Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
440/21.1PGCSC.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: LOPES DA MOTA
Descritores: HOMICÍDIO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
DEVER DE FUNDAMENTAÇÃO
NULIDADE DE ACÓRDÃO
MEDIDA CONCRETA DA PENA
PENA ÚNICA
Nº do Documento: SJ
Data do Acordão: 09/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I. As questões colocadas pelo recorrente, condenado na pena de 4 anos de prisão pela prática de um crime de violência doméstica [artigo 152.º, n.ºs.1, al. b), e 2, al. a), do Código Penal (CP)], na pena 19 anos de prisão pela prática de um crime de homicídio qualificado [artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do CP], e na pena única de 21 anos de prisão, dizem respeito à medida da pena de homicídio e da pena única.

II. Tendo em conta as conclusões da motivação do recurso, o STJ é chamado a apreciar e decidir: (a) se se verifica a invocada nulidade por falta de fundamentação quanto ao crime de homicídio qualificado [artigos 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2 do CPP]; e (b) se o arguido só poderia ser condenado por um crime de ofensa integridade física qualificada (artigo 145.º do CP).

III. Não se inscrevendo a apreciação da matéria de facto nos seus poderes de cognição (artigo 434.º do CPP), pode, porém, o STJ conhecer da arguição de nulidades de decisão que, aplicando pena de prisão superior a 5 anos [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP], como sucede no presente caso (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, segundo o qual, sendo a decisão recorrível, deve ser arguida e conhecida em recurso).

IV. A nulidade por falta de fundamentação não se confunde com erro de julgamento refletido no texto da fundamentação, o qual, sendo notório resultar do texto da decisão, pode constituir vício da sentença [artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP].

V. Não se trata de saber se a decisão está ou não bem ou suficientemente fundamentada – o que importaria incursão na matéria de facto subtraída aos poderes deste tribunal –, mas apenas de verificar se cumpre os requisitos da fundamentação, para que o destinatário possa conhecer e entender as razões da decisão, de modo a ver respeitado o direito à informação e a, querendo, poder exercer eficazmente o direito de defesa, em exercício do direito ao recurso (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição).

VI. A necessidade de fundamentação da sentença condenatória (artigo 374.º, n.º 2, do CPP), que concretiza requisitos específicos relativamente ao regime geral estabelecido no artigo 97.º, n.º 5, do CPP, decorre diretamente do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas nos termos previstos na lei. Constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, a fundamentação das decisões dos tribunais representa um dos aspetos do direito a um processo equitativo protegido pelo artigo 6.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos, o qual impõe o dever de os tribunais motivarem adequadamente as suas decisões, de acordo com a sua natureza (acórdão do TEDH de 09.07.2007, no caso Tatishvili c. Rússia, n.º 1509/02).

VII. A fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na enumeração dos factos provados e não provados e na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou por outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos e exames que o tribunal considerou, em ordem a que os destinatários fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido e das razões da sua convicção.

VIII. Lendo a fundamentação da decisão em matéria de facto, verifica-se que esta contém a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição dos motivos de facto que a fundamentam, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal; dela resultam com clareza a explicitação do juízo decisório e as razões que conduziram o tribunal a formar a sua convicção no sentido do decidido, permitindo ao arguido ficar ciente da lógica do raciocínio que levou a julgar os factos provados e as razões e provas em que se fundou esse julgamento e, nessa base, poder impugnar e contrariar a decisão em recurso em matéria de facto, o qual deve ser dirigido ao tribunal da relação e respeitar o ónus de especificação dos factos provados e não provados e das provas que impõem solução diversa (art.ºs 412.º, n.º 3, e 427.º e 428.º do CPP).

IX. O acórdão recorrido satisfaz as exigências de fundamentação impostas pelo artigo 374.º, n.º 2, do CPP, não se verificando, em consequência, a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.

X. Face aos factos julgados provados, não se encontra fundamento que justifique o argumento do arguido no sentido de que apenas poderia ser condenado por um crime de ofensa à integridade física (artigo 143.º do CP), agravado por circunstância reveladora de especial censurabilidade ou perversidade (n.º 2 do artigo 132.º do CP), a que corresponde uma pena até 4 anos de prisão (artigo 145.º, n.º 1, al. a), do CP).

XI. Produzido o resultado morte, por ofensa à integridade física e ação causal do arguido, objetivamente imputado ao arguido nos termos descritos, e tendo este agido voluntária e conscientemente com o propósito de causar a morte da vítima em demonstradas circunstâncias de perversidade e censurabilidade – no caso a da previsão da al. b), deste preceito, cuja verificação o arguido não contesta –, preenchido se mostra o tipo de crime de homicídio qualificado, nos seus elementos subjetivo e objetivo, como se concluiu no acórdão recorrido, devendo, em consequência o autor ser punido pela prática deste crime.

XII. Termos em que o recurso é julgado improcedente.

Decisão Texto Integral:

Acordam na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:


I. Relatório

1. AA, arguido, com a identificação que consta dos autos, interpõe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão de 19.2.2024, proferido pelo tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste, que o condenou pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de:

a) um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, al. a), do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão;

b) um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, al. b), do Código Penal, na pena de 19 (dezanove) anos de prisão.; e

c) Em cúmulo jurídico destas penas, na pena única pena única de 21 (vinte e um) anos de prisão.

2. Discordando do decidido, apresenta motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

«1 – Constitui objecto do presente recurso o acórdão proferido nos autos que condenou o recorrente, pela prática de um crime de homicídio qualificado, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 al. b), do Código Penal, na pena de dezanove anos de prisão, restringindo o objecto do recurso a matéria de direito, nomeadamente à falta de fundamentação e consequente nulidade do acórdão, no que à condenação por este crime concerne.

2 – No âmbito dos presentes autos, encerrado o inquérito, foi deduzida contra o arguido, ora recorrente, acusação pública nos termos da qual lhe foi imputada a prática, em autoria material, na forma consumada, em concurso efectivo, nos termos do disposto nos artigos 14.º, n.º 1, 26.º e 30.º, n.º 1, de um crime de violência doméstica p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, al. b), 2, al. a) e 4 a 6, e de um crime de homicídio qualificado p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. b), h) e i), todos do Código Penal.

3 – Compulsada a acusação deduzida contra o ora recorrente de imediato se percebeu, no que ao crime de homicídio concerne, de que a mesma era deficiente, insuficiente e precipitada, resultado de uma investigação criminal também ela parcial e incompetente por parte do Ministério Público que a deduziu em sede de inquérito.

4 – Sendo a mais evidente falha do Ministério Público o facto de não ter ouvido em depoimento testemunhas, na nossa perspectiva cruciais, como sejam o médico que assistiu a vítima quando esta deu entrada no serviço de urgência do Hospital, transportada pelo INEM, chamado a pedido do recorrente, bem assim como a Médica Legista que realizou a autópsia, quando a vítima veio a falecer, decorrido que foi, quase, um mês.

5 – Efectivamente cumpria responder às questões que constam da Motivação e que aqui se dão por reproduzidas.

[Questões que constam da motivação:

• A intoxicação por cocaína e anfetaminas pode ter tido uma contribuição parcial para a morte tratando-se de uma concausa?

• Quais os principais efeitos da intoxicação aguda por cocaína e anfetaminas, sobretudo sobre o sistema nervoso central?

• O consumo destas drogas pode provocar sudorose e alterações que culminem em desidratação grave que possa levar a um estado de rabdomiólise?

• O que é a rabdomiólise e que consequências pode trazer?

• O consumo destas doses pode levar a um estado intenso de agitação psicomotora, desorientação e alucinações?

• O consumo destas drogas pode desencadear crises convulsivas?

• As crises convulsivas e o estado de agitação provocado pelas drogas podem aumentar o risco de acidentes, nomeadamente quedas?]

6 – Por seu turno, a decisão proferida pelo Tribunal de Julgamento, assentou em diversos equívocos, a saber:

7 – O Tribunal, em relação ao crime de homicídio deu como provados os factos constantes da decisão de 30º a 47.º dos factos provados, relevando os seguintes:

8 – 30.º No dia 27 de Agosto de 2021, em hora e local que não se logrou determinar, o arguido muniu-se de um objecto de natureza contundente abeirou-se de BB e desferiu-lhe várias pancadas, imprimindo força, atingindo-lhe as zonas da face, do braço esquerdo e das costas.

9 - 31º Acto contínuo, o arguido munido desse objecto, bateu com ele, imprimindo força, mais do que uma vez na cabeça de BB, atingindo-lhe o couro cabeludo e lacerando-lho sem que ela tivesse oportunidade de reacção ou oposição.

10 – 32.º Em consequência directa e necessária do comportamento do arguido, BB sofreu uma ferida incisa na região da cabeça, com infiltração sanguínea da face interna do couro cabeludo parieto-occipital esquerda, com 2 x 6 cm de dimensão, bem como lesões crânio-encefálicas, com hematona subdural da convexidade esquerda esquerda com cerca de 9 mm, com hemorragia subaracnoide parietal esquerda, um hematoma orbitrário direito e múltiplos hematomas no ombro e região dorso lombar esquerda.

11 – 43.º Ao actuar do modo descrito, o arguido quis molestar o corpo de BB, desferindo-lhe pancadas, com especial incidência na zona da face e da cabeça, nos ombros e no peito, apenas tendo cessado tais condutas quando quis cessá-las.

