Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 3.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA DO CARMO SILVA DIAS | ||
Descritores: | RECURSO ORDINÁRIO RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO ABSOLVIÇÃO EM 1.ª INSTÂNCIA E CONDENAÇÃO NA RELAÇÃO SEQUESTRO PRIVAÇÃO DA LIBERDADE DEFESA PROPRIEDADE CONDUTA ILÍCITA | ||
Data do Acordão: | 10/31/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Sumário : | I. Vai contra as regras da lógica, do normal acontecer e da experiência comum, alguém subir a um telhado de prédio (oficina/armazém) que pertence a outra pessoa, através de umas escadas e, o respetivo proprietário não poder agir, como a aqui arguida fez, nas circunstâncias assinaladas na sentença da 1ª instância e, apesar das explicações que foram dadas na decisão sobre a matéria de facto dessa sentença (que são plausíveis e permitiam a solução que foi dada, de forma fundamentada), venha de forma inexplicável a ser condenada por um crime de sequestro na Relação, mesmo que em pena de admoestação. II. Para além da apontada licitude da conduta da arguida que sobressai do texto da sentença da 1.ª instância (uma vez que a forma como agiu, incluindo quando retirou as escadas e chamou a GNR, revela estar a atuar em legítima defesa da sua propriedade/património - art. 337.º, n.º 1, do CC aplicável por força do art. 31.º, n.º 1, do CP - que fora invadida, sem o seu consentimento, pelo assistente, que subira ao telhado daquela oficina/armazém, por essas escadas), também dela podemos perceber que a mera restrição de movimentos a que o assistente ficou sujeito, em consequência da conduta da arguida, não é suficiente para integrar o crime de sequestro, o qual exige uma privação total da liberdade ambulatória, que no caso ficou por demonstrar. III. A privação total da liberdade ambulatória, da liberdade de movimentos é que carateriza o crime de sequestro (caso em que a vítima, por exemplo, é colocada numa situação da qual não pode livrar-se por si só, como nem sequer pode pedir e obter imediatamente auxílio), o que não sucedeu no caso dos autos (como resulta da motivação da sentença da 1ª instância, não só o assistente nunca pediu para lhe colocarem a escada para sair do telhado do imóvel que pertencia à arguida/recorrente, tal como podia ter feito, como da matéria apurada não resulta que estivesse impossibilitado de se deslocar de um lado para o outro, sendo certo ainda que nada se apurou que dali não pudesse sair por outro local). IV. Portanto, analisando o texto da decisão sob recurso é manifesto e grosseiro o erro em que incorreu a Relação ao julgar verificados os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP (com o fim de dar como provada matéria de facto que, afinal, nem era suficiente para integrar o crime de sequestro, pelo qual veio a condenar a arguida), os quais não ocorrem, considerando-se definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto pela 1ª instância, a qual se mostra devidamente sustentada e fundamentada, impondo-se a revogação do acórdão da Relação, com a consequente absolvição da arguida/recorrente e repristinação da sentença da 1ª instância. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça Relatório 1. Neste processo n.º 118/19.6GAMTA do Juízo Local Criminal …, ... 2, comarca de Lisboa, foi proferida em 12.11.2023 sentença que absolveu as arguidas AA e BB dos crimes pelos quais estavam pronunciadas, em concreto, da prática, em coautoria e em concurso efetivo, de um crime de sequestro p. e p, no art. 158.º, n.º 1, do CP e de um crime de furto qualificado p. e p. no art. 204.º, n.º 1, al. f), por referência ao art. 203.º, n.º 1. 2. Por via do recurso do assistente CC, que apenas discordou da absolvição da arguida AA do crime de sequestro, a Relação de Lisboa, por acórdão de 17.04.2024, julgou procedente o recurso e, consequentemente, decidiu: a) Revogar a decisão recorrida; b) Condenar, com base nos factos indicados supra, a arguida AA, como autora material de um crime de sequestro p. e p. pelo art. 158.º n.º 1 do Código Penal, na pena de admoestação; c) Condenar a arguida no pagamento das custas fixando a taxa de justiça em 4 (quatro) U.C.; Na primeira instância proceder-se-á: a) À remessa de boletins ao registo criminal com recolha das impressões digitais e assinatura à arguida em cumprimento do disposto no art. 12.º do Decreto-Lei n.º 171/2015, de 25 de Agosto, com a finalidade de comunicação aos serviços de identificação criminal e subsequente inscrição no SICRIM (Sistema de Informação de Identificação Criminal). Notifique. 3. Discordando do decidido pela Relação, a arguida recorreu para o STJ, apresentando as seguintes conclusões (transcrição sem negritos): 1.ª - Estabelece o artigo 158.º, n.º 1 do Código Penal que “quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”. Deste modo, o crime de sequestro consiste na conduta de privar outra pessoa da sua liberdade de se deslocar ou de mudar de lugar, sendo que o bem jurídico protegido é exatamente a liberdade de locomoção, ou seja, a liberdade ... de mudar de lugar, ou dito de outro modo, a possibilidade de se deslocar de um local para o outro. 2.ª - No preceito legal em causa nos autos nada consta acerca da duração mínima em que deve ocorrer a privação da liberdade, não sendo este um dos elementos objetivos típicos do crime de sequestro. 3.ª- Tem sido entendido pela jurisprudência maioritária que para a privação da liberdade ter algum significado e relevância como elemento do crime, não deverá ter uma duração tão diminuta que, verdadeiramente, não afete a liberdade de locomoção (duração de 5 ou 10 minutos). 4.ª - Resulta da factualidade dada como provada que o Assistente CC esteve em cima do telhado, sem escadas, durante cerca de 5 minutos, pois a escada foi retirada quando foi chamada a GNR ao local, via telefone, e estes apenas demoraram 2 minutos a chegar, em virtude de se encontrarem a cerca de 200 metros do local. 5.ª - Cinco (5) minutos é um período de tempo tão curto, que por si só não tem a capacidade de criar uma privação da liberdade com carácter de relevância em termos penais, nem para ser um critério de agravamento da ilicitude. 6.ª - Não resultou da factualidade dada como provada, que o Assistente CC esteve privado da sua liberdade de locomoção até à chegada ao local de uma patrulha da GNR. 7. ª - Resultou da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, que a Recorrente informou o Assistente que tinha chamado a GNR e que ele iria ficar naquele lugar até à chegada desta; e que em nenhum momento o Assistente solicitou a reposição da escada, para que pudesse descer do telhado e sair do local. 