Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | RICARDO COSTA | ||
Descritores: | ARRESTO CAUTELAR HIPOTECA ADMISSIBILIDADE DA REVISTA OPOSIÇÃO DE JULGADOS | ||
Data do Acordão: | 06/11/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NÃO CONHECIMENTO DO OBJECTO DO RECURSO | ||
Sumário : | I. O art. 370º, 2, do CPC, como regra de irrecorribilidade em revista de decisões proferidas relativamente a procedimentos cautelares, não admite a revista excepcional (dirigida para ultrapassar a “dupla conformidade decisória”: arts. 672º, 1, e 671º, 3, CPC) e só admite como salvaguarda a revista extraordinária nas situações previstas no art. 629º, 2, do CPC (sendo a respectiva al. d) apenas aquela que se encontra fundada em justificada oposição jurisprudencial no domínio da mesma legislação). II. Tal preenchimento do art. 629º, 2, d), do CPC não acontece se, em sede de não decretamento de arresto cautelar de bens do devedor, os acórdãos se movem em legislações distintas (arts. 227º, 1, b), 228º, 193º, 1 e 4, CPP vs. arts. 391º e ss, CPC), ainda que possam articular-se ao abrigo do art. 228º, 1, do CPP e, sem prejuízo, (i) ambos os acórdãos não se afastam na diferenciação de finalidade e regime do arresto cautelar e da hipoteca como garantia e (ii) as situações fáctico-materiais litigiosas não são equiparáveis para a apreciação da mesma subsunção jurídica sobre a susceptibilidade de incidir arresto sobre bens hipotecados, nomeadamente porque os bens cujo arresto preventivo-cautelar é requerido nos presentes autos se encontram hipotecados e registados em favor do requerente e titular dos créditos garantidos, sendo que o bem cujo arresto é requerido pelo MP no processo conducente ao acórdão fundamento está hipotecado em favor de um terceiro (banco mutuante da arguida para aquisição de habitação). | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n.º 14867/23.0T8LSB.L1.S1 Revista – Tribunal recorrido: Relação de Lisboa, ... Secção Acordam em Conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I) RELATÓRIO 1. A «Caixa Económica Montepio Geral, Caixa Económica Bancária, S. A.» deduziu procedimento cautelar especificado de arresto contra «AM48, Lda.», actualmente sob a firma «CEMG, Volume Máximo, Companhia, Lda.», pedindo que se decretasse o arresto de 29 fracções autónomas de prédio urbano descrito, em referência à garantia patrimonial relativa à celebração de um contrato de abertura de crédito com hipoteca e consequente creditação da quantia global de € 11.500.000,00, aumentado(-aditado) depois para os valores totais de € 30.076.967,08, € 33.325.000,00, sem audição prévia da parte contrária. 2. Produzida a prova testemunhal requerida, o Juiz ... do Juízo Central Cível de Lisboa julgou procedente a providência (decisão de 13/7/2023) e, em consequência, decretou (transcreve-se) “o arresto das fracções “H”, “I”, “J”, “L”, “M”, “N”, “P”, “Q”,“R”, “T”, “U”, “V”, “W”, “X”, “AA”, “AB”, “AE”, “AF”, “AG”, “AH”, “AI”, “AK”, “AL”, “AM”, “AN”, “AO”, “AP”, “AR” e “AS”, do prédio urbano com a área total de três mil e setenta vírgula cinquenta e seis metros quadrados e área coberta de mil trezentos e noventa vírgula trinta metros quadrados, denominado “Promenade”, situado na Avenida ..., números, 8, 8-A, 8-B, 10, A, 10-B, 10-C, 10-D, 10-E, 10-F, 10-G, 10-H, 10-1 tornejando para a Rua ..., números 7 e 7-A, freguesia da Misericórdia concelho de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número .07 da freguesia de ..., registado a favor da A..., pelas Ap. .86 de 3/7/2017, e Ap. ..78, de 18/6/2018, afeto ao regime de propriedade horizontal nos termos da Ap. 1517, de 14/1/2019, e seus averbamentos, inscrito na respetiva matriz predial urbana o número ....8.” Fixou-se ainda o valor da causa em € 18.706.477,49. 3. Concretizado o arresto, foi citada a Requerida nos termos do disposto no art. 366º, 6, do CPC. Veio deduzir Oposição, peticionando a revogação da decisão e o respectivo levantamento do arresto mediante o cancelamento dos respectivos registos. Realizada audiência final, foi proferida decisão (5/1/2024), que julgou improcedente a oposição e manteve o arresto ordenado. 