12 – O tribunal ao ter dado como assente que o recorrente agrediu a vítima, por diversas vezes, com um objecto contundente provocando-lhe – um mês depois – a morte, sem qualquer prova palpável, em que pudesse alicerçar essa conclusão baseou-se outrossim em especulações inconsistentes e até reportadas a suposições.

13 – Baseia ainda a condenação na localização celular do telemóvel do recorrente, o que só por si não tem qualquer valência uma vez que as antenas BTS abrangem áreas maiores ou menores consoante a zona seja mais ou menos povoada.

14 – O paradigma da íntima convicção em que o Juiz escuta apenas os ditames da consciência, não é compatível com o Processo Penal de um Estado de Direito, e no caso em apreço estamos em crer que o Tribunal esquecendo a obrigação de ser imparcial, condenou com base naquilo que a consciência lhe ditou.

15 – Efectivamente, consta da documentação clínica que constitui fls. 56 dos autos, sob a epígrafe historial clínico que, BB, para além de hematoma subdural apresentava os seguintes problemas:

• Coma provavelmente MULTIFACTORIAL;

• Intoxicação por cocaína e anfetaminas;

• Hematoma subdural esquerdo traumático;

• Rabdomiólise;

16 – Nesta sequência não podemos deixar de referir a forma como o tribunal desvalorizou a prova apresentada pelo recorrente, que apodou de artificiosa, com subterfugíos e inconclusiva, e que se reporta ao Parecer Médico Legal elaborado pela Senhora Dra. CC, Médica Especializada em Medicina Legal, com o Curso Superior de Medicina Legal, e Curso de Especialização em Ciências Forenses, com Pós Graduação em Avaliação do Dano Corporal, em Peritagem Médica em Segurança Social, e experiência profissional enquanto Perita Legal Externa do I.N.M.L.C.F. e Médica Operacional do INEM (UPPEC), um longo currículo para quem foi tratada pelo tribunal quase como de uma charlatã se tratasse (vide referência Citius de 12 de Dezembro de 2023).

17 – Acresce que, erradamente e sem fundamento válido o tribunal desprezou o facto de ter sido o recorrente a socorrer a vítima, não lhe atribuindo qualquer valor, romantizando a personalidade da mesma, descrevendo-a como uma pessoa bondosa, amorosa, como se de uma amiga, que se perdeu nos meandros da droga, se tratasse.

18 – O que não se coaduna de todo, com a tese do tribunal de que o recorrente agiu com frieza de ânimo tendo-se munido de um objecto contundente e batendo com ele, repetidamente, no crânio da vítima, com o intuito de lhe tirar a vida.

19 – Parece-nos ser do senso comum que se BB tivesse sido vítima de várias pancadas desferidas com a força que o tribunal refere ter o recorrente imprimido teria morrido no momento.

20 – Tanto mais que a vítima para além de hematoma subdural sofria dos problemas acima elencados.

21 - O que só por si poderia ter provocado envenenamento e levado à morte.

22 – Por outro lado falta o dolo, o qual tem que abranger o delito fundamental, como as consequências que o qualificam.

23 – Assim deve o recorrente ser absolvido da prática do crime de homicídio qualificado pelo qual foi condenado.

24 – Todavia, por cautela, por dever de patrocínio a admitir-se que o recorrente praticou os factos pelos quais foi condenado, a condenação só poderia ocorrer por um crime de ofensa integridade física qualificada p. e p. pelo artigo 145.º, do Código Penal, atendendo ao facto do recorrente ter socorrido a vítima e de a mesma só ter vindo a falecer um mês após ter dado entrada no hospital, onde para além dos problemas com que deu entrada na urgência hospitalar e acima discriminados, sofreu várias complicações hospitalares.

25 – Pelo exposto não procede a condenação do recorrente pelo crime de homicídio qualificado, pelo qual foi condenado.

26 – Padece assim a decisão de flagrante falta de fundamentação, o que constitui nulidade nos termos do disposto nos Artigos 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Normas jurídicas violadas:

Artigo 127.º;

Artigos 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2 al. b), do Código Penal;

Artigos 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

Termos em que o recurso merece provimento com as legais consequências.»

3. O Ministério Público, pela Senhora Procuradora da República no tribunal recorrido, pugnando pela manutenção do decidido, apresentou resposta em que conclui:

«(…)

2. O Recorrente, no âmbito do seu direito de exercer o contraditório, podia ter requerido a audição do médico que assistiu a vítima quando esta deu entrada no serviço de urgência do Hospital, transportada pelo INEM, bem como a Médica Legista que realizou a autópsia por, em seu entender, tal ser imprescindível bem como as podia ter arrolado com a contestação.

3. O que também fez.

4. O incumprimento das formalidades impostas pelo art.º 412.º, nºs 3 e 4 do CPP, por omissão ou por deficiência, impossibilita e inviabiliza o conhecimento do recurso da matéria de facto pela via ampla, deteriorando a exequibilidade da sindicância da decisão de facto ao nível mais alargado.

5.O Recorrente não deu cumprimento a tais exigências para que o tribunal ad quem possa vir sindicar a matéria de facto fixada na primeira instância, não indicando qualquer passagem dos respectivos depoimentos em que se funda a impugnação, quer no texto da motivação quer nas conclusões apresentadas, pelo que não há lugar ao convite à correcção das conclusões, uma vez que o conteúdo da motivação constitui um limite absoluto que não pode ser extravasado através do convite à correcção das conclusões da motivação.

6. Efectivamente, limitou-se a alegar que “o tribunal condenou o recorrente com base num relambório relatado de forma enfabulada, por várias testemunhas, todas elas toxicodependentes, tal como a vítima, de violência e discussões estas mútuas, que terá culminado na morte da mesma às mãos do recorrente”, desvalorizando, deste modo, os respectivos depoimentos, simplesmente pelo facto de, no seu entender, se tratarem de toxicodependentes sem qualquer credibilidade.

7. Porém, não indicou qualquer passagem dos respectivos depoimentos que o levam a concluir que o tribunal julgou incorrectamente.

8. Pelo que, perante a falta de concretização dos factos fixados pelo tribunal a quo e que o Recorrente poderia considerar como não provados, coarctada ficou a possibilidade do tribunal ad quem sindicar a matéria de facto que foi fixada pelo tribunal a quo, matéria essa que, assim, se tem que dar por assente.

9. Porém sempre se dirá que da motivação da matéria de facto a razão da credibilidade dos testemunhos desconsiderados pelo Recorrente.

10. Efectivamente, da mera leitura do acórdão recorrido não resulta por demais evidente a “conclusão contrária” àquela a que chegou o Tribunal; pelo contrário é assertiva a fundamentação esplanada, permitindo compreender o raciocínio lógico que presidiu à sua prolação, não resultando do seu texto que tivesse que ser outra a decisão do Tribunal a quo, mesmo quando os factos ali assentes são conjugados com as regras da experiência.

11. Há que concluir, assim, que os factos dados como provados, nomeadamente aqueles que foram impugnados pelo Recorrente, resultam da prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com a prova documental existente nos autos.

12. A matéria respeitante ao dolo da atuação, porque se situa no campo da subjectividade, é sempre de difícil discernimento. Se quem atua não esclarecer qual o estado de alma em que atuou, terá de ir buscar-se a elementos, a dados objetivos reveladores da verdadeira vontade, o sentimento que determinou a atuação (neste sentido, vd. Ac. do TRG, de 25.03.2019, disponível em dgsi.pt).

13. Há que atender, assim, aos instrumentos utilizados na prática do crime, a forma como o foram, a parte do corpo atingida e a extensão qualitativa e quantitativa das lesões (mesmo acórdão).

14. No caso dos autos verifica-se que o Recorrente, pelo menos em duas ocasiões, desferiu pancadas na cabeça de BB, numa ocasião com pedras e noutra com o cabo de uma picareta e, em ambas, fazendo-a dali sangrar abundantemente.

15. De novo, no dia 27.08.2021, utilizando para tanto um objecto não identificado mas de natureza contundente, desferiu a BB várias pancadas, imprimindo força, atingindo-lhe as zonas da face, do braço esquerdo e das costas e, acto contínuo, munido desse objecto, bateu com ele, imprimindo força, mais do que uma vez, na cabeça da mesma, atingindo-lhe o couro cabeludo e lacerando-lho, sem que ela tivesse qualquer oportunidade de reacção ou oposição.

16. Tendo em consideração o objecto utilizado – de natureza contundente -, a força utilizada, a zona do corpo atingida e as lesões causadas, dúvidas não existem que agiu com o propósito de por termo à vida de BB.

17. Facto que já anunciara algumas vezes.

18. O ter-lhe prestado socorro não implica que não lhe quisesse tirar a vida.

19. Implica, sim, que pretendeu que a responsabilidade pelos ferimentos causados e que determinaram a sua morte lhe não fossem imputados.

