Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2777/22.3T8PRT.P1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO BARATEIRO MARTINS
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL
RESPONSABILIDADE OBJETIVA
RESPONSABILIDADE PELO RISCO
PEÃO
ATROPELAMENTO
CONCORRÊNCIA DE CULPA E RISCO
CULPA DO LESADO
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso:
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: NEGADA A REVISTA
Sumário :
I – É hoje dominante, na jurisprudência do Supremo, que não é a ocorrência de uma qualquer conduta culposa do lesado, que, sem mais, apaga ou exclui o dever de indemnizar fundado na criação de um risco genérico associado à circulação de um veículo automóvel, ou seja, é hoje dominante que deve fazer-se uma interpretação atualista do art. 505.º do CC e que deve admitir-se a concorrência entre a culpa do lesado e os riscos próprios associados à circulação de um veículo automóvel.

II – Porém, tal não significa que basta o mero envolvimento dum veículo num acidente para responsabilizar parcial ou totalmente o seu detentor, na medida em que comportamentos do lesado que se traduzam numa violação grosseira das mais elementares regras de prudência na utilização das vias de circulação serão idóneos a excluir a responsabilidade objetiva do veículo (decorrente do art. 503.º/1 do C. Civil).

III – Estando provado que o peão, por razões e/ou circunstâncias que se ignoram de todo, iniciou o atravessamento da rua “sem olhar” (“súbita e repentinamente”) e foi colhido pelo veículo que naquele preciso momento circulava no local em que ele iniciou o atravessamento, não pode tal comportamento do peão deixar de considerar-se como uma grosseira e injustificável violação das regras de prudência que todos os que utilizam as vias de circulação devem cumprir e respeitar, ficando, em face de tal “culpa grave” do peão, afastado o risco do veículo interveniente no acidente.

Decisão Texto Integral:

ACORDAM NO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA

I - Relatório

AA e BB, com os sinais dos autos, intentaram ação declarativa sob a forma de processo comum contra “Liberty Seguros, S.A. (agora “Liberty Seguros, Compañia de Seguros y Reaseguros, S.A.” - Sucursal em Portugal) peticionando a sua condenação a pagar-lhes, a título de indemnização, o montante global de € 193.870,63, acrescido de juros de mora.

Indemnização essa decorrente dos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos em acidente de viação ocorrido no dia .../11/2021, cerca das 14:35, na Rua do ..., na cidade ..., no qual interveio o veículo automóvel de matrícula AD-..-VG, conduzido por CC «por conta, sobre as ordens e no interesse da proprietária do mesmo, DD, que detinha a direção efetiva daquele», proprietária essa que havia transferido para a seguradora R. a responsabilidade civil por danos causados a terceiros decorrentes da circulação do veículo; sendo o outro interveniente o peão EE, pai das AA., vítima de atropelamento pelo referido veículo automóvel (foi colhido pelo canto direito da frente do veículo), quando, segundo as AA., efetuava a travessia da via, na passadeira, da direita para a esquerda, atento o sentido I.../F..., com o sinal para a travessia de peões verde.

Sucedendo que, em resultado do atropelamento, o peão EE «ficou prostrado no solo, em cima da passadeira» e foi transportado para o Hospital ......, onde permaneceu em estado de coma até .../12/2021, dia em que faleceu.

Pelo que, sendo as AA. as únicas herdeiras do falecido, pedem pela violação do direito à vida do seu pai a quantia de € 80.000,00; pelo sofrimento por que passou o EE no período que decorreu entre o acidente e o seu decesso a quantia de € 50.000,00; pelos danos não patrimoniais sofridos pelas próprias AA. a quantia de € 30.000,00 para cada uma delas; e, por último, pelas despesas de funeral o montante de € 3.870,63.

A R. contestou, alegando que o atropelamento mortal do peão EE ocorreu por culpa exclusiva deste, porquanto atravessou a Rua do ..., junto aos semáforos onde existe uma passadeira, mas fora dela; e fê-lo, súbita e repentinamente, da direita para a esquerda, quando o veículo automóvel estava a uma distância não superior a 2/3 metros e, se aproximava dos semáforos, que estavam na posição de verde para o trânsito automóvel, «metendo-se à frente do veículo», não tendo a sua condutora forma alguma de evitar o atropelamento. E quanto aos danos, com fundamento em desconhecimento, disse impugná-los, concluindo assim pela total improcedência da ação.

Foi dispensada a realização da audiência prévia, proferido despacho saneador – em que se declarou a instância totalmente regular, estado em que se mantém – identificado o objeto do litígio e enunciados os temas da prova.

Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença, na qual se julgou a ação totalmente improcedente e se absolveu a R. do pedido.

Inconformadas, interpuseram as AA. recurso de apelação, tendo a Relação do Porto, por Acórdão de 19 de Dezembro de 2023, julgado a mesma totalmente improcedente.

Ainda inconformadas, interpõem agora as AA. o presente recurso de revista, a título de revista excecional, tendo a Formação, por Acórdão de 16/05/2024, admitido a revista.