4. Inconformada, veio a Requerida interpor recurso de apelação para o Tribunal da Relação de Lisboa, que conduziu a ser proferido acórdão no qual se rejeitou a impugnação da decisão sobre a matéria de facto quanto a factos não provados e se julgou procedente o recurso, revogando a decisão recorrida e ordenando o levantamento do arresto. 5. Agora sem se resignar, veio a Requerente interpor recurso de revista para o STJ, excepcional ao abrigo do art. 672º, 1, c), e extraordinária ao abrigo do art. 629º, 2, d), do CPC, invocando oposição jurisprudencial com o Ac. do Tribunal da Relação de Évora de 10/1/2023, processo n.º 37/19, que juntou através de certidão comprovativa com nota de trânsito em julgado (em 15/2/2023). Foram apresentadas contra-alegações pela Requerida, pugnando pela inadmissibilidade da revista e, se for de admitir, improcedência do recurso. 6. Subidos os autos, foi proferido despacho no âmbito de aplicação do art. 655º, 1, do CPC, sem prejuízo do já contra-alegado, atenta a eventualidade de não conhecimento do objecto do recurso. A Requerente e Recorrente veio sustentar a admissibilidade à luz do regime do art. 629º, 2, d), em especial defendendo a contradição entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento. A Requerida e Recorrida também se pronunciou, reiterando a inadmissibilidade da revista, seja a título excepcional, seja no âmbito da previsão do art. 629º, 2, d), do CPC. ∗ Colhidos os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir, desde logo enfrentando a questão prévia da admissibilidade da revista, nas suas duas modalidades de interposição configuradas pela Recorrente. II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS Questão prévia da admissibilidade da revista 7. O art. 370º, 2, do CPC prescreve: «Das decisões proferidas nos procedimentos cautelares, incluindo a que determine a inversão do contencioso, não cabe recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível.» 8. Da revista excepcional 8.1. A irrecorribilidade do art. 370º, 2, do CPC não é afastada pelo regime da revista excepcional, privativo das decisões da Relação com “dupla conformidade” decisória e sem qualquer mobilização quando esta “dupla conformidade” não se verifica. 8.2. Não se verificando dupla conformidade nas decisões das instâncias, não se admite a revista excepcional, tendo em conta o art. 672º, 1, no seu corpo, em referência ao art. 671º, 3, do CPC, não podendo ser invocado qualquer dos fundamentos de revista excepcional “para afastar uma específica irrecorribilidade da decisão proferida em 2.ª instância”, como é o caso da estabelecida no art. 370º, 2, do CPC1. 9. Da revista extraordinária com base no art. 629º, 2, d), do CPC 9.1. Do art. 370º, 2, do CPC resulta uma regra de condicionamento de acesso ao terceiro grau de jurisdição, de forma que a irrecorribilidade do art. 370º, 2, apenas é afastada pelo regime da revista extraordinária baseada nos motivos de impugnação previstos no art. 629º, 2, do CPC («casos em que é sempre admissível revista»). 9.2. A al. d) do art. 629º, 2, do CPC prescreve: «Do acórdão da Relação que esteja em contradição com outro, dessa ou de diferente Relação, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, e do qual não caiba recurso ordinário por motivo estranho à alçada do tribunal, salvo se tiver sido proferido acórdão de uniformização de jurisprudência com ele conforme.» 9.3. A revista nesta situação implica que se verifique preenchido o art. 629º, 1, do CPC, uma vez que o fundamento recursivo assenta em «motivo estranho à alçada do tribunal»2 – o que se verifica, atento o valor da causa e insubsistência de elementos para aferição da medida da sucumbência. 9.4. Ademais, dessa previsão resulta que o recorrente tem o ónus específico de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrários, sob pena de não inadmissibilidade do recurso do acórdão recorrido e apreciação do seu mérito. 