8.ª - Se o Assistente não manifestou a sua intenção de sair do telhado, nunca chegou a existir uma verdadeira privação da liberdade, tendo o mesmo simplesmente aceitado o facto de ter que aguardar no telhado até à chegada da GNR. 9.ª - Se nunca houve uma efetiva recusa, por parte da Recorrente AA, em voltar a colocar a escada de acesso ao telhado, para que o Assistente descesse do mesmo, este não esteve efetivamente impedido de sair, apenas não solicitou fazê-lo. 10.ª - Não resulta da factualidade dada como provada que a Recorrente AA quisesse privar o Assistente da sua liberdade ambulatória, retirando-lhe a possibilidade de sair do local onde se encontrava. Nem tão pouco que o fez de forma deliberada, livre e consciente. 11.ª - Resulta, ao invés, dos factos dados como provados, que a Recorrente AA apenas retirou a escada de acesso ao telhado, para impossibilitar que o Assistente CC pudesse sair do mesmo, até à chegada de uma patrulha, porque para além de o telhado pertencer a um imóvel, propriedade da arguida, este estaria a tirar fotografias ao pátio, sem qualquer consentimento da mesma. 12. ª- Deste modo, não houve dolo por parte da Recorrente, uma vez que quando retirou a escada não tinha como intuito que o Assistente ficasse retido no telhado, privado da sua liberdade, apenas o fez para que este fosse apanhado em flagrante, não se verificando, assim, o elemento subjetivo, necessário ao preenchimento do crime de sequestro. 13. ª - O que a Recorrente AA queria era que o Assistente fosse identificado pela GNR, uma vez que não sabia a identificação do mesmo e tinha medo que ao deixar a escada, este encetasse fuga. 14.ª - Não resultaram provados factos que preencham os elementos objetivo e subjetivo do crime de sequestro, motivo pelo qual a Recorrente AA foi incorretamente condenada, pela primeira vez, em segunda instância, uma vez que inexistem quaisquer provas que possam consubstanciar uma condenação. 15.ª - O acórdão recorrido viola o preceituado nos artigos 158.º, n,º 1 e 14º, ambos do Código Penal, devendo ser revogado e substituído por outra decisão que reponha a decisão absolutória proferida em primeira instância, nos seus precisos termos, devendo o presente recurso ser julgado totalmente procedente, por provado. 4. Na resposta ao recurso o assistente apresentou as seguintes conclusões (transcrição sem negritos): 1ª- Preceitua o artº 158º nº 1 do Código Penal que “Quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.” 2ª- No caso concreto, a arguida retirou a escada que dava o acesso temporário ao telhado assim impedindo o assistente de se locomover e fê-lo porque desta forma assegurava que o mesmo permaneceria ali até à chegada da polícia, o que quis e aconteceu. 3ª- Tendo a arguida AA atuado com dolo, porquanto foi sua intenção privar o assistente da liberdade mesmo que tivesse sido pelo período de tempo necessário a chegada da GNR 4ª - Tal conduta só seria aceitável se tivesse sido praticada a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude, causa essa - legitima defesa, estado de necessidade, conflito de deveres – que não existe e nem sequer se vislumbra desde logo porque não se prova que o assistente estivesse a proceder de forma ilícita. 5ª- No crime de sequestro, como é sabido, protege-se a chamada liberdade ambulatória ou de movimento [Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1.4.87 BMJ 366º 223, Costa Andrade, Consentimento e acordo em direito penal, pág. 653]. Nas palavras de Taipa de Carvalho [Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I pág. 404] o bem jurídico protegido pelo art.º 158º é a liberdade de locomoção, isto é, a liberdade física ou corpórea de mudar de lugar, de se deslocar de um sítio para o outro. 6ª- Para verificação do crime de sequestro, basta que seja afetada a liberdade de movimentação, quer se trate de retenção simples quer de encerramento em casa ou noutro lugar. 7ª- É irrelevante para o preenchimento do crime de sequestro a duração do período de privação da liberdade. 8ª-Porém, e principalmente, o tribunal de primeira instância não deu com provado o tempo durante o qual o assistente esteve retido no telhado pelo que não podia ter tido em conta, este facto, na sentença. 9ª- Como bem decidiu o Venerando Tribunal da relação de Lisboa :” A sentença de 1ª instância sofre dos vícios previstos nos artigos b) e c do artigo 410º do CPP; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova. Erro notório que se verificava por ter sido é dado como assente que: “A arguida AA aproveitando-se do momento em que o ofendido se encontrava no telhado da oficina, decidiu retirar as escadas de acesso ao mesmo, impossibilitando que o ofendido pudesse dali sair, até chegar uma patrulha da GNR.” e que o acesso ao telhado era e foi feito através a escada removida. E, simultaneamente, é dado como não provado que “As arguidas mantiveram o ofendido CC privado da sua liberdade de locomoção até à chegada ao local de uma patrulha da GNR.” 10ª- “Assim, padecia a sentença de 1ª instância do apontado vício de contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada, bem como, de erro notório na apreciação da prova, porquanto “não se dá como provado que se quis retirar a liberdade de locomoção, mas aceita-se que tal é feito para que se permita que a GNR comprove eu o assistente estava no telhado” 11ª- Pelo que outra decisão não poderia ter sido proferida, pelo Tribunal da Relação de Lisboa, senão a de julgar procedente o recurso interposto pelo assistente e, consequentemente: a) Revogar a decisão recorrida; b) Condenar, com base nos factos indicados supra, a arguida AA, como autora material de um crime de sequestro p. e p. pelo artº158º nº 1 do Código Penal, na pena de admoestação. c) Condenar a arguida no pagamento das custas Termina pedindo que se mantenha o acórdão recorrido. 5. Por sua vez, o Ministério Público junto do TRL, na resposta ao recurso, apresentou as seguintes conclusões (transcrição): 1. O recurso interposto pela arguida AA incide sobre o acórdão proferido a 17 de abril de 2024, na ... Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou procedente o recurso apresentado pelo Assistente CC e consequentemente revogou a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância e condenou aquela pela prática, em autoria material, de um crime de sequestro, previsto e punido pelo art.158.º, nº. 1, do Código Penal, na pena de admoestação. 