Terminaram as AA. a sua alegação a pedir a revogação do Acórdão recorrido e a sua substituição por decisão em que “deve proceder-se à repartição de responsabilidades, com base na concorrência entre a culpa do lesado e o risco inerente à circulação do veículo automóvel, de forma proporcional nos termos ora enunciados, ou noutra proporção que se entenda mais adequada ao caso concreto”; julgando-se assim a ação parcialmente procedente e indemnizando-se as AA. em conformidade, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“(…)

1 - A decisão recorrida, partindo da conclusão de que o lesado teve culpa na produção do acidente, afastou logo a responsabilidade da condutora do veículo, sem sequer ter apreciado a hipótese de esta ser responsabilizada pelo risco, pelo que, em face das decisões já proferidas em sentido diferente, por este Venerando Supremo Tribunal, no que concerne à concorrência de culpa do lesado com os riscos próprios do veículo automóvel, pretendem as recorrentes a apreciação desta questão, por entenderem necessária para uma melhor aplicação do direito, devendo ter-se por verificado o requisito da Revista Excepcional da alª. a) do nº 1 do artigo 672º do CPC.

2 - Salvo o devido respeito por entendimento diverso, a decisão proferida não teve em conta a interpretação actualista e mais progressista do artigo 505º do CC. Que no entendimento das recorrentes de ser aplicado ao presente caso.

3 - A doutrina e jurisprudência tradicionais entendiam que, em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no artº 505º do CC, máxime, ser o acidente imputável ao facto, culposo ou não, do lesado, exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição de responsabilidade: a responsabilidade pelo risco era afastada pelo facto do lesado.

4 - Esta corrente doutrinal e jurisprudencial englobava as situações mais díspares e não distinguia as condutas culposas das não culposas e dentro daquelas as de culpa mais grave das de culpa mais leve, conduzindo muitas vezes a resultados chocantes e injustos e mostrando-se ainda insensível ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário, do âmbito da responsabilidade pelo risco e da expressa consagração da hipótese da concorrência entre o risco da actividade do agente e um facto culposo do lesado, que tem tido tradução em recentes diplomas legais.

5 - No entanto, atualmente assistimos à consagração de uma corrente jurisprudencial que privilegia uma interpretação progressista e actualista do artigo 505º do CC, no sentido de nele se acolher a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo.

6 - A decisão recorrida, partindo da conclusão de que o lesado teve culpa na produção do acidente, afastou logo a responsabilidade da condutora do veículo, sem sequer ter apreciado a hipótese de este poder ser responsabilizado pelo risco.

7 - Além disso, a sentença recorrida, ao não ter equacionado nem apreciado a responsabilidade da condutora do veículo ligeiro com base no risco, mesmo havendo culpa do lesado, encontra-se em contradição com os acórdãos já transitados em julgado no domínio da mesma legislação – artºs 503º, 505º e 570º do CC- e sobre a mesma questão fundamental de direito – concorrência de culpa e risco em acção emergente de acidente de viação.

8 - Apesar da diversidade da matéria de facto, pois que, como é natural, não há acidentes iguais, os acórdãos fundamento, nomeadamente; os acórdãos proferidos em 28-03-2019 no processo nº 954/13.7TBPMS.C1.S1 e em 22-06-2021, no processo nº 2992/18.4T8AVR.P1.S1, em situações de facto equiparáveis e extremamente idênticas à dos autos, decidiram atribuir indemnização aos lesados com base na concorrência entre a culpa dos lesados e o risco inerente à circulação do veículo automóvel, quando os tribunais “a quo” a tinham afastado, por concluírem ser o acidente imputável a título de culpa aos sinistrados, sem terem demonstrado qualquer parcela de culpa dos condutores dos veículos envolvidos.

9 - No caso em recurso, o Tribunal “a quo” concluiu pela culpa do peão, deixando de apreciar a possibilidade de responsabilidade objectiva do outro interveniente, a condutora do veículo.

10 - Ora, tendo ficado provado que

a) a vítima foi colhida a cerca de 15 metros da passadeira existente no local, embora tenha ficado prostrada em cima da passadeira

b) o local do acidente é uma rectacom boa visibilidade existindo vários semáforos no local.

c) a velocidade máxima permitida no local é de 50kms/h,

d) não foi possível apurar a velocidade a que circulava, estimando-se que circulava a não mais de 30/40Kms/h)

e) A condutora confirmou a existência e a visualização dos semáforos e da passadeira para a travessia de peões

f) não logrou parar o veículo no espaço livre e visível á sua frente, por forma a evitar colher o peão,

11 - E considerando-se o disposto no Código da Estrada, artº 24º nº 1 « O condutor deve regular a velocidade de modo a que, atendendo à presença de outros utilizadores, em particular os mais vulneráveis, às características e condições da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível á sua frente».

12 - E ainda o disposto no nº 1 a) do mesmo artigo «Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade à aproximação de passagens assinaladas na faixa de rodagem para a travessia de peões e ou velocípedes».

