Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
6/23.1PJLRS-B.S1
Nº Convencional: 3.ª SECÇÃO
Relator: ANTÓNIO AUGUSTO MANSO
Descritores: HABEAS CORPUS
PRISÃO ILEGAL
PRISÃO PREVENTIVA
PRAZO
CONTAGEM DE PRAZOS
ACUSAÇÃO
NOTIFICAÇÃO
Data do Acordão: 10/31/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: HABEAS CORPUS
Decisão: NEGADO PROVIMENTO
Sumário :
I -Tem sido entendimento pacífico, na jurisprudência deste Supremo Tribunal de justiça, que é a partir do momento do despacho judicial que aplica ao arguido a medida de coação de prisão preventiva que se contam os prazos máximos desta medida de coação correspondentes à fase pré-acusatória, e não do momento da detenção que o tenha precedido.

II - Os dias em que tenha estado detido e que tenham precedido aquele despacho, contam-se como dias de detenção a descontar, por inteiro, no cumprimento da pena, nos termos do art.º 80º, n.º 1, do Código Penal.

III -Tem sido, igualmente, jurisprudência pacifica do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP, é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao arguido, não sendo inconstitucional esta interpretação.

III - Estando o arguido preso preventivamente desde 17.04.2024, e devendo a acusação ser deduzida no prazo de seis meses, este prazo completava-se a 16.10.2024, dia em que foi deduzida.

IV - Com a dedução da acusação, o prazo de duração máxima da prisão preventiva, passa a ser o relativo à condenação em 1.ª instância, previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. c) e 2, ou, sendo requerida a instrução, o do artigo 215.º, n.º1, al. b) e n.º 2, o que, no caso, está longe de se verificar.

Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório

1.1. AA, preso preventivamente no Estabelecimento Prisional ..., à ordem do processo de Inquérito n.º 6/23.1PJLRS, a correr termos no Departamento de Investigação e Acção Penal de ..., apresenta petição de habeas corpus, subscrito pelo seu mandatário, com fundamento em prisão ilegal, invocando o disposto nos artigos 222º e 223º do Código do Processo Penal (doravante CPP), nos termos e com os fundamentos seguintes (que se transcrevem):

… … …

“1º- Em sede de interrogatório judicial, no pretérito dia 17/04/2024, foi determinada ao Arguido a aplicação da medida de coação de prisão preventiva prevista no artigo 202º do C.P.P., por se considerar existirem fortes indícios do mesmo ter praticado, em autoria material e na forma consumada, um crime de tráfico de estupefacientes agravado, previsto e punido pelo artigo 21º, n.º 1, e 24º, alínea c) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22/01, por referência à Tabela I-C do mesmo diploma legal.

- Nos termos do artigo 215º, n.º 2 do C.P.P. a prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorridos 6 (seis) meses sem que tenha sido deduzida acusação.

- Encontrando-se o Arguido detido desde o dia 16/04/2024, e sujeito a prisão preventiva desde o dia 17/07/2024, o Ministério Público dispunha até ao dia 16/10/2024 para proferir a Acusação e ordenar a sua notificação ao Arguido.

- Acontece, porém, que passou já mais de uma semana desde a referida data sem que o Arguido fosse notificado da Acusação.

5º - Dispõe o Artigo 222º do Código de processo Penal que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.” (Negrito e sublinhado nossos).

6º - Encontrando-se ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva, a detenção do Arguido em estabelecimento prisional mostra-se um atentado ilegítimo à sua liberdade individual, e é ilegal nos termos do Artigo 222º nº2 alínea c) do Código de processo Penal.

- Nos termos do artigo 4º do Código de Processo Penal:

“Nos casos omissos, quando as disposições deste Código não puderem aplicar-se por analogia, observam-se as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal e, na falta delas, aplicam-se os princípios gerais do processo penal.” (Negrito nosso).

8º- Assim, verte o artigo 144º do Código de Processo Civil:

1 - Os atos processuais que devam ser praticados por escrito pelas partes são apresentados a juízo por via eletrónica, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva expedição.

(…)

7 - Sempre que se trate de causa que não importe a constituição de mandatário, e a parte não esteja patrocinada, a apresentação a juízo dos atos processuais referidos no n.º 1 é efetuada por uma das seguintes formas:

a) Entrega na secretaria judicial, valendo como data da prática do ato processual a da respetiva entrega;

b) Remessa pelo correio, sob registo, valendo como data da prática do ato processual a da efetivação do respetivo registo postal;

c) Envio através de telecópia, valendo como data da prática do ato processual a da expedição;

d) Entrega por via eletrónica, nos termos definidos na portaria prevista no n.º 2 do artigo 132.º, valendo como data da prática do ato a da respetiva expedição.” (Negrito nosso).