2. A decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância absolveu a ora recorrente da prática do crime de sequestro por que vinha pronunciada, por entender que da prova produzida em sede de julgamento não resultaram provados factos que preenchessem os elementos objetivo e subjetivo de tal tipo legal de crime, 3. Por seu turno, o acórdão do Tribunal da Relação, considerando verificados os vícios de contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada, bem como de erro na apreciação da prova, decidiu proceder a alteração da factualidade dada como provada e não provada, passando a constar como provado que a “arguida AA agiu de molde a privar o ofendido da sua liberdade ambulatória, retirando-lhe a possibilidade de sair do local onde se encontrava, o que concretizou” e que esta “agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.” 4. A recorrente sustenta que, na apreciação da prova e das circunstâncias que rodearam a prática dos factos em causa, o Tribunal da Relação não teve em devida conta as razões que levaram a Arguida a suscitar a intervenção da GNR e a remover as escadas que davam acesso ao telhado onde o Assistente veio a ser encontrado, 5. Nomeadamente, que de acordo com a prova produzida, «apenas retirou a escada de acesso ao telhado, para impossibilitar que o Assistente CC pudesse sair do mesmo, até à chegada de uma patrulha, porque para além de o telhado pertencer a um imóvel, propriedade da arguida, este estaria a tirar fotografias ao pátio, sem qualquer consentimento da mesma», circunstâncias estas que não permitem concluir pela verificação do elemento subjetivo do tipo do crime de sequestro, 6. A Arguida ora Recorrente atuou, assim, na convicção de que a conduta do Assistente era suspeita e carecia de intervenção policial, daí ter aguardado pela chegada de uma patrulha da GNR, que contactara previamente, 7. Por outro lado, ainda que não se tenha dado como provado que o Assistente “estivesse a proceder de forma ilícita” foi encontrado no telhado de um imóvel que pertencia à Arguida, a qual, momentos antes, tinha sido alertada para o facto de aquele estar ali a tirar fotografias ao pátio, facto que desconhecia e para o qual não tinha dado consentimento, 8. A sentença do Tribunal de 1.ª Instância não nos mereceu reparo, por se entender que fez correta interpretação dos factos e aplicação do direito, não tendo violado qualquer preceito legal nem quaisquer princípios gerais. 9. Nesta conformidade, afigura-se-nos incorreta a interpretação do disposto nos arts. 14.º e 158.º, do Código Penal, sendo de revogar o acórdão recorrido e a substituição por um outro que mantenha o decidido no Tribunal de 1.ª Instância, Termina pedindo que seja dado provimento ao recurso. 6. Subiram os autos a este Supremo Tribunal de Justiça e, o Sr. PGA emitiu parecer no sentido de que, perante os factos dados como provados na Relação, a decisão deve ser mantida e o recurso julgado improcedente. 7. Apenas a arguida respondeu ao Parecer do Sr. PGA, invocando, em síntese, ter sido violado o disposto no art. 53.º, n.º 2, al. c), do CPP (por contrariamente ao que sucedeu na fase do julgamento em que o MP pediu a absolvição, agora o mesmo Magistrado pedir a manutenção da decisão condenatória, o que considera insustentável por contradizer a sua posição anterior e mesmo a resposta ao recurso e o parecer na Relação), mantendo, no mais, o que já alegara no recurso. 8. No exame preliminar a Relatora ordenou que os autos fossem aos vistos legais, tendo-se realizado depois a conferência e, dos respetivos trabalhos, resultou o presente acórdão. Cumpre, assim, apreciar e decidir. Fundamentação 9. Resulta da sentença da 1ª instância a seguinte decisão sobre a matéria de facto: Factos provados: Realizado o julgamento, com relevância para a decisão da causa, resultaram provados os seguintes factos: 1. No dia ... de ... de 2019, o ofendido CC subiu ao telhado da oficina, sita na Rua ...9, na localidade ..., acedendo ao mesmo utilizado uma escadas que colocou junto ao edifício e que lhe permitiam voltar a descer. 2. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar compareceram no local as arguidas AA e BB. 3.A arguida AA aproveitando-se do momento em que o ofendido se encontrava no telhado da oficina, decidiu retirar as escadas de acesso ao mesmo, impossibilitando que o ofendido pudesse dali sair, até chegar uma patrulha da GNR. 4.O ofendido CC permaneceu no telhado até à chegada ao local de uma patrulha da GNR. 5. A arguida AA é casada e exerce a profissão de .... 6. A arguida BB é divorciada e é licenciada em..., encontrando-se atualmente reformada. 7. As arguidas não têm antecedentes criminais. * Factos não provados, com relevância para a decisão da causa: Assim, em conluio com a arguida BB, a arguida AA retirou a escada de acesso ao telhado. Acto contínuo, as duas arguidas dirigiram-se ao interior da oficina do ofendido, onde a arguida BB retirou uma chave da porta de acesso à mesma, tendo-a exibido ao ofendido dizendo “Agora já tenho a chave a custo zero, por isso vais sair a custo zero”. As arguidas mantiveram o ofendido CC privado da sua liberdade de locomoção até à chegada ao local de uma patrulha da GNR. As duas arguidas previram e quiseram unir a sua vontade e esforços para privarem o ofendido da sua liberdade ambulatória, retirando-lhe a possibilidade de sair do local onde se encontrava, o que concretizaram. Com a conduta descrita em 4. sabia a arguida BB que estava a fazer sua uma chave que não lhe pertencia, e que agia contra a vontade do seu dono. Como consequência do comportamento das arguidas, o ofendido sentiu-se nervoso com sintomas de pânico, tendo sido assistido no Hospital …, no dia 25/01/2019. Em tudo, agiram sempre as arguidas de comum acordo e em conjugação de esforços. Agiram as arguidas de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. * 2-2 Motivação No que concerne à factualidade dada como provada, o tribunal formou a sua convicção com base na análise critica e conjugada das declarações das arguidas com os depoimentos do ofendido/ assistente e restantes testemunhas, prestados em audiência de julgamento e com os documentos junto aos autos. Estas provas foram apreciadas no seu conjunto, à luz das regras da experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no art.127.