20. Efectivamente, o Recorrente não lhe prestou socorro imediato, mas apenas decorridas, pelo menos, algumas horas.

21. Isto mesmo resulta do seu comportamento posterior.

22. Ao contrário do alegado pelo Recorrente, nomeadamente fora à procura de BB e que a encontrara, caída no chão, numa zona frequentada por toxicodependentes, verifica-se dos dados de tráfego telefónico obtidos que no dia em que a vítima deu entrada no hospital, o telemóvel do arguido esteve conectado à antena BTS em ... entre as 17h04 e as 17h06, mas de seguida regressou à zona da sua residência sita em ..., onde chegou pelas 18h40 (cfr. fls. 380 verso), e apenas pelas 20h13 abandonou alocalidade abrangida pelasrespectivas antenas BTS (Linhó/Linhó1), regressando à zona de ..., onde residiam e residem o seu irmão e a companheira deste, bem como a sua mãe, e onde chegou pelas 21h21; e foi então que o arguido se encontrou com aqueles.

Pelas 21h25, DD (cunhada do recorrente) contactou o INEM referindo que a vítima não acordava desde o dia anterior, mexia-se mas não acordava, que esteve a dormir o dia todo, que não tinha comido nada (Auto de Diligência – transcrição da chamada para o INEM junto aos autos a fls. 169 a 174).

23. O Recorrente também a podia ter socorrido prontamente, caso fosse sua intenção, e tê-la conduzido no seu veículo para o hospital. Mas não. Foi ter com o seu irmão e a sua cunhada, levando consigo BB, e solicitou àquela que fizesse a chamada para o INEM.

24. Ao actuar como o Recorrente actuou, há que concluir que com a sua conduta pretendeu por termo à vida de BB e não, apenas, ofender o seu corpo ou a sua saúde.

25. Pelo que cometeu um crime de homicídio qualificado, pelo qual veio a ser condenado.

26. No vertente caso, como já atrás se referiu, da motivação da convicção do tribunal, permite saber os alicerces probatórios e o raciocínio que conduziram à decisão sobre os factos provados e não provados, dos motivos pelos quais o tribunal atribuiu credibilidade aos depoimentos das testemunhas, em conjugação com a prova documental e pericial existente nos autos.

27. Ora, o argumento que a decisão padece de flagrante falta de fundamentação – não fundamentada pelo Recorrente - mais não é do que a divergência daquele sobre a decisão proferida pelo tribunal a quo.

28. Questão que deveria ter sido suscitada em sede de impugnação da decisão em matéria de facto que, como também já ficou supra referido, não reúne os requisitos para a sua apreciação.

29. No mais, não se mostrará violado qualquer preceito legal nem desrespeitado qualquer direito.»

4. Recebidos, foram os autos com vista ao Ministério Público, tendo o Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal emitido o seguinte parecer, nos termos do artigo 416.º do CPP, no sentido da improcedência do recurso:

«4. Parecer (art.416.º do CPP)

Acompanhamos a posição da Sr.ª procuradora da República junto do Juízo Central Criminal de ....

Brevitatis causa, damos por integralmente reproduzida a factualidade provada, previamente extratada (1.1.), bem como o segmento do acórdão dedicado à indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.

4.1. Nulidade do acórdão por falta de fundamentação.

Para afirmar a nulidade do acórdão por falta de fundamentação o recorrente alega, essencialmente, que não existe «prova palpável» dos factos provados 30.º, 31.º 32.º e 43.º, baseando-se o tribunal «em especulações inconsistentes e até reportadas a suposições» (conclusões 7 a 12) e num «relambório relatado de forma enfabulada, por várias testemunhas, todas elas toxicodependentes, tal como a vítima» (corpo das motivações), que a localização celular do seu telemóvel «não tem qualquer valência uma vez que as antenas BTS abrangem áreas maiores ou menores consoante a zona seja mais ou menos povoada» (conclusão 13), que o tribunal «desvalorizou» a sua prova, nomeadamente o parecer médico-legal da Dr.ª CC, tratada quase como «uma charlatã» (conclusão 16), que «erradamente e sem fundamento válido (…) desprezou o facto de ter sido o recorrente a socorrer a vítima» (conclusão 17), que se a vítima tivesse sofrido «várias pancadas desferidas com a força que o tribunal refere ter (…) imprimido teria morrido no momento» (conclusão 19) e não cerca de um mês após os acontecimentos (conclusão 12), que a vítima apresentava outros problemas de saúde que podem ter causado a sua morte (conclusões 15, 20 e 21), que face ao relatório da autópsia «não se pode estabelecer nexo de causalidade entre a alegada ofensa e a morte de BB» (corpo das motivações) e que «falta o dolo, o qual tem que abranger o delito fundamental, como as consequências que o qualificam» (conclusão 22)].

Subordinado ao disposto no art. 205.º, n.º 1, da Constituição, que prescreve que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei, o art. 374.º, n.º 2, do CPP estabelece que a estrutura da sentença compreende uma parte dedicada à fundamentação da qual consta a enumeração dos factos provados e não provados bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, e o art. 379.º, n.º 1, al. a), do mesmo Código fulmina de nulidade a sentença a que faltarem as menções referidas no n.º 2 do art. 374.º.

Como observa o conselheiro Henriques Gaspar, a exigência de fundamentação da decisão judicial realiza «uma dupla finalidade: em projecção exterior (extraprocessual), como condição de legitimação externa da decisão pela possibilidade que permite de verificação dos pressupostos, critérios, juízos de racionalidade e de valor e motivos que determinaram a decisão; em outra perspectiva (intraprocessual), (…) está ordenada à realização da finalidade de reapreciação das decisões dentro do sistema de recursos; para reapreciar uma decisão, o tribunal superior tem de conhecer o modo e o processo de formulação do juízo lógico nela contido e os fundamentos que determinaram o sentido da decisão, para, sobre tais fundamentos, formular o seu próprio julgamento» (Código de Processo Penal comentado, António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 4.ª edição revista, páginas 285-286).

In casu, basta ler o acórdão recorrido para constatar que o mesmo enumera os factos provados e não provados relevantes e, no que importa considerar, indica e analisa, de forma bastante exaustiva, aliás, ao longo de 51 páginas (da página 15 à página 66), as provas em que o tribunal esteou a sua convicção (devendo aqui salientar-se que os dados relativos à localização celular do telemóvel do arguido de forma alguma foram relevantes ou decisivos nesse ponto) em termos que permitem compreender e controlar plenamente o processo lógico que conduziu à decisão.

Os argumentos do recorrente, que mais não refletem que a sua discordância quanto à apreciação da prova efetuada pelo tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de ... em obediência ao princípio consagrado no art. 127.º do CPP, nada têm, assim, a ver com a falta de fundamentação do acórdão.

Se o recorrente pretendia contestar a valoração da prova e as certezas alcançadas pelo tribunal coletivo, nomeadamente, e no que ao crime de homicídio respeita, quanto à sua autoria, animus necandi ou verificação do nexo de causalidade entre a sua (brutal) agressão e a morte da infeliz BB, devia ter impugnado a matéria de facto nos moldes amplos previstos no art. 412.º, n.ºs 3 e 4, do CPP e recorrido para o Tribunal da Relação cujos poderes de cognição abrangem a matéria de facto (art. 428.º do CPP).

Nos recursos per saltum de acórdãos finais proferidos pelo tribunal coletivo que apliquem pena de prisão superior a 5 anos, como é o caso, o STJ não tem poderes para sindicar a valoração da prova efetuada na 1.ª instância fora do espartilho do art. 410.º, n.º 2, CPP, ou seja, sem que se invoquem e/ou detetem no texto do acórdão, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum e sem recurso a elementos de prova que sejam exteriores ao seu conteúdo, os vícios da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão ou do erro notório na apreciação da prova (art. 432.º, n.º 1, al. c), do CPP).

Ora, nem o recorrente invoca alguma dessas disfunções nem da literalidade do acórdão recorrido transparece que tenham ficado por apurar factos indispensáveis para a decisão de direito, que a fundamentação seja contraditória ou conduza a uma decisão diferente da que foi tomada, que os factos se excluam entre si, ou que, enfim, tenham sido dados como assentes realidades que notoriamente estão erradas e são totalmente inverosímeis e contrárias às regras do conhecimento comum, da lógica e da experiência.

Tanto basta para o malogro desta primeira pretensão.

4.2. Subsunção jurídica dos factos

Havendo que acatar, por isenta de vícios, a matéria de facto provada, designadamente a vertida nos respetivos parágrafos 30.º a 42.º, 46.º e 47.º, tal como se apresenta, é também, assim, manifestamente insustentável a pretensão formulada em ordem à sua recondução a alguma das alíneas, que o recorrente não se dá ao trabalho de indicar, do tipo do art. 145.º do CP, muito menos com as justificações oferecidas («ter socorrido a vítima e de a mesma só ter vindo a falecer um mês após ter dado entrada no hospital, onde para além dos problemas com que deu entrada na urgência hospitalar e acima discriminados, sofreu várias complicações hospitalares»).

Sendo as referidas as únicas questões trazidas a debate, e secundando, em tudo o mais, a resposta da Sr.ª procuradora da República junto do Juízo Central Criminal de ..., emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso.»

5. Notificado para responder, nos termos do artigo 417.º, n.º 2, do CPP, diz o arguido:

«Desconhece o Recorrente a existência de qualquer norma que lhe imponha o dever de se substituir ao Ministério Público e actuar como tal intervindo no Inquérito.

