hoc elaborada dentro do espírito do sistema, nos termos do artigo 10.º do Código Civil, é sempre delicada por constituir uma atividade semelhante à legislativa. V - Assim, resta apreciar o caso destes autos à luz da figura do abuso do direito, consagrada no artigo 334.º do Código Civil e que tem contornos estritamente objetivos, não sendo exigível a intenção do agente ou qualquer juízo de censurabilidade sobre a sua conduta. VI - Para a determinação da existência de abuso do direito o que importa é analisar o resultado decorrente da conduta, perante os valores e princípios jurídicos vigentes, e não a conduta em si mesma. VII – Atua em abuso do direito, por violação dos limites impostos pelos bons costumes, o sujeito inimputável que, sem capacidade de culpa jurídico-criminal, atentou contra a vida do pai e da irmã, e vem depois, sem qualquer limitação da sua capacidade civil, reclamar o direito à herança, decorrente do seu estatuto de herdeiro legitimário único. VIII – O exercício do direito a herdar os bens de uma pessoa que o herdeiro matou choca aos sentimentos mais profundos da generalidade das pessoas, repugnando à consciência jurídica e ética que uma pessoa possa ter um lucro como efeito legal de uma morte por si causada, ainda que sem capacidade de culpa jurídico-criminal. IX – Admitir esta possibilidade seria contrariar o princípio normativo e constitucional da tutela absoluta do direito à vida (artigo 24.º da Constituição), que constitui também um princípio de ordem pública. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – Relatório 1. AA e BB intentaram a presente ação contra CC, pedindo que se declare a indignidade sucessória do Réu, face ao seu pai, DD, nos termos do disposto no artigo 2034.º do Código Civil ou, subsidiariamente, ao abrigo do instituto do abuso de direito. Em síntese, alegam os Autores que: - são irmãos de DD, falecido em ... de novembro de 2020, que foi vítima de homicídio, em que foi simultaneamente vitimada a sua filha (sobrinha dos Autores), EE, homicídio esse que foi perpetrado pelo ora Réu CC (filho de DD e irmão de EE); - o homicídio em questão deu origem ao processo com o NUIPC 410/20.7..., que correu termos na ....ª Secção do Departamento de Investigação e Ação Penal de ... e que, na sua sequência, o ora Réu CC foi detido no dia 16 de novembro de 2020, tendo sido sujeito ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido a 17, tendo confessado a sua autoria e ficado sujeito à medida de coação de prisão preventiva, vindo no Acórdão do Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., a 18 de maio de 2022, a ser considerado que: - CC vitimou fatalmente o seu pai, DD e a sua irmã, EE (que se encontrava grávida, o que também era do seu conhecimento); - CC atuou com o propósito concretizado de causar a morte do seu pai e da sua irmã, e de representar que esse seria o resultado da conduta por si adotada; - CC foi considerado como inimputável quanto à prática dos crimes de homicídio e aborto; - o referido Acórdão foi objeto de recurso por parte do arguido, circunscrito à decisão quanto ao pedido de indemnização cível deduzido pelos Autores, recurso esse que foi julgado totalmente improcedente pelo Tribunal da Relação de Lisboa, que manteve inalterada a factualidade dada como assente; - a decisão de condenação de CC transitou em julgado a 17 de outubro de 2022; - o falecido não deixou outros descendentes para além de CC, nem tão-pouco ascendentes, não sendo casado à data do óbito, nem nunca tendo sido casado com a mãe deste (FF), deixando-o como único descendente; - o facto de CC ser autor confesso e condenado pelo homicídio, implica a sua indignidade e incapacidade sucessória, a ser decretada ao abrigo do disposto nos artigos 2034.º, alínea a) e 2036.º do Código Civil; - perante a indignidade sucessória e a ausência de outros descendentes, ascendentes ou cônjuge sobrevivo de DD, são os Autores os presumíveis herdeiros sucessíveis do mesmo, ao abrigo do disposto no artigo 2133.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil. 2. Citado, o Réu apresentou Contestação, alegando, em síntese, que os factos praticados por si, e dos quais resultou a morte do seu pai e irmã, foram objeto de ampla análise, discussão e julgamento por Tribunal Coletivo e no âmbito do Processo Crime n.º 410/20.7..., Juiz ..., do Juízo Central Criminal de ... da Comarca de Lisboa Norte, tendo sido proferido Acórdão, transitado em julgado, onde foi absolvido da prática dos crimes de Homicídio Qualificado na pessoa de seu pai: - declarando-se que o Réu: - praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Homicídio na pessoa de seu pai; - é inimputável em razão de doença psiquiátrica irreversível - Esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides - que o impede de avaliar a ilicitude dos seus atos do prisma da realidade; - decidindo-se não lhe aplicar qualquer pena, declarando-se que existe perigo de prática de novos ilícitos criminais por sua parte, e aplicando-se-lhe uma medida de segurança de duração não inferior a três anos e não superior a vinte e cinco anos, cuja execução não foi suspensa. Mais entende o Réu, que não há lugar à declaração de indignidade, pois foi absolvido do crime de homicídio doloso contra o autor da sucessão, faltando esse pressuposto legal de aplicação do instituto da indignidade sucessória (a sentença criminal condenatória), o que implica a improcedência da ação. 3. O Tribunal a quo proferiu Saneador-Sentença, culminando-o com a seguinte Decisão: «Pelo exposto, decide-se: a) Declarar a incapacidade sucessória do R. CC na herança aberta por óbito de DD. b) Custas a cargo do R., sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia». 4. Inconformado, o réu veio apresentar recurso de apelação, tendo o Tribunal da Relação decidido, com um voto de vencido, confirmar a sentença apelada. 5. Novamente inconformado, veio o autor/recorrente interpor recurso de revista, nos termos do disposto nos artigos 671º, n.º 1 e 3, 638º, n.º1 , 675º, n.º2 e 676º do Código de Processo Civil (CPC), formulando na sua alegação de recurso as seguintes conclusões: «I - No presente recurso de revista pretende o Réu novo enquadramento jurídico dos factos provados nos autos e melhor análise quanto à matéria de Direito aplicável e correcta aplicação da Lei ao caso concreto e designadamente sobre a seguinte questão de Direito: - se ao declarado inimputável em razão de doença psiquiátrica irreversível – esquizofrenia associada ao consumo de canabinoides – que o impede de avaliar a ilicitude dos seus actos do prisma da realidade e absolvido da prática do crime de homicídio qualificado p.e p. no artigo 131º do Código Penal na pessoa do seu pai do qual vinha acusado em processo crime por ter praticado factos qualificados pela lei penal como crime de homicídio, pode ser negado o direito a suceder no sentido da paralisação do seu direito a suceder na herança considerando ilegítimo, por abusivo, o exercício do direito de aceitar a sua herança, tendo como não verificada a condição que lhe permitiu aceitá-la passando esta para os sucessíveis seguintes? II – Nos autos resultou provado que: - “o arguido (ora réu) foi submetido a exame pericial de avaliação psiquiátrica, tendo a perita médica concluído pelo diagnóstico de Psicose Esquizofrénica (Facto provado 46) - sendo que ambas as situações eram prévias aos factos pelos quais se encontra indiciado. (Facto provado 46). - Fruto da descompensação da sua anomalia psíquica grave, o arguido mantinha alterações do comportamento, Facto provado 47 - acreditando que o pai seria o Diabo e a irmã uma cavaleira das trevas que incorporava a Guerra, e que ambos estariam do lado do Mal, enquanto o arguido estaria do lado do Bem. Facto provado 47 - Fruto de alucinações auditivo-verbais, que lhe davam ordens e/ou que comentavam os acontecimentos, bem como de alucinações cenestésicas – sentiu que lhe tinham extraído o Tupac – o arguido resolveu agir, naquilo que considerava ser o mundo paralelo e para onde conseguiria passar através da dilatação da glândula pineal (outra crença delirante), tendo matado os seres maléficos que incorporavam o pai e a irmã.( Facto provado 47 - O referido complexo patológico de que padece o arguido, em relação aos efeitos que produz sobre o seu intelecto e a sua vontade, foi causal do comportamento que lhe é imputado e produziu, no momento da prática dos factos, um efeito psicológico susceptível de o incapacitar para avaliar a ilicitude do mesmo do prisma da realidade existente e de se determinar de acordo com essa avaliação, já que o conduziu a laborar sobre realidade alucinada ( Facto provado 48) - E em razão de doença psiquiátrica irreversível– esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides que o impede de avaliar a ilicitude dos seus atos do prisma da realidade, o Réu foi declarado inimputável( Facto provado 49). III - Mais resultou provado que : Desde meados do ano de 2010, em data não apurada, o arguido passou a residir na Rua ..., área desta comarca de ..., com o seu pai DD e com a sua irmã EE ( 2) ; No dia 2 de Maio de 2019, pelas 14h15m, o arguido deslocou-se à residência da mãe, FF, dizendo que queria ir buscar uns livros(6) (…) Guarda Nacional Republicana de ... composta pelos militares GG e HH que explicaram ao arguido que este necessitava de ser observado por um médico, ao que o arguido respondeu: “não faz sentido eu precisar de ajuda, preciso é de matar os meus pais, é a lei da vida, eles têm que morrer primeiro”. (9)Após o arguido foi transportado pelos Bombeiros de ... até ao Hospital ...em ..., para ser avaliado no âmbito de um processo de internamento compulsivo. (10) IV – E ainda: Desde 2019 que eram conhecidos ao arguido surtos psicóticos e alucinações auditivas.(38)À data da prática dos factos, a doença do arguido encontrava-se já em fase aguda.(41)A recusa do arguido na continuidade de qualquer acompanhamento especializado e terapêutica medicamentosa, associado a uma conduta cada vez mais descontrolada de consumos de diversas drogas com álcool, foram factores promotores de maior instabilidade (descompensação pessoal), verificando-se maior frequência de episódios alucinatórios verbais contra o pai e por vezes contra a irmã, para além de outros episódios de delírio assente em visualizações, ocorrência que promoveu o seu abandono laboral com o pai, evitando-o na habitação familiar, recusando-se a partilhar refeições, por achar que estariam envenenadas.(66)Também no contexto de amizades, os amigos passaram a ser encarados de forma diferente, descrevendo-os como seres amigos de outras dimensões.(67) V- Dos factos provados resulta em súmula que: O arguido (ora Réu) sofria de anomalia psíquica grave – esquizofrenia, prévia aos factos em apreciação nos autos, com alterações de comportamento, alucinações auditivo-verbais que lhe davam ordens e alucinações cenestésicas, laborava numa realidade paralela quando praticou os factos, tendo matado os seres maléficos que incorporavam o pai encontrando-se a sua doença em estado agudo. VI - A esquizofrenia é uma perturbação mental complexa e grave”, que afeta de forma séria “a capacidade de pensar da pessoa, a sua vida emocional e o seu comportamento em geral”, provocando “sintomas, conhecidos como ‘sintomas psicóticos’ (…), como alucinações (por exemplo ver ou ouvir coisas que não existem) e delírios (ter crenças de natureza bizarra ou paranoide que não se enquadram no senso comum), mas também défices cognitivos, como dificuldades em prestar atenção, concentrar-se e abstrair-se”, e sintomas “que traduzem uma espécie de dessubstancialização da personalidade, como a diminuição ou perda da vontade, a apatia, o embotamento emocional e afetivo e sintomas afetivos, como ansiedade, depressão e alterações emocionais em geral” – cfr. Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental sppsm.org/informemente/esquizofrenia/ tb voto vencido Ex.mo Senhor Juiz Desembargador Paulo Ramos de Faria. VII- “No conjunto das perturbações mentais a esquizofrenia é muitas das vezes considerada como a perturbação limite. Uma das doenças mentais mais graves pela sua característica de alienação total da realidade, pela sua cronicidade (…).‘A esquizofrenia tem sido uma das doenças psíquicas com maior gravidade clínica, com particular dificuldade de tratamento e reabilitação e com um prognóstico reservado’” – cfr. MARLI LA-SALETE PINTO NOGUEIRA, Inclusão Social e Bem-Estar da Pessoa Doente Mental, Porto, polic., 2013, p. 98, ver acórdão em recurso Lisboa tb voto vencido Ex.mo Senhor Juiz Desembargador Paulo Ramos de Faria. VIII - A esquizofrenia não tem causa única sendo vários os factores que contribuem para o aparecimento da doença entre os quais - factores hereditários - uma complexa interação de genética e influências ambientais- parentes de primeiro grau de um esquizofrênico têm mais possibilidades de desenvolver a doença do que as pessoas em geral. É o fator de risco mais significativo cfr. sppsm.org/informemente/esquizofrenia/ e https://www.pfizer.com.br/sua-saude/sistema-nervoso-central/esquizofrenia IX - Estudos científicos mais recentes concluem que o risco de esquizofrenia é em quase 80% devido a fatores genéticos – Universidade de Copenhague, Dinamarca, estudo cientifico académico conduzido por Rikke Hilker, Dorte Helenius e equipa que concluiu os fatores hereditários serem responsáveis em 79% pelo risco de esquizofrenia. Publicado na revista “Biological Psychiatry”e National Library of Medicine em https://pubmed.ncbi.nlm.nih.gov/28987712/ X - A partir dos resultados apresentados nos estudos de genética e nos de fatores de risco para esquizofrenia, pode-se concluir que: (a) estudos com famílias, gêmeos e adotados indicam a existência do componente genético para esquizofrenia; (b) estima-se que o componente genético represente de 70% a 80% da susceptibilidade total para desenvolver a doença; (c) os estudos de genética molecular (de ligação e de associação) encontram-se em andamento, tendo apresentado até o momento apenas resultados sugestivos; (d) fatores pré e perinatais parecem aumentar o risco para o desenvolvimento da esquizofrenia; (e) por ser uma doença complexa e comum, a esquizofrenia é, muito provavelmente, um transtorno etiologicamente heterogêneo, isto é, devem existir, por exemplo, casos de esquizofrenia da forma "genética" e da forma "ambiental". E ainda no Brasil https://www.scielo.br/j/rbp/a/rmytdVNhCwxPPCBW36Pwn7J/ XI – Conforme factos provados, pelo menos desde o ano de 2019 (1 ano antes do 13 de Novembro