º do Código de Processo Penal. A factualidade dada como provada resultou essencialmente da conjugação das declarações das arguidas, com as declarações do ofendido/ assistente CC e dos depoimentos das testemunhas DD (militar da GNR) e das testemunhas EE e FF. De tais declarações e depoimentos resultou que o ofendido se encontrava no telhado do armazém, no dia ... (conforme consta da prova documental - relatório de serviço) e foi surpreendido pelas arguidas quando se encontrava no telhado, propriedade da arguida AA, tendo esta arguida retirado as escadas que se encontravam colocadas pelo mesmo para subir ao telhado, tendo o assistente permanecido no telhado até à chegada de uma patrulha da GNR. A arguida AA relatou de forma emocionada, mas coerente e clara, que na data dos factos a mãe (arguida BB) lhe telefonou dizendo que estava um homem em cima de telhado de um imóvel que é seu, a tirar as fotografias. Declarou também que ligou para a GNR de forma a que a pessoa que se encontrava no telhado fosse apanhada em flagrante e ligou para o FF para que este fosse verificar o que estava a acontecer. Mais referiu que apenas retirou a escada para que os militares da GNR vissem a pessoa no telhado. A arguida BB disse que chegou no mesmo momento que a sua filha e que viu a filha retirar a escada de imediato, dizendo-lhe que já tinha ligado para a GNR. Referiu também que a situação ocorreu como a filha relatou. O ofendido CC declarou que se encontrava no telhado a efectuar a limpeza do mesmo e que foi confrontado pelas arguidas, as quais lhe disseram que o mesmo se encontrava a tirar a fotografias, facto que negou, tendo as mesmas retirado a escada (com a qual tinha subido ao telhado), ficando no telhado até a GNR chegar. A testemunha DD, militar da GNR, referiu de forma clara e coerente que foram contactados para se dirigirem a um local onde se encontrava um senhor no telhado, tendo demorado cerca de 2 minutos a chegar ao local, porque estava a cerca de 200 metros do mesmo. Mais referiu que, quando chegou ao local, encontrava-se um homem em cima de um telhado e uma escada no chão, a qual colocou para o mesmo sair. Declarou ainda o que lhe foi referido pelos intervenientes, no sentido do atrás referido pelas arguidas e pelo ofendido. A testemunha EE, prima das arguidas, relatou que reside perto do local dos factos e viu um homem em cima de um telhado a tirar fotografias ao quintal da arguida AA, facto do qual deu conhecimento à arguida BB. A testemunha FF declarou que a sua nora, a arguida AA, o contactou para se deslocar ao local porque se encontrava uma pessoa em cima do telhado de prédio sua propriedade, a tirar fotografias. Mais referiu que quando chegou ao local já se encontravam presentes as arguidas e o ofendido. O depoimento das restantes testemunhas (GG, HH) não se mostrou com relevância uma vez que viram uma pessoa no telhado em causa, não tendo assistido a outros factos concretos relevantes. A data dos factos resultou da prova documental, nomeadamente, do relatório de serviço (junto aos autos). Assim, da análise das referidas declarações consideramos terem ficado demostrados apenas os factos atrás referidos. * As condições pessoais, familiares e profissionais das arguidas, resultaram das suas declarações, as quais mostraram credibilidade. A ausência de antecedentes criminais resultou do teor dos certificados do registo criminais * Factos não provados: Da prova produzida resultou que o ofendido se encontrava no telhado do armazém, foi surpreendido pelas arguidas e que a arguida AA retirou as escadas que se encontravam colocadas pelo mesmo para subir ao telhado, para que aos militares da GNR confirmassem a presença do ofendido no telhado, tendo aquele ficado no telhado até à chegada da GNR. Contudo, consideramos que não ficou demostrado que as arguidas privaram o ofendido da sua liberdade de locomoção até à chegada da GNR. Efectivamente, da prova produzida não resultou demostrado que o ofendido quis descer e sair do local, nem que o mesmo solicitou que lhe colocassem a escada para poder sair e ainda assim as arguidas não permitiram. Mais resultou que as arguidas referiram ao ofendido que tinham chamado a GNR por ele se encontrar no telhado a tirar fotografias e que ficava naquele lugar até os elementos da GNR chegarem, o que aconteceu, em cerca de 5 minutos. Com efeito, arguida AA relatou que foi informada pela sua mãe que se encontrava um homem a tirar fotografias à sua propriedade, razão pela qual telefonou para a GNR relatando os factos e solicitando a deslocação ao local, sendo a sua única intenção que a pessoa fosse identificada, uma vez que inicialmente não sabia a identificação da mesma. Mais relatou de forma espontânea que não pretendia prender o ofendido ou fazer-lhe qualquer mal, mas apenas que o mesmo fosse visto pelas autoridades policiais no local onde se encontrava. A arguida relatou também que o ofendido não lhe solicitou para sair e ficou por um curto período de tempo em cima do telhado, talvez 5 minutos. Resulta também, quer das declarações da arguida AA e quer da testemunha DD que a GNR foi contactada para se dirigir a um local onde se encontrava um homem no telhado. Acresce que, da prova produzida resultou que o ofendido esteve em cima do telhado, sem escadas, durante pouco tempo, cerca de 5 minutos, uma vez que o senhor militar da GNR DD declarou que demorou cerca 2 minutos a chegar, porque estava a cerca de 200 metros do local. A arguida BB, relatou de forma clara e coerente que confrontou o ofendido com o facto de estar a tirar fotografias, facto que o mesmo negou. Mais referiu que o ofendido lhe mostrou um ancinho dizendo que estava a limpar o telhado, contudo a arguida referiu que não lhe pareceu que o mesmo estivesse a limpar, sendo que a sua prima EE (testemunha nos autos) lhe tinha dito que o mesmo estava em cima do telhado, há já algum tempo, a tirar fotografias à propriedade da sua filha. Referiu ainda que o ofendido não se mostrou combalido , rindo com a situação que se estava a passar e que foi uma situação muito rápida, porque a GNR chegou muito rapidamente ao local. O ofendido CC declarou que se encontrava no telhado a efectuar a limpeza do mesmo e que foi confrontado pelas arguidas no sentido de se encontrar a tirar as fotografias, facto que negou, tendo as mesmas retirado a escada (com a qual tinha subido ao telhado), dizendo-lhe que ficava no telhado até a GNR chegar. Questionado especificamente se tinha solicitado às arguidas para colocarem a escada para sair do telhado, o mesmo referiu que nunca disse às mesmas para colocarem a escada para ele sair. O ofendido referiu que foi ele que chamou a GNR, sendo certo que depois referiu que as arguidas lhe disseram que o mesmo ficava lá até a GNR chegar, não sabendo dizer se as mesmas chamaram aquela polícia, não sabendo também dizer quanto tempo lá ficou, pensando ter sido meia hora. Os restantes depoimentos não se mostraram relevantes ou aptos a esclarecer a forma como os factos ocorreram e qual a sua relevância. Assim, atentas as circunstâncias atrás referidas, consideramos não ter existido uma objetiva e efectiva privação de locomoção do ofendido, conforme descrito na acusação. Das declarações prestadas em audiência de julgamento, consideramos que também não foi feita qualquer prova de ter existido apropriação das chaves por parte das arguidas. As arguidas negaram os factos que lhe eram imputados, o ofendido não soube explicar de forma clara a situação das chaves, nem de que forma as arguida se apropriaram das chaves e a testemunha DD, militar da GNR, relatou que se deslocou ao local e verificou que as chaves se encontravam na oficina/ armazém. Assim, atento o atrás exposto, consideramos não ter ficado demostrada a factualidade constante da acusação, atrás referida. 