Compete ao Ministério Público, com o auxílio dos órgãos de polícia criminal, conduzir verdadeiras investigações, inquirindo todas as testemunhas que se mostrem relevantes para a descoberta da verdade, e não apenas aquelas que apoiem uma tese pré–constituída.

Repete-se, na perspectiva do Recorrente, a matéria de facto dada como provada, que se reporta no essencial à prática do crime de violência doméstica, que o Recorrente não pôs em causa, é claramente insuficiente para fundamentar a prática do crime de homicídio.

Por último, o Recorrente, na pessoa da defesa, ao contrário do Ministério Público que nunca se engana e raramente tem dúvidas, como é do conhecimento geral, por lapso não indicou que, caso o Recorrente não seja absolvido, deverá ser condenado pela prática do crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido pelo Artigo 145º, N.º 1, Alínea c), do Código Penal.

Termos em que se requer a V. Exas. que, tendo em consideração o supra referido, e reiterando o teor da Motivação e Conclusões apresentadas, deverá ser dado provimento ao Recurso.»

6. Colhidos os vistos e não tendo sido requerida audiência, o recurso foi apresentado à conferência para decisão – artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

II. Fundamentação

Factos provados

7. O tribunal coletivo deu como provados os seguintes factos (transcrição):

«1º. O arguido e BB iniciaram uma relação de namoro no início do ano de 2019.

2º. À data dos factos infra descritos, BB tinha um filho de uma relação anterior, EE, nascido em ........2000.

3º. O arguido e BB coabitavam de forma intermitente e por curtos períodos de tempo, na casa desta, sita na ... Marcos, e na casa do arguido, sita na Rua ..., concelho de ..., mantendo comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem.

4º. Entre os anos de 2020 e 2021, com frequência semanal, e no interior das residências acima referidas no ponto 3.º, onde se encontravam a habitar, o arguido passou a sujeitar BB a diversas formas de violência física, verbal e psicológica.

5º. Desde o início da relação, BB consumia, com regularidade, cocaína, despendendo avultadas quantias em dinheiro para o efeito.

6º. Nessa sequência, era habitual BB, para adquirir produto estupefaciente, apropriar-se de dinheiro do arguido, ao que este reagia apodando-a de “puta” e desferindo-lhe socos e pontapés em várias partes do corpo, como infra descrito.

7º. Também era frequente o arguido ceder-lhe produto estupefaciente e emprestar-lhe dinheiro para aquisição do mesmo, estabelecendo planos para o pagamento das dívidas dela; quando esta não cumpria o acordado, o arguido tinha por hábito castigá-la.

8º. Em datas não concretamente apuradas, situadas entre o ano de 2019 e Agosto de 2021, semanalmente, no interior das residências que partilhavam, o arguido, motivado numas vezes por ciúmes, noutras por questões económico-financeiras, encetou discussões com BB e no decurso delas, numas vezes utilizando as mãos e noutras munido de objectos, tais como paus e pedras, desferiu pancadas no corpo, no rosto e na cabeça da mesma.

9º. Em consequência directa e necessária dos comportamentos do arguido, BB sofreu fortes dores nas zonas atingidas, que resultavam em hematomas na face, na cabeça, nos olhos, ombros e peito e em nódoas negras em diversas partes do corpo.

10º. BB recusava habitualmente receber tratamento médico, por temer o comportamento do arguido, e justificava as lesões aos familiares e amigos próximos afirmando que tinham sido “acidentes de trabalho” ou “assaltos” de que teria sido vítima.

11º. Nessas discussões, o arguido, em tom alto e sério, apelidava-a de “puta”, “ladra” e “drogada”.

12º. Após tais discussões, BB saía de casa, com receio do arguido, e este, de seguida, procurava-a pelos locais que sabia que ela costumava frequentar para consumir produtos estupefacientes.

13º. Numa dessas ocasiões, em data não concretamente apurada, situada entre o início do ano de 2020 e Abril de 2020, o arguido localizou-a na companhia de FF, no interior de um veículo automóvel estacionado junto a umas bombas de combustível.

14º. Enfurecido por não saber da namorada até então e por ela se encontrar na companhia de um homem, o arguido abeirou-se de FF para tirar satisfações com este e, de seguida, começou a correr atrás de BB para a agredir, só tendo cessado tal conduta com a chegada dos agentes da Polícia de Segurança Pública ao local.

15º. Em data e local não concretamente apurados, entre os dias 15 e 21 de Agosto de 2021, o arguido, através do impacto de um objecto contundente, partiu o dedo polegar da mão direita de BB, tendo esta tido necessidade de ser assistida clinicamente no Hospital de ..., no dia 21.08.2021, pelas 00h53 (episódio de urgência n.º ......52).

16º. Em datas situadas entre os meses de Junho e Agosto de 2021, BB passou a residir com o arguido, na referida casa deste, sita na ..., mantendo comunhão de leito, mesa e habitação, como se de marido e mulher se tratassem.

17º. A partir dessa altura, o arguido intensificou os comportamentos de agressão verbal e física dirigidos a BB, que passaram a ocorrer quase diariamente.

18º. Em data não concretamente apurada, situada entre os meses de Junho e Julho de 2021, o arguido, no interior da residência comum, encetou uma discussão acesa com BB, por motivo não apurado e, no seu decurso, abeirou-se dela e desferiu-lhe três murros, atingindo-a na face, nos ombros e no peito.

19º. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sofreu um edema num dos olhos, com sangue pisado, diversos hematomas nas zonas da face, dos ombros e do peito, dores e incómodo nas zonas do corpo atingidas, mas não necessitou de assistência médica.

20º. Em data concretamente não apurada, cerca de uma semana depois, o arguido voltou a discutir com BB; no decurso dessa discussão, abeirou-se dela e, munido de pedras, desferiu-lhe pancadas, atingindo-lhe zonas do corpo e da cabeça.

21º. Em consequência directa e necessária da conduta do arguido, BB sofreu ferimentos na cabeça, com sangue abundante, feridas pelo corpo, dores e incómodo nas zonas do corpo atingidas.

22º. BB teve necessidade de pedir auxílio a GG, sua amiga, tendo-lhe referido ao telefone “ele partiu-me toda, não consigo andar”.

23º. Após tais agressões, o arguido, disse, em tom alto e sério, a BB que, se ela se deslocasse ao hospital para receber tratamento médico, a mataria, assim como ao filho dela, EE.

24º. BB deslocou-se à residência de GG, apresentando diversos ferimentos na cabeça e feridas e hematomas pelo corpo.

25º. No dia ... de Julho de 2021, a hora não concretamente apurada, mas antes das 22h00, no interior da residência comum, o arguido, munido de uma picareta, abeirou-se de BB e, utilizando o respectivo cabo, desferiu-lhe dois golpes na cabeça, causando-lhe uma hemorragia abundante.

26º. Acto contínuo, o arguido, munido daquela picareta e utilizando o respectivo cabo, desferiu pancadas em várias partes do corpo de BB, causando-lhe fortes dores e hematomas, e apenas cessou tais comportamentos quando os quis cessar.

27º. Após, por temer o comportamento do arguido, BB abandonou a residência comum e deslocou-se até à residência da sua amiga GG, onde permaneceu durante dois dias.

28º. No dia ... de Julho de 2021, o arguido dirigiu-se até à residência de GG para falar com BB e, ali chegado, exigiu que esta lhe entregasse o seu aparelho de telemóvel, para saldar parte de uma suposta dívida que a mesma teria para com ele.

29º. Desde ... de Julho de 2021, BB queixou-se de fortes dores de cabeça e tonturas que a impediam de trabalhar.

30º. No dia ... de Agosto de 2021, em hora e local que não se logrou determinar, o arguido muniu-se de um objecto de natureza contundente, abeirou-se de BB e desferiu-lhe várias pancadas, imprimindo força, atingindo-lhe as zonas da face, do braço esquerdo e das costas.

31º. Acto contínuo, o arguido, munido desse objecto, bateu com ele, imprimindo força, mais do que uma vez, na cabeça de BB, atingindo-lhe o couro cabeludo e lacerando-lho, sem que ela tivesse qualquer oportunidade de reacção ou oposição.

32º. Em consequência directa e necessária do comportamento do arguido, BB sofreu uma ferida incisa na região da cabeça, com infiltração sanguínea da face interna do couro cabeludo parieto-occipital esquerda, com 2 x 6 cm de dimensão, bem como lesões crânio-encefálicas, com hematoma subdural da convexidade esquerda com cerca de 9 mm, com hemorragia subaracnoide parietal esquerda, um hematoma orbitário direito e múltiplos hematomas no ombro e região dorso lombar esquerda.

33º. Pelas 21h24 desse dia, o arguido pediu à companheira do seu irmão, DD, que ligasse para o 112, visando socorrer BB.

34º. O pedido de socorro foi feito para a via principal em frente ao parque de estacionamento de ..., em ....

35º. No pedido efectuado, DD dizia que BB não acordava desde o dia ... .08.2021.

36º. O arguido encontrava-se com BB quando a ambulância chegou ao local e informou a equipa médica de que ela teria sofrido uma “overdose” e que a tinha encontrado caída no chão, num local referenciado pelo consumo de estupefacientes, e não a tinha conseguido transportar para casa.