13 - Deve entender-se que, para o acidente, concorreu o risco do próprio veículo, uma vez que está em causa um acidente com intervenção de um veículo automóvel, cuja perigosidade, em abstrato, decorre da sua própria natureza, isto é, de maior capacidade lesiva e de um peão especialmente vulnerável.

14 - Pelo que, deve proceder-se à repartição de responsabilidades, com base na concorrência entre a culpa do lesado e o risco inerente à circulação do veículo automóvel, de forma proporcional nos termos ora enunciados, ou noutra proporção que se entenda mais adequada ao caso concreto.

15 - E deve ser atribuída às filhas da infeliz vítima, aqui Recorrentes, a indemnização peticionada pelos danos patrimoniais e não patrimoniais sofridos.

16 - O acórdão recorrido violou, por errada interpretação e aplicação o disposto nos artºs 503º, 505º e 570º do CC.

(…)”

A R. respondeu, sustentando que o Acórdão recorrido não violou qualquer norma substantiva, designadamente, as referidas pelas recorrentes, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.

Obtidos os vistos, cumpre, agora, apreciar e decidir.


*


II – Fundamentação de Facto

II – A – Factos Provados

1) No dia ... de novembro de 2021, cerca das 14 horas e 35 minutos, na Rua do ..., concelho ..., ocorreu um acidente de viação.

2) No referido acidente esteve envolvido o veículo de matrícula AD-..-VG, conduzido por CC.

3) O acidente verificou-se na Rua do..., em frente ao nº 1092.

4) Poucos metros à frente do local do acidente existe uma passadeira para travessia de peões, com sinalização luminosa.

5) O aludido veículo circulava na via, no sentido I.../F....

6) A condutora do veículo AD nasceu a .../.../2002, possuindo licença de condução com data de emissão .../.../2021.

7) O local tem ampla visibilidade.

8) E, sendo localidade, a velocidade está limitada a 50 Km/h.

9) O veículo AD-..-VG era propriedade de DD.

10) O malogrado EE foi transportado de urgência para o Hospital ... no ..., onde permaneceu em estado de coma, até ao dia .../12/2021, data em que veio a falecer.

11) As Autoras são filhas do EE.

12) A morte brutal e inesperada do EE lançou as filhas num estado de profunda prostração afetiva e moral.

13) Pois as filhas prodigalizavam ao pai amor intenso, e o mesmo se diga do pai em relação às filhas.

14) O sinistro ceifou a vida do EE, o qual nasceu em .../.../1957, sendo ele um homem enérgico e com vontade de viver.

15) Durante o tempo que esteve no hospital o EE suportou dores e sofrimento.

16) Pelas despesas de funeral as Autoras pagaram a quantia de €3.870,63.

17) Aquando do acidente o veículo AD-..-VG tinha transferida a responsabilidade civil decorrente da circulação do mesmo para a R. pela apólice ........10.

18) Por escritura de fusão, ocorrida em 19/12/2018, a demandada foi incorporada na sociedade comercial LIBERTY SEGUROS, COMPAÑIA DE SEGUROS Y REASEGUROS, passando a ter a designação social de LIBERTY SEGUROS, COMPAÑIA DE SEGUROS E REASEGUROS, S.A. – SUCURSAL EM PORTUGAL, sucedendo nos direitos e nas obrigações da anterior LIBERTY SEGUROS, S.A.

19) O falecido EE iniciou a travessia da Rua do ..., sem ser em passadeira, existente no local do acidente, situada após o local do acidente, encontrando-se regulada por semáforos.

20) O que fez sem atender ao trânsito que então se processava, atravessando a referida rua quando o veículo AD-..-VG já se encontrava a uma distância não superior a 2/3 metros.

21) O veículo AD-..-VG seguia pela metade direita da referida Rua do ..., a velocidade não superior a 40/50Km/h, no sentido de marcha I.../F....

22) Quando se encontrava a aproximar-se dos semáforos existentes nessa Rua do ..., que se encontravam na posição de verde para o trânsito automóvel, a vítima mortal, súbita e repentinamente, surgiu a atravessar a Rua do ..., da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha I.../F....

23) Fora da passadeira, antes de chegar àqueles semáforos.

24) Na Rua do ..., junto ao local do acidente existe uma passadeira para travessia de peões, situada junto aos semáforos, a cerca de 15m do local do acidente.


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II – B – Factos não provados

Não se provou que:

a) No dia, hora e local referidos, o EE, pai das ora Autoras, se preparava para efetuar a travessia da via, na passadeira, da direita para a esquerda, atento o sentido I.../F....

b) Para o efeito, esperou que o sinal para a travessia de peões passasse a verde e no preciso momento em que iniciou tal travessia, foi o mesmo colhido pelo canto direito da frente do veículo AD-..-VG,

c) Tenha sido pelo facto da condutora do veículo AD apenas possuir a carta de condução desde o dia .../.../2021 que o falecido EE foi colhido.

d) A passadeira aludida em 24) dos factos provados se situe a cerca de 30 metros do local do acidente.