10. Por sua vez, resulta do ac. do TRL impugnado, relativamente à apreciação do recurso do assistente o seguinte: (…) No caso concreto relevam para a análise oficiosa a fazer a contradição insanável da fundamentação ou entre esta e a decisão e o erro notório na apreciação da prova. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, corresponde, genericamente, à afirmação simultânea de uma coisa e do seu contrário, vale por dizer, quando se considera provado e não provado o mesmo facto, ou quando se dão como provados factos antagónicos ou quando esse antagonismo intrínseco e inultrapassável se estabelece na fundamentação probatória da matéria de facto, ou entre a fundamentação e a decisão, a ponto de se tornar evidente, a partir da simples leitura do texto que dessa fundamentação deveria resultar decisão oposta àquela que foi tomada. «Para os fins do preceito (al. b) do nº 2) constitui contradição apenas e tão só aquela que, como expressamente se postula, se apresente como insanável, irredutível, que não possa ser ultrapassada com recurso à decisão recorrida no seu todo, por si só ou com o auxílio das regras da experiência. As contradições insanáveis que a lei considera para efeitos de ser decretada a renovação da prova são somente as contradições internas, rectius intrínsecas da própria decisão considerada como peça autónoma» (Simas Santos e Leal Henriques Código de Processo Penal Anotado, pág. 739). Verificar-se-á sempre que «(…) no texto da decisão constem posições antagónicas ou inconciliáveis, que se excluam mutuamente ou não possam ser compreendidas simultaneamente dentro da perspectiva de lógica interna da decisão, tanto na coordenação possível dos factos e respectivas consequências, como nos pressupostos de uma solução de direito» (Ac. do STJ de 12.03.2015, processo n.º 418/11.3GAACB.C1.S1. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 20.9.2017, proc. 596/12.4JABRG.G2.S1; de 5.09.2018, proc. 2175/11.4TDLSB.L1.S1, de 03.04.2019, processo 38/17.9JAFAR.E1.S1, de 25.09.2019, proc. 60/2017.5 JAFAR.E1.S1, in http://www.dgsi.pt). Pode, pois, existir contradição insanável, não só, entre os factos dados como provados, mas também entre os dados como provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto e a decisão (Germano Marques da Silva, in “Curso de Processo Penal”, Editorial Verbo, 1994, vol. III, pág. 325). «A contradição da fundamentação ou entre esta e a decisão só importa a verificação do vício quando não seja suprível pelo tribunal ad quem. Isto é, quando seja insanável. (…) A contradição tanto pode emergir entre factos contraditoriamente provados entre si, como entre estes e os não provados («provado que disparou», «não provado que disparou»), como finalmente entre a fundamentação (em sentido amplo, abrangendo a fundamentação de facto e também a de direito) e a decisão. É exemplo deste último tipo de contradição, a circunstância de a sentença se espraiar em considerações tendentes à irresponsabilidade penal do arguido e a decisão final concluir, sem mais explicações, por uma condenação penal, ou vice-versa. Por vezes a contradição surpreende-se até no modo como se apresenta a fundamentação da matéria de facto, quando essa fundamentação resulta contraditória com a solução de facto encontrada.» (Pereira Madeira, Código de Processo Penal Comentado, cit., 2.ª ed., 2016, a págs. 1274-1275, em anotação ao artigo 410.º). O erro notório na apreciação da prova supõe que do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugado com o senso comum, deflua de forma fácil, evidente e ostensiva que factualidade ali exarada é arbitrária, contrária à lógica, a regras científicas ou de experiência comum, ou assenta na inobservância de regras sobre o valor da prova vinculada, ou das leges artis (Acs. do STJ de 12.03.2015, processo 40/11.4JAAVR.C2; de 06.12.2018, processo 22/98.0GBVRS.E2.S1 e de 03.04.2019, processo 38/17.9JAFAR.E1.S1 e Simas Santos e Leal Henriques, in “Recursos em Processo Penal, 7ª ed., 2008, Editora Rei dos Livros, pág. 77). «Verifica-se erro notório na apreciação da prova quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que está notoriamente errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando de um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum (…)» (Leal-Henriques e Simas Santos no Código de Processo Penal Anotado, vol. II, 2ª edição, pág. 740, em anotação ao artigo 410º). «É o erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores, ou seja, quando o homem de formação média facilmente dele se dá conta» (Germano Marques da Silva – Curso de Processo Penal, Vol III, pág. 341). «O “erro notório na apreciação da prova” constitui uma insuficiência que só pode ser verificada no texto e no contexto da decisão recorrida, quando existam e se revelem distorções de ordem lógica entre os factos provados e não provados, ou traduza uma apreciação manifestamente ilógica, arbitrária, de todo insustentável, e por isso incorrecta, e que, em si mesma, não passe despercebida imediatamente à observação e verificação comum do homem médio» (Ac. do STJ de 06.10.2010 Proc. n.