9.5. A admissibilidade da revista com esta configuração depende de a divergência jurisprudencial se tornar relevante no mesmo quadro normativo, sendo que, neste particular, o acórdão fundamento versa sobre a interpretação e aplicação dos arts. 227º, 1, b) – prestação de “caução económica” – e 228º – “arresto preventivo” – do Código de Processo Penal (princípio da subsidiariedade), em conjugação com o art. 193º, 1 e 4, do mesmo CPP, mobilizando para este efeito as «medidas de coação e garantia patrimonial» à luz dos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade. Enquanto isso, o acórdão recorrido move-se no seio do regime do “arresto cautelar” civil de bens do devedor: arts. 391º e ss do CPC. E concluiu que “[n]ão é de decretar o arresto relativamente a bens que já se encontram hipotecados a favor da Requerente”, à luz dos requisitos dos arts. 391º, 1, e 392º, 1, do CPC. De todo o modo, podem articular-se à luz do art. 228º, 1, do CPC, o que implica ir mais longe na análise. Logo, sem prejuízo. 9.6. Para existência da indispensável oposição jurisprudencial para efeitos de admissibilidade da revista, as decisões entendem-se como divergentes se se baseiam em situações fáctico-materiais litigiosas que, de um ponto de vista jurídico-normativo – tendo em vista os específicos interesses das partes em conflito – são análogas ou equiparáveis, pressupondo o conflito jurisprudencial uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões em confronto, acrescendo que a questão fundamental de direito em que assenta a alegada divergência assuma um carácter essencial ou fundamental para a solução do caso. Assim, para que o STJ seja chamado a pronunciar-se, orientando a jurisprudência em tais tipos de processos, é necessário concluir, previamente, que existe uma oposição (frontal e expressa, por regra) de entendimentos nos acórdãos em confronto sobre a aplicação de determinada solução legal, sendo que – reitere-se – tal divergência se projecta decisivamente no modo como os casos foram decididos. 9.7. Vistas as Conclusões que finalizam a revista, a Recorrente alega que a questão fundamental de direito contraditoriamente julgada respeita à falta ou não de interesse do requerente e de utilidade objectiva do arresto preventivo decretado em face de bens sobre os quais incide hipoteca registada. 9.8. Sobre a questão pertinente, refere-se e argumenta-se no acórdão recorrido: “(…) confrontamo-nos com a questão de a Requerente/apelada ter peticionado o arresto de 29 fracções autónomas relativamente às quais beneficia de – várias – hipotecas devidamente registadas, sendo estes os bens relativamente aos quais foi decretado o arresto pelo tribunal a quo. A Requerida/apelante contesta o efeito jurídico útil do arresto decretado sobre aquelas fracções, relativamente às quais a Requerente/apelada já beneficia da garantia especial dada pelas hipotecas registadas, porquanto (em suma): “nos termos do artigo 622 do CC, o efeito útil do arresto é tornar ineficazes, em relação à Recorrida, potenciais atos de disposição das frações hipotecas, de acordo com as regras próprias da penhora”; no caso, “as hipotecas acompanhariam sempre as frações se fossem alienadas e por isso a garantia está nas hipotecas e não no arresto”; e, quanto ao direito de retenção dos promitentes-compradores das fracções, tais direitos estão assegurados nos termos do art. 759º, nºs 1 e 2 do Cód. Civil, e “também a isto, o arresto não põe nem tira. É prévio e prevalece inexoravelmente, sobre hipotecas, arrestos e penhoras”; pelo que, o arresto é “de uma absoluta inutilidade como garantia para a Recorrida” face à “sua total incapacidade para contrariar o direito de retenção e, por isso, para aportar o que quer que seja mais à garantia hipotecária da Recorrida.”. E, afigura-se-nos que, aqui, tem razão a apelante. Senão, vejamos. Resulta da conjugação dos arts. 601º, 1ª parte, do Cód. Civil e 735º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, que, como regra, todos os bens do devedor, isto é, todos os que constituem o seu património, respondem pelo cumprimento da obrigação. O que significa que o património do devedor, susceptível de penhora, é garantia geral das obrigações, a qual se torna efectiva por meio da execução. O arresto constitui um meio conservatório de garantia geral e patrimonial do credor de natureza creditícia. O arresto apresenta, nas palavras de Rita Barbosa da Cruz, in “O Arresto”, Revista “O Direito”, Ano 132º, 2000, I-II (Janeiro-Junho), p. 180, o efeito de individualizar, dentro do património do devedor que constitui, na sua universalidade, a garantia dos credores, aqueles bens (os que são objecto de arresto) que, no momento da execução, servirão para a satisfação do seu crédito. Constitui “uma penhora antecipada, exercendo uma função meramente instrumental relativamente ao processo de execução. Tal como ocorre com os bens penhorados, os actos de disposição dos bens arrestados são ineficazes em relação ao credor (art. 622.º do CC), derivando da apreensão uma situação de indisponibilidade relativa.” – Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Vol., 3ª edição revista e actualizada, Almedina, p. 208. No caso dos autos, as fracções autónomas, por força das hipotecas registadas a favor da Requerente/apelada, já estão afectas especialmente ao pagamento do crédito por esta invocado, de acordo com o disposto no art. 752º, nº 1 do Cód. Proc. Civil (cfr., ainda, art. 697º do Cód. Civil); sendo certo, ainda, que, como é sabido, também por força daquelas hipotecas, a Requerente/apelada tem o direito de ser paga pelo valor daqueles bens com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou de prioridade de registo (art. 686º, nº 1 do Cód. Civil). Ora, perante este circunstancialismo fáctico e jurídico, é de concluir que, por manifesta falta de interesse, o arresto não pode incidir sobre os próprios bens que constituem a garantia real, considerando que a medida em nada viria reforçar a preservação da garantia patrimonial que esta providência visa alcançar, uma vez que, de acordo com o disposto no art. 752º, nº 1, existindo garantia real, a penhora deve incidir desde logo sobre esses bens – cfr. Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, IV Vol., 3ª edição revista e actualizada, Almedina, p. 195. Invoca a Requerente o receio de a Requerida continuar a conferir a posse a outros promitentes compradores, que, desta forma, poderão ver constituídos em seu benefício um direito de retenção com preferência sobre as hipotecas registadas a favor da Requerente, nos termos do art. 759º do Cód. Civil. Porém, o arresto não se configura como providência susceptível de acautelar tal efeito, porquanto, e como decorre do nº 2 do art. 822º, aplicável ao arresto por força do nº 2 do art. 622º, ambos do Cód. Civil, o arresto apenas confere à Requerente a preferência em relação aos outros credores da Requerida que não tenham garantia real anterior, ou seja, a preferência da penhora - relativamente à qual o direito de retenção sempre prevalece, como resulta do já citado art. 759º, nº 1 daquele diploma. É que não podemos perder de vista que “a função do arresto é, portanto, a mesma da penhora; e na penhora se há-de converter o arresto quando chegar o momento da execução (…). Quer dizer, o arresto é nem mais nem menos do que uma penhora antecipada ou uma penhora preventiva, efectuada antes de o credor estar munido de título executivo, mas na expectativa ou na pressuposição de que virá obter esse título.” – Alberto dos Reis, in “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, 3ª ed., reimpressão, Coimbra Editora, 1981, p. 37. Aliás, a este propósito, sempre se dirá, ainda, que, dentro da lógica da Requerente, não se compreende sequer o pedido de arresto das cinco fracções (AO; AP; AM; AR; e T) cuja posse já foi entregue aos promitentes compradores, como a própria Requerente alegou na petição inicial. Pelo exposto, não é de decretar o arresto na medida em que as 29 fracções autónomas em causa já se encontram hipotecadas a favor da Requerente.” 9.9. Por sua vez, o acórdão fundamento, nomeadamente na parcela em que analisa a remissão do art. 228º, 1, do CPP, para o art. 391º, 1, do CPC, por força da sindicação da decisão de juiz de instrução criminal a decretar o arresto preventivo de imóvel da arguida, requerido pelo Ministério Público, argumenta: “(…) a questão a decidir cinge-se à ponderação da verificação dos requisitos necessários para o decretamento do arresto preventivo. Entende-se como pacífico que o arresto preventivo se assume como a medida de garantia patrimonial mais gravosa, gerando um vínculo de indisponibilidade, mais ou menos extenso, sobre o património do visado. Por essa via, o respetivo ius utenti, fruendi et abutendi fica irremediável e fatalmente restringido. Face a este potencial agressivo, igualmente se entende que tal mecanismo só deve ser utilizado subsidiariamente, sendo que nos termos do plasmado no artigo 228º do CPPenal, só poderá ser decretado quando a caução económica seja insuficiente, quer porque o visado não a prestou ou quando, desde o início, não garante o adimplemento das obrigações patrimoniais, penais e civis daquele. Ademais do seu carácter subsidiário, o arresto deverá ainda ser restringido ao mínimo indispensável à garantia das obrigações patrimoniais do visado. O valor dos bens arrestados deverá ser proporcional ao valor que presumivelmente será declarado perdido, ou deverá ser entregue ao lesado. Arrestar todo o património, apesar de estar em causa uma pequena parcela do mesmo, violará os princípios da necessidade e da subsidiariedade das medidas de garantia patrimonial – artigo 193.º do CPPenal. Neste conspecto, exubera, desde logo, o caminho imediatamente expresso no CPPenal, por via dos incisos que constituem os artigos 227º e 228º, onde ressalta este último que, de forma clara e inequívoca, aponta para a lei do processo civil. O aludido palco legal demanda que a determinação do arresto preventivo depende, desde logo, da verificação da existência dos requisitos de que a lei faz depender a decretação do arresto “civil”, sendo que apelando ao artigo 391º, nº 1, do CPCivil, que o credor que tenha justificado receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor. Assim, para que seja decretado o arresto “civil” e, por via da aludida remissão, o arresto preventivo, é necessário que estejam reunidos os seguintes requisitos: a) a titularidade indiciária de um direito de crédito; b) o justo receio de perda da garantia patrimonial. Por outro lado, a criação de um mecanismo substantivo de confisco alargado, suscetível de apoderamento do valor do património ilícito do Requerido, olhando ao regime inserto nos artigos 7º e seguintes da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, alterada em último pela Lei nº 13/2022, de 1 de agosto, gerou também a necessidade de criar o correspondente mecanismo processual cautelar, capaz de assegurar a possibilidade mínima de cumprimento futuro dessa decisão final (já não estão em causa os instrumenta ou os producta sceleris, as recompensas dadas ou prometidas, as vantagens, seu sucedâneo ou o seu valor, mas todo o património incongruente do Requerido). Faça-se notar, ainda, que a crescente globalização económica arrasta a volatilidade do património, criando facilmente oportunidades reais e imediatas para a fuga. Perseguir, depois, as suas pistas longínquas será, na maior parte dos casos, tarefa quase impossível. Um dos maiores problemas do confisco é, por isso mesmo, a sua execução. A decisão arrisca-se a ser qual miragem, contribuindo para a ideia de que certos criminosos são intocáveis. Com efeito, aqueles que praticam crimes tendo em mente obter proventos económicos, certamente que tudo farão para que não se vejam posteriormente despojados dos mesmos e, por isso, crucial se torna inverter uma certa cultura judiciária centrada no momento da pena e, nessa medida, apostar na utilização destes instrumentos que, prevenindo / precavendo, podem garantir uma real e efetiva recuperação dos frutos/proventos/ativos gerados pelo crime. Mergulhando nos considerandos explanados, olhando ao caso em apreço e aos argumentos aduzidos pela arguida recorrente, cumprirá então apurar da bondade do despacho em sindicância. Em primeiro passo, vem defender a arguida recorrente a desproporcionalidade e falta de razoabilidade do arresto decretado face à hipoteca existente, entendendo que o imóvel encontra-se onerado com uma hipoteca voluntária de mútuo habitacional registada