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III – Direito

Coloca-nos a pretensão deduzida pelas AA. perante as regras da responsabilidade civil: houve um acidente de viação e as AA., filhas do peão EE (entretanto falecido), atropelado por veículo segurado na R., vêm peticionar a indemnização pelos danos decorrentes de tal acidente de viação.

E vem já estabilizado das Instâncias, com relevo para os requisitos da responsabilidade civil, que:

- a condutora do veículo segurado na R. não teve culpa no produção do acidente; e

- que o peão, pai das AA., teve culpa na produção do acidente.

Efetivamente, sintetizando, provou-se que:

EE, no dia .../11/2021, pelas 14,35 horas, iniciou a travessia da Rua do ..., na cidade do ..., em local de ampla visibilidade, sem ser na passadeira, existente mais à frente, junto dos semáforos, a cerca de 15 metros do local em que iniciou a travessia;

O que – travessia da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha I.../F... – o EE fez, súbita e repentinamente, sem atender ao trânsito que então se processava, atravessando a referida Rua do ... quando o veículo AD-..-VG, segurado na R., já se encontrava a uma distância não superior a 2/3 metros;

Veículo AD-..-VG que seguia pela metade direita da referida Rua do ..., a velocidade não superior a 40/50Km/h, no sentido de marcha I.../F..., encontrando-se os semáforos na posição de verde para o trânsito automóvel;

Vindo, em tais circunstâncias, a ocorrer o embate entre o malogrado EE e o veículo AD-..-VG, após o que o EE foi transportado para o Hospital ..., ..., onde permaneceu em estado de coma até ao dia .../12/2021, data em que veio a falecer.

Efetivamente, perante tal factualidade (bastante diversa da que havia sido alegada pelas AA.), entenderam as Instâncias, repete-se, que não ficou provado que a condutora do veículo tenha atuado culposamente; e, por outro lado, entenderam que, tendo infringido o EE o art. 101.º do Código da Estrada, foi a sua conduta que foi culposa.

De facto, dispõe-se no art. 101.º do Código da Estrada:

«1 - Os peões não podem atravessar a faixa de rodagem sem previamente se certificarem de que, tendo em conta a distância que os separa dos veículos que nela transitam e a respetiva velocidade, o podem fazer sem perigo de acidente. (…)

3- Os peões só podem atravessar a faixa de rodagem nas passagens especialmente sinalizadas para esse efeito ou, quando nenhuma exista a uma distância inferior a 50 m, perpendicularmente ao eixo da faixa de rodagem. (...)».

E resulta do conjunto dos factos provados que o peão EE não atravessou a faixa de rodagem, como devia, na passadeira existente no local e, além disso, que iniciou o atravessamento sem se certificar de que não transitavam veículos na faixa de rodagem; e, por outro lado, tendo iniciado o atravessamento, súbita e repentinamente, quando o veículo se encontrava a uma distância de 2/3 metros, não podia a condutora do veículo, que circulava a velocidade não superior à permitida, ter evitado o embate no peão EE.

Aceitando a apreciação que, em termos de culpa na produção do acidente, foi feita pelas Instâncias, vêm na presente revista as RR/recorrentes sustentar que o acórdão recorrido, “partindo da conclusão de que o lesado teve culpa na produção do acidente, afastou logo a responsabilidade da condutora do veículo” (não lhes concedendo qualquer indemnização) e não apreciou a questão da concorrência de culpa do lesado com os riscos próprios do veículo automóvel, pretendendo as RR./recorrentes, com a presente revista, que a apreciação de tal concorrência seja feita1 e que a tal título venham a ser indemnizadas.

Temos pois que o objeto da presente revista – como, aliás, resulta do Acórdão da Formação que, a título excecional, a admitiu – se circunscreve, ultrapassada/estabilizada a “questão da culpa”, à questão da concorrência entre a culpa do lesado e os riscos próprios do veículo interveniente no acidente2.

Explicado o objeto da revista, debrucemo-nos sobre ele.

Pode já hoje afirmar-se, como faz o Conselheiro Lopes do Rego3, que “(…) está sedimentada a evolução jurisprudencial que afirma – em circunstâncias particulares e exigentemente fundamentadas – a possibilidade de concurso entre a responsabilidade fundada objetivamente nos riscos de circulação do veículo e a eventual culpa ou imputação ao lesado, em algum grau ou medida, do facto danoso”.

Evolução jurisprudencial que, como é sabido, se iniciou com o Ac. deste STJ de 04/10/2007, sendo hoje, após naturais “avanços e recuos”, fortemente dominante, neste Supremo, o entendimento que, em tese, afirma a possibilidade do concurso de responsabilidades entre a culpa do lesado e os riscos próprios do veículo4.

Interpretando o art. 505.º do C. Civil – segundo o qual, “sem prejuízo do disposto no artigo 570.º, a responsabilidade fixada pelo n.º 1 do artigo 503.º só é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo” – a doutrina e a jurisprudência “tradicionais” entendiam5 que, constituindo a culpa, ao contrário do risco, um critério de imputação desvalioso do ponto de vista ético-jurídico, o simples facto culposo do lesado ou de terceiro deveria absorver a imputação pelo risco, ou seja, que qualquer que tivesse sido a contribuição causal desse facto (culposo do lesado ou de terceiro) para o sinistro a responsabilidade pelo risco do art. 503.º/1 do C. Civil ficava totalmente excluída.