de 2020) o Réu apresentava graves comportamentos de risco com processo de internamento compulsivo em Maio de 2019. XII- Não obstante a inexistência de um dever de garante pela maioridade do Réu, o pai ( pais) e familiares do Réu (os também AA) não agiram com a devida cautela e diligência exigida a um bom pai de família perante os comportamentos anormais do Réu, notórios, de surtos psicóticos e alucinações auditivas contra o pai, delírios e visualizações , perseguição e recusa em partilhar refeições por achar estarem envenenadas, com internamento compulsivo e tratamento psiquiátrico do Réu tendo-se inclusive verificado que o Réu não se encontrava em condições, nem físicas nem emocionais, para, por si só, lidar com a sua situação médica e de doença ainda não diagnosticada recusando tratamento, acompanhamento especializado e terapêutica medicamentosa. (Facto 66) XIII – O Réu não pediu a seu pai para nascer. E muito menos pediu a seu pai para nascer com uma doença mental grave e irreversível, sem cura, como é a esquizofrenia, com elevada probabilidade de origem genética e que leva á destruição da sua existência e qualidade mínima de vida condenado a uma pena perpétua de viver com uma doença crónica mental grave. XIV – Ao réu não pode ser assacado, pelos motivos já expostos e pelo cariz de origem genética da doença da qual padece qualquer responsabilidade e crítica ou censura social. XV- O Réu praticou facto ilícito e típico, declarado inimputável em razão de anomalia psíquica irreversível, incapaz de culpa e isento de um juízo de censura, existindo fundado receio e perigo de no futuro o arguido vir a cometer novos factos ilícitos idênticos e da mesma espécie pelo que se impôs, em nome da defesa social, a aplicação de medidas de segurança com o limite mínimo de 3 anos e o limite máximo de 25 anos. XVI-Encontrando-se ainda em curso a execução da medida de segurança e internamento com tratamento psiquiátrico do réu é desconhecida na presente data, se o Réu, portador de doença mental grave irreversível, crónica e sem cura, ao concluir a medida de segurança que lhe foi aplicada se encontrará possibilitado ou impossibilitado, por questões de anomalia psíquica grave, de exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos, cumprir os seus deveres, e/ou se a sua situação em concreto se enquadra numa situação de beneficio das medidas de acompanhamento previstas nos artigos 138º e ss do Código Civil podendo estas ser requeridas pelo próprio, mediante autorização pelos indicados no artigo 141º CC ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público. XVII- A doença mental grave e irreversível e sem cura de que padece o Réu -esquizofrenia - é uma perturbação mental complexa e grave, que afeta cerca de 21 milhões de pessoas em todo o mundo, pode afetar qualquer pessoa, do género masculino ou feminino, sendo o início da doença mais comum no final da adolescência e início da idade adulta. Nos homens, o início da doença tende a ser mais precoce, com mais sintomas negativos e com prognóstico mais reservado. XVIII - Constitui grave problema de saúde pública mental e da humanidade afectando jovens e populações em idade activa com consequências graves ao nível do estigma social, da exclusão social, daí resultando em pobreza, indigência e situações de sem abrigo e nas ruas, e que traduzem graves custos sociais na comunidade. Portugal tem 48 mil doentes com esquizofrenia que custam 436 ME por ano refere estudo (rtp.pt) – valores ano de 2018 e em crescendo. XIX – Quereria o falecido pai do réu abandonar o filho que gerou, com doença mental grave de origem genética, condenando-o a uma pena perpétua de sofrimento mental e físico, sem habitação, em situação de sem abrigo, sem emprego, sem auxílio, sujeito a novas fases agudas da doença e em vista a repetição de factos similares e de natureza idêntica constituindo perigo para a sociedade entregando o seu património pessoal a terceiros? XX- A decisão final proferida no acórdão em recurso transpõe para a comunidade e contribuinte português a responsabilidade e os custos, enquanto o réu for vivo, do seu sustento, internamento, tratamento, situação que não se compreende e certamente muitos contribuintes portugueses não compreendem se, sendo o réu filho biológico do falecido e tendo sido ele quem o gerou e educou, portador de doença de cariz hereditário , sendo por ele responsável, tendo deixado herança quando faleceu, por que motivo e com que fundamento é a sociedade a pagar o preço para que o acervo hereditário do falecido seja entregue a favor de terceiros, os tios, que nem tão pouco estão obrigados a alimentos ao Réu. XXI - No caso vertente resultou provada a doença da qual o Réu padece e que o colocou numa situação de incapacidade para avaliar os actos que praticou e não teve capacidade para conformar a sua conduta de acordo com essa avaliação apresentando um comportamento psiquicamente desvirtuado e distinto do comportamento do homem médio e comportamento com valores ético morais padrão - o Réu padece de doença de Esquizofrenia que o impede amiúde de percepcionar a realidade tal como ela é, provocando-lhe alucinações sobre as quais labora. Mais ficou demonstrado que, à data e no momento da prática dos factos, o arguido laborava sobre um estado de coisas que não correspondia à realidade, alucinando que o pai e a irmã corporizavam o mal, lhe queriam fazer mal e que tinha de deles defender-se. Resultou igualmente que foi nesse quadro que o arguido se determinou a praticar os factos e os consumou.” XXII - E esta inimputabilidade impede, inelutavelmente, a responsabilização civil do doente mental excepto nos casos especialmente previstos na lei de responsabilidade sem culpa – artigo 483º,n.º 2 e 489º do Código Civil. XXIII- E a especialidade da norma e regime resulta da especialidade das circunstâncias em concreto do individuo, que nele são intrínsecas e que dele não se podem dissocia. XXIV- A regra geral é pois a da Imputabilidade, i.e., a possibilidade de se atribuir a uma pessoa a prática de um ato ilícito, tipificado como crime, e de a responsabilizar penalmente pela sua prática e pressupõe que o agente tenha capacidade para avaliar o mal que pratica, que disponha do discernimento suficiente para representar a situação, consciencializar a ilicitude da mesma e agir e se determinar de acordo com essa avaliação, em relação à qual é possível a censurar, e puni-lo por essa prática, por meio da aplicação de uma pena. Ou seja, “actuar voluntária e conscientemente, sabendo que a sua conduta é proibida por Lei”. XXV - Já no caso dos autos ficou provado que o Réu actuou condicionado pela perturbação psiquiátrica que o afectava no momento da prática dos factos, e que lhe limitou fortemente a capacidade de discernimento, sem liberdade de actuação e de auto - determinação, e que “não tinha capacidade para avaliar a ilicitude dos actos que praticou pelo que, não dispondo de conhecimento nem vontade ou autodeterminação não é possível sujeitá-lo a um juízo de reprovação ou de censura ético-jurídica . XXVI -O Tribunal veio a final decidir, com fundamento no instituto do abuso do direito, declarar a incapacidade sucessória do R. - doente mental crónico, com doença irreversível de esquizofrenia de cariz hereditário que quando se encontrava afectado por um surto psicótico causado pela doença mental da qual padece, num estado de delírio psicótico , que não pôde controlar, praticou factos qualificados pela Lei Penal como de homicídio na pessoa de seu pai - na herança aberta por óbito de seu pai DD – aplicando o mesmo raciocínio e normas legais que aplicaria a um individuo saudável, lúcido, consciente, transformando em regra aquilo que a lei não quis consagrar como tal : a prática pelo inimputável dos factos previstos na al. a) do artigo 2034º do Código Civil como fundamento da indignidade sucessória. (vide voto vencido Ex.mo Senhor Juiz Paulo Ramos de Faria). XXVII - O Tribunal não deve numa situação excepcional como é a do réu, aplicar a mesma norma que aplicaria caso ele não estivesse nessa dita situação excepcional. XXVIII - A aplicação do instituto do abuso de direito previsto no disposto no artigo 334º do Código Civil ao caso concreto revela uma artificialidade porquanto não é possível exigir que actue de forma normal e dentro dos valores éticos e morais da sociedade e dos princípios gerais da boa fé objectiva e bons costumes aquele que não é normal e que por anomalia psíquica grave se encontra, por inerência e natureza biológica, impedido de seguir e afastado do padrão “normal” ético e moral da sociedade no exercício dos seus direitos subjectivos. Donde resulta que o Réu no seu estado de consciência “normal”, “lúcido”, não reagiria da mesma forma. XXIX- Também por todo o exposto não é viável o recurso ao artigo 275º n.º 2 segunda parte do Código Civil , em nada aplicável á situação em concreto, como o faz o Tribunal da Relação de Lisboa, quando afirma que o réu agiu com o propósito consciente e a vontade de provocar a verificação da morte do pai (a condição) determinando a abertura da sucessão deste com vista á aquisição da herança o que de todo corresponde á verdade dos factos dados como provados, tratando-se a aplicação deste regime jurídico ao caso uma mera artificialidade porquanto o que ficou provado – factos provados n.º 46,47, 48 e 49 da matéria dada como provada na sentença absolutória do Réu do crime de homicídio na pessoa de seu pai é que o réu actuou no contexto de um surto psicótico – doença psiquiátrica irreversível que o impediu de avaliar a ilicitude dos seus actos do prisma da realidade , pelo que foi declarado inimputável, ou seja, o réu não actuou em liberdade e autodeterminação ou vontade de actuação. O propósito, a consciência e a vontade do réu em provocar a morte do pai (a condição) e com vista à abertura da sucessão e aquisição da herança deste foram provados inexistentes conforme matéria provada indicada. XXX - Ainda o recurso á jurisprudência feito pelo Tribunal, e designadamente o recurso ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7 de Janeiro de 2010 – Processo n.º 104/07.9..., em www.dgsi.pt não é o adequado porquanto o caso em análise o pai violador é imputável, foi condenado na prática do crime pelo qual foi acusado tendo agido com consciência do acto ilícito que estava a praticar, agiu como quis, de forma voluntária, pelo que foi condenado na prática do crime contra a sua filha cuja herança queria receber. XXXI - A decisão do acórdão em recurso viola o principio da dignidade humana do réu no dispositivo artigo 1º da Constituição da República Portuguesa onde se incluem os direitos dos doentes, doente mental crónico, portadores de anomalias psíquicas, protegidos nas suas especificidades e necessidades e nas suas capacidades de exercício de direitos e deveres bem como no gozo efectivo dos seus direitos; XXXIV - A decisão do acórdão em recurso viola o principio da igualdade do disposto no inimputável e o imputável , este no sentido de individuo dotado de razão e capacidade, vontade e liberdade de realizar escolhas, da prática do facto , com faculdades psíquicas e físicas mínimas que o motivam a realizar esse acto , capaz de perceber a relação de causa e efeito de suas ações e orientá-las para o bem, com capacidade de discernimento e com compreensão do valor das próprias acções e a quem pode e deve ser exigido que actue dentro das normas standart padrão da sociedade, na base da boa fé objectiva, no respeito pelos bons costumes, num dever de agir com base em valores éticos e morais da sociedade e Estado de Direito. XXXV - Porque os doentes mentais são dos elementos mais frágeis da sociedade, marginalizados, vítimas de preconceito social, e nem sempre conseguem actuar dentro das normas da ética e das normas da sociedade. Não porque não queiram. Mas sim porque não têm controle de vontade sobre os seus comportamentos pela doença mental da qual padecem e que lhes é intrínseca. Como ficou provado no caso do réu. XXXVI - A decisão do acórdão em recurso viola os Princípios fundamentais dos Estados de Direito Democráticos e os principais instrumentos internacionais sobre direitos fundamentais de que o nosso país é parte designadamente “Declaração Universal dos Direitos do Homem” nos seus artigos 1º de acordo com o qual “Todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos. São dotadas de razão e consciência e devem agir em relação umas às outras com espírito de fraternidade”; nos seus artigos 3º, 5º e 7º estabelecendo a inviolabilidade da dignidade do ser humano e impondo o dever de respeito e a obrigação de protecção aos mais fragilizados e doentes e proibição do tratamento desumano e descriminação e proibição de abandono do individuo vitima de grave doença mental , irreversível e sem cura na defesa de uma sociedade democrática nas suas noções de tolerância para com os doentes mentais nos quais a loucura assume vontade própria superando a vontade humana e sempre no respeito pela dignidade humana destes doentes. XXXVII - A decisão do acórdão em recurso viola o Princípio 1 n.º 2, 3, 4, e 5 das Liberdades Fundamentais e Direitos Básicos ínsito nos Princípios para a Protecção das pessoas com doença mental e para o melhoramento dos cuidados de saúde mental - Resolução 46/119 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 17 de dezembro de 1991 XXXVIII - Ressalva ainda na Ordem Jurídica Portuguesa a importância ao tema na defesa de uma sociedade democrática nas suas noções de tolerância para com os doentes mentais nos quais a loucura assume vontade própria superando a vontade humana e sempre no respeito pela dignidade humana destes doentes com a aprovação da Lei de Saúde Mental aprovada pela Lei n.