º 936/08.0JAPRT.P1.S1. No mesmo sentido, Acs. do STJ de 20.11.2014, processo 87/14.9YFLSB e de 13.03.2019, processo 2400/11.1TASTB.E1.S1, in http://www.dgsi.pt ). No caso concreto destes autos é dado como assente que “A arguida AA aproveitando-se do momento em que o ofendido se encontrava no telhado da oficina, decidiu retirar as escadas de acesso ao mesmo, impossibilitando que o ofendido pudesse dali sair, até chegar uma patrulha da GNR.” e que o acesso ao telhado era e foi feito através a escada removida. Simultaneamente é dado como não provado que “As arguidas mantiveram o ofendido CC privado da sua liberdade de locomoção até à chegada ao local de uma patrulha da GNR.” Excluindo a (não) participação da arguida BB - que não vem questionado – é contraditório dizer que se retirou a escada impossibilitando o assistente de sair e que, ao mesmo tempo, não se prova que se quis manter o ofendido privado da sua liberdade de locomoção até à chegada ao local de uma patrulha da GNR. É óbvio, até pela fundamentação, que se quis manter o assistente privado de liberdade até à chegada da patrulha da GNR. Esta conduta limitou, como é obvio, a liberdade de locomoção da vitima que teve de ficar no telhado até que alguém colocasse a escada de volta. Não se pode confundir, como aparentemente se confunde, o acto objectivo de privar alguém da liberdade de locomoção com a intenção que preside à conduta, matéria que respeita à subjectividade da acção e que que pode (ou não) fundar uma causa de exclusão da ilicitude. Assim, padece a sentença do apontado vício de contradição insanável entre a matéria de facto provada e não provada. Outrossim, padece a sentença de erro notório na apreciação da prova. Na verdade, não se dá como provado que se quis retirar a liberdade de locomoção mas aceita-se que tal é feito para que se permita que a GNR comprove eu o assistente estava no telhado. Ora, a factualidade que se dá como provada que a escada é retirada para que o assistente não abandone o telhado, assim o obrigando a ali permanecer, corresponde a um exemplo de escola de dolo necessário. Na verdade, para se obter um objectivo – a “prova” perante a GNR que o arguido estava no telhado – actua-se na forma típica – restringindo a liberdade ambulatória. Assim, dir-se-á que da factualidade se retirou uma conclusão notoriamente violadora das regras da experiência comum porque o que é óbvio é que a arguida pretendeu manter o assistente no telhado não lhe permitindo a saída do local, o que conseguiu. E mais: o próprio tribunal reconhece que assim foi pois refere em sede de fundamentação que a arguida referiu que “(…) não pretendia prender o ofendido ou fazer-lhe qualquer mal, mas apenas que o mesmo fosse visto pelas autoridades policiais no local onde se encontrava”, algo que o Tribunal aceitou como bom. Assim sendo, porque é possível neste Tribunal colmatar os apontados vícios cumpre alterar a factualidade provada e não provada nos seguintes moldes: Factos provados: 1. No dia ... de ... de 2019, o ofendido CC subiu ao telhado da oficina, sita na Rua..., na localidade ..., acedendo ao mesmo utilizado uma escada que colocou junto ao edifício e que lhe permitiam voltar a descer. 2. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar compareceram no local as arguidas AA e BB. 3. A arguida AA aproveitando-se do momento em que o ofendido se encontrava no telhado da oficina, decidiu retirar e retirou a escada de acesso ao mesmo, impossibilitando que o ofendido pudesse dali sair, até chegar uma patrulha da GNR. 4. O ofendido CC permaneceu no telhado até à chegada ao local de uma patrulha da GNR. 5. A arguida AA manteve o ofendido CC privado da sua liberdade de locomoção até à chegada ao local de uma patrulha da GNR. 6. A arguida AA agiu de molde a privar o ofendido da sua liberdade ambulatória, retirando-lhe a possibilidade de sair do local onde se encontrava, o que concretizou. 7. A arguida AA agiu de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. 8. AA é casada e exerce a profissão de psicóloga. 9. A arguida BB é divorciada e é licenciada em informática, encontrando-se actualmente reformada. 10.As arguidas não têm antecedentes criminais. Factos não provados a. Em tudo a arguida BB agiu em conluio com a arguida AA b. Acto contínuo, as duas arguidas dirigiram-se ao interior da oficina do ofendido, onde a arguida BB retirou uma chave da porta de acesso à mesma, tendo-a exibido ao ofendido dizendo “Agora já tenho a chave a custo zero, por isso vais sair a custo zero”. c. A arguida BB agiu de molde a privar o ofendido da sua liberdade ambulatória, retirando-lhe a possibilidade de sair do local onde se encontrava, o que concretizou e agiu em união de esforços e intentos com a arguida AA d. Com a sua conduta sabia a arguida BB que estava a fazer sua uma chave que não lhe pertencia, e que agia contra a vontade do seu dono. e. Como consequência do comportamento das arguidas, o ofendido sentiu-se nervoso com sintomas de pânico, tendo sido assistido no Hospital ..., no dia .../.../2019. f. Em tudo, agiram sempre as arguidas de comum acordo e em conjugação de esforços. g. Agiu a arguida BB de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Ante esta factualidade cumpre aplicar o Direito tendo presente que apenas está em causa a conduta da arguida AA, única objecto do presente recurso. Dispõe o artº 158º nº 1 do Código Penal que “Quem detiver, prender, mantiver presa ou detida outra pessoa ou de qualquer forma a privar da liberdade é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.” No caso concreto, a arguida retirou a escada que dava o acesso temporário ao telhado assim impedindo o assistente de se locomover e fê-lo porque desta forma assegurava que o mesmo permaneceria ali até à chegada da polícia, o que quis e aconteceu. Não há, pois, dúvidas, que com a sua acção a arguida retirou a liberdade de locomoção do assistente. A primeira questão que se coloca é a do preenchimento do tipo pois que o Ministério Público e a arguida contendem que a limitação de liberdade no caso concreto é insignificante pelo que deve ser considerada desprezível e não punível. Não têm qualquer razão. Em primeiro lugar não está provado quanto tempo o assistente esteve retido no telhado. Este facto nunca foi dado como provado ou não provado não tendo sido trazido à decisão. É verdade que na fundamentação se referem tempos mas por reporte a declarações de testemunhas e nunca na afirmação de factos sendo até certo que o Tribunal bem poderia, se o entendesse, levar tal factualidade, porque relevante e acessória, ao elenco da matéria a considerar. Em segundo lugar, conquanto alguma jurisprudência refira que as insignificantes limitações de liberdade de locomoção não constituem crime, o relevante é saber o que é que é “insignificante”. Se uma pessoa se colocar á frente de outrem e não a deixar sair por uma por porta e tal durar um segundo parece não existirem dúvidas que não há crime. Se na mesma situação se barrar porta por cinco minutos parece correcto dizer que existe crime. O que aqui parece existir quanto à insignificância é o facto dos intervenientes se deixarem levar pelo contexto. Estamos a falar em cinco minutos (que não estão provados até porque o assistente mencionou meia hora) num telhado ao ar livre. Então e se forem os mesmos cinco minutos dentro de um poço ? Então e se for no telhado mas estiver a chover ? Não são os mesmos insignificantes cinco minutos ? Entendemos que, não só os cinco