Entendia-se também que, quando o art. 505.º do C. Civil se refere à hipótese de o acidente ser imputável ao lesado ou a terceiro, se estava apenas a exigir que o facto do lesado ou do terceiro fosse causal do acidente, sendo indiferente o seu carácter culposo ou não culposo, isto é, segundo o entendimento “tradicional”, a imputação de que fala o art. 505.º do C. Civil podia ser a mera imputação objetiva e a exclusão ali prevista situava-se ao nível do nexo causal (que, na hipótese do art. 505.º do C. Civil, segundo tal entendimento, passaria a falhar entre os riscos próprios do veículo e os danos).

Tal entendimento, como foi sendo criticamente salientado, conduzia a soluções práticas injustas e desproporcionais, uma vez que qualquer percentagem, ainda que reduzida, de culpa ou de imputação objetiva ao lesado ou a terceiro significava a total exclusão da responsabilidade objetiva do detentor pelos riscos próprios de circulação do veículo, ou seja, um qualquer incumprimento de regras estradais – ainda que significassem, no caso concreto, uma censurabilidade e relevância diminutas para a eclosão do acidente e para as gravíssimas lesões que dele pudessem resultar – excluiria totalmente a responsabilidade objetiva, não permitindo qualquer ponderação casuística com os riscos criados pela circulação do veículo (ainda que a importância causal do comportamento do lesado ou do terceiro para a verificação do sinistro pudesse ter sido inferior à fonte de riscos que fundamentou a previsão da responsabilidade objetiva).

Para além disto – das soluções práticas injustas e desproporcionais a que conduzia – argumentava-se com a intensidade da atual circulação rodoviária (comparada com as condições que se verificavam quando, nos anos sessenta do século passado, o C. Civil foi pensado), com o sensível agravamento dos riscos, da sinistralidade (decorrente da convivência normalmente problemática, em ambiente urbano, entre veículos automóveis, peões e velocípedes) e de eventos com consequências pessoais gravosas; o que, aliado ao facto de, atualmente, existir uma muito maior sensibilidade para as necessidades de tutela dos lesados da gravosa sinistralidade rodoviária contemporânea, particularmente dos lesados mais vulneráveis, que frequentemente sofrem danos corporais relevantíssimos, a que o direito não pode permanecer indiferente, “forçou” a referida evolução jurisprudencial (e também doutrinal6), impondo-se uma interpretação atualista do art. 505.º do C. Civil, interpretação esta que, ainda se acrescentou, será a única que está em linha com o que decorre dos instrumentos normativos de Direito Comunitário, vinculativos dos Tribunais nacionais.

Efetivamente, a obrigação de interpretar conforme ao Direito da União Europeia (DUE) sobre seguro automóvel obrigatório, condensada na Diretiva 2009/103/CE, de 16-09-2009, obrigação cuja eficácia não pode ser prejudicada por soluções adversas de ordenamentos nacionais, suscitou vários reenvios prejudiciais7 – estava em causa saber se o imperativo de proteger as vítimas de acidentes de viação prosseguido pelas referidas Diretivas, obrigava a desconsiderar a sua contribuição para os danos – resultando do teor das decisões do TJUE que vieram a ser proferidas que, tendo em vista concluir que o Direito Nacional cumpre a conformidade com o DUE, as mesmas partiram do pressuposto de a ordem jurídica portuguesa admitir a concorrência entre a imputação do acidente ao lesado e o risco do condutor, cuja ponderação conjugada, para efeitos de concessão, limitação ou exclusão da indemnização, depende da apreciação em concreto das circunstâncias do caso, ou seja, as decisões do TJUE (proferidas no âmbito dos reenvios prejudicais suscitados) consideraram que o Direito Nacional respeita a exigência de conformidade com o DUE (assim se salvaguardando o efeito útil das Diretivas) por o mesmo ter de ser interpretado, em casos de imputação do acidente ao lesado, em termos da responsabilidade objetiva do detentor do veículo interveniente não ser liminar e automaticamente afastada com base em critérios gerais e abstratos, mas apenas quando tal resultar de uma apreciação em concerto das circunstâncias excecionais que se verifiquem no caso concreto.

Enfim, como se sumariou no acórdão deste STJ de 1/06/2017 (processo n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1), relatado pelo Conselheiro Lopes do Rego, está hoje sedimentado neste Supremo que:

“I. — O regime normativo decorrente do estatuído nas disposições conjugadas dos arts. 505.º e 570.º do Código Civil deve ser interpretado, em termos atualistas, como não implicando uma impossibilidade, absoluta e automática, de concorrência entre culpa do lesado e risco do veículo causador do acidente, de modo a que qualquer grau ou percentagem de culpa do lesado inviabilize sempre, de forma automática, a imputação de responsabilidade pelo risco, independentemente da dimensão e intensidade dos concretos riscos de circulação da viatura.