º 35/2023, de 21 de julho e respostas sociais utilizadas pelo ordenamento jurídico para fazer face à perigosidade que o doente mental pode representar, e designadamente ao nível da proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e proibição de qualquer forma e tratamento discriminatório de acordo com os princípios gerais de direito e da Constituição e designadamente o principio da igualdade, fraternidade e da dignidade da pessoa humana. E veja-se relativamente à gestão do património do doente mental o seu artigo 13º e em menção o regime do maior acompanhado e necessária intervenção do Ministério Público. XXXIX - Pelos motivos da inimputabilidade e da doença crónica e anomalia psíquica grave do Réu, situação que não é atinente á moralidade e à boa fé, mas sim de natureza e intrínseca ao indivíduo, não é possível concluir que o Réu, ao receber a herança de seu falecido pai, actue em manifesto abuso de direito nos termos previstos no artigo 334º do Código Civil e que exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé e dos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito. XL - O instituto do abuso do direito tem subjacente a justiça na aplicação do Direito, na aplicação da norma, observadas as especificidades da vida adaptada à evolução da vida em sociedade e dos princípios que a norteiam numa evolução crescente e do respeito pela aplicação dos princípios gerais de direito no Estado de Direito Democrático e sempre em função das concretas circunstâncias de cada caso, no caso a inimputabilidade do Réu e a sua doença mental grave e anomalia psíquica. XLI- Pelo que o Tribunal não fez correcta análise pelos motivos já expostos tendo prevalecido na decisão valores éticos e morais individuais de repúdio discricionário ao comportamento de um louco e sem ajuste aos actuais conhecimentos médicos da doença e públicos e preocupações em sociedade sobre a questão das doenças mentais graves, questões de saúde pública mental e dos seus efeitos em sociedade, agravados com a pandemia conforme Serviço Nacional de Saúde em https://www.sns24.gov.pt/tema/saude-mental/impacto-da-covid-19-na-saude-mental/ recordando que os factos praticados pelo Réu e em análise nos autos datam de 13 de Novembro de 2020 , em pleno ano de pandemia com confinamento desde 9 de Março de 2020. XLII - Situação a qual não é o objectivo do Direito e da Ciência Jurídica actualizada, constituinte e experiente tendo, por esta via, o Tribunal da Relação de Lisboa promovido uma decisão gravemente injusta e em violação à Lei e ao Direito e designadamente aos normativos constitucionais da dignidade do ser humano, da legalidade e da igualdade de tratamento e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. XLIII - Não sendo pois possível a aplicação do instituto do abuso de direito o Réu CC mantém pois plena capacidade sucessória na herança de seu pai DD XLIV- A decisão em recurso viola o disposto nos artigos 334º do Código Civil; os artigos 1º e artigo 13º da Constituição da República Portuguesa; os artigos 1º, 3º, 5º e 7º da Declaração Universal dos Direitos do Homem; o principio 1 das LIBERDADES FUNDAMENTAIS E DIREITOS BÁSICOS garantidos nos PRINCÍPIOS PARA A PROTECÇÃO DAS PESSOAS COM DOENÇA MENTAL E PARA O MELHORAMENTO DOS CUIDADOS DE SAÚDE MENTAL adotados pela resolução 46/119 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 17 de dezembro de 1991; Termos em que, nos demais de Direito e que V. Exas doutamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência a decisão judicial em recurso e proferida pelo Tribunal da Relação de Lisboa ser revogada mantendo o Réu CC plena capacidade sucessória na herança e para suceder a seu pai DD». 3. Os recorridos, notificados da alegação de recurso, vieram apresentar contra-alegações, nas quais pugnam pela manutenção do decidido. 4. Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do CPC) que se delimita o objeto do recurso, as questões a conhecer são as seguintes: I - Saber se está correta juridicamente, no plano do direito civil, a decisão de declarar a incapacidade sucessória do Réu, por indignidade nos termos do artigo 2034.º, n.º 1, al. a), do Código Civil ou de paralisar o exercício do seu direito a aceitar a herança, pela aplicação do instituto do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), tendo em conta que o réu, então arguido, foi absolvido, em processo crime, da prática do crime de homicídio qualificado (artigo 131º do Código Penal), na pessoa do seu pai, por falta de culpa jurídico-criminal, em face de inimputabilidade decorrente da doença psiquiátrica irreversível de esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides. II – Saber se a decisão em recurso viola o disposto nos artigos 1.º e 13.º da Constituição da República Portuguesa e normas de direito internacional que protegem os direitos da pessoa com doença mental. Cumpre apreciar e decidir. II – Fundamentação A – Os factos As instâncias consideraram provada a seguinte factualidade: 1. DD faleceu no dia ... de novembro de 2020, no estado de solteiro e sem ascendentes vivos. 2. Os Autores, AA e BB, são irmãos de DD. 3. O Réu CC é filho de DD. 4. Por Acórdão proferido pelo Juízo Central Criminal ..., Juiz..., no processo comum (Tribunal Colectivo) n.º 410/20.7..., transitado em julgado em 17/10/2022, foi decidido: “-Absolver o arguido, CC, da prática dos crimes de Ofensa à Integridade Física Qualificada na forma tentada, p. p. pelos artigos 22º, 23º 143º e 145º nº 1 alínea a) e nº 2, por referência ao artigo 132º, nº 2, alíneas a), e) e j), do Código Penal, praticado contra FF; - Absolver o arguido, CC, da prática dos crimes de Homicídio Qualificado p. p. respetivamente, pelos artigos 14º nº 1, 26º, 131º e 132º nºs 1 e 2, alínea a), do Código Penal, e 131º, 132º, nºs 1 e 2, al.s c), e) e j), do mesmo diploma, de que vinha acusado; - Absolver o arguido, CC, pela prática de dois crimes de Ameaça Agravada, p. p. no artigo 153º e 155º nº 1, alínea a) do Código Penal, contra FF e II, de que vinha acusado; - Declarar que o arguido, CC, praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Homicídio p. p. pelo art. 131º, do Cód. Penal, na pessoa de DD; - Declarar que o arguido, CC, praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Homicídio p. p. pelo art. 131º do Código Penal, na pessoa de EE; - Declarar que o arguido, CC, praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Aborto, p. p. no artigo 140º, nº 1, do Código Penal, de que vinha acusado; - Declarar o arguido, CC, inimputável em razão de doença psiquiátrica irreversível – Esquizofrenia associada ao consumo de canabinóides - que o impede de avaliar a ilicitude dos seus atos do prisma da realidade e, consequentemente, não lhe aplicar qualquer pena; - Declarar que existe perigo de prática de novos ilícitos criminais por banda do arguido, CC, e, consequentemente, aplicar-lhe medida de segurança de duração não inferior a três (3) anos e não superior a vinte e cinco (25) anos, cuja execução será avaliada nos termos previstos nos artigos 92° a 96º do Código Penal. - Não suspender a execução da medida de segurança de internamento e tratamento em estabelecimento adequado imposta ao arguido.” 5. Da factualidade dada como provada no Acórdão referido em 4., consta além do mais que: “- O arguido sabia que, ao desferir facadas na cabeça, costas e tronco de DD e na cabeça e zona torácica de EE provocaria a sua morte, como veio a acontecer. - E também sabia que com a sua atuação iria causar a morte do feto que sabia que a irmã, EE, trazia em gestação, como veio a acontecer. - Em suma, a atuação do arguido foi a causa direta e necessária, da morte de DD e de EE, ocorrida no local e verificada pelas 23h30m do dia 13 de Novembro de 2020. - O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a DD e a EE, fazendo-a abortar, sabedor que tal conduta lhe era vedada por lei”. 6. Do referido Acórdão constam como factos provados os seguintes: “Da Acusação Pública; da Acusação formulada pelo Assistente, do Pedido Cível e da discussão da causa, resultaram provados os seguintes factos: 1. O arguido, CC, é filho de FF (doravante designada FF) e de DD (doravante designado DD) e irmão de EE. 2. Desde meados do ano de 2010, em data não apurada, o arguido passou a residir na ..., área desta comarca de ..., com o seu pai DD e com a sua irmã EE. 3. No dia 30 de Abril de 2019, em hora não concretamente apurada, o arguido encontrava-se na residência da sua mãe, FF, sita no ..., a consumir produto estupefaciente. 4. FF, apercebendo-se de que o arguido estaria a consumir, proibiu-o de se manter na sua residência enquanto continuasse a consumir produto estupefaciente, sendo que, logo após, em face da expressão do arguido, aquela fugiu do último. 5. Na referida data e após o episódio descrito, FF proibiu o arguido de se deslocar e manter na sua residência. 6. No dia 2 de Maio de 2019, pelas 14h15m, o arguido deslocou-se à residência da mãe, FF, dizendo que queria ir buscar uns livros. 7. FF não permitiu que o arguido entrasse na residência e o arguido sentou-se no chão dizendo que iria ficar no local a desidratar ao sol. 8. Mais disse que ninguém o podia tirar dali, por se encontrar na via pública. 9. No local compareceu uma patrulha da Guarda Nacional Republicana de ... composta pelos militares GG e HH que explicaram ao arguido que este necessitava de ser observado por um médico, ao que o arguido respondeu: “não faz sentido eu precisar de ajuda, preciso é de matar os meus pais, é a lei da vida, eles têm que morrer primeiro”. 10. Após o arguido foi transportado pelos Bombeiros de ... até ao Hospital de ... em ..., para ser avaliado no âmbito de um processo de internamento compulsivo. 11.Ao proferir as expressões referidas em 9, o arguido agiu com o intuito de amedrontar e de prejudicar a liberdade de determinação daqueles que eram os seus pais, 12. fazendo-os temer pela integridade física e vida. 13. No dia 13 de Novembro de 2020, no período compreendido entre as 23h00m e as 24h00m, o arguido CC deslocou-se para a sua residência, após ter estado no estabelecimento “D...”, sito na ..., .... 14. Chegado à residência, DD encontrava-se na cozinha, a cortar alimentos com uma faca de serrilha (vulgo faca do pão), tendo-se ali iniciado uma troca de palavras entre ambos. 15. Acto contínuo, o arguido retirou a referida faca de serrilha ao pai e desferiu-lhe vários golpes em locais distintos do corpo, nomeadamente, cabeça, costas e tronco. 16. Após, o arguido muniu-se de outra faca e continuou a desferir golpes, com a mesma, no corpo de DD, que, a certa altura conseguiu fugir para o quarto do arguido, tendo fechado a porta, dirigindo-se para a varanda, onde acabou por falecer. 17. EE, irmã do arguido, ao aperceber-se do sucedido, tentou socorrer o pai, acabando por ser várias vezes golpeada, com outra faca, pelo arguido, em diversas regiões do corpo, nomeadamente na cabeça e na zona torácica. 18. EE acabou por falecer na cozinha. 19. EE estava grávida, com período de gestação estimado entre 9 e 10 de semanas, sendo que o feto não apresentava anomalias feto-placentares, pelo que a morte do feto se deu in útero, devido ao falecimento da mãe. 20. Após, o arguido abandonou a residência, no veículo com a matrícula ..-JU-.., propriedade do pai do arguido e que era utilizado pela irmã, EE. 21. O arguido foi detido no Bairro ..., ..., no dia 16 de Novembro de 2020, por agentes da Polícia de Segurança Pública, após ter passado a noite com JJ, numa viatura abandonada nas imediações do referido bairro, a quem contou o sucedido. 22. Como consequência directa da actuação do arguido, DD sofreu as seguintes lesões: - Na Cabeça: 6 feridas cortantes com formas e orientações diversas, dispersas pela região frontal, parietal esquerda, sobrancelha direita, hemiface direita, mento (superficial) e ramo esquerdo da mandibula, esta a maior, horizontal e profunda até ao plano ósseo (que não lesava), estendendo-se para baixo e para trás, até ao limite lateral superior do pescoço, ao nível da orelha, com 12,5cmx2cm e as duas extremidades em "V"; uma ferida corto-perfurante vertical, com 1 extremidade em "V" e a outra romba, na hemiface direita, centímetro e meio à frente da orelha respectiva, medindo 3cmx0,4mm, com trajecto subcutâneo para baixo e para a frente (ferida A); - No pescoço: ferida cortante na região cervical esquerda alta, continuada da descrita na cabeça sobre o ramo homolateral da mandibula; 3 feridas cortantes sensivelmente horizontais, na face direita, a maior, superficial com 10cmx1,5cm; ferida corto-perfurante, abaixo da orelha esquerda, com 2cmx0,6cm, vertical e em rabo de peixe; - No tronco: ferida corto-perfurante com 3cmx1cm, distando 2,5cm para a esquerda do bordo esternal, no plano horizontal do mamilo, de orientação vertical mas em forma de "L" alongado (movimento na ferida?) com 1 extremidade em "V" (ferida B), com trajecto para baixo, para trás e ligeiramente para a esquerda; ferida cortante superficial, cerca de 1,5cm para cima e para a direita da anterior, estendendo-se horizontalmente do esterno para a direita, medindo 10cm; 4 feridas superficiais, 2 sobre a grelha costal esquerda, 2 no flanco esquerdo e uma linear no epigastro; nove feridas corto-perfurantes fusiformes dispersas pelo dorso, da nádega direita à escápula homolateral, em correspondência com as descritas na roupa e com vários padrões (com 1 ou 2 extremidades em “V”, de orientações diversas, algumas em "rabo de peixe", 2 da nádega direita com cauda), a maior sobre a coluna dorsal baixa medindo 2cmx0,4mm perfurante até à coluna, mas sem interessar a medula, nenhuma delas logrando penetrar nas cavidades torácica ou abdominal; nestas se incluíam 2 feridas dorso-lombares justapostas, sobre a linha escapular posterior direita, distando a mais inferior e lateral cerca de 1 cm da outra, em possível relação com a perfuração renal descrita abaixo, duas feridas corto-perfurantes fusiformes, com apenas uma extremidade em "V", na face lateral direita do abdómen, fusiformes, de dimensão idêntica às anteriores; - No membro superior direito: 5 feridas cortantes no dorso dos 1°, 20 e 30 dedos e 2 na palma da mão, a maior na falange distal do 30 dedo com 3cmx0,2cm; ferida linear com 8cm no terço médio da face posterior do antebraço - feridas de defesa; - No membro superior esquerdo: ferida cortante na face anterior da falange distal do 30 dedo com 3cmx0,5cm - feridas de defesa; - No membro inferior direito: 5 equimoses vermelhas dispersas pela coxa, perna e joelho, neste se situando as duas maiores, numa área com 6cmx2,5cm; - No membro inferior esquerdo: ferida cortante na face lateral do terço médio da perna, ascendente para cima e para dentro, em relação com rasgão descrito na roupa no mesmo local, medindo 7cmx2cm, com cerca de 1 ,5cm de profundidade e 2 extremidades em "V"; - No pescoço: 2 perfurações altas da veia jugular interna, ao nível da bifurcação da carótida que estava íntegra; intensa infiltração sanguínea em redor que interessava os tecidos moles e envolvia toda a parótida direita, bem como a bainha carotídea em toda a sua extensão; vago direito intacto; todos estes ferimentos em provável relação com a ferida A; - Nas paredes do tórax: ferida corto-perfurante (2 feridas?) no 5° espaço intercostal esquerdo (ferida B), com apenas uma extremidade em "V", medindo 3cmx0,6cm, não lesando as costelas, com trajecto infiltrado de sangue, que se continuava lateralmente e à esquerda do saco pericárdico, em profundidade nessa gordura, para a cavidade pleural e até ao pulmão (ver abaixo) - No pulmão esquerdo e pleura visceral: 2 feridas corto-perfurantes cercadas de sangue, a maior medindo 3cm, na face mediastínica e posterior do lobo inferior, junto à coluna, com apenas uma extremidade em "V", distando uma da outra cerca de 2cm, em relação com a ferida B; e - No rim direito: Infiltração sanguínea das gorduras pararrenal e perirrenal cercando também trajecto de ferida corto-perfurante que atingia o terço médio da face posterior do rim, em relação provável com as feridas da linha escapular posterior direita atrás descritas, sem interessar a medula. 23. A morte de DD deveu-se às lesões traumáticas do pescoço e torácicas descritas, sendo que tais lesões traumáticas constituíram a causa adequada de morte. 24. Estas lesões e as restantes lesões traumáticas descritas (com excepção das equimoses do membro inferior direito) denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza cortante e corto-perfurante ou actuando como tal, podendo ter sido devidas a agressão com facas. 25. As feridas com responsabilidade letal foram as denominadas A e B com as seguintes direcções e trajectos: Ferida A: na face com trajecto para baixo, para a frente e ligeiramente para dentro atingindo a veia jugular interna direita; Ferida B: na face anterior do tórax, com trajecto para baixo, para trás e ligeiramente para a esquerda atingindo o pulmão esquerdo. 26. As lesões traumáticas observadas no membro inferior direito (equimoses) denotam haver sido produzidas por instrumento de natureza contundente ou actuando como tal, podendo ter resultado da agressão com faca. 27. Como consequência directa da actuação do arguido, EE sofreu as seguintes lesões: - Na cabeça: 5 feridas cortantes na região da orelha direita, 3 no próprio pavilhão auricular, uma à frente pré-auricular, a maior, linear e vertical com 2cm e outra atrás da orelha, mais pequena; - 6 feridas incisas na face, nas regiões frontal, zigomática e masseterina direitas (do canto da boca para a direita), nariz e sobre o ramo esquerdo da mandibula, onde se situava a maior, que se estendia da face cutânea do hemilábio esquerdo à orelha homolateral com 10cmx2cm, com pequena cauda ascendente; - No nariz: equimoses roxas dispersas pelas regiões frontal, zigomática e mandibular direitas e dorso do nariz a maior na mandibular direita com 4 5cmx3cm; - Na face lateral esquerda do pescoço: 13 feridas cortantes e perfurantes, sendo 5 maiores, mais profundas e eminentemente perfurantes, de morfologia distinta, mas com caudas que indiciam um sentido da direita para a esquerda, a maior sobre o ângulo esquerdo da mandibula (ferida A), complexa, irregular e destrutiva, medindo 7 ,5cmx3,3cm; - Na face posterior do pescoço: 8 feridas cortantes e perfurantes, 7 na metade direita dispersas numa área com 11cmx4cm, a maioria fusiformes, mas com 1 triangular, a maior, mais superior e lateral, com 1 cm de base e 5,5cm de altura (ferida B); a ferida restante, situava-se na parte superior esquerda, era horizontal, em meia-lua de concavidade inferior e profunda até a coluna cervical com 6,5cmx2cm; - Na face anterior do pescoço: várias feridas cortantes superficiais na face anterior, de orientações diversas, a maior horizontal, sobre a proeminência laríngea, com 7cmx7mm que se estendia para a face lateral esquerda; - No tórax (dorso): 5 feridas corto-perfurantes numa área com 8,5cmx4,5cm, na parte média do dorso, em relação com os rasgões da roupa, de formas distintas, sendo 3 à esquerda (a mais inferior fusiforme com uma extremidade em "V" medindo 12mmx3mm), uma das direitas superficial e a outra, em forma de "T" oblíquo, medindo o ramo horizontal 2,5cm e o vertical 1,5cm, com pequena cauda infero-lateral; - No abdómen: 2 feridas cortantes superficiais, uma paramediana direita, estendendo-se desde o epigastro ao limite superior do hipogastro com 12cm e outra peri-umbilical esquerda, horizontal, com 2 cm; - No membro superior direito: 14 feridas incisas no terço inferior do antebraço, punho e mão, 7 na face palmar e a maior na face dorsal do punho, com 5cmx2,7cm, profunda até ao plano ósseo com secção de tendões e marca óssea cortante na face posterior do radio - feridas de defesa; equimose roxa-esverdeada com 7 cmx5 cm; - No membro superior esquerdo: 12 feridas incisas, 4 palmares e todas superficiais com excepção da maior na face dorsal do punho que, ainda assim, não ultrapassava o plano aponevrótico – feridas de defesa; equimose roxa-esverdeada no terço media da face posterior do braço com 4cmx3cm; - No membro inferior direito: equimose vermelha com 6cmx4,5cm no joelho; escoriação apergaminhada com 14cm x 1cm; - No membro inferior esquerdo: 3 feridas incisas com uma e duas extremidades em "V" na face lateral da perna, a maior no terço inferior com 2cm, todas superficiais, 2 delas em relação com os rasgões das calças; 4 equimoses vermelhas, 2 nos joelhos e uma na perna, a maior no joelho com 7cmx5cm; - No pescoço: perfuração transfixiva da membrana tiro-hioideia da esquerda para a direita - ferida A; 2 gânglios linfáticos cervicais profundos infiltrados de sangue à esquerda ; - Nos músculos do pescoço: secção irregular, quase completa, dos músculos platisma e esterno-cleido-mastóideo esquerdos no seu terço superior (ferida A); 3 feridas perfurantes laterais esquerdas em continuação de 3 das mais profundas feridas descritas na face lateral esquerda do pescoço e 1 mais atrás da e abaixo da ferida A, que ainda seccionava o bordo lateral do músculo trapézio; secção oblíqua para baixo e para a frente do terço superior do esterno-cleido-mastoideu direito (ferida B), acima da glândula tiróide, irregular, com perfuração da veia jugular interna direita; secção irregular do esterno-hioideu direito; tudo rodeado de infiltração sanguínea; - Nos vasos, nervos e gânglios do pescoço: perfuração alta da veia jugular e da artéria carótida direitas com intensa infiltração sanguínea dos tecidos moles em redor e da bainha carotídea, ao nível da bifurcação da carótida; o vago homolateral estava íntegro (ferida B e/ou ferida A); Perfuração da veia retromandibular esquerda (jugular interna homolateral integra) e secção completa da carótida interna esquerda, presa apenas pela adventicia (ferida A); - No útero e anexos: presença de útero gravídico, com saco gestacional íntegro medindo 8cmx5,5cm contendo liquido amniótico de aparentemente normal e feto com aspecto macroscópico de cerca de 3 meses, sem vida. 28. A morte de EE foi devida às lesões traumáticas do pescoço descritas, sendo que tais lesões traumáticas constituíram a causa adequada da sua morte. Estas e as restantes lesões traumáticas descritas denotam ter sido produzidas por instrumento de natureza cortante e corto-perfurante ou actuando como tal, podendo ter sido devidas a agressão com facas. 29. As feridas letais, denominadas A e B, tiveram as seguintes direcções e trajectos: Ferida A: na face, no ângulo da mandibula esquerda, com trajecto ligeiramente para baixo e para dentro; Ferida B: na face posterior direita do pescoço, com trajecto para baixo, para a frente e ligeiramente para a esquerda. 30. As vítimas foram encontradas sem vida em traje de pijama, pelas 11:30 do dia 14.11.20, na respectiva habitação. 31. Nessa ocasião, não foi encontrada qualquer porta ou janela forçada ou danificada. 32. À data e já há alguns anos, que o arguido residia juntamente com as vítimas, 33. ninguém mais vivendo na habitação dos mesmos. 34. Logo a seguir aos factos, a viatura de matrícula ..-JU-.., habitualmente conduzida pela falecida EE mas à qual o arguido também tinha acesso, deixou de ser vista nas imediações da residência das vítimas, vindo a ser localizada poucos dias depois num parque da EMEL, contendo, no respectivo interior, entre o mais, uma toalha com vestígios hemáticos quer do arguido quer das vítimas. 35. Após os factos, o arguido permaneceu incontactável, tendo sido localizado dois dias depois, com roupa que não lhe pertencia, no Bairro ..., a pernoitar no interior de uma viatura. 36. Nessa altura, o arguido calçava ténis em cujas solas se encontravam vestígios hemáticos das vítimas. 37. No dia 14.11.20 à noite, o arguido já apresentava os cortes nos dedos registados a fls. 222. 38. Desde 2019 que eram conhecidos ao arguido surtos psicóticos e alucinações auditivas. 39. Não são conhecidos quaisquer atritos mantidos entre as vítimas e terceiros. 40. As agressões começaram na sala da referida habitação e prolongaram-se para o quarto da vítima EE e corredor. 41. À data da prática dos factos, a doença do arguido encontrava-se já em fase aguda. 42. O arguido sabia que, ao desferir facadas na cabeça, costas e tronco de DD e na cabeça e zona torácica de EE lhes provocaria a morte, como veio a acontecer. 43. E também sabia que com a sua actuação iria causar a morte do feto que sabia que a irmã, EE, trazia em gestação, como veio a acontecer. 44. Em suma, a actuação do arguido foi a causa directa e necessária, da morte de DD e de EE, ocorrida no local e verificada pelas 23h30m do dia ... de novembro de 2020. 45. O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a DD e a EE, fazendo-a abortar, sabedor que tal conduta lhe era vedada por lei. 46. O arguido foi submetido a exame pericial de avaliação psiquiátrica, o qual consta de fls. 757 a 767, que se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, tendo a perita médica com pelo diagnóstico de Psicose Esquizofrénica (CID-10: F 20, OMS, 1992), associada ao consumo de múltiplas substâncias, nomeadamente canabinóides (CID-10: F 19, OMS, 1992), sendo que ambas as situações eram prévias aos factos pelos quais se encontra indiciado. 47. Fruto da descompensação da sua anomalia psíquica grave, o arguido mantinha alterações do comportamento, acreditando que o pai seria o Diabo e a irmã uma cavaleira das trevas que incorporava a Guerra, e que ambos estariam do lado do Mal, enquanto o arguido estaria do lado do Bem. Fruto de alucinações auditivo-verbais, que lhe davam ordens e/ou que comentavam os acontecimentos, bem como de alucinações cenestésicas – sentiu que lhe tinham extraído o Tupac – o arguido resolveu agir, naquilo que considerava ser o mundo paralelo e para onde conseguiria passar através da dilatação da glândula pineal (outra crença delirante), tendo matado os seres maléficos que incorporavam o pai e a irmã. 48. Por força das referidas patologias e pelo facto de manter à data de hoje algum apelo ao consumo de estupefacientes – cujo efeito anula substancialmente a acção terapêutica -, o arguido, à semelhança do que sucedeu à data da prática dos factos, labora por vezes em cenários inexistentes pelo que não tem, nesses momentos, capacidade de avaliar a ilicitude dos seus atos do prisma da realidade existente, tendo concluído a I. Perita Psiquiatra por fundados receios de que venha a cometer atos delituosos semelhantes aos que estão em causa nos autos. 49. O referido complexo patológico de que padece o arguido, em relação aos efeitos que produz sobre o seu intelecto e a sua vontade, foi causal do comportamento que lhe é imputado e produziu, no momento da prática dos factos, um efeito psicológico suscetível de o incapacitar para avaliar a ilicitude do mesmo do prisma da realidade existente e de se determinar de acordo com essa avaliação, já que o conduziu a laborar sobre realidade alucinada. 50. O arguido é o mais novo de dois filhos de um casal de mediana condição económica, CC cresceu nos primeiros anos de vida no seio da família nuclear, constituída pelos progenitores e irmã nove anos mais velha, estrutura familiar que se alterou passados alguns anos, com a separação dos pais. 51. Regressados a Portugal, a separação do casal viria a ocorrer quando o arguido contava três anos de idade, tendo a mãe saído do lar familiar com os dois filhos, fixando residência na ..., em ..., local de residência de alguma proximidade geográfica à zona residencial do progenitor, também em .... 52. Integrado no agregado materno e, apesar da separação dos pais, CC manteve um contacto regular com o progenitor, convívio que a partir dos nove anos de idade se tornou mais estreito, quando passou a pernoitar na sua habitação aos fins-de-semana. 53. Com um crescimento decorrido no agregado materno até aos dezoito anos, a dinâmica familiar ter-se-á regido por um clima harmonioso, impondo-se alguma intervenção pedagógica por parte da progenitora para com os dois descendentes. 54. A primeira experiência do arguido com substâncias estupefacientes (haxixe) terá ocorrido aos treze anos de idade. 55. O arguido era consumidor de substâncias estupefacientes, nomeadamente canábis, bem como a ingestão de bebidas de teor alcoólico elevado, adquiridas em supermercados por elementos mais velhos do grupo de pares, tendo-se agravado com os anos a sua conduta aditiva. 56. No plano escolar, o arguido regista um percurso regular e com aproveitamento satisfatório, tendo concluído aos dezoito anos, o 12º ano de escolaridade. 57. A sua primeira experiência laboral terá ocorrido em idade precoce, aos catorze anos, durante os fins-de-semana, onde colaborava com o pai na gestão do negócio familiar, no comércio de ..., auxiliando na sua entrega em restaurantes da zona. 58. Só mais tarde, aos dezasseis anos de idade, em períodos de férias, passou a colaborar de forma mais intensa, trabalho do seu agrado pessoal, mantendo um bom relacionamento com o progenitor. 59. A sua primeira experiência amorosa com KK, namoro com algumas interrupções ao longo do tempo, sendo a fase mais estável entre a idade de dezanove e de vinte e seis anos, data em que ocorreu a separação afetiva, tendo o casal chegado a viver em união de facto na casa do pai do arguido. 60. A partir dos seus dezoito anos de idade, o arguido passou a residir definitivamente no lar paterno, opção como solução para a sua integração laboral a tempo inteiro junto do pai, por já ter concluído o 12º ano escolaridade e não desejar dar continuidade aos estudos. 61. O reencontro e adesão com as amizades associadas aos consumos de estupefacientes na zona residencial do pai, com saídas noturnas e festas rave, precipitou o arguido para novos consumos de haxixe e ingestão de bebidas brancas. 62. Nessa fase, optou por trabalhar numa loja ligada a ..., tendo inclusivamente passado a gerir esse negócio com um amigo durante cerca de um ano, negócio sem sucesso, tendo contado com o apoio do progenitor na amortização de algumas dívidas contraídas, retomando então o trabalho com o pai na empresa familiar. 63. O agravamento da adição e a mistura das várias substâncias químicas favoreceu um quadro progressivamente depressivo e marcado pelo isolamento social, tendo nessa sequência terminado a relação com a namorada e evitado o contacto com os amigos em comum, mantendo, contudo, a atividade laboral junto do progenitor. 64. Essa fase de isolamento social viria a ser ultrapassada cerca de ano depois, com o abandono dos medicamentos dirigidos à sua dieta, passando a evidenciar uma conduta mais extrovertida, retomando a ligação ao grupo de pares ligado ao consumo de drogas e a prática aditiva, esta última de forma descontrolada, não só com consumos de haxixe e canábis, mas adicionando outras substâncias sintéticas, nomeadamente LSD, MDMA, bem como cogumelos e cocaína (fumada e inalada), juntamente com a ingestão abusiva de bebidas brancas. 65. Por recomendação médica, o arguido ingressou na Clínica S... em ..., para desabituação do consumo aditivo, tratamento também interrompido, por sua opção. 66. A recusa do arguido na continuidade de qualquer acompanhamento especializado e terapêutica medicamentosa, associado a uma conduta cada vez mais descontrolada de consumos de diversas drogas com álcool, foram fatores promotores de maior instabilidade (descompensação pessoal), verificando-se maior frequência de episódios alucinatórios verbais contra o pai e por vezes contra a irmã, para além de outros episódios de delírio assente em visualizações, ocorrência que promoveu o seu abandono laboral com o pai, evitando-o na habitação familiar, recusando-se a partilhar refeições, por achar que estariam envenenadas. 67. Também no contexto de amizades, os amigos passaram a ser encarados de forma diferente, descrevendo-os como seres amigos de outras dimensões. 68. No Estabelecimento Prisional, o seu quotidiano, para além de algumas atividades psicoterapêuticas orientadas, é partilhado com a atividade laboral que desempenha como ajudante no café do seu piso, atividade do seu agrado pessoal. 69. Também regista uma postura colaborante perante o acompanhamento e atividades de que beneficia nesse contexto. 70. Tem beneficiado de visitas por parte de um irmão consanguíneo mais velho, sendo que a progenitora já anteriormente o visitou e mantém o seu suporte através do contacto telefónico e envio de algum quantitativo monetário para despesas várias e carregamento do cartão telefónico. 71. O assistente e a demandante tinham um relacionamento afetivo e familiar muito próximo das vítimas e sofreram profunda tristeza e transtorno com o falecimento das mesmas. 72. Não são conhecidos antecedentes criminais ao arguido”. B – O Direito 1. Os autores peticionaram na presente ação que o réu fosse declarado indigno de suceder ao seu pai, por contra este ter praticado factos integradores do tipo legal de crime de homicídio qualificado (artigo 131.º do Código Penal), tendo ficado provado que, apesar de ter sido absolvido em virtude de ausência de culpa por inimputabilidade, o arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a DD, seu pai. Baseiam o seu pedido na interpretação extensiva do artigo 2034.º, al. a) ou na aplicação do abuso do direito (artigo 334.º do Código Civil), invocando a diferente natureza e pressupostos da sanção criminal e da sanção cível. 2. A sentença do tribunal de 1.ª instância, considerando que a enumeração do artigo 2034.º do Código Civil é taxativa e que a norma tem natureza excecional, não podendo ser objeto de aplicação analógica nem de interpretação extensiva, decide que a factualidade destes autos não se enquadra na previsão do artigo 2034.º, alínea a), do Código Civil, que exige expressamente a natureza dolosa do crime de homicídio e uma sentença de condenação transitada em julgado proferida em processo penal. Decide, todavia, declarar a incapacidade sucessória do Réu, com fundamento no instituto do abuso de direito (artigo 334.º do Código Civil), «(…) uma vez que reconhecer-lhe capacidade sucessória relativamente ao pai, contra quem atentou intencionalmente contra a vida, como resulta da factualidade provada no processo penal, e ainda que tenha sido declarado inimputável, ofende o sentimento ético-jurídico dominante, os valores dominantes na sociedade actual, afronta a moralidade e os bens costumes e o sentido de justiça». 3. O acórdão recorrido, após longo excurso jurisprudencial e doutrinário, confirmou a sentença, com o seguinte fundamento: «Estamos, manifestamente, perante um uso ilegítimo de uma posição jurídica (de filho, de sucessível, de herdeiro, na recepção do que restou da vida de seu pai: o seu património), que excede os limites do tolerável no nosso sistema jurídico: o facto de padecer de uma doença mental que lhe permitiu não ser condenado pela morte do pai e da irmã, para esses actos sendo julgado inimputável, não altera os termos da questão, pois civilmente, repete-se, não tem qualquer limitação. Em qualquer caso a doença em causa se se não o pode prejudicar, também o não pode beneficiar (muito menos fazendo sentido falar em quaisquer putativas discriminações, desde logo porque não tem quaisquer limitações à sua capacidade). Concluindo, é LL que afirma expressamente que “um dos tipos de abuso do direito apontados pela doutrina é o tu quoque, que consiste, entre outras situações, no aproveitamento da situação decorrente de um ato ilícito por quem o praticou. Quando, no caso concreto, os limites da boa fé sejam manifestamente excedidos, pelo facto de o autor retirar benefício do crime, por si praticado, que resultou na morte do autor da sucessão, salvo melhor opinião, estaremos perante um caso de abuso do direito” . Mais, o “direito de suceder não existe por mero capricho do legislador: ele tem a sua função social, o seu lugar no nosso ordenamento jurídico. Foi instituído com fins específicos – entre os quais destacamos a preservação do património, a proteção da família e a realização da vontade (real ou presumida) do autor da sucessão – e existe dentro de um contexto em que imperam certos valores, que o sistema jurídico extrai da Ética – em particular, a boa fé e os bons costumes” . Voltando à síntese de Hörster, o direito a suceder do seu pai, por si brutalmente assassinado - objectivamente - corresponde a uma conduta clamorosamente ofensiva da Justiça, ou mesmo a uma afronta ao sentimento jurídico dominante: chocaria qualquer um/a, chocaria o/a cidadão/ã comum, chocaria a já referida “pessoa de bem”, chocaria os bons costumes (seria a prevalência do Mal sobre o Bem, na linha do pensamento de Pedro Pais de Vasconcelos-Pedro Leitão Pais de Vasconcelos), e chocaria mesmo com o fim social do direito . (…) Tudo visto, entendemos que, perante o constatado abuso do direito de aceitar a herança, nas circunstâncias do caso presente, bastará que – linearmente – por aplicação do artigo 334.º do Código Civil, seja declarado o uso ilegítimo de tal direito. Na prática, tal corresponde a fazer aquilo que a 2.ª parte do n.º 2 do artigo 275.º, prevê (ou seja, tendo em conta que o Réu provocou a verificação da condição (morte do autor da sucessão) e disso beneficiou, aceitando a herança, como único sucessor, tem de considerar-se para si não verificada tal condição (e passando a herança para os sucessíveis seguintes, em conformidade). O exercício abusivo do direito de aceitar a herança do pai que matou, será assim reconhecido, não podendo beneficiar com o património que faz parte de tal herança (com as consequências que daí terão de ser tiradas)». 4. O recorrente invoca os seus direitos humanos, enquanto indivíduo portador de doença mental (esquizofrenia), para se opor à declaração de incapacidade sucessória, seja com base no artigo 2034.º, al. a), por na sua perspetiva, a letra da lei, exigindo condenação por sentença penal transitada em julgado, não abranger a absolvição por inimputabilidade, seja com base no instituto do abuso do direito, sustentando que «A aplicação do instituto do abuso de direito previsto no disposto no artigo 334º do Código Civil ao caso concreto revela uma artificialidade porquanto não é possível exigir que actue de forma normal e dentro dos valores éticos e morais da sociedade e dos princípios gerais da boa fé objectiva e bons costumes aquele que não é normal e que por anomalia psíquica grave se encontra, por inerência e natureza biológica, impedido de seguir e afastado do padrão “normal” ético e moral da sociedade no exercício dos seus direitos subjectivos». 5. No presente recurso de revista, a questão a conhecer é a de saber se um indivíduo que matou o seu pai, mas foi absolvido por falta de culpa jurídico-criminal, em virtude de ser inimputável, se pode considerar indigno de suceder ao seu pai, ao abrigo da al. a) do artigo 2034.º do Código Civil ou se, caso a primeira solução não seja viável, lhe pode ser negado o direito a suceder à vítima, seu pai, por se considerar abusivo o exercício do direito de aceitar a herança. As instâncias rejeitaram a aplicação analógica ou a interpretação extensiva do artigo 2034.º, al. a), do Código Civil ao presente caso, tendo optado por paralisar o exercício do direito do réu a suceder ao seu pai, por aplicação do instituto do abuso do direito consagrado no artigo 334.º do Código Civil. Uma vez que o instituto do abuso do direito é de aplicação subsidiária, havendo o intérprete-aplicador de procurar primeiro a solução adequada de direito estrito (cfr, Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo I, Almedina Coimbra, 1999, pp. 197-198), teremos de analisar em primeiro lugar se a situação fáctica dos autos se enquadra ou não na alínea a) do artigo 2034.º do Código Civil. No presente caso ficaram provados os factos ilícitos qualificados como homicídio pelo tipo legal de crime consagrado no artigo 131.º do Código Penal, havendo certeza jurídica, atestada em sentença transitada em julgado no processo-crime, de que o filho, agora réu, praticou tais factos. Todavia, a decisão final do processo-crime foi de absolvição por ausência de culpa jurídico-criminal do arguido, em virtude de o agente ter sido declarado inimputável, por esquizofrenia associada ao consumo de drogas. 6. Estipula o artigo 2034.º (Incapacidade por indignidade) que carecem de capacidade sucessória, por motivo de indignidade: a) O condenado como autor ou cúmplice de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado; b) O condenado por denúncia caluniosa ou falso testemunho contra as mesmas pessoas, relativamente a crime a que corresponda pena de prisão superior a dois anos, qualquer que seja a sua natureza; c) O que por meio de dolo ou coação induziu o autor da sucessão a fazer, revogar ou modificar o testamento, ou disso o impediu; d) O que dolosamente subtraiu, ocultou, inutilizou, falsificou ou suprimiu o testamento, antes ou depois da morte do autor da sucessão, ou se aproveitou de algum desses factos. 7. A doutrina tem atribuído a esta norma uma ratio sancionatória em relação a factos ilícitos cometidos pelo herdeiro e de tutela de bens jurídicos e direitos fundamentais do de cujus: a vida, o direito ao bom nome e à honra, a liberdade de testar. Como afirma Oliveira Ascensão (in Direito Civil – Sucessões, 4.ª edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1989, p. 154), «As indignidades são situações em que, a um ato ilícito de um sucessível, praticado contra o autor da sucessão, a lei reage estabelecendo como sanção o seu afastamento daquela sucessão. Muitas vezes, com a sanção da indignidade procura-se também evitar que o ato ilícito se torne lucrativo para aquele que o praticou». No mesmo sentido, Remédio Marques (in «Indignidade sucessória: a (ir)relevância da coação para a realização de testamento e a ocultação dolosa de testamento revogado pelo de cuius como causas de indignidade», Boletim da Faculdade de Direito, Volume LXXXI, Coimbra, 2005, p. 389) entende que «(…) a indignidade constitui uma sanção civil ou pena privada alicerçada, mais do que numa presunção de vontade do de cuius (…), na circunstância de à comunidade social repugnar o facto de a prática, pelo sucessível, de certos atos altamente censuráveis na pessoa ou no testamento do de cuius poder manter ou originar um proveito económico do causante face à herança da vítima de tais atos». Especificamente em relação à alínea a) do artigo 2034.º do Código Civil, que fixa a indignidade nos casos de sentença de condenação por homicídio doloso, afirma Oliveira Ascensão (in Direito Civil, Sucessões, ob. cit., p. 154) que visa este preceito «desanimar o recurso ao homicídio como via de aquisição sucessória», embora não se exija na lei a prova dos motivos do homicídio, bastando a demonstração dos factos ilícitos em sentença penal de condenação transitada em julgado. A indignidade sucessória nos casos de homicídio, não visa tutelar apenas valores de direito privado, ligados ao equilíbrio e à proporcionalidade de posições jurídicas, mas também princípios de ordem pública. Nas palavras do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-01-2010 (proc. n.º 07-01-2010, proc. n.º 104/07.9...), nas situações de indignidade por sentença de condenação por homicídio doloso, «O que de todo em todo a lei não suporta – a mesma lei que reconhece um princípio geral de capacidade sucessória – é que, na vertente relacional de que já se falou, o autor da sucessão ( ele e os seus mais próximos, num círculo perfeitamente definido) tenham sido vítimas por parte do (original) sucessor de um atentado à vida (…). Aqui o interesse público sobrepõe-se à vontade privada e o agressor é punido civilmente - perde a capacidade sucessória que originariamente lhe era reconhecida, quer a sua vítima queira quer não» 8. A doutrina dominante (cfr. Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 38; Jorge Duarte Pinheiro, O Direito das Sucessões Contemporâneo, AAFDL, Lisboa, 2017, pp. 195-196; Carvalho Fernandes, Lições de Direito das Sucessões, Quid Iuris, Lisboa, 2008, p. 185; Carlos Pamplona Corte-Real, Direito da Família e das Sucessões, Vol. II, Sucessões, Lex Edições, Lisboa,1993, p. 206) e a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça (Acórdãos de 27-03-2007, Revista n.º 569/07 e de 07-01-2010, proc. n.º 104/07.9TBAMR.S1) têm sustentado que esta norma contém uma enumeração taxativa de casos, afirmando que o julgador não pode, por interpretação extensiva ou aplicação analógica, alargar o âmbito do preceito de forma a incluir nele outros crimes distintos dos previstos no artigo 2034.