minutos não estão provados como, a existirem, não se trata de uma qualquer insignificância de molde a tornar os factos não puníveis. E mais: só por mero acaso (se é que tal aconteceu) é que o assistente esteve cinco minutos detido. É que na versão do Tribunal a quo (que não a levou aos factos, repete-se) os cinco minutos foi o tempo que a GNR demorou a chegar. Acontece que a arguida não tinha sobre este facto qualquer domínio. Ou seja, quando removeu a escada não podia saber que os polícias demorariam cinco, dez, meia hora ou uma hora a chegar pelo que nunca poderia ter formado o quadro mental de que estaria perante uma insignificância jurídica. A terceira questão suscitada é a da motivação da conduta. A manutenção do assistente no telhado sem possibilidade de sair prende-se com a necessidade de vir a polícia. Ora, tal conduta só seria aceitável se tivesse sido praticada a coberto de uma causa de exclusão da ilicitude, causa essa - legitima defesa, estado de necessidade, conflito de deveres – que não existe e nem sequer se vislumbra desde logo porque não se prova que o assistente estivesse a proceder de forma ilícita. A quarta objecção que não colhe prende-se com o facto de se dizer que o agente não pediu para abandonar o telhado e que, como tal, até nem esteve limitado na sua mobilidade. Ora, este argumento não tem qualquer sentido. Na verdade, não está sequer provado que algo haja sido pedido sendo que se o que se faz apelo é a um putativo consentimento do agente o mesmo terá de ser provado pela positiva não se bastando a Lei como a mera ausência de prova do facto. Depois este argumento desafia toda a lógica. Então se uma pessoa é detida e não pede para ser libertada não está detida ? A liberdade é um estado permanente e para que dele se usufrua não se tem de pedir para se a ter. É-se livre. Não se é livre só se se pede. Cometeu, pois, a arguido o crime de sequestro. Impõe-se, pois, determinar a pena a aplicar. (…) Direito 11. Como sabido, o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação que apresentou (art. 412.º, n.º 1, do CPP). Analisadas as conclusões do recurso apresentado pela arguida, verifica-se que recorre do acórdão do TRL (que a condenou pelo crime de sequestro, alterando a matéria de facto da 1ª instância que a absolvera), pretendendo a sua revogação e, consequente, absolvição, invocando, para o efeito, as seguintes questões: - nulidade insanável prevista no art. 119.º, al. c), do CPP, por a Relação a ter condenado sem sequer a ter convocado e ouvido em audiência oficiosa, para poder exercer os seus direitos de defesa, incluindo contraditório, tal como de resto, nem sequer produziu qualquer prova pessoal, não assegurando um processo justo e equitativo (de acordo com a jurisprudência europeia, nomeadamente no caso Sá Fernandes c. Portugal, ac. do TEDH de 25.02.2020); - mesmo que o arguido o não tenha requerido, o Supremo Tribunal de Justiça no âmbito dos seus poderes de cognição, quando deva conhecer dos fundamentos previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP ao abrigo das alíneas a), b) e c) do art. 432.º do mesmo código, deve igualmente convocar o arguido para o ouvir em audiência, o mesmo sucedendo, em situações de primeira condenação na Relação, em que deve conhecer amplamente da matéria de facto (assumindo alguns poderes da Relação em matéria de facto), sob pena de inconstitucionalidade parcial do disposto no art. 434.º do CPP; - analisada a decisão sobre a matéria de facto da decisão da 1ª instância, designadamente as múltiplas razões ali apontadas para a atitude da recorrente, é claro que não se verificam os vícios do art. 410.º, n.º 2, b) e c) do CPP, apontados na decisão recorrida; - a considerar-se a tese da decisão recorrida e, portanto, a verificação dos vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, haveria que reenviar o processo para a Relação para novo julgamento, devendo esta admitir a renovação de prova ou o reenvio do processo para a 1ª instância, relativamente à questão do tempo em que o assistente esteve retido no telhado em causa nos factos provados, que ficou por apurar e é determinante para verificar se existe ou não crime de sequestro; - não se provou dolo por parte da recorrente (ao contrário da tese da decisão recorrida) uma vez que quando esta retirou a escada não tinha o intuito do assistente ficar retido no telhado do imóvel da sua (da recorrente) propriedade, privado da sua liberdade, apenas o fez para que fosse apanhado em flagrante pela GNR que tinha chamado, o que comunicou ao assistente, sendo certo que este não manifestou intenção de sair do telhado, nem lhe solicitou a reposição da escada para sair pelo mesmo local por onde subira. Vejamos então. Confrontando a decisão recorrida com a decisão da primeira instância, entendemos que, se justifica, desde já, fazer uso dos poderes oficiosos que são conferidos ao Supremo Tribunal de Justiça, de conhecimento dos fundamentos previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, uma vez que se nos afigura existir um flagrante e grosseiro erro na decisão recorrida quando julgou verificados os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, als. b) e c) do CPP. Com efeito, analisada a decisão proferida sobre a matéria de facto constante da sentença proferida na 1ª instância, não se descortina a existência dos apontados vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, als. b) e c) do CPP. Não vemos que haja qualquer contradição entre o que foi dado como provado no ponto 3 (relativo à atuação apenas da arguida/recorrente) e o que consta no 3.º parágrafo dos factos não provados que era relativo à conduta das duas arguidas acusadas em coautoria (“as arguidas mantiveram o ofendido CC privado da sua liberdade de locomoção até à chegada ao local de uma patrulha da GNR”). Para além de se desconhecer as características daquela oficina/armazém e das redondezas, isto é, do espaço envolvente, se havia outros telhados e edifícios ao lado (ou seja, desconhecemos se havia outros locais que permitissem a saída daquele telhado) e dimensão da escada (desconhecendo-se se estava inviabilizada a saída por outro local sem ser pela mesma escada e, portanto, não estando demonstrado que o assistente estivesse impedido de se deslocar de um lado para outro), por onde o assistente subiu ao telhado e que lhe permitiam voltar a descer, ficou por apurar se o mesmo teria outro local ou via para descer, sem ser pelas escadas, que haviam sido retiradas pela arguida/recorrente e que o impossibilitavam de por ali sair e dali sair, enquanto não chegasse a patrulha da GNR. Note-se que a matéria