37º. BB foi transportada pelo INEM para o Hospital de ..., onde deu entrada pelas 22h13 do dia ... de Agosto de 2021.

38º. Aquando da admissão de BB nessa unidade hospitalar, o arguido forneceu indicações expressas de que era o único familiar da mesma e de que não deveriam ser facultadas informações sobre o estado de saúde dela a qualquer outra pessoa.

39º. Ainda no dia ... 08.2021, pelas 22h55, BB foi admitida na unidade de cuidados intensivos do Hospital de ..., sem condições para falar.

40º. BB faleceu em ...de Setembro de 2021.

41º. A morte de BB deveu-se a “hematoma subdural pós-traumático, resultante de acção de natureza contundente, complicado de broncopneumonia aguda bilateral”.

42º. As lesões crânio-encefálicas foram causa directa e necessária da morte de BB.

43º. Ao actuar do modo descrito, o arguido quis molestar o corpo de BB, desferindo-lhe pancadas, com especial incidência na zona da face e da cabeça, nos ombros e no peito, apenas tendo cessado tais condutas quando quis cessá-las.

44º. Ao actuar da forma descrita, o arguido, apesar de saber que, na qualidade de pessoa com quem mantinha relacionamento amoroso, lhe devia particular respeito e consideração, teve o propósito, reiterado e conseguido, de humilhar e maltratar física e psiquicamente BB, sua namorada e companheira, inclusive no domicílio dela e no interior do domicílio comum, atentando contra o corpo e a dignidade pessoal e interferindo com a intimidade da mesma, gerando nela um profundo sentimento de temor, inquietação e angústia.

45º. Bem sabia o arguido que, por força da desproporção física entre ambos, BB não tinha capacidade de oferecer resistência, circunstância de que o arguido, ao agir do modo supra descrito, se prevaleceu contra ela.

46º. Ao agir como acima descrito nos pontos 30.º e 31.º, o arguido actuou com o propósito de pôr termo à vida de BB, bem sabendo que o instrumento de que para tal se muniu e que utilizou para desferir pancadas na cabeça dela era, atentas as suas características, que o arguido conhecia, a sua natureza contundente e perfurante, e aquela parte do corpo atingida, adequado a causar lesões graves de saúde, susceptíveis de tirar a vida da mesma, o que conseguiu, provocando-lhe lesões traumáticas na cabeça que foram causa directa e necessária da morte de BB.

47º. Ao adoptar as descritas condutas, bem sabendo serem as mesmas proibidas e punidas por lei, o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

48º. BB já era toxicodependente antes do início do relacionamento que manteve com o arguido e despendia o dinheiro que obtinha na compra de droga para seu consumo e,

49º. por isso, e também por causa do controlo que o arguido nos termos supra descritos exerceu sobre ela, a mesma foi abandonando o convívio social, inclusivamente com o seu filho EE.

50º. Antes do início do relacionamento que manteve com o arguido, BB tinha sido desportista de alta competição e trabalhado por conta própria, prestando serviços criativos de pintura, decoração de interiores e restauro,

51º. e tinha apoiado economicamente o seu filho EE.

52º. No período que se seguiu ao início daquele relacionamento, BB aumentou o seu consumo de estupefacientes e

53º. passou a acompanhar o arguido nos trabalhos deste enquanto empreiteiro.

54º. Em decorrência dos descritos comportamentos do arguido para com a mesma, no decurso do respectivo relacionamento, BB viveu com constante medo de morrer por causa das respectivas agressões e perdeu auto-estima.

55º. EE, filho de BB, sofreu e sofre pela perda da mãe, mais ainda sabendo do sofrimento pelo qual a mesma passou por força das agressões de que foi vítima por parte do arguido e da forma como faleceu, com agonia, quando tinha apenas 48 anos de idade e, em decorrência, pensa sobre isso diariamente, sentindo revolta, raiva, choque, tristeza e desespero.

56º. Quando soube que a mãe estava internada, EE teve dificuldade em cumprir as suas obrigações laborais para com a P.. . ......... ....... e faltou ao trabalho, por ter deixado de ter capacidade emocional para trabalhar como ....

57º. Aquando do descrito no ponto 38.º dos factos provados, o arguido identificou-se apenas verbalmente e ludibriou o hospital fazendo-o crer que era o único familiar de BB, tentando assim obstar a que o filho dela, EE, pudesse acompanhar a situação.

58º. Subsequentemente, o arguido pôs-se em fuga para ... e só veio a ser detido em Londres.

59º. O arguido já foi condenado:

- por sentença proferida em 12.09.2014, transitada em julgado em 13.10.2014, pela prática, em 23.08.2014, de um crime p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, na pena de 90 dias de multa, à taxa diária de 7 €; por decisão de 17.03.2016, esta pena foi substituída por 89 horas de trabalho a favor da comunidade, que se extinguiu, pelo cumprimento, em 02.11.2017 (Proc. n.º 159/14.0... do Juízo Local de Pequena Criminalidade de ... – Juiz 5);

- por sentença proferida em 22.07.2016, transitada em julgado em 03.10.2016, pela prática, em 15.10.2015, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152.º, n.ºs 1, al. b), e 2, do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova que contemplasse a frequência de programa direccionado para a prevenção da prática deste crime; esta pena foi declarada extinta, por decisão proferida em 09.03.2022, transitada em julgado em 10.03.2022, com fundamento no disposto no art. 57.º do Código Penal (Proc. n.º 319/15.6... do Juízo Local Criminal de ... – Juiz 3);

- por sentença proferida em 19.01.2022, transitada em julgado em 20.03.2023, pela prática, em 02.05.2021, de um crime de ofensa à integridade física qualificada, p. e p. pelos arts. 143.º, n.ºs 1 e 2, e 145.º, n.ºs 1, al. a), e 2, com referência ao art. 132.º, n.º 2, al. l), do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano (Proc. n.º 117/21.8... do Juízo Local de Pequena Criminalidade de ... – Juiz 1);

- por sentença proferida em 06.05.2015, transitada em julgado em 06.05.2015, pela prática, em Janeiro de 2015, de um crime p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, na pena de 50 dias de multa, à taxa diária de 5 €; essa pena foi declarada extinta, pelo pagamento, em 29.07.2015 (Proc. n.º 7/15.3... do Juízo Local Criminal de ... – Juiz 2);

- por sentença proferida em 29.06.2017, transitada em julgado em 14.09.2017, pela prática, em 03.07.2014, de dois crimes p. e p. pelo art. 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, na pena única de 100 dias de multa, à taxa diária de 6 €; essa pena foi declarada extinta, pelo pagamento, em 17.01.2018 (Proc. n.º 1013/14.0... do Juízo Local Criminal de ... – Juiz 1);

- por sentença proferida em 06.04.2022, transitada em julgado em 09.05.2023, pela prática, em 15.08.2020, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo art. 86.º, n.º 1, al. d), com referência aos arts. 2.º, n.º 1, al. m), e 3.º, n.º 2, al. d), da Lei n.º 5/2006, de 23.02, e de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p. pelo art. 25.º, al. a), com referência ao art. 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22.01, e às tabelas I-B e I-C anexas a esse diploma legal, nas penas parcelares de 1 ano e 6 meses de prisão por cada um deles; em cúmulo jurídico foi condenado na pena única de 2 anos e 2 meses de prisão, suspensa na sua execução período de 3 anos, com sujeição a regime de prova (Proc. n.º 783/20.1... do Juízo Local Criminal de ... – Juiz 3).

60º. O arguido nasceu em ........1993, no ....

61º. No ano de 2000 veio viver, pela primeira vez, para Portugal.

62º. É o mais novo de uma fratria de dois e cresceu num ambiente intrafamiliar de origem desajustado, pautado por violência doméstica, tendo ficado aos cuidados da mãe após a separação dos pais, quando contava cerca de dez anos.

63º. O seu pai continua a residir no país de origem e a sua mãe vive em Portugal.

64º. Apesar de o arguido manter uma relação de proximidade afectiva com a mãe, esta não se constituiu uma figura suficientemente contentora do seu comportamento e dissuasora do seu envolvimento em contextos socialmente desajustados.

65º. O arguido teve problemas comportamentais que motivaram a aplicação de medida tutelar educativa de internamento em Centro Educativo.

66º. Saiu então deste país, ao qual regressou no ano 2005, tendo cumprido aquela medida entre os 13 e os 15 anos de idade, contexto no qual concluiu o 6.º ano de escolaridade.

67º. Frequentou, mais tarde, sem o concluir, um curso de educação e formação para equivalência ao 9.º ano de escolaridade, em regime nocturno.

68º. Profissionalmente, foi mantendo uma trajectória irregular, em sectores indiferenciados, sobretudo na construção civil, na restauração e na jardinagem.

69º. Já consumiu substâncias psicoactivas, sobretudo haxixe e, esporadicamente, cocaína, em contexto de convívio social.

70º. Tem um quadro clínico de diabetes, sendo insulinodependente, o que, em situações de descontrolo dos níveis da glicémia, tem impacto no controlo das suas emoções.

71º. O arguido tem reduzida resistência à frustração e tendência para a impulsividade;

72º. em termos afectivos, revela instabilidade decorrente dessas suas características.

73º. Actualmente, tem uma relação de namoro com a mãe do seu filho mais velho, HH, ofendida no processo n.º 319/15.6..., acima referido no ponto 59.º, no qual o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica.