9º - Segundo os artigos acima citados, os atos processuais das partes, consideram-se praticados na data da efetivação do registo postal.

10º - Ou seja, mesmo que o Despacho de Acusação tivesse sido proferido com data anterior a 16/10/2024, o que se ignora por completo, o que é revelante para verificação do cumprimento do prazo máximo da prisão preventiva, previsto no artigo 215º do Código de Processo Penal, é a data da expedição do registo postal e não a data da prolação da acusação.

Ora,

11º- Portugal é, por determinação Constitucional,

“um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular, (…), no respeito e na garantia de efectivação dos direitos e liberdades fundamentais e na separação e interdependência de poderes” (art.2º da CRP), no qual, nomeadamente,

“todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objecto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo” (nº4 do art. 20º da CRP),

“Ninguém pode ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de aplicação judicial de medida de segurança. (art. 27º, n.º 2 da CRP),

“A prisão preventiva está sujeita aos prazos estabelecidos na lei.” (art. 28º, n.º 4 da CRP),

“1. O processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso.

2. Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, (…).” (art.32º da CRP);

“1. Os tribunais são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo.

2. Na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos, reprimir a violação da legalidade democrática e dirimir os conflitos (…)” (art.202º da CRP);

“Nos feitos submetidos a julgamento não podem os tribunais aplicar normas que infrinjam o disposto na Constituição ou os princípios nele consagrados” (art.204º da CRP);

12º - E no qual a lei ordinária dispõe, nomeadamente, que:

“1. Os juízes têm o dever de administrar justiça, proferindo despacho ou sentença sobre as matérias pendentes (…).” (art.152º do CPC);

13º- Ou seja: com o óbvio propósito de, por um lado, assegurar o respeito do direito a processo equitativo e das garantias de defesa (arts. 2º, 20º e 32º da CRP); e por outro, impedir que os cidadãos sejam privados da sua liberdade, quando se encontram esgotados os prazos estabelecidos por lei, a lei determina expressamente quando se consideram praticados os atos para efeitos legais.

14º - No caso Sub Judice, conforme decorre expressamente do artigo 144º, n.º1 do C.P.C., aplicável ex vi do artigo 4º do C.P.P., apenas vale “… como data da prática do ato processual a da respetiva expedição.”

15º- De facto apenas esta interpretação e aplicação da lei assegura a necessária confiança, certeza jurídica e lealdade processual.

16º - Sendo certo que sempre serão inconstitucionais os artigos 144º e 152º do Código de Processo Civil, 215º e 222º do Código de Processo Penal, quando interpretados no sentido que:

“Para verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva é relevante a data da dedução da acusação e não a data da expedição da notificação ao Arguido.”

Tais interpretações violam os artigos 2º, 20º, 27º, n.º 2, 28º n.º 4 e 32º todos da Constituição da República Portuguesa.

Inconstitucionalidade que, desde já se argui.

Assim, em face do que ficou exposto resulta, claramente, que a prisão do Arguido é manifestamente ilegal, pelo que se requer a V. Exa., o deferimento do presente pedido de Habeas Corpus, e em consequência que seja ordenada a imediata libertação do Arguido AA.”

1.2. A Senhora Juíza titular do processo prestou a informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por despacho exarado no processo, sobre as condições em que foi efetuada e se mantém a prisão do requerente, dele fazendo constar o seguinte:

“O arguido AA, suscitou a providência de habeas corpus com base no art. 222.º e 223º do Código de Processo Penal. (sic).

Em síntese, alega que o arguido se encontra em prisão preventiva, medida de coacção que lhe foi aplicada em 17-04-2024, em sede de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, por se encontrar fortemente indiciado da prática de um crime de tráfico de estupefacientes agravado, p e p pelo art. 21º, nº 1 e 24º, al. C) do DL 15/93, de 22-01, por referência à Tabela I-C anexa ao referido diploma legal.

Mais invoca que, nos termos do disposto no art. 215º, nº 2 do CPP, o prazo máximo de prisão preventiva é de seis meses, sem que tenha sido deduzida acusação. No caso, o MºPº dispunha até ao dia 16-10-2024, para deduzir acusação e ordenar a sua notificação ao arguido, o que não se verificou, pelo que se encontra ultrapassado o prazo máximo de prisão preventiva, encontrando-se o arguido, em consequência, em situação de prisão ilegal, nos termos do disposto no art. 222º, nº 2, al. C) do CPP.

Concluiu pugnando pela libertação imediata do arguido.