º ou factos relevantes penalmente, mas desacompanhados de condenação penal, por inimputabilidade ou extinção do processo penal por morte do arguido, não sendo também possível, por falta de previsão legal, a prova do crime em ação cível. Compreende-se a ideia que presidiu à elaboração da norma da indignidade sucessória e que quis circunscrever esta sanção civil a um conjunto de casos de extrema gravidade, delimitados de forma restritiva pela lei. Mas, simultaneamente, não há como não constatar que esta norma se encontra manifestamente desatualizada em face das necessidades da sociedade atual e é demasiado rígida para fazer face à gravidade de algumas condutas dos herdeiros. Na realidade social, não são os casos de condenação por denúncia caluniosa ou falso testemunho, nem os casos de falsificação de testamento ou do uso de dolo ou coação para alteração ou revogação de testamento – os atentados à liberdade de testar ou ao testamento – que ocupam os tribunais. Estas situações, embora justifiquem a consequência da indignidade sucessória, raramente surgem na prática judiciária. Por outro lado, verificam-se ou adquirem visibilidade nas relações familiares situações de violência doméstica que, por vezes, culminam em homicídios. Se na sua maioria, os indivíduos que praticam estes crimes são imputáveis, existem casos – embora raros – em que o arguido é inimputável, por menoridade ou por doença mental irreversível. Na sociedade atual, é frequente não só o homicídio na modalidade de femicídio, em que a vítima é uma mulher em contexto conjugal, namoro ou união de facto, mas também a violência doméstica nas relações familiares, assim como os crimes sexuais contra crianças e jovens dentro da família, ocorrendo estes crimes, não contemplados na lei como casos de indignidade sucessória, entre parentes sucessíveis. São pertinentes as palavras de Berenice Dias (in Manual das Sucessões, 2.ª edição, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo, 2008, pp. 292-293), a propósito da norma correspondente no direito brasileiro que, segundo a autora, revela preocupações «antiquadas e conservadoras» centradas na imagem social do de cujus, ilustrando com o seguinte exemplo: seria absurdo excluir da sucessão o filho que injuria a mãe e contemplá-lo com direito sucessório se ele a violou. Entende, por isso, a autora que a indignidade sucessória não está limitada a uma enumeração taxativa de casos, defendendo também que a condição de inimputável não pode brindar com direitos sucessórios quem comete os factos elencados na lei civil (ibidem, p. 293). Em relação aos crimes sexuais como causa de indignidade sucessória, o Tribunal da Relação de Guimarães, no processo n.º 2612/08, em Acórdão proferido em 22-01-2009, admitiu uma aplicação analógica da alínea b) do artigo 2034.º, que prevê a condenação por crimes contra a honra do de cujus (denúncia caluniosa e falso testemunho), aos crimes sexuais, considerando a honra um conceito abrangente que incluía os valores que estavam na base da incriminação dos crimes sexuais na versão original do Código Penal de 19821, consagrando, no seu sumário, a orientação segundo a qual «O art. 2034º, al b) do C. Civil tem de ser objecto de aplicação analógica, por forma a nele se poder integrar os condenados pela prática de outros crimes de ofensa à honra do autor da sucessão desde que sejam mais graves do que aqueles que o próprio legislador nele previu expressamente ou de idêntica gravidade». O Supremo Tribunal de Justiça veio a proferir no mesmo processo Acórdão datado de 07-01-2010, no qual, com um fundamento distinto, confirmou o acórdão da Relação. Entendeu o Acórdão deste Supremo que a regra é a da capacidade sucessória, tal como consagrado no artigo 2033.º, nº1 do Código Civil, concluindo que os casos de indignidade sucessória são apenas, taxativamente, as exceções previstas nas alíneas a) e b) do artigo 2034.º, rejeitando a possibilidade de aplicação analógica destas normas que estabelecem hipóteses de casos particulares. Todavia, através do recurso à cláusula geral do abuso do direito, atingiu o mesmo resultado do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, decidindo que «Não pode todavia reconhecer-se capacidade sucessória a um pai que violou uma filha de 14 anos, a obrigou a abortar aos 15 anos, após cumprir a pena de prisão em que foi condenado persistiu na ofensa a sua filha (que nunca lhe perdoou) e se vem habilitar à herança desta sua filha por morte dela aos 29 anos, em acidente de viação – reconhecer-lhe essa capacidade seria manifestamente intolerável para os bons costumes e o fim económico e social do direito de lhe suceder e portanto ilegítimo, por abusivo, esse mesmo direito». Na doutrina, subscrevendo a orientação do Acórdão da Relação de Guimarães, pronunciou-se João Lemos Esteves, in «O problema da tipicidade das causas de indignidade sucessória e os tribunais: Breve “estudo de caso”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Carlos Pamplona Corte-Real, Almedina, Coimbra, 2016, p.111, propondo uma interpretação atualista e flexível do artigo 2034.º do Código Civil, em vez do recurso à figura do abuso do direito. Em Acórdão mais recente o Supremo Tribunal de Justiça, no Acórdão de 23-02-2021 (Processo n.º 5564/17.7T8ALM.S1), afirmou, com base na posição de Oliveira Ascensão, que «(…)sendo certo que o art. 2034.º não estabelece uma tipologia meramente exemplificativa, admite-se a analogia, se essa tipologia for considerada como delimitativa (i.e., apenas se permitindo a construção de novas figuras no caso de estas serem análogas a algum dos tipos normativamente previstos). A segurança jurídica não implica o afastamento da exigência fundamental do tratamento igual de casos semelhantes, que está na base da analogia, desde que esta só possa funcionar a partir dos modelos dados pela lei – desde que se lance mão apenas da analogia legis». O artigo 11.º do Código Civil estipula que uma norma excecional não pode ser aplicada analogicamente, embora possa ser objeto de interpretação extensiva. A maioria da doutrina tem criticado este preceito, por não caber ao legislador a função de se pronunciar sobre questões de teoria do direito e por introduzir uma limitação demasiado rígida à atividade do intérprete, podendo constituir um obstáculo à obtenção da justiça do caso concreto (cfr. Castanheira Neves, Digesta, Escritos acerca do direito, do pensamento jurídico, da sua metodologia e outros, Volume 1.º, Coimbra, 1995, pp. 428 e ss; Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 2004, p. 59; Pedro de Albuquerque, A Representação Voluntária em Direito Civil, Almedina, Coimbra, 2004, pp.996-1000). Por outro lado, em termos metodológicos não é possível proceder a uma delimitação rigorosa entre a aplicação analógica de uma norma e a sua interpretação extensiva, baseando-se ambas num critério jurídico normativo-teleológico comum e constituindo dois momentos da aplicação do direito integrados num processo unitário em termos estruturais e funcionais (cfr. Castanheira Neves, Metodologia jurídica Problemas Fundamentais, Coimbra Editora, Coimbra, 1993, p. 268 e Catarina de Oliveira Carvalho, “Comentário ao artigo 11.º do Código Civil”, in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª edição revista e atualizada, UCP Editora, Lisboa, 2024, p. 73). Na esteira de Batista Machado (Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 1989), deve entender-se ser admissível a aplicação analógica de normas excecionais, desde que a exceção não seja transformada em regra, ou seja, desde que o julgador não parta dos casos taxativamente enumerados pela lei «(…) para induzir deles um princípio geral que, através da analogia iuris, permitiria depois regular outros casos não previstos, por concretização desse princípio ou cláusula geral». Tem entendido a ciência jurídica que o artigo 11.º deve sofrer uma interpretação restritiva (Teixeira de Sousa, Introdução ao Direito, Almedina, Coimbra, 2012, p. 401), e que este preceito não proíbe a extensão analógica da «(…) hipótese normativa que prevê um tipo particular de casos a outros casos particulares do mesmo tipo e perfeitamente paralelos ou análogos aos casos previstos na sua própria particularidade» (cfr. Baptista Machado, Introdução ao Direito, ob. cit.). Também se deve fazer notar que estamos perante uma questão de direito civil, de pendor marcadamente ético e moral, não sendo, portanto, aplicável, no domínio da indignidade sucessória, o princípio de direito penal da proibição da analogia in mala partem, ou seja, contra o autor do delito. É que, enquanto no direito penal estamos perante a tutela dos direitos dos cidadãos em face do poder punitivo do Estado, que lhes pode impor medidas restritivas da liberdade, no regime da indignidade sucessória apenas se nega a concretização de uma expetativa de herdar. A questão relevante nesta matéria traduz-se em determinar qual o âmbito da exclusão da analogia, defendendo Nogueira de Brito (Introdução ao Estudo do Direito, 3.ª edição, AAFDL, Lisboa, 2022, pp. 283-284) que a proibição da analogia se limita às exceções em sentido material, ou seja, aquelas que correspondem à «vontade política do legislador no sentido de adotar, para certos casos, um regime de sinal oposto ao regime regra», por contraposição à exceção formal que corresponde a uma mera técnica de redação da lei sem apoio na referida vontade política (cfr. Catarina de Oliveira Carvalho, “Comentário ao artigo 11.º do Código Civil”, cit., p. 73). Segundo Oliveira Ascensão (O Direito – Introdução e Teoria Geral, 13.ª edição, Almedina Coimbra, 2005, p. 452), a norma excecional não deve ser interpretada de forma isolada e exige ao julgador que proceda a uma valoração conjunta da ordem jurídica com vista a determinar se tal preceito «corresponde às orientações fundamentais desta ou se pelo contrário delas se afasta por razões específicas do caso concreto». Concluímos, pois, de acordo com Oliveira Ascensão (in Direito Civil, Sucessões, ob. cit., p. 155), que o artigo 2034.º do Código Civil não admite uma analogia livre, mas uma analogia mais limitada, a partir de alguma das causas previstas na lei. Por outras palavras, é permitida analogia legis, mas não a analogia iuris. Este procedimento é mesmo necessário para adequar a lei aos valores ético-jurídicos já interiorizados pelos cidadãos e que colocam a dignidade humana e os bens jurídicos pessoais num patamar de validade muito superior ao do acesso à propriedade por via sucessória. Aliás, o Direito Sucessório está em processo de mutação para refletir a realidade em que vivem as pessoas idosas, sujeitas ao abandono e a maus-tratos pelos seus próprios filhos, alargando as causas de indignidade e permitindo com maior largueza aos pais beneficiarem, em testamento, os filhos cuidadores. A proteção deixa de estar centrada no direito à propriedade em virtude de laços estritamente biológicos com o autor da sucessão, para se centrar nas relações afetivas familiares e no cumprimento de deveres de auxílio e de assistência. 8. O legislador, em 2014 (Lei nº 82/2014, de 30-12-2014), aditou ao Código Penal o artigo 69.º-A, que, sob a epígrafe, Declaração de indignidade sucessória, dispôs o seguinte: «A sentença que condenar autor ou cúmplice de crime de homicídio doloso, ainda que não consumado, contra o autor da sucessão ou contra o seu cônjuge, descendente, ascendente, adotante ou adotado, pode declarar a indignidade sucessória do condenado, nos termos e para os efeitos previstos na alínea a) do artigo 2034.º e no artigo 2037.º do Código Civil, sem prejuízo do disposto no artigo 2036.º do mesmo Código». Nesta norma, a lei não avança na ampliação dos casos de indignidade sucessória por homicídio, nem adita ao Código Civil outros crimes cuja prática tenha por efeito a indignidade sucessória do seu autor, contrariamente ao que revela a tendência no direito comparado, designadamente no direito francês (artigo 19.º da Lei n.º 2001-1135 de 03 de dezembro de 2001) e no direito espanhol (Lei 15/2015, de 2 de julho), cujos códigos civis foram alterados de modo a abranger como causas de indignidade sucessória, por exemplo, os crimes contra a autodeterminação sexual, as ofensas à integridade física, a violência doméstica, a inibição das responsabilidades parentais ou da tutela (cfr. Maria Inês Martins Santos, O Abuso do Direito no Direito das Sucessões, Mestrado Profissionalizante, Ciências Jurídico-Forenses, Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, 2018, disponível para consulta in https://repositorio.ul.pt/bitstream/10451/37361/1/ulfd136447_tese.pdf, consultado em 28-06-2024, pp. 45-46 e 48-50). No direito francês prevê-se expressamente que aqueles que são condenados a uma pena correcional (não penal) por autoria ou cumplicidade em homicídio ou tentativa de homicídio ou por ofensa à integridade física da qual veio a resultar a morte, sem intenção, do autor da sucessão, possam ser declarados indignos de suceder em relação à pessoa falecida, incluindo nos casos em que a ação penal não foi exercida ou se extinguiu por morte do herdeiro acusado de homicídio (artigo 727.º do Código Civil francês). A Lei n.º 82/2014 veio, tão-só, como afirmado no Projeto de Lei n.º 632/XII/3.ª «(…) melhorar as condições de efetividade da declaração de indignidade sucessória contra os condenados pelo crime de homicídio por violência doméstica», permitindo que a indignidade sucessória do autor do homicídio seja declarada na sentença penal de condenação, assim fazendo «(…) operar a indignidade nos casos em que não há contrainteressados na herança que tomem a iniciativa de propor a ação. Nestas situações o homicida poderá locupletar-se com a herança dos bens da sua própria vítima! - o que parece manifestamente injusto». Dada a visibilidade crescente do fenómeno da violência doméstica e dos crimes sexuais é necessário repensar a norma que define as causas de indignidade, alargando-as, como afirma Ana Resende (in «Indignidades sucessórias – breves notas para uma reflexão», Revista do Ministério Público, Ano 40, n.º 158, abril-junho, 2019, p. 114 ), não só a outros crimes contra a liberdade e a integridade física ou psíquica do autor da sucessão, tão ou mais graves do que aqueles que estão previstos na lei, mas também aos casos de extinção do procedimento criminal contra o herdeiro acusado ou pronunciado, admitindo-se a possibilidade de ser aferida a imputação e a censurabilidade apenas para efeitos civis de incapacidade sucessória. 9. Em face do teor literal do artigo 2034.