74º. Tem outro filho, que se encontra aos cuidados da respectiva mãe.

75º. O arguido carece de desenvolver as suas competências socio-emocionais, sobretudo ao nível da auto-regulação emocional, para lidar de forma adequada com situações potenciadoras de stress.

76º. No âmbito dos presentes autos, na sequência da emissão de mandados de detenção internacional, foi detido no Reino Unido em 07.04.2022.

77º. O arguido opôs-se à sua extradição para Portugal, mas esta acabou por ser decretada e realizou-se em 01.02.2023.

78º. Encontra-se preso preventivamente no Estabelecimento Prisional de ... desde 02.02.2023, à ordem dos presentes autos.

79º. No contexto prisional, não regista qualquer infracção disciplinar, apresentando adequação comportamental; mantém-se inactivo em termos formativo-laborais; participa em actividades religiosas, recebendo visitas regulares da mãe, da actual namorada, HH - acima referida -, e do filho de ambos, que tem dez anos de idade.

80º. O arguido tem reduzido juízo crítico quanto aos factos supra descritos a que se refere este processo, relativamente aos quais não manifesta arrependimento.»

Objeto e âmbito do recurso

8. O recurso tem por objeto um acórdão proferido pelo tribunal coletivo da 1.ª instância que aplicou uma pena de prisão superior a 5 anos, diretamente recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP]

O âmbito do recurso, que circunscreve os poderes de cognição deste tribunal, delimita-se pelas conclusões da motivação (artigos 402.º, 403.º e 412.º do CPP), sem prejuízo, sendo caso disso, dos poderes de conhecimento oficioso, em vista da boa decisão de direito, dos vícios da decisão recorrida a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95, DR-I, de 28.12.1995), de nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) e de nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro).

9. Dispõe o artigo 434.º do CPP, sob a epígrafe «Poderes de cognição», que o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame de matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º.

De acordo com a al. c) deste preceito os recursos de acórdãos proferidos pelo tribunal coletivo podem ter como fundamento os vícios e nulidades a que se referem os n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP (na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro) – ou seja, os vícios de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, de contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e de erro notório na apreciação da prova, desde que resultem do texto da decisão recorrida por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – e a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada.

10. Estando em causa uma situação de concurso de crimes (artigos 30.º, n.º 1, e 77.º do Código Penal) – crimes de violência doméstica e de homicídio qualificado – pode este tribunal conhecer de todas as questões de direito relativas à pena conjunta aplicada aos crimes em concurso e às penas aplicadas a cada um deles, englobadas naquela pena única, inferiores àquela medida, se impugnadas (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 5/2017, DR I, de 23.6.2017), o que não é o caso.

11. Resulta das conclusões da motivação que o recurso não tem por fundamento qualquer dos vícios ou nulidades a que se refere o artigo 410.º, n.º s 2 e 3, do CPP, e que, como expressamente indica no respetivo ponto 1, o recorrente limita o recurso à condenação pelo crime de homicídio qualificado, a que foi aplicada a pena de 19 anos de prisão, «restringindo o objecto do recurso a matéria de direito, nomeadamente à falta de fundamentação e consequente nulidade do acórdão, no que à condenação por este crime concerne

Em síntese, tendo em conta essas conclusões, este Tribunal é chamado a apreciar e decidir:

a. Se se verifica a invocada nulidade por falta de fundamentação quanto ao crime de homicídio qualificado, «nos termos do disposto nos Artigos 379.º, n.º 1, al. a) e 374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal» (conclusões 2 a 22 e 26), com a consequente absolvição da prática deste crime (conclusão 23);

b. Se o arguido só poderia ser condenado por um crime de ofensa integridade física qualificada p. e p. pelo artigo 145.º, do Código Penal (conclusão 24).

Quanto invocada nulidade por falta de fundamentação

12. Recordando as conclusões da motivação, em síntese, fundamenta o recorrente a arguição desta nulidade:

(a) em deficiências da acusação e do inquérito (conclusões 3 a 5), nomeadamente por falta de audição de «testemunhas cruciais» como o médico que assistiu a vítima quando esta deu entrada no hospital e da médica legista que realizou a autópsia, para responder a um conjunto de questões de natureza técnico-científica que constam da motivação (reproduzidas no ponto 5);

(b) em o tribunal ter dado como provados os factos que constam dos pontos 30 a 47 da descrição da matéria de facto provada, em particular os pontos 30, 31, 32 e 43, e «sem qualquer prova palpável, em que pudesse alicerçar essa conclusão», baseando-se «em especulações inconsistentes e até reportadas a suposições», ter dado como provado que «o arguido actuou com o propósito de pôr termo à vida» (conclusões 6 a 12);

(c) em o tribunal ter também baseado a condenação «na localização celular do telemóvel do recorrente, o que só por si não tem qualquer valência» (conclusão 13);

(d) em o tribunal «esquecendo a obrigação de ser imparcial» ter condenado «com base naquilo que a consciência lhe ditou» desvalorizando a prova que o recorrente apresentou, reportada ao «Parecer Médico Legal elaborado pela Senhora Dra. CC» (conclusões 14 a 16);

(e) em que o tribunal «desprezou o facto de ter sido o recorrente a socorrer a vítima, não lhe atribuindo qualquer valor», o que «não se coaduna» com a «tese» de que «agiu com frieza de ânimo» (conclusões 17 e 18);

(f) em que lhe parece ser do senso comum que «se BB tivesse sido vítima de várias pancadas desferidas com a força que o tribunal refere ter o recorrente imprimido teria morrido no momento», «tanto mais que a vítima para além de hematoma subdural sofria dos problemas acima elencados» (coma, intoxicação por cocaína e anfetaminas e rabdomiólise – conclusão 15), o que «só por si poderia ter provocado envenenamento e levado à morte» (conclusões 17 a 21);

(g) em que «falta o dolo» abrangendo o tipo fundamental e as circunstâncias que o qualificam (conclusão 22).

13. A nulidade que o arguido invoca é, na sua alegação, a que resulta de falta de fundamentação consistente na “enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal” (artigo 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP).

Como resulta da motivação da arguição, esta nulidade diz respeito ao julgamento da matéria de facto – aos factos dados como provados e não provados e ao exame crítico das provas. Ou seja, ao objeto da prova, que comporta todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena aplicável (artigo 124.º, n.º 1, do CPP), e à valoração da prova de acordo com o princípio da livre apreciação (artigo 127.º do CPP), sendo que a produção dos meios de prova necessários à descoberta da verdade e à boa decisão da causa tem lugar em audiência, por iniciativa do tribunal ou a requerimento dos sujeitos processuais (artigo 340.º do CPP), em ordem à decisão sobre a questão da culpabilidade (artigo 368.º do CPP), sendo totalmente irrelevantes, nesta fase processual, as deficiências do inquérito e da acusação que o recorrente invoca.

Em caso de discordância quanto ao decidido tem o arguido à sua disposição, enquanto garantia de defesa (artigo 32.º, n.º 1, da Constituição), assegurando o direito a um duplo grau de jurisdição, a possibilidade de recorrer quer quanto à matéria de direito, quer quanto à matéria de facto, em conformidade com o regime estabelecido nos artigos 399.º e segs. do CPP, sendo a competência dos tribunais superiores, em caso de condenação, definida em função do objeto do recurso e das penas aplicadas.

É assim que, pretendendo uma reapreciação do mérito da decisão sobre os factos provados e não provados e provas que os fundamentam, isto é, tratando-se de um recurso de impugnação da matéria de facto, deve o recorrente respeitar o ónus imposto pelo artigo 412.º, n.º 3, do CPP – que o recorrente não satisfaz –, especificando os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, as concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida e, sendo o caso, as provas que devem ser renovadas, sendo o conhecimento do recurso da competência do tribunal da relação (artigos 427 .º e 428.º do CPP).

Não se inscrevendo a apreciação da matéria de facto nos seus poderes de cognição pode, porém, o Supremo Tribunal de Justiça apreciar a arguição de nulidades de decisão que, aplicando pena de prisão superior a 5 anos [artigo 432.º, n.º 1, al. c), do CPP], respeite a matéria de direito, como sucede no presente caso. Havendo, pois, que conhecer da alegada nulidade por falta de fundamentação (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, segundo o qual, sendo a decisão recorrível, deve ser arguida e conhecida em recurso), que não se confunde com erro de julgamento refletido no texto da fundamentação que, sendo notório resultar do texto da decisão, pode constituir vício da sentença [artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP].

Dito de outro modo, não se trata de saber se a decisão está ou não bem ou suficientemente fundamentada – o que importaria incursão na matéria de facto subtraída aos poderes deste tribunal –, mas apenas de verificar se cumpre os requisitos da fundamentação, para que o destinatário possa conhecer e entender as razões da decisão de modo a, querendo, poder impugnar os seus fundamentos e a sua reapreciação, em exercício do direito ao recurso.