de facto tem de ser lida integralmente, inclusive tendo em atenção o que consta da motivação, para se perceber todo o seu contexto e, não de forma fragmentada, isolada ou estanque, sem atender a todas as considerações e perspetivas que nela constam e dela decorrem. E, lendo toda a motivação, percebe-se a razão pela qual é errada a dedução da contradição apontada na decisão recorrida. Mas, ainda que assim não fosse, vai contra as regras da experiência comum e do bom senso do cidadão médio, o apontado erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP), apenas com o fim de dar como provado os factos que tinham sido dados como não provados na 1ª instância, relativos ao dolo do imputado crime de sequestro. Com efeito, resulta da motivação da sentença da 1ª instância não só que, o assistente nunca pediu para lhe colocarem a escada para sair do telhado do imóvel que, até pertencia à arguida/recorrente (o que indicia, para o cidadão comum, que não se sentiu privado na sua liberdade de locomoção apesar de estar nesse telhado que não lhe pertencia e sabia que estava à espera da GNR que tinha sido chamada ao local), como a atuação daquela (recorrente), quando foi informada pela mãe que se encontrava um homem no dito telhado do seu imóvel, a tirar fotografias à sua propriedade, de telefonar para a GNR relatando os factos e solicitando a deslocação ao local e, quando para lá foi, retirando as escadas para o assistente permanecer no telhado até à chegada da patrulha da GNR, pretendendo que fosse apanhado em flagrante, sendo a sua única intenção que a pessoa fosse identificada, mostra (para o cidadão médio, colocado na situação de julgador) que não agiu com dolo de o privar da liberdade ambulatória, mas antes com intenção de defender o seu património e de a autoridade identificar quem havia invadido a sua propriedade e ali se encontrava ilicitamente, sem a sua autorização e sem o seu consentimento. Ou seja, lendo o texto da decisão da 1ª instância, tudo aponta que a arguida agiu licitamente, incluindo quando retirou as escadas, por estar a atuar em legítima defesa da sua propriedade/património (art. 337.º, n.º 1, do CC aplicável por força do art. 31.º, n.º 1, do CP), que fora invadida, sem o seu consentimento, pelo assistente (subindo ao telhado daquela oficina/armazém, por essas escadas). E, quase neste sentido, adianta a Srª. PGA na Relação, em resposta ao recurso da arguida para o STJ, quando a dado passo escreve: «ao que tudo sugere, a arguida ora recorrente atuou na convicção de que a conduta do Assistente era suspeita e carecia de intervenção policial, daí ter contactado previamente a GNR. Por outro lado, ainda que não se tenha dado como provado que o Assistente “estivesse a proceder de forma ilícita”, o certo é que foi encontrado no telhado de um imóvel que pertencia à Arguida, a qual momentos antes, tinha sido alertada para o facto de aquele estar a tirar fotografias ao pátio, facto que desconhecia e para o qual não tinha dado consentimento. Nesse sentido, analisando a sentença do Tribunal da 1ª instância, entendemos que não se vislumbrava a existência de qualquer erro ou vício, sendo que a factualidade considerada como provada permitia fundamentar a decisão jurídica.» E, de facto, o que não é normal e vai contra as regras da lógica, do normal acontecer e da experiência comum, é alguém subir a um telhado do prédio que pertence a outra pessoa, através de umas escadas e o respetivo proprietário não poder agir, como a aqui arguida fez, nas circunstâncias ali assinaladas e, apesar das explicações que foram dadas na decisão sobre a matéria de facto da sentença da 1ª instância (que são plausíveis e permitiam a solução que foi dada, de forma fundamentada), venha de forma inexplicável a ser condenada por um crime de sequestro na Relação, mesmo que em pena de admoestação. Para além da apontada licitude da conduta da arguida que sobressai do texto da sentença da 1.ª instância, também dela podemos perceber que a mera restrição de movimentos a que o assistente ficou sujeito, em consequência da conduta da arguida, não é suficiente para integrar o crime de sequestro, o qual exige uma privação total da liberdade ambulatória1, que no caso ficou por demonstrar. A privação total da liberdade ambulatória, da liberdade de movimentos é que carateriza o crime de sequestro (caso em que a vítima é colocada numa situação da qual não só não pode livrar-se por si só, como nem sequer pode pedir e obter imediatamente auxílio), o que não sucedeu no caso dos autos (como acima foi referido e, resulta da motivação da sentença da 1ª instância, não só o assistente nunca pediu para lhe colocarem a escada para sair do telhado do imóvel que pertencia à arguida/recorrente, como podia ter feito, como da matéria apurada não resulta que estivesse impossibilitado de se deslocar de um lado para o outro, sendo certo ainda que nada se apurou que não pudesse dali sair por outro local). Portanto, analisando o texto da decisão sob recurso é manifesto e grosseiro o erro em que incorreu a Relação ao julgar verificados os vícios previstos no art. 410.º, n.º 2, do CPP, os quais não ocorrem. Em conclusão: não ocorrendo os vícios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, nem nulidades ou irregularidades de conhecimento oficioso, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida sobre a matéria de facto pela 1ª instância, a qual se mostra devidamente sustentada e fundamentada, impondo-se a revogação do acórdão da Relação, com a consequente absolvição da arguida/recorrente e repristinação da sentença da 1ª instância. Fica, pois, prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pela recorrente. Dispositivo Pelo exposto, acordam nesta Secção do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar provido o recurso da arguida AA e, consequentemente, revogar o acórdão da Relação de Lisboa de 17.04.2024, absolvendo-a do crime de sequestro pelo qual fora condenada, prevalecendo em conformidade a sentença da 1ª instância. Sem custas. * Processado em computador e elaborado e revisto integralmente pela Relatora (art. 94.º, n.º 2, do CPP), sendo depois assinado. * Supremo Tribunal de Justiça, 31.10.2024 Maria do Carmo Silva Dias (Relatora) José A. Vaz Carreto (Adjunto) Antero Luís (Adjunto) ________
1. Assim, Américo Taipa de Carvalho, em anotação ao crime de sequestro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, dir. Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra: Coimbra Editora, 1999, p. 407, notando que “no crime de sequestro não se trata de uma mera restrição da liberdade de movimentos, mas da sua (total) privação.” |