º, al. a), do Código Civil surge, por isso, a questão de saber se quis ou não o legislador, com a técnica legislativa utilizada no preceito, excluir do seu âmbito outros casos de atentado à vida provados em processo penal, mas que não culminaram em condenação por ausência de culpa jurídico-criminal do arguido, devido a inimputabilidade. No caso vertente, os factos qualificados como crime tipificado na norma do artigo 131.º do Código Penal ficaram provados num processo penal caraterizado por ser um processo de natureza garantística e de investigação completa e especializada com produção de prova contraditada pelo exercício dos vastos direitos de defesa reconhecidos ao arguido, pela lei processual penal e pela Constituição. Recordemos o que diz a sentença proferida no processo penal. Nessa sentença, que absolveu o arguido por inimputabilidade, decidiu-se expressamente «Declarar que o arguido, CC, praticou factos qualificados pela Lei Penal como crime de Homicídio p. p. pelo art. 131º, do Cód. Penal, na pessoa de DD», não havendo, pois, qualquer dúvida acerca da prática dos factos, nem acerca da autoria dos mesmos. Está em causa, na norma do artigo 2034.º, al. a), do Código Civil, uma sanção civil para fatos ilícitos penais, que a lei, que consagra a indignidade sucessória, quer que estejam provados para além de toda a dúvida, exigindo por isso um processo penal para a alegação e prova dos mesmos. Todavia, o legislador exigindo uma sentença de condenação não regulou os casos de absolvição, por ausência de capacidade de culpa jurídico-criminal do agente, acompanhada da sujeição do réu a uma medida de segurança. Uma interpretação extensiva da norma de forma a abarcar no seu alcance os homicídios praticados por inimputável sempre seria discutível, dado que não teria reflexo, ainda que mínimo, na letra do preceito, que exige expressamente uma sentença de condenação. Ora, nos termos do artigo 9.º, n.º 2, do Código Civil, um pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso não pode ser considerado pelo intérprete. Resta, então, saber se estamos perante uma lacuna a ser preenchida pelo recurso à analogia ou pela criação de uma norma ad hoc, nos termos do artigo 10.º do Código Civil. A questão reside em saber se estamos perante uma falha ou incompletude da lei no sentido de uma ausência de resposta do sistema normativo para uma questão juridicamente relevante, que merece ou postula uma regulação no ordenamento jurídico. Ou se, pelo contrário, se trata de um caso que o legislador não quis sujeitar à norma excecional e que por isso segue o regime-regra da capacidade sucessória passiva do agente. Julgamos estar perante uma lacuna do sistema, pois os casos de homicídio praticado por inimputável carecem de regulação, dado, por um lado, o seu caráter gravoso para os interesses e para a vida do autor da sucessão, e, por outro, a restrição de direitos que pode estar em causa para a pessoa declarada inimputável, não sendo aplicável, neste contexto, um argumento a contrario para deduzir que tais factos não previstos seguem o regime regra. Todavia, não se verifica uma semelhança entre o caso regulado e o caso omisso, no que diz respeito à culpa jurídico-criminal do agente, não sendo adequado para os casos de ausência de capacidade de culpa do agente, por inimputabilidade, o regime imperativo estabelecido na al. a) do artigo 2034.º. Assim, a aplicação analógica surge como desajustada à solução do caso concreto, já que a absolvição do agente do crime de homicídio, por ausência de culpa, em virtude de inimputabilidade, não é semelhante à condenação de indivíduo imputável por homicídio doloso. A solução de ser o julgador a criar uma norma ad hoc elaborada dentro do espírito do sistema, para regular esta situação concreta, nos termos do artigo 10.º do Código Civil, seria sempre delicada por constituir uma atividade semelhante à legislativa. 9. Assim, resta apreciar o caso destes autos à luz da figura do abuso do direito, consagrada no artigo 334.º do Código Civil. O abuso do direito é um instituto que tem contornos estritamente objetivos, não sendo exigível a intenção do agente ou qualquer juízo de censurabilidade sobre a conduta do sujeito. Também não é necessária a consciência de se excederem os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito. Tem sido esta a orientação dominante do Supremo Tribunal de Justiça, que aderiu à conceção objetivista do abuso do direito. Veja-se o Acórdão deste Supremo Tribunal, de 02-07-1996 (proc. n.º 96A136), onde se sumaria: «O C.CIV. de 1966 consagra a concepção objectivista do abuso de direito e por isso não é necessária a consciência malévola, a consciência de se excederem, com o abuso de direito, os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico do direito, bastando que sejam excedidos esses limites, muito embora a intenção com que o titular do direito tenha agido não deixe de contribuir para a questão de saber se há ou não abuso de direito». E não se diga que a aplicação do abuso do direito é uma forma de contornar os requisitos estipulados no artigo 2034.º do Código Civil. Não se visa com o recurso à figura do abuso do direito criar princípios gerais que admitam a indignidade sucessória para grupos de casos não previstos. Trata-se tão-só, numa perspetiva estritamente casuística, de analisar, se, no caso concreto, o exercício do direito a herdar pelo réu, filho declarado inimputável, que atentou contra a vida do pai, está ou não conforme aos princípios jurídicos básicos da ordem jurídica, tendo em conta juízos de proporcionalidade e de adequação e a hierarquia de valores da ordem jurídica. Os casos de homicídio cometido por inimputável contra o autor da sucessão podem assumir uma configuração variada, que exigirá ao julgador uma avaliação casuística de circunstâncias, designadamente, quando o agente tem menos de 16 anos e é filho da vítima, ou padece de inimputabilidade por doença mental, sendo ponderável também a circunstância de estar ou não a pessoa inimputável maior abrangida por uma medida de acompanhamento civil que limite a sua capacidade jurídica. 10. Numa primeira fase, a doutrina considerava existir abuso do direito «(…) quando, admitindo um certo direito como válido em tese geral, todavia no caso concreto ele aparece exercitado em termos clamorosamente ofensivos da justiça, entendida segundo o critério social dominante» (cfr. Manuel de Andrade, Teoria Geral das Obrigações, 3.ª edição, Coimbra, 1966, pp. 63-64) ou quando o exercício do direito contendesse com o «sentimento jurídico socialmente dominante» (Vaz Serra, «Abuso do direito», BMJ n.º 85, p. 253). As críticas ao caráter vago e abstrato destes critérios conduziram a doutrina a outra construção dogmática da figura, fruto também de uma alteração na compreensão do próprio direito subjetivo, passando a vigorar na ciência jurídica, após este figurino inicial do abuso do direito, uma ideia de exercício inadmissível ou disfuncional de direitos subjetivos ou posições jurídicas (cfr. Menezes Cordeiro, Da Boa Fé no Direito Civil, Almedina, Coimbra, 1997, p. 880 e 887). O direito subjetivo para a moderna ciência jurídica não tem apenas uma dimensão estrutural, traduzida no exercício formal de um poder, nem é uma entidade absoluta. Apresenta uma dimensão valorativa e material, devendo o seu exercício ser conforme aos valores fundamentais da ordem jurídica, ou seja, aos seus princípios normativos. O direito subjetivo surge assim, nas palavras de Castanheira Neves (in Questão-de-facto questão-de-direito ou o problema metodológico da juridicidade: ensaio de uma reposição crítica. Coimbra, 1967, pp. 522-523), como «uma intenção normativa que apenas subsiste na sua validade jurídica enquanto cumpre concretamente o fundamento axiológico-normativo que a constitui», deixando de ser uma estrutura formal para ser encarado como «uma função normativa, teleológico-materialmente fundada». O instituto do direito subjetivo representa, como nos diz Hörster (in H.E. Höster/Eva Sónia Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil Português, 2.ª Edição totalmente revista e actualizada, Almedina, Coimbra, 2022, p. 302, n.º 449), «o controlo institucional da ordem jurídica quanto ao exercício dos direitos subjetivos privados, garantindo a autenticidade das suas funções». Os direitos subjetivos, sendo inegavelmente instrumentos de realização da autodeterminação da pessoa, apresentam também uma «intenção comunitária» de utilização desses mesmos direitos (cfr. Mafalda Miranda Barbosa, in Lições de Teoria Geral do Direito Civil, 2.ª edição, Gestlegal, Coimbra, 2022, p. 230). A mesma autora entende também que «O abuso do direito traduz-se, afinal, na desconformidade entre a estrutura formal do direito e um princípio normativo – positivo, transpositivo ou supra positivo – que sustenta o ordenamento jurídico» (Ibidem, p. 235, nota 230). Como afirma Menezes Cordeiro (in Da Boa Fé… ob. cit., p. 882), «O sistema pode impor-se, por si, no interior de permissões normativas específicas; quando o faça, o exercício do direito que contradite o sistema, embora conforme com as normas jurídicas, é disfuncional». Nas palavras do Autor, «O abuso do direito reside na disfuncionalidade de comportamentos jussubjetivos, por, embora consentâneos com normas jurídicas, não confluírem no sistema em que estas se integram» (Ibidem, p. 882). Na concretização jurisprudencial do abuso do direito, o julgador preenche valorativamente as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados usados no artigo 334.º do Código Civil e aplica, não estritamente uma norma jurídica ou um preceito, mas o sistema jurídico como um todo. 11. Regressando ao caso dos autos, ainda que falte ao réu a culpa no sentido jurídico-criminal no momento da prática dos factos qualificados pela lei como crime, provou-se o seguinte, tal como decorre da matéria de facto da sentença proferida no processo penal: «42. O arguido sabia que, ao desferir facadas na cabeça, costas e tronco de DD e na cabeça e zona torácica de EE lhes provocaria a morte, como veio a acontecer. 43. E também sabia que com a sua actuação iria causar a morte do feto que sabia que a irmã, EE, trazia em gestação, como veio a acontecer. 44. Em suma, a actuação do arguido foi a causa directa e necessária, da morte de DD e de EE, ocorrida no local e verificada pelas 23h30m do dia ... de novembro de 2020. 45. O arguido agiu com o propósito concretizado de tirar a vida a DD e a EE, fazendo-a abortar, sabedor que tal conduta lhe era vedada por lei». O réu não tem culpa jurídico-criminal por inimputabilidade. Não consegue, pois, avaliar a ilicitude dos seus atos, nem determinar-se de acordo com essa avaliação. Todavia, no plano estritamente psicológico – que não no plano ético-jurídico – o réu quis praticar e efetivamente praticou factos causais em relação à morte do seu pai e irmã. A falta de culpa criminal não impede a aplicação do instituto do abuso do direito, já que o momento relevante para aferir dos requisitos desta figura verifica-se ex post, no momento em que o réu reclama o exercício do direito a aceitar a herança, e não no momento em que atentou contra a vida do pai e da irmã sob o efeito de um surto psicótico. Ora, no momento em que o réu contesta a ação, representado por advogado, e sem qualquer medida de acompanhamento limitativa da sua capacidade jurídica, tem de se presumir que atua num intervalo lúcido e que tem capacidade de autodeterminação na esfera civil. Assim, não pode deixar de lhe ser imputada uma contradição reprovada pela ordem jurídica entre a ação de tirar a vida ao pai e a ação de reclamar, depois desse ato, o estatuto de herdeiro legitimário único do seu pai (artigo 2133.º, n.º 1, al. b), do Código Civil), cuja morte sabe ter causado. Para a determinação da existência de abuso o que importa é analisar o resultado decorrente da conduta e não a conduta em si mesma. Como se afirma na doutrina (cfr. Elsa Vaz Sequeira, «Anotação ao artigo 334.º do Código Civil», in Comentário ao Código Civil, Parte Geral, 2.ª edição revista e atualizada, UCP Editora, Lisboa, 2024, p. 962), «Mais do que apreciar a ação, o abuso do direito avalia os resultados produzidos por tais ações e a sua admissibilidade ou não perante os valores e princípios jurídicos vigentes». O resultado deste comportamento – herdar os bens de uma pessoa que o herdeiro matou – choca aos sentimentos mais profundos da generalidade das pessoas, repugnando à consciência jurídica e ética que uma pessoa possa ter um lucro como efeito legal de uma morte por si provocada, ainda que sem capacidade de culpa jurídico-criminal. Este resultado seria sentido pela comunidade como chocante e ofende também de forma clamorosa os sentimentos de justiça dos restantes membros da família, desrespeitando a sua enorme dor pela perda de um dos seus membros, em circunstâncias de extrema violência. Não se trata de “castigar” o réu com a perda de património, mas do efeito simbólico de honrar a vida das pessoas que foram mortas, sendo que a irmã do réu e o feto que gerava seriam também herdeiros a par do réu, se aquela não tivesse sido morta e abortado o filho que esperava. Claro que estes sentimentos de justiça não valem, por si, como critério de aplicação do abuso do direito: podem ser sentimentos erróneos, excessivos, subjetivos ou até contrários à ordem jurídica. Para esses sentimentos de justiça serem relevantes, para o efeito de permitirem o recurso ao instituto do abuso do direito, têm de se enquadrar num princípio normativo, que, no caso vertente, é a tutela absoluta do direito à vida (artigo 24.º da Constituição), que constitui também um princípio de ordem pública. Todo o sistema jurídico gravita à volta dos direitos fundamentais da pessoa humana, entre os quais ocupa uma posição cimeira o direito à vida de todos/as os cidadãos/ãs, sendo a proteção deste direito o primeiro dever do Estado. No caso vertente, o exercício do direito a herdar viola os limites impostos pelos bons costumes, conceito que, segundo a doutrina, remete para a moral social (cfr. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil português, Vol. I, Parte Geral, Tomo IV, Almedina, Coimbra, 2005, p. 241), isto é, para o choque que gera na consciência ético-social a possibilidade legal de herdar de alguém que atentou contra o direito à vida do autor da sucessão, ainda que sem culpa jurídico-criminal. Assim, considera-se juridicamente a correta a decisão do acórdão recorrido, em cujo sumário se apôs o seguinte: «Considerado o Réu penalmente inimputável, em termos penais, na morte do pai, mas sem quaisquer limitações em termos de capacidade civil, deve este ver paralisado, considerado abusivo e tido como ilegítimo, o exercício do direito de aceitar a herança daquele que matou, uma vez que seria considerado chocante, violador da consciência jurídica de qualquer um/a e contrário aos bons costumes, que alguém com capacidade sucessória (nos termos dos artigos 2033.