II. — Compete ao Tribunal formular um juízo de adequação e proporcionalidade, perante as circunstâncias de cada caso concreto, pesando, por um lado, a intensidade dos riscos próprios da circulação do veículo e a sua concreta relevância causal para o acidente; e, por outro, valorando a gravidade da culpa imputável ao comportamento, activo ou omissivo, do próprio lesado e determinando a sua concreta contribuição causal para as lesões sofridas, de modo a alcançar um critério de concordância prática que, em determinadas situações, não conduzirá a um automático e necessário apagamento das consequências de um risco relevante da circulação do veículo, apenas pela circunstância de ter ocorrido alguma falta do próprio lesado, inserida na dinâmica do acidente.”

Podemos pois dizer, face à interpretação atualista que deve ser feita do art. 505.º do Código Civil, que apenas se deve afastar a concorrência entre os factos ou comportamentos inadequados do lesado e o risco normal ou genérico de circulação de veículo quando o acidente se deve a culpa grave do lesado (ou, como também é designado, a culpa única e exclusiva do lesado).

Ou seja – como é hoje pacífico na jurisprudência deste Supremo – não é a ocorrência de uma qualquer infração estradal, de uma qualquer conduta culposa do lesado (ou de terceiro), que, sem mais, apaga ou exclui o dever de indemnizar fundado na criação de um risco genérico associado à circulação de um veículo automóvel (dever de indemnizar com expressão no art. 503.º/1 do C. Civil), mesmo que este circule com escrupuloso cumprimento das regras estradais.

Sem que, porém, tal passe a significar que, então, o mero envolvimento dum veículo num acidente basta para responsabilizar parcial ou totalmente o seu detentor.

Enfim, ultrapassada a tese da inadmissibilidade da concorrência de responsabilidades (entre o risco e a culpa do lesado), a controvérsia passará agora a situar-se na definição precisa dos fatores ou critérios que permitam afirmar quando estamos perante uma culpa grave do lesado.

Em tese, não suscitará controvérsia afirmar que a culpa grave do lesado – ao criar ele próprio um risco anormalmente acrescido de produção de eventos danosos – se sobrepõe, em princípio, aos riscos normais e genéricos da circulação do veículo, descaraterizando assim a responsabilidade objetiva fundada no art. 503.º/1 do C. Civil: na apreciação do caso de escola do suicida, que se lança intencionalmente para a frente dum automóvel, ninguém contestará que falha o nexo causal entre a fonte dos riscos/perigos normais da circulação do veículo e os danos decorrentes do comportamento suicida.

Mas, num número significativo de casos (como o dos presentes autos, acima delineado), seja qual for a solução, será sempre algo controverso e discutível afirmar ou não que estamos perante uma culpa grave do lesado8.

Assentemos: só comportamentos que se traduzam numa violação grosseira das mais elementares regras de prudência na utilização das vias de circulação serão idóneos a excluir a responsabilidade objetiva decorrente do art. 503.º/1 do C. Civil.

Mas mais: há que reconhecer que o critério de aferição da culpa grave não pode esvaziar o efeito útil do novo entendimento doutrinário e jurisprudencial acerca da concorrência de responsabilidades, ou seja, um critério que implique a configuração da generalidade das infrações e omissões do dever de cuidado do lesado como culpa grave do mesmo, é bem provável que seja demasiado exigente.

No caso dos autos – como “grosso modo” numa parte significativa dos acórdãos que neste Supremo se debruçaram sobre o tema – a questão acaba por se traduzir no seguinte: quando, em ambiente urbano, um peão atravessa uma rua/estrada sem cuidado, sem se certificar do trânsito (sem sequer olhar para o trânsito) que naquele momento nela está em circulação, e é atropelado, a sua desatenção é integradora de culpa leve ou configura uma culpa grave? Ou, perguntado de outro modo: é claramente indesculpável e injustificável, é uma clara violação das mais elementares regras de prudência que todos os que circulam nas ruas e estradas duma vila/cidade devem observar, um peão atravessar uma rua/estrada sem se certificar do trânsito (sem olhar sequer) que naquele momento nela está em circulação? Ou, ao invés, tal comportamento do peão é uma desatenção integradora de culpa leve?

Dependendo das circunstâncias de cada caso, é de admitir a possibilidade de concorrência entre a culpa de um tal peão e o risco do veículo que o atropelou: riscos específicos e agravados do veículo e/ou especiais particularidades da via podem levar a aceitar a concorrência entre o comportamento violador do lesado e os riscos de circulação do veículo na eclosão do acidente (já se argumentou – Ac deste STJ de 28/03/2019 – perante um tal comportamento do lesado, que não se pode afirmar que a típica aptidão do veículo para a criação de riscos não haja contribuído para a eclosão do acidente).

No nosso caso, tendo em vista saber se o comportamento do pai das AA. integra a “culpa grave” (que afasta a responsabilidade pelo risco do veículo automóvel), provou-se que o peão atravessou a rua “súbita e repentinamente, sem atender ao trânsito que então se processava, e quando o veículo se encontrava a uma distância não superior a 2/3 metros”.