em 18/03/2021 a favor do Banco Santander Totta, S.A. (…) O arresto decretado consubstancia (…) o arresto de uma dívida hipotecária do valor supra indicado (…) o arresto de um bem onerado com uma hipoteca com o valor referido não resultará na satisfação do crédito (…) o seu decretamento não é, in casu, coerente, razoável, nem adequado e proporcional. Cumpre dizer que, salvo melhor e mais avisada opinião, esta linha de argumentação não tem qualquer ancoradouro. O arresto preventivo que aqui se questiona, e a hipoteca, para além de finalidades dissemelhantes, obedecem a regimes jurídicos distintos. Enquanto a hipoteca se assume como um instituto que se destina a garantir o cumprimento de determinada obrigação[4], o arresto preventivo tem uma função puramente cautelar, visando a apreensão judicial de bens de molde a salvaguardar o receio da perda de garantia patrimonial do credor, em virtude de o devedor tornar ou poder tornar difícil a realização coativa do seu crédito. Tal como a própria designação anuncia, trata-se de uma medida cautelar/preventiva/provisória. Na verdade, a hipoteca não impede que o bem se possa dissipar, ser vendido, ser transacionado. O arresto preventivo pretende precisamente acautelar / salvaguardar a possibilidade de desaparecimento/dissipação/ocultação de um bem. Acresce que in casu, não se descortina como pode a arguida recorrente afirmar que o arresto não é do bem, mas de uma dívida hipotecária. Obviamente que o arresto incide sobre uma coisa concreta – um imóvel –, que está onerado com uma hipoteca. Aliás se inexistisse qualquer vantagem/valor sobre o imóvel que se arrestou, por estar hipotecado, não reagiria a arguida recorrente à dita providência preventiva – não faria sentido questionar um arresto sobre um bem que, no seu dizer não resultará na satisfação do crédito. Como o afirma o Digno Mº Pº – Não compete à recorrente ajuizar se o arresto deste imóvel onerado com a hipoteca, atento o valor garantido, permitirá, ou não, satisfazer as necessidades e finalidades dessa medida cautelar, pois que, não só esse apuramento só poderá ser feito a final, no momento do acionamento dessas garantias, se acontecer, como, sobretudo, nada impede que a todo o momento seja satisfeito o crédito hipotecário, designadamente através da venda do imóvel com a liquidação ao Banco do valor garantido e correspondente distrate da hipoteca, permitindo-se, assim, à recorrente transmitir o bem livremente, caso o arresto não seja decretado, fugindo esse património do alcance da justiça. Deste modo, entende-se que sucumbe este vetor recursivo. * Num segundo patamar, vem a arguida recorrente afirmar a ausência de probabilidade na existência de crédito, defendendo nesse seguimento (…) o arresto foi decretado com vista a assegurar a garantia “Da perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente (al. b) do nº 1 do art. 227º do C.P.P.) (…) Os factos indiciariamente imputados à arguida não indicam/contabilizam qualquer valor referente a eventuais vantagens decorrentes da alegada prática do crime (…) Apesar de ter sido solicitada a intervenção do Gabinete de Recuperação de Activos, a análise financeira e patrimonial não se encontra concluída (…) Também não se pode sequer afirmar que a arguida tenha recebido qualquer vantagem, sendo certo que o tipo do crime de tráfico de estupefaciente não requer a obtenção de contrapartida. Igualmente, aqui, parece não assistir razão à arguida recorrente. Parece insofismável que a arguida recorrente não questiona, até ao momento, todos os indícios existentes e que a envolvem na prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado. Também, parece cristalino, indiciariamente, que a arguida recorrente esteve envolvida – altura da sua detenção – num transporte de estupefacientes que, neste caso, assumia um valor não inferior a € 152.950,00 (cento e cinquenta e dois mil novecentos e cinquenta euros), tendo estado ligada a outro anterior transporte, pelo menos. Faça-se ainda notar que à arguida recorrente, para além do salário que declarou auferir – 700 a 800 Euros (cfr. fls. 127 vº) – não se lhe conhecem