13.1. A necessidade de fundamentação da sentença condenatória, nos termos das disposições legais mencionadas, que concretizam requisitos específicos relativamente ao regime geral estabelecido no artigo 97.º, n.º 5, do CPP, decorre diretamente do artigo 205.º, n.º 1, da Constituição, segundo o qual as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas nos termos previstos na lei. Como se refere no acórdão de 8.11.2017, proc. 22/14.4PEFUN.L1.S1, «o dever constitucional de fundamentação das decisões judiciais resulta, como é conhecido, de razões que se extraem do princípio do Estado de direito, do princípio democrático e da teleologia jurídico-constitucional dos princípios processuais, que implicam, para além do mais, a necessidade de justificação do exercício do poder estadual, de modo a possibilitar o seu controlo por parte dos destinatários e dos tribunais superiores, assim se conferindo garantia efetiva ao direito de defesa, incluindo o direito ao recurso, consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Constituição (cfr. Canotilho/Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa anotada, anotações ao artigo 205.°, Vol. II, 4.ª ed.). “A fundamentação cumpre, simultaneamente, uma função de carácter objectivo — pacificação social, legitimidade e autocontrolo das decisões — e uma função de carácter subjectivo — garantia do direito ao recurso, controlo da correcção material e formal das decisões pelo seu destinatário” (Jorge Miranda/Rui Medeiros, Constituição Portuguesa anotada, Tomo III, 2007, anotações III e IV ao artigo 205.º). Constituindo um princípio de boa administração da justiça num Estado de Direito, a fundamentação das decisões dos tribunais representa um dos aspetos do direito a um processo equitativo protegido pelo artigo 6.º da Convenção Europeia para a Proteção dos Direitos Humanos, a qual impõe o dever de os tribunais motivarem adequadamente as suas decisões, de acordo com a sua natureza (assim, o acórdão do TEDH de 09.07.2007, no caso Tatishvili c. Rússia, n.º 1509/02, e outros nele mencionados) (assim, acórdão de 12.7.2018, Proc. 1289/08.2PHLRS.L1.S1, em www,dgsi.pt).

13.2. Do dever de fundamentação das decisões judiciais decorre, como tem sido salientado (cfr., por exemplo, o acórdão do Tribunal Constitucional de 23.2.2007, DR 2.ª Série de 23.02.2007, que se segue e transcreve, bem como o acórdão deste STJ de 16.3.2005, no processo 5P662, relator Cons. Henriques Gaspar, em www.dgsi.pt), que, nas decisões sobre matéria de facto, é obrigatória a indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, com a explicitação das razões dessa decisão, em termos de habilitar o seu destinatário a, ciente dessas razões, se conformar com a decisão ou a impugná-la de forma eficiente. É o exame crítico das provas que credibiliza a decisão, viabiliza o recurso e permite revelar o raciocínio lógico do tribunal relativamente à própria decisão, os motivos que levaram a dar como provados certos factos e não outros, tendo em conta que o princípio geral em matéria de avaliação das provas é o da livre apreciação pelo julgador (artigo 127.º do CPP). O tribunal do julgamento tem que explicitar as razões que o levaram a convencer-se de que o arguido praticou os factos que deu como provados. “O que está em causa em sede de fundamentação das sentenças não é um princípio de paridade de consideração e explicitação da prova produzida pelos sujeitos processuais, mas antes de explicitação do juízo decisório e das provas em que este se baseou”. A fundamentação visa a total transparência da decisão, para que os seus destinatários possam apreender e compreender claramente os juízos de valoração e de apreciação da prova (Oliveira Mendes, Código de Processo Penal anotado, Henriques Gaspar et alii, Almedina, anotação ao artigo 374.º). Como se tem sublinhado na jurisprudência deste Tribunal (todos os acórdãos sumariados no mesmo local): o exame probatório traduz-se na análise, em globo, das provas, a respetiva crítica, a forma de inteligenciar, intuir, racionalizar e conceber, para formular, a final, um juízo definitivo (acórdão do STJ de 11-2-2017, Proc. 227/07.4JAPRT.P2.S1); a fundamentação implica um exame crítico da prova, no sentido de que a sentença há-de conter também os elementos que, em razão da experiência ou de critérios lógicos, construíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse num sentido determinado (acórdão do STJ de 10.4.2007, Proc. 83/03.1TALLE.E1.S1); a fundamentação da sentença em matéria de facto consiste na indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, que constitui a enunciação das razões de ciência reveladas ou extraídas das provas administradas, a razão de determinada opção relevante por um ou por outro dos meios de prova, os motivos da credibilidade dos depoimentos, o valor dos documentos e exames, que o tribunal privilegiou na formação da sua convicção, em ordem a que os destinatários fiquem cientes da lógica do raciocínio seguido pelo tribunal e das razões da sua convicção (acórdãos do STJ de 3.10.2007, Proc. 1779/07, e de 16.3.2005, Proc. 662/05).

14. Lendo a fundamentação da decisão em matéria de facto (pp.15 a 66 do acórdão recorrido), verifica-se que esta contém enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição dos motivos de facto que a fundamentam, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Dela resultam com clareza a explicitação do juízo decisório e as razões que conduziram o tribunal a formar a sua convicção no sentido do decidido, permitindo ao arguido ficar ciente da lógica do raciocínio que o levou a julgar os factos provados e as razões provas em que se fundou esse julgamento e, nessa base, poder impugnar e contrariar a decisão em recurso em matéria de facto.

Com efeito, no que agora diretamente releva, extrai-se em particular da fundamentação, contendo uma enumeração de seis páginas das provas pessoais, documentais e periciais, que: da «documentação clínica a fls. 56 sob a epígrafe “História Clínica”», que a vítima «A 27/08 foi encontrada com alteração do estado de consciência pelo namorado, com suspeita de consumo de drogas EV (heroína e outras drogas que não sabia especificar) e suspeita de agressão física», que «O exame efectuado revela hematoma subdural hemisférico esquerdo, agudo, com espessura de aproximadamente 9 mm no plano axial. Efeito de massa moderado sobre o parênquima cerebral, com moldagem do córtex adjacente e desvio ligeiro da linha média. Existe também um componente hemorrágico subdural adjacente à foice cerebral, de espessura milimétrica. Há ainda extensão discreta da hemorragia subdural para a tenda do cerebelo. Sem evidentes hemorragias intraparenquimatosas. Sem hidrocefalia. Buraco occipital permeável. Hematoma epicraniano na alta convexidade frontal à esquerda»; que a vítima evidenciava os seguintes problemas «#1. Coma provavelmente multifactorial #2. Hematoma subdural esquerdo traumático #3. Intoxicação por cocaína e anfetaminas #4. Rabdomiólise» (p. 29); e que «do respectivo relatório de autópsia resultou claro que a acção de natureza contundente que provocou o mencionado hematoma subdural pós-traumático em BB foi causa de morte violenta e que tanto em meio hospitalar como em sede de autópsia médico-legal foram documentadas lesões traumáticas na sua cabeça resultantes de acção de natureza contundente – cfr. fls. 440 a 447 verso e 653 verso a 657» (p. 32-33); que «nada leva o tribunal a divergir do juízo contido no relatório de autópsia - cfr. o n.º 2 daquele art. 163.º -, não tendo essa virtualidade o documento apelidado de “parecer médico-legal documental” junto pelo arguido sob a referência Citius ......86, de 12.12.2023» (p. 33); que a vítima «não morreu por causa de intoxicação por drogas de abuso, embora fosse toxicodependente, habitual consumidora de cocaína e pontual consumidora de anfetaminas (MDMA) e essas drogas lhe tenham sido detectadas na sequência da sua admissão hospitalar» (p. 33); que a vítima «não morreu por ter batido contra uma superfície dura, mas porque um objecto duro foi por acção de outrem batido contra a sua cabeça» (p. 33); que a vítima «teve nessa sequência outras complicações de saúde, mas a sua morte não teria ocorrido se não tivesse sofrido o hematoma subdural pós-traumático resultante de acção de natureza contundente e ocorreu porque o sofreu» (p. 33); que «Esse evento não foi presenciado senão pela própria e por quem levou a cabo tal acção, mas tanto em meio hospitalar como em sede de autópsia médico--legal foram documentadas lesões traumáticas na sua cabeça resultantes de acção de natureza contundente e, feita, nos termos supra e infra expostos, a análise crítica e conjugada de toda a prova produzida, de acordo com as regras da experiência e da lógica, a prova testemunhal, por declarações e documental deixaram claro quem foi o seu autor: o arguido» (pp. 33-34).

Finalizando: «Por tudo o exposto, tendo procedido à análise crítica e conjugada, de acordo com as regras da experiência e da lógica, de toda a prova produzida, o tribunal concluiu, sem qualquer dúvida, que se verificou o descrito nos pontos 1.º a 58.º dos factos provados».

15. Pelo exposto, se conclui que o acórdão recorrido satisfaz as exigências de fundamentação impostas pelo artigo 374.º, n.º 2, do CPP, não se verificando, em consequência, a nulidade prevista no artigo 379.º, n.º 1, al. a), do CPP.

Termos em que improcede o recurso nesta parte.

Quanto à qualificação jurídica dos factos

16. Como se viu, alega o arguido que, «a admitir-se que o recorrente praticou os factos pelos quais foi condenado, a condenação só poderia ocorrer por um crime de ofensa integridade física qualificada p. e p. pelo artigo 145.º do Código Penal» – pelo respetivo n.º 1, al. a), como especifica na resposta ao parecer do Ministério Público neste Supremo Tribunal (supra, 5, parte final) – «atendendo ao facto do recorrente ter socorrido a vítima e de a mesma só ter vindo a falecer um mês após ter dado entrada no hospital, onde para além dos problemas com que deu entrada na urgência hospitalar e acima discriminados, sofreu várias complicações hospitalares» (conclusão 24).