É claro que violou as regras que os peões devem cumprir no atravessamento da faixa de rodagem e que constam do art. 101.º do C. da Estrada, mas é justamente por isto que é considerado culpado na produção do acidente e que agora se está a colocar a questão da concorrência da sua culpa com o risco da circulação do veículo, ou seja, não é por ter violado o art. 101.º do C. da Estrada que fica afastada a possibilidade de concorrência de responsabilidades.

E, para o desfecho da questão da concorrência de responsabilidades, não atribuímos relevo decisivo ao “súbita e repentinamente” dado como provado, que, no contexto da dinâmica do atropelamento (face à factualidade dada como provada), quer dizer e significar que a condutora nada pôde fazer para evitar o atropelamento, ou seja, estampa a falta de culpa da condutora, mas não determina a imediata e incontornável culpa grave e exclusiva do peão/lesado.

Da dinâmica dada como provada (atravessamento súbito e repentino da rua, quando o veículo estava a 2/3 metros), o que é forçoso extrair é que o peão, por razões e/ou circunstâncias que se ignoram de todo, iniciou o atravessamento da rua “sem olhar” e foi colhido pelo veículo que naquele preciso momento circulava no local em que ele iniciou o atravessamento.

Pelo que, tudo visto e ponderado, tudo acaba por estar em saber se atravessar uma rua sem antes “olhar” para o trânsito que nela circula é algo que ainda integra a “culpa leve” ou que já preenche a “culpa grave”.

A resposta a tal questão dependerá sempre, claro, das concretas circunstâncias, porém, à partida, por defeito, ignorando-se as concretas circunstâncias, um tal modo de atravessamento não pode deixar de ser considerado como uma grosseira e injustificável violação das regras de prudência que todos os que utilizam as vias de circulação devem cumprir e respeitar.

No caso, ignoramos de todo, insiste-se, as concretas circunstâncias – porventura mitigadoras da culpa do pai das AA. – que rodearam tal tipo de atravessamento/comportamento: nada foi alegado e está provado a tal propósito9 (as AA. juntaram com a PI fotografia do local do acidente – a rua que, na cidade do Porto, margina o rio Douro, pela direita, logo após a Ponte da Arrábida – não evidenciando a mesma qualquer circunstância em que possa alicerçar-se a mitigação da culpa dos pais das AA.), pelo que persiste o que à partida e por defeito se apresenta como uma grosseira e injustificável violação das regras de prudência que todos os que utilizam as vias de circulação devem cumprir e respeitar.

Sinde Monteiro10 convoca a fórmula cunhada por Frey para distinguir a negligência leve e a negligência grave: “A negligência é leve quando dizemos ‘isso pode acontecer’” e é grave, grosseira, quando temos de dizer “não se admite que tal aconteça” (como quase sempre, em abstrato é fácil estabelecer diferenças, mas em concreto é difícil de aplicar).

Enfim, atravessar uma rua, como a fotografada nos autos, “sem olhar” para o trânsito que na mesma circula é uma desatenção que pode acontecer ou é algo que – sem prejuízo de poder acontecer a qualquer um – não se admite que aconteça?

Como que “por defeito”, inclinamo-nos, repete-se, para a segunda hipótese.

Sem prejuízo da intensidade da contribuição causal dos perigos ou dos riscos do veículo ser bastante superior ao facto culposo do lesado e da contribuição culposa deste não fazer ignorar o contributo do veículo, não pode bastar, como supra se referiu, o mero envolvimento do veículo num acidente para responsabilizar parcial ou totalmente o detentor, sob pena de se abstrair da necessária causalidade.

Sem prejuízo da potencialidade de perigo que encerra a circulação de veículos, não parece que, pelo menos no caso sub-judice, em face do que se provou, tal perigo tenha contribuído para o acidente; ou, a entender-se diferentemente, teremos de reconhecer que basta o mero envolvimento de um veículo num acidente para responsabilizar parcial ou totalmente o seu detentor (segundo a tese tradicional, qualquer a culpa, ainda que diminuta, do lesado ou de terceiro excluía a imputação pelo risco, agora, a seguir-se tal entendimento, a imputação pelo risco nunca, excetuando comportamentos suicidários, poderá ser afastada).

É quanto basta – não preenchendo a factualidade provada uma situação de concurso de responsabilidades (segundo a interpretação atualista que deve ser feita do art. 505.º do C. Civil) entre a culpa do lesado e os riscos próprios do veículo – para confirmar o acórdão recorrido e negar a revista.


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III - Decisão

Nos termos expostos, nega-se a revista.

Custas pelas AA./recorrentes.


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Lisboa, 04/07/2024

António Barateiro Martins (relator)

Ferreira Lopes

Nuno Pinto de Oliveira

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1. Mais rigorosamente, que tal reapreciação seja feita, uma vez que ela já foi feita no Acórdão recorrido, citando-se inclusivamente um estudo do Conselheiro Lopes do Rego sobre o tema e designando-se os acórdãos deste STJ que defendem tal concorrência como “corrente progressista” da jurisprudência.