outros rendimentos, tendo adquirido a fração em causa, a qual tinha em mente vender, estando já a escritura marcada. Aspeto que cabe salientar, também, trata-se do envolvimento da arguida recorrente nesta prática ao longo tempo, sendo com base nas vantagens obtidas com a venda do produto estupefaciente que os arguidos sustentam o seu modo de vida. Contrariamente ao que tenta denotar – não se pode sequer afirmar que a arguida tenha recebido qualquer vantagem, sendo certo que o tipo do crime de tráfico de estupefaciente não requer a obtenção de contrapartida –, naturalmente que se entregou a estas práticas para retirar proventos económicos – certamente que não pretende a arguida recorrente convencer que apenas anuiu no cometimento deste ilícito, de gravidade notória e por todos sabido que pode levar a penas de prisão pesadas, por mera generosidade/divertimento/displicência/passatempo. Sopesando os dados acima enunciados, crê-se que elementos indiciários suficientes há que preenchem as exigências consignadas no artigo 391º do CPCivil, ou seja, a existência de um crédito e o receio de que se percam as garantias que o possam suportar. Como se viu, há vários dados indiciários consistentes apontando para o envolvimento da arguida recorrente na prática de crime de tráfico de estupefacientes agravado, ao longo de algum tempo, sendo fortemente previsível que na presença do quadro existente, impenderá sobre a aquela o dever de pagar quantia em que vier a ser condenada a título de vantagens da atividade ilícita. Por seu turno, e a arguida recorrente nunca o questiona, o património que poderá tal garantir consiste praticamente no imóvel aqui em causa, sendo que a mesma se preparava para o vender e, dessa forma, poder-se-ia esfumar qualquer possibilidade de se efetivar o pagamento. Na realidade, desponta no caso sub judice, suficiente acervo indiciário de um circunstancialismo factual que faz antever o perigo de se tornar difícil ou impossível a cobrança do crédito, caso o arresto não tivesse sido decretado. Todavia, mesmo que assim não entenda, o que se não concede, tal como o propugnado pelo Digno Mº Pº, exubera uma clara tela ilustrando as exigências expressas na Lei nº 5/2002, de 11 de janeiro, mormente o que reza o disposto nos artigos 7º e 10º. É claro que o crime indiciariamente apontado à arguida recorrente integra o catálogo inserto no artigo 1º do mencionado diploma legal – cfr. alínea a). Acresce que, dos dados até ao momento existentes e ainda que não se mostre concluída a análise financeira e patrimonial respeitante à arguida, há sinais que denotam que a mesma vinha sustentando e mantendo o seu nível de vida com o contributo desta prática criminosa. Deste modo, tendo em atenção o que consagra no citado artigo 10º, verificando-se a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, pode o arresto ser decretado, a todo o tempo, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no nº 1 do artigo 227.º do CPPenal. Surge como defensável, crê-se, que o arresto aqui tratado é decretado pelo juiz se existirem fortes indícios da prática de um dos crimes do catálogo consagrado no artigo 1.º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, sendo que na situação em ponderação, de todos os elementos até ao momento envergados são fortes os indícios da desconformidade do património lícito da arguida recorrente. Ante todo o narrado, quer por uma via, quer por outra, há suporte para o decidido, soçobrando assim este traço recursório. * Por último, atente-se na alegação da arguida recorrente – erro de julgamento e a violação do disposto no artigo 193.