17. O acórdão recorrido vem, nesta parte, assim fundamentado:

«O arguido está também acusado da prática de um crime de homicídio qualificado, em autoria material e na forma consumada, p. e p. pelos arts. 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, als. b), h) e i), do Código Penal.

Comete o crime de homicídio, p. e p. pelo art. 131.º do Código Penal, quem mata outra pessoa.

Sendo a morte produzida em circunstâncias que revelem especial censurabilidade ou perversidade, o homicídio é qualificado, de acordo com o disposto no art. 132.º, n.º 1, do Código Penal.

São susceptíveis de revelar a especial censurabilidade ou perversidade a que se refere esse artigo, entre outras, as circunstâncias de o agente:

- praticar o facto contra pessoa com quem mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação (art. 132.º, n.º 2, al. b));

- utilizar meio particularmente perigoso ou que se traduza na prática de crime de perigo comum (art. 132.º, n.º 2, al. h));

- utilizar veneno ou qualquer outro meio insidioso (art. 132.º, n.º 2, al. i)).

Estamos perante um crime de resultado que se configura como um caso especial de homicídio, em que o legislador decide punir esta actuação criminal com uma moldura penal diferente, em virtude da existência em relação ao tipo fundamental de circunstâncias relativas à maior ilicitude ou à maior culpa, sempre com reflexo na culpa.

A qualificação prevista no art. 132.º deriva, pois, da verificação de um tipo de culpa agravado (neste sentido, TERESA SERRA, Homicídio Qualificado, Tipo de Culpa e Medida da Pena, Livraria Almedina, Coimbra, a propósito do homicídio qualificado, e ainda FIGUEIREDO DIAS, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, Coimbra Editora), que assenta numa cláusula geral em que o legislador recorreu a conceitos indeterminados, contida no n.º 1 do preceito e cuja verificação é indiciada pelo preenchimento de uma ou mais das diversas circunstâncias elencadas nas alíneas do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal.

Assim, não basta a verificação de circunstância prevista nas alíneas do n.º 2 do preceito em questão para estarmos perante homicídio qualificado, uma vez que as circunstâncias aí previstas têm função indicadora em termos de culpa, são exemplos-padrão, sendo sempre necessária a verificação, no caso concreto, de uma especial censurabilidade ou perversidade do agente.

Ora, verifica-se que o arguido agiu com especial censurabilidade e perversidade, porque, nas descritas circunstâncias, depois de, para além do mais descrito, já por duas vezes no período compreendido entre Junho e Agosto de 2021, ter em duas ocasiões desferido pancadas na cabeça de BB, numa ocasião com pedras e noutra com o cabo de uma picareta e, em ambas, fazendo-a dali sangrar abundantemente, no dia 27.08.2021, com um objecto de natureza contundente, abeirou-se novamente de BB e desferiu-lhe várias pancadas, imprimindo força, atingindo-lhe as zonas da face, do braço esquerdo e das costas e, acto contínuo, munido desse objecto, bateu com ele, imprimindo força, mais do que uma vez, na cabeça da mesma, atingindo-lhe o couro cabeludo e lacerando-lho, sem que ela tivesse qualquer oportunidade de reacção ou oposição, tendo nesse dia o arguido assim agido com o propósito de pôr termo à vida de BB, bem sabendo que o instrumento de que para tal se muniu e utilizou era para tal adequado, como sempre de forma livre, voluntária e consciente, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

Com efeito, no caso concreto, apesar de em face da factualidade provada não ser possível afirmar-se o preenchimento das mencionadas als. h) ou i) – nomeadamente que o meio utilizado pelo arguido para matar BB tenha sido mais do que normalmente perigoso relativamente ao resultado visado e alcançado ou que o arguido tenha utilizado veneno ou outro meio insidioso, sendo que este não se basta com a desproporção de forças -, é indubitável que o arguido preencheu a circunstância agravante típica que se enquadra na al. b) do n.º 2 do art. 132.º do Código Penal - o praticar o facto contra pessoa com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação -, e que esse concreto preenchimento reflectiu um acréscimo particular na culpa do arguido, revelando uma especial censurabilidade e perversidade, por demonstrar uma fortíssima intensidade da vontade criminosa, com fortíssima oposição aos valores sociais próprios do nosso Estado de Direito.

Atendendo a que o arguido agiu como queria, com conhecimento dos elementos objectivos referidos, agiu com dolo directo, nos termos do art. 14.º, n.º 1, do Código Penal.»

18. A conclusão do tribunal apoia-se, em particular, nos seguintes pontos da matéria de facto, que, na falta de impugnação, se considera estabilizada:

«30º. No dia ... de Agosto de 2021, em hora e local que não se logrou determinar, o arguido muniu-se de um objecto de natureza contundente, abeirou-se de BB e desferiu-lhe várias pancadas, imprimindo força, atingindo-lhe as zonas da face, do braço esquerdo e das costas.

31º. Acto contínuo, o arguido, munido desse objecto, bateu com ele, imprimindo força, mais do que uma vez, na cabeça de BB, atingindo-lhe o couro cabeludo e lacerando-lho, sem que ela tivesse qualquer oportunidade de reacção ou oposição.

32º. Em consequência directa e necessária do comportamento do arguido, BB sofreu uma ferida incisa na região da cabeça, com infiltração sanguínea da face interna do couro cabeludo parieto-occipital esquerda, com 2 x 6 cm de dimensão, bem como lesões crânio-encefálicas, com hematoma subdural da convexidade esquerda com cerca de 9 mm, com hemorragia subaracnoide parietal esquerda, um hematoma orbitário direito e múltiplos hematomas no ombro e região dorso lombar esquerda.

37º. BB foi transportada pelo INEM para o Hospital de ..., onde deu entrada pelas 22h13 do dia ... de Agosto de 2021.

39º. Ainda no dia ... 08.2021, pelas 22h55, BB foi admitida na unidade de cuidados intensivos do Hospital de ..., sem condições para falar.

40º. BB faleceu em ...de Setembro de 2021.

41º. A morte de BB deveu-se a “hematoma subdural pós-traumático, resultante de acção de natureza contundente, complicado de broncopneumonia aguda bilateral”.

42º. As lesões crânio-encefálicas foram causa directa e necessária da morte de BB.

43º. Ao actuar do modo descrito, o arguido quis molestar o corpo de BB, desferindo-lhe pancadas, com especial incidência na zona da face e da cabeça, nos ombros e no peito, apenas tendo cessado tais condutas quando quis cessá-las.

46º. Ao agir como acima descrito nos pontos 30.º e 31.º, o arguido actuou com o propósito de pôr termo à vida de BB, bem sabendo que o instrumento de que para tal se muniu e que utilizou para desferir pancadas na cabeça dela era, atentas as suas características, que o arguido conhecia, a sua natureza contundente e perfurante, e aquela parte do corpo atingida, adequado a causar lesões graves de saúde, susceptíveis de tirar a vida da mesma, o que conseguiu, provocando-lhe lesões traumáticas na cabeça que foram causa directa e necessária da morte de BB.

47º. Ao adoptar as descritas condutas, bem sabendo serem as mesmas proibidas e punidas por lei, o arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.»

19. Face a estes factos, julgados provados, não se encontra fundamento que justifique o argumento do arguido no sentido de que apenas poderia ser condenado por um crime de ofensa à integridade física (da previsão do artigo 143.º do CP), agravado por circunstância reveladora de especial censurabilidade ou perversidade, nos termos do n.º 2 do artigo 132.º do CP, a que corresponde uma pena até 4 anos de prisão (artigo 145.º, n.º 1, al. a), do CP).

Produzido o resultado morte, por ofensa à integridade física e ação causal do arguido, nos termos descritos, e tendo o arguido agido voluntária e conscientemente com o propósito de causar a morte da vítima em demonstradas circunstâncias de perversidade e censurabilidade – no caso a da previsão da al. b), cuja verificação o arguido não contesta –, preenchido se mostra o tipo de crime de homicídio qualificado, nos seus elementos subjetivo e objetivo, como se concluiu no acórdão recorrido, devendo, em consequência o autor ser punido pela prática deste crime.

Termos em que igualmente improcede o recurso nesta parte.

Quanto a custas

20. De acordo com o disposto no artigo 513.º do CPP (responsabilidade do arguido por custas), só há lugar ao pagamento da taxa de justiça quando ocorra condenação em 1.ª instância e decaimento total em qualquer recurso. A taxa de justiça é fixada entre 5 e 10 UC, tendo em conta a complexidade do recurso, conforme tabela III anexa ao Regulamento das Custas Processuais.

III. Decisão

21. Pelo exposto, acorda-se na Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente o recurso do arguido AA, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UC.

Cumpra o disposto no artigo 10.º, n.º 2, da Portaria n.º 280/2016, de 26.10.2016.

Supremo Tribunal de Justiça, 25 de setembro de 2024

José Luís Lopes da Mota (relator)

António Augusto Manso

Antero Luís