º, 2030º, 2133.º, alínea b) e 2157.º), tenha provocado directamente o funcionamento da condição (morte do pai, de cuius) de que dependia a sua concretização, ao ser ele a determinar o momento em que se abriu a sucessão (artigo 2031.º e 2032.º) e ao ser ele o único beneficiário do acto ilícito que praticou». Conclui-se, em consequência, que o exercício, pelo réu, do direito a herdar constitui um abuso do direito e como tal deve ser paralisado, devendo ser chamados a suceder os restantes parentes sucessíveis do seu pai, autores da presente ação, nos termos dos artigos 2037.º, n.º 1, e 2133.º, n.º 1, alínea c), do Código Civil. 12. Uma vez que no debate desta questão foram esgrimidos argumentos extrajurídicos, quer pelo recorrente, quer na declaração de voto de vencido aposta ao acórdão recorrido, teremos também a esse propósito uma palavra. 12.1. Os argumentos aduzidos pelo recorrente, invocando a natureza hereditária da esquizofrenia e responsabilizando, por isso, o pai pela doença do filho, a quem assaca também responsabilidade pela sua recusa em tratar-se, não colhem. A natureza genética ou ambiental de uma doença é irrelevante, e não responsabiliza a família. Lidar com problemas de saúde mental da gravidade da esquizofrenia, acompanhada de atos de violência contra familiares e consumo de drogas, compete ao Estado, que falhou no cumprimento dos seus deveres. Resulta da matéria de facto que os pais e a irmã do réu estavam a ser ameaçados por este e que temiam pela sua integridade física e vida (factos provados n.ºs 11 e 12), que desde 2019 eram conhecidos ao arguido surtos psicóticos e alucinações auditivas e que em maio de 2019 já estava aberto um processo de internamento compulsivo no âmbito do qual o réu foi conduzido pela GNR para avaliação, tendo o réu dito às forças de segurança «preciso é de matar os meus pais» (factos provados n.º s 9 e 10). Este processo estava pendente à data dos homicídios do pai e da irmã grávida, em ... de novembro de 2020 (factos n.ºs 13 a 19), sem que tivesse sido aplicada a medida restritiva da liberdade e os tratamentos compulsivos que se impunham. Pelo que, atribuir responsabilidade à própria vítima, pela circunstância de ser pai biológico e de ter deveres em relação ao filho, surge como uma conclusão completamente injustificada, não só por ser o filho, agora réu, maior de idade e não estar sujeito a medida de acompanhamento, mas também por não terem os pais responsabilidade pelas doenças dos seus filhos, sejam elas genéticas ou desenvolvidas por fatores ambientais. A doença mental não é um problema privado da família, mas uma questão coletiva e de saúde pública, que deve ser tratada pelo Estado. 12.2. O argumento do voto de vencido, que chama a atenção para a indigência em que a solução do acórdão recorrido coloca o réu, também não colhe. As pessoas com necessidade de cuidados de saúde mental, se não tiverem património nem rendimentos, têm os seus tratamentos pagos pelo Estado e beneficiam de apoio social, quer quando vivem em instituição, quer em autonomia (artigo 7.º, n.ºs 1 e 2, da Lei da Saúde Mental - Lei n.º 35/2023, de 21 de Julho). Os direitos económicos e sociais da pessoa com doença mental serão assegurados pelo Estado, não estando em causa, pois, a sua indigência ou a ausência de auxílio financeiro. O direito a herdar do réu não é absoluto e a sua natureza legal não impede que o seu exercício tenha de ceder perante imperativos ético-sociais relacionados com sentimentos de justiça entre os quais se incluem o respeito pelo sofrimento da família da vítima com a perda do seu ente querido num quadro de extrema violência (cfr. facto 71, em que se deu como provado que os tios tinham um relacionamento afetivo e familiar muito próximo com as vítimas e sofreram profunda tristeza e transtorno com o falecimento das mesmas). A violência não deixa de o ser por ter sido praticada por pessoa inimputável e não deixa de produzir os seus efeitos traumáticos e destrutivos nas vítimas e nas pessoas com quem estas mantêm laços afetivos-familiares. Acresce que esses efeitos são de um «terror» tal que não podem ser equiparados, como se faz no voto de vencido aposto ao acórdão da Relação, ao desgosto do indivíduo declarado inimputável por ter feito o que fez e por ter perdido as pessoas cuja vida destruiu. A pessoa inimputável está viva, tem direitos e o Estado investe na sua proteção e recuperação. Para o inimputável há esperança. Para as suas vítimas, a quem tirou a vida, não há: a morte é irreversível. 13. Por último, resta responder à questão suscitada pelo recorrente de saber se a decisão do acórdão recorrido viola direitos da pessoa com doença mental reconhecidos em declarações e convenções internacionais e os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade, consagrados, respetivamente nos artigos 1.º e 13.º da Constituição, na medida em que paralisar o direito do réu a herdar, alegadamente, equipara o tratamento jurídico de uma pessoa inimputável a uma imputável. Em primeiro lugar urge salientar que o recorrente não suscitou uma questão de constitucionalidade normativa, na medida em que imputa o juízo de inconstitucionalidade à decisão recorrida em si mesmo e não a uma interpretação normativa, definida de modo geral e abstrato, e aplicável a um número indeterminado de casos. Ainda assim, deve responder-se à questão. As normas internacionais invocadas pelo recorrente não constituem parâmetros de constitucionalidade, mas alargam o catálogo de direitos fundamentais consagrados na Constituição e constituem critérios de interpretação das normas constitucionais. Segundo os Princípios para a protecção das pessoas com doença mental e para o melhoramento dos cuidados de saúde mental adotados pela resolução 46/119 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 17 de dezembro de 1991, «Não haverá qualquer discriminação com base em doença mental. “Discriminação” significa qualquer distinção, exclusão ou preferência que tenha como consequência anular ou comprometer o gozo de direitos em condições de igualdade» (Princípio 1, n.º 4). «Toda a pessoa com doença mental terá o direito de exercer todos os direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais reconhecidos na Declaração Universal dos Direitos Humanos, no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais e Culturais, no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos e em outros instrumentos pertinentes, como a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes e o Conjunto de Princípios para a Proteção de Todas as Pessoas Sujeitas a Qualquer Forma de Detenção ou Prisão» (Princípio 1, n.º 5). O exercício dos direitos consagrados nos presentes princípios, afirma a citada declaração, só pode ser sujeito às restrições que estejam previstas na lei e sejam necessárias para proteger a saúde ou a segurança da pessoa em causa ou de terceiros, ou para proteger a segurança, a ordem, a saúde ou a moral públicas ou os direitos e liberdades fundamentais dos demais (Cláusula Geral de Restrição). Vejamos: A paralisação do direito a herdar do réu (em relação ao pai), a quem foi aplicada medida de segurança, por ter atentado, no decurso de um surto psicótico, contra a vida do pai e da irmã (grávida) constitui discriminação da pessoa inimputável, portadora de esquizofrenia? Pensamos que não. O direito a herdar de alguém a quem o herdeiro matou é um direito de natureza patrimonial que, in casu, para além de ser contrário à moral pública, entra em conflito com a tutela do direito à vida e a segurança de terceiros, por significar uma redução do dever de o Estado prevenir a violência. A paralisação deste direito não deixa, como vimos, a pessoa considerada inimputável em situação de debilidade económica uma vez que o Estado tem deveres de apoio social e de promover a sua inclusão na sociedade. Quanto à alegada violação do princípio da igualdade, há que ter em conta que, segundo a jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr., v.g., os Acórdãos do Tribunal Constitucional n.º 335/94, Plenário, ponto III. 2.1., n.º 563/96, Plenário, ponto III. 1.2., n.º 546/2011, 3.ª Secção, ponto 12, n.º 641/2013, Plenário, ponto 10, n.º 93/2014, Plenário, ponto 17 n.º 173/2014, Plenário, ponto 7, e n.º 526/2016, 1.ª Secção, ponto 6), este princípio não proíbe todas e quaisquer distinções, sendo legítimo estabelecer diferenciações de tratamento, desde que fundadas racional e objetivamente e ditadas pela razoabilidade. O alcance do princípio da igualdade dirige-se apenas à proibição do arbítrio, não estando ao alcance do legislador, nem do julgador, tratar diferentemente situações idênticas ou tratar de forma igual situações distintas. A esta luz, a decisão recorrida, também adotada por este Supremo Tribunal, baseando-se em conceção éticas dominantes e na tutela do direito à vida, não violou o princípio da igualdade, no sentido de que não tratou igualmente situações diferentes, in casu, não equiparou a pessoa inimputável à imputável. Com efeito, a solução do caso não foi encontrada a partir de uma interpretação extensiva ou aplicação analógica da al. a) do artigo 2034.º do Código Civil, que equiparasse, em geral, as consequências civis, no plano sucessório, de um homicídio praticado por pessoa inimputável, sem capacidade de culpa penal, a um homicídio doloso cometido por uma pessoa imputável. Pelo contrário, foram reconhecidas as diferenças entre ambas as situações, mas, à luz do instituto do abuso do direito, ponderando as especificidades do caso, designadamente, o grau de violência exercido e o dever do Estado prevenir essa violência e proteger os direitos à integridade pessoal e à vida dos membros da família, decidiu-se que deve ficar impedida a obtenção de qualquer vantagem patrimonial do agora réu, em relação ao pai contra cuja vida atentou, ainda que sem culpa. Trata-se de uma reação da ordem jurídica como um todo para proteger o seu valor supremo: a inviolabilidade da vida humana. Assim, concluímos que a decisão recorrida não padece de qualquer inconstitucionalidade, nem viola normas internacionais de proteção das pessoas inimputáveis, por razões de doença mental, tendo o réu os seus direitos sociais garantidos à luz da Lei da Saúde Mental, que obriga o Estado a apoiar socialmente as pessoas portadoras de doenças mentais. 14. Anexa-se sumário elaborado de acordo com o n.º 7 do artigo 663.º do CPC: I – O artigo 2034.º do Código Civil, que consagra um elenco de causas de indignidade sucessória, não admite uma analogia livre, mas uma analogia mais limitada, a partir de alguma das causas previstas na lei. Por outras palavras, é permitida analogia legis, mas não a analogia iuris. II - Estamos perante uma questão de direito civil, de pendor marcadamente ético e moral, não sendo, portanto, aplicável, no domínio da indignidade sucessória, o princípio de direito penal da proibição da analogia in mala partem, ou seja, contra o autor do delito. É que, enquanto no direito penal estamos perante a tutela dos direitos dos cidadãos em face do poder punitivo do Estado, que lhes pode impor medidas restritivas da liberdade, no regime da indignidade sucessória apenas se nega a concretização de uma expetativa de herdar. III - A aplicação analógica surge como desajustada à solução do caso concreto, já que a absolvição do agente do crime de homicídio, por ausência de culpa, em virtude de inimputabilidade, não é semelhante à condenação de indivíduo imputável por homicídio doloso. IV – A solução de ser o julgador a criar uma norma ad hoc elaborada dentro do espírito do sistema, nos termos do artigo 10.º do Código Civil, é sempre delicada por constituir uma atividade semelhante à legislativa. V - Assim, resta apreciar o caso destes autos à luz da figura do abuso do direito, consagrada no artigo 334.º do Código Civil e que tem contornos estritamente objetivos, não sendo exigível a intenção do agente ou qualquer juízo de censurabilidade sobre a sua conduta. VI - Para a determinação da existência de abuso do direito o que importa é analisar o resultado decorrente da conduta, perante os valores e princípios jurídicos vigentes, e não a conduta em si mesma. VII – Atua em abuso do direito, por violação dos limites impostos pelos bons costumes, o sujeito inimputável que, sem capacidade de culpa jurídico-criminal, atentou contra a vida do pai e da irmã, e vem depois, sem qualquer limitação da sua capacidade civil, reclamar o direito à herança, decorrente do seu estatuto de herdeiro legitimário único. VIII – O exercício do direito a herdar os bens de uma pessoa que o herdeiro matou choca aos sentimentos mais profundos da generalidade das pessoas, repugnando à consciência jurídica e ética que uma pessoa possa ter um lucro como efeito legal de uma morte por si causada, ainda que sem capacidade de culpa jurídico-criminal. IX – Admitir esta possibilidade seria contrariar o princípio normativo e constitucional da tutela absoluta do direito à vida (artigo 24.º da Constituição), que constitui também um princípio de ordem pública. III – Decisão Pelo exposto, decide-se na 1.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça negar a revista e confirmar o acórdão recorrido. Custas pelo recorrente, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficie. Supremo Tribunal de Justiça, 9 de julho de 2024 Maria Clara Sottomayor (Relatora) Jorge Arcanjo (1.º Adjunto) Jorge Leal (2.º Adjunto) _____________________________________________
1. Com a Reforma de 1995 deu-se a alteração da inserção sistemática dos crimes sexuais, que, na versão originário do CP de 1982, figurava nos crimes contra a moralidade social, para os crimes contra as pessoas, deixando o bem jurídico protegido pela norma penal de ser a moral social ou a honra, para passar a ser a autodeterminação e a liberdade sexual (Capítulo V – Dos crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, que integra o Título I – Dos crimes contra as pessoas). Assim, a argumentação usada no Acórdão da Relação de Guimarães, que fundamentava a analogia entre os crimes sexuais e os crimes contra a honra, deixou de poder ser utilizada.↩︎ |