º do CPPenal. Suporta a arguida recorrente todo este excurso, no fundo, em razões que se prendem com a leitura diversa da realizada pelo tribunal, da prova indiciária até ao momento carreada para os autos. Em primeiro lugar, colhe referir que o facto da arguida recorrente ter estado a trabalhar enquanto sujeita à medida de obrigação de permanência na habitação, não tem qualquer relevo para o que aqui se avalia. Como se extrai do alegado, tal ocorreu depois do cometimento dos factos pelos quais foi indiciada, sendo que a verdade é que antes dessa situação, como se mostra indiciado e não o nega, aquela esteve envolvida em tráfico de significativas quantidades de droga que, como acima já se enunciou, não terá sido por mera diversão e/ou sem qualquer intuito de ganhos de significado. Importa ainda salientar, que as quantidades e tipo de estupefacientes envolvidos, ainda que como alega somente em duas situações, são por si só suficientes – crê-se – para ilustrar valores de monta. Há um valor já afirmado respeitante ao segundo “carregamento” (152.950,00 Euros) e decorre das regras da experiência comum. Ainda que ostentando a arguida recorrente, ao que parece, um papel acessório em toda a dimensão factual em discussão nestes autos, tal não invalida o recebimento de vantagens com relevo, pelas razões já expostas. Por fim, a circunstância de no despacho indiciário não se referir, expressamente, que a arguida sustentou o seu modo de vida com recurso à atividade de tráfico de estupefacientes, tal é de intuição possível face a todos os elementos coligidos até ao momento do decretamento do arresto pois, como claramente se afirma no dito despacho – fls. 1241 vº e 1242 – Existe perigo da actividade criminosa, porquanto os arguidos, não obstante se envolverem em actividades profissionais, utilizam também o tráfico de estupefacientes para garantir o próprio sustento (…). Olhando o plasmado no artigo 193º do CPPenal, do mesmo emerge que apelando aos princípios da necessidade, adequação e proporcionalidade, o aplicador deve ater-se ao que é necessário e adequado às exigências cautelares que o caso requer; proporcionais à gravidade do crime e às sanções que potencialmente podem vir a ser aplicadas; as medidas mais gravosas só podem ser usadas caso outras se mostrem insuficientes ou inadequadas e; dentre as mais gravosas, sempre que se revelar suficiente para satisfazer as exigências cautelares, deve dar-se primazia à de obrigação de permanência na habitação. Ante todo o retrato exibido, entende-se que as aludidas exigências decorrentes do inciso referido transparecem, pelo que não ressuma qualquer falha/erro do decidido pelo tribunal ad quo. 9.10. Daqui decorre que, na medida em que se reflecte a apreciação dos requisitos do “arresto civil”: — ambos os acórdãos não se afastam na diferenciação de finalidade e regime do arresto cautelar e da hipoteca como garantia; — as situações fáctico-materiais litigiosas não são equiparáveis para a apreciação da mesma subsunção jurídica sobre a susceptibilidade de incidir arresto sobre bens hipotecados, nomeadamente porque os bens cujo arresto preventivo-cautelar é requerido nos presentes autos se encontram hipotecados e registados em favor do requerente e titular dos créditos garantidos, sendo que o bem cujo arresto é requerido pelo MP no processo conducente ao acórdão fundamento está hipotecado em favor de um terceiro (banco mutuante da arguida para aquisição de habitação). 9.11. Assim, seja pela (i) ausência de a contradição incidir no «domínio da mesma legislação»; seja, mesmo que assim não fosse, pela (ii) ausência de contradição jurisprudencial do acórdão recorrido com o acórdão dado como fundamento para a admissão da revista; não há como negar que é manifesta a insusceptibilidade de aceitar a revista nos termos configurados pelo art. 629º, 2, d), convocado pelo art. 370º, 2, in fine, do CPC. III) DECISÃO Em conformidade, julga-se não tomar conhecimento do objecto do recurso. Custas pela Recorrente. STJ/Lisboa, 11 de Junho de 2024 Ricardo Costa (Relator) Luís Correia Mendonça Maria Amélia Ribeiro SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC).
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1. JOSÉ LEBRE DE FREITAS/ISABEL ALEXANDRE, “Artigo 370º”, Código de Processo Civil anotado, Volume 2.º, Artigos 362.º a 626.º, 4.ª ed., Almedina, Coimbra, 2021, págs. 50-51.↩︎ 2. Por todos, com ampla adesão no STJ, v. ABRANTES GERALDES/PAULO PIMENTA/LUÍS PIRES DE SOUSA, “Artigo 629º”, Código de Processo Civil anotado, Vol. I, Parte geral e processo de declaração, Artigos 1.º a 702.º, Almedina, Coimbra, 2018, pág. 754.↩︎ |