2. O que se diz nas conclusões 11.ª e 12.ª, como resulta da conclusão 13.ª, é invocado pelas recorrentes tão só para sustentar o concurso do risco do veículo.

3. “A problemática da concorrência da responsabilidade objetiva, decorrente dos riscos de circulação do veículo, com a culpa do lesado”, in Julgar, Tomo 46 (janeiro-abril de 2022), pág. 48.

4. No sentido da admissão da tese do concurso, apenas nos anos mais recentes, pronunciaram-se os acórdãos deste Supremo Tribunal de 01/06/2017 (proc. n.º 1112/15.1T8VCT.G1.S1), de 11/01/2018 (proc. n.º 5705/12.0TBMTS.P1.S1), de 19/03/2019 (proc. n.º 5173/15.5T8BRG.G1.S1), de 28/03/2019 (proc. n.º 954/13.7TBPMS.C1.S1), de 27/06/2019 (proc. n.º 589/14.7T8PVZ.P1.S1), de 17/10/2019 (proc. n.º 15385/15.6T8LRS.L1.S1), de 24/09/2020 (proc. n.º 9/14.7T8CPV.P2.S1), de 13/04/2021 (proc. n.º 4883/17.7T8GMR.G1.S1), de 25/05/2021 (proc. n.º 3883/18.4T8FAR.E1.S1), de 22/06/2021 (proc. n.º 2992/18.4T8AVR.P1.S1), de 19/10/2021 (proc. n.º 7007/16.4T8PRT.P1-A.S1), de 09/03/2022, (proc. n.º 974/19.8T8AVR.P1.S1) de 05/05/2022 (proc. n.º 5080/18.0T8MTS.P1.S1), de 30/10/2022 (proc. n.º 1896/20.5T8FNC.L1.S1), de 16/11/2023 (proc. n.º 849/20.8T8PRT.P1.P1.S1) e de 27/02/2024 (Proc. n.º 313/18.5T8GMR.G1.S1), todos disponíveis em www.dgsi.pt.

5. Sem prejuízo de tal ter sempre encontrado, no plano doutrinário, opositores como Vaz Serra que, logo nos trabalhos preparatórios do C. Civil, sustentou que poderia haver concurso entre o risco do veículo e a conduta culposa ou não culposa da vítima, com as inerentes consequências ao nível da repartição de responsabilidade pelos danos (dizia que apenas se deveria admitir a exclusão total da reparação de danos pelo detentor, se o acidente fosse devido unicamente a facto do lesado). Sendo que mais tarde tal orientação colheu o apoio de Sinde Monteiro, para quem só a culpa grave do lesado (ou de terceiro) devia excluir sem mais a responsabilidade do detentor do veículo; de Brandão Proença (submetendo a hipótese do concurso do risco e da conduta culposa do lesado ao critério do artigo 570.º/1 do C. Civil); e de Calvão da Silva, que aceita o concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, sempre que ambos colaborem na produção do dano, sem quebra ou interrupção do nexo de causalidade entre este e o risco pela conduta da vítima como causa exclusiva do evento lesivo (a responsabilidade estabelecida pelo artigo 503.º/1 apenas seria afastada se o facto do lesado fosse a causa única do dano, admitindo-se que a indemnização pudesse ser totalmente concedida, reduzida ou excluída, nos termos do regime do artigo 570.º, n.º 1, que seria, portanto, aplicável em virtude da ressalva efetuada pelo artigo 505.º).

6. Sinde Monteiro, «Direito dos seguros e direito da responsabilidade civil: da legislação europeia sobre o seguro automóvel a sua repercussão no regime dos acidentes causados por veículos: a propósito dos acórdãos Ferreira Santos, Ambrósio Lavrador (e o.) e Marques de Almeida, do TJUE», in RLJ, Ano 142.º, n.º 3977, 2012, págs. 82-131; Maria da Graça Trigo, «Reflexões acerca da concorrência entre risco e culpa do lesado na responsabilidade por acidente de viação», in Estudos dedicados ao Professor Doutor Bernardo Lobo Xavier, Volume II, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, págs. 485 e segs.; Raul Guichard, Anotação ao artigo 505.º, in Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 415 e seg.; Rui Mascarenhas Ataíde, «Concurso de imputações no âmbito dos acidentes de viação. Os riscos próprios do veículo e o facto do lesado, culposo ou meramente causal», in Revista de Direito Civil, 2021, n.º 2, págs. 319 e segs.; Carlos Lopes do Rego, local já citado.

7. Designadamente, no Processo C-409/09 (Ambrósio Lavrador) e no Processo C-300/10 (Marques Almeida).

8. E demonstra-o a circunstância de os inúmeros arestos, supra identificados, que reconheceram em tese a concorrência de responsabilidades se hajam dividido na apreciação do respetivo caso concreto.

9. Ao que não será alheio, por certo, o modo totalmente diverso como as AA. descreveram o acidente na Petição Inicial.

10. In “Responsabilidade por conselhos, recomendações ou informações”, 1989, pág. 567.