*


Nos seus fundamentos de petição da providência extraordinária de habeas corpus entendemos que, na verdade e salvo melhor opinião, o arguido aduziu argumentos de que o arguido se encontra em situação de prisão ilegal, suscitando uma questão que tem sido decidida de forma unânime pela jurisprudência, em sentido contrário ao invocado pelo arguido. É que, no caso dos autos, em que a acusação foi deduzida em 16-10-2024 (cfr. Fls. 3488), ou seja, no último dia do prazo de seis meses a que alude o disposto no art. 215º, nº 1, al. A) e nº 2 do CPP, e o arguido da mesma foi notificado em data posterior, tal configura uma mera irregularidade, sanada com o recebimento da notificação da acusação por parte do arguido.

Em bom rigor, nenhuns dos argumentos/fundamentos invocado pelo arguido se aproximou, sequer timidamente, da norma legal por si enunciada como fundamento de prisão ilegal.

Entendo, portanto, que o arguido se encontra legalmente preso, carecendo de fundamento o requerimento de habeas corpus para o Colendo Supremo Tribunal de Justiça, não estando, de todo em todo, preenchido o requisito previsto no art. 222.º, n.º2, alínea c) do Código de Processo Penal.

No entanto, Vossas Excelências, Colendos Senhores Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça, melhor decidirão.”

1.3. O processo encontra-se instruído com certidão da documentação processual tida por pertinente, junta com esta informação, a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP, ou seja:

(i)-Despacho de acusação datado de 16.10.2024, proferido no processo de inquérito 6723.1PJLRS;

(ii)-Despacho que após dedução de acusação reviu a medida de coação a que o arguido se encontra sujeito;

(iii)-Notificação da acusação;

(iv)-Auto de 1º interrogatório judicial de arguido detido, que aqui se dá por integralmente reproduzido, onde se decidiu, além do mais, “a sujeição do arguido, para além do prestado TIR, à medida de coação de prisão preventiva e proibição de contactos”, com os demais arguidos e testemunhas indicadas.

1.4. Podendo ser obtidos para a apreciação e decisão da providência do habeas corpus, todos os elementos informativos e documentais necessários, afiguram-se suficientes para a decisão, os elementos que estão disponíveis nos autos.

1.5. Convocada a secção criminal e notificados, o Ministério Público e o defensor, realizou-se a audiência, em conformidade com o disposto nos n.ºs 1, 2 e 3 do artigo 223.º do CPP.

Após, reuniu o tribunal para deliberar (artigo 223.º, n.º 3, 2.ª parte, do CPP), fazendo-o nos termos que seguem.

2. Fundamentação

2.1. Dados de facto.

2.1.1. Da petição, da informação a que se refere o artigo 223.º, n.º 1, do CPP e dos elementos/documentos juntos, resulta esclarecido, em síntese e no mais relevante para a decisão, que:

(i). O requerente, AA, é arguido nos autos principais de inquérito n.º 6/23.1PJLRS, do Departamento de Investigação e Ação Penal de ...;

(ii). Foi detido a 16.04.2024 e ouvido em 1º interrogatório judicial a 24.04.2024, nos termos do art.º 141º do Código de Processo Penal;

(iii). Realizado o primeiro interrogatório judicial de arguido detido, foi proferido o despacho judicial, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, que decidiu, além do mais, “sujeitar o arguido, para além do prestado TIR, à medida de coação de prisão preventiva e proibição de contactar por qualquer meio com os restantes arguidos e com as testemunhas já indicadas nos autos”.

(iv). Com data de 16.10.2024, nos autos de inquérito identificados supra, foi deduzida acusação imputando ao requerente a prática, em coautoria, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo art.º 21º e 24º do DL 15/93 de 22.01, por referência às tabelas anexa II-A e I-C, e art.º 14º e 26º do CP.

(v).A 18.10.2024, foi proferido despacho judicial de revisão do “estatuto coactivo” do requerente, mantendo-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva, e nessa data notificado, via email para o Estabelecimento Prisional.

(vi).Sendo do despacho de acusação notificado a 22.10.2024, como certificado.

(vii).Situação em que se mantém, de execução da medida de coação de prisão preventiva imposta ao requerente por este Despacho judicial.

2.2. Direito

2.2.1. No capítulo dos Direitos Liberdades e Garantias pessoais, prevê o art.º 27º da Constituição da Republica Portuguesa-CRP, sob a epígrafe “direito à liberdade e à segurança”, que todos têm direito à liberdade e à segurança, ninguém podendo ser total ou parcialmente privado da liberdade, a não ser em consequência de (i)sentença judicial condenatória pela prática de acto punido por lei com pena de prisão ou de (ii)aplicação judicial de medida de segurança.

O direito à liberdade é entendido como o direito à liberdade de movimentos, à liberdade ambulatória, à liberdade física, à livre circulação nas circunstâncias de tempo, modo e lugar que a cada cidadão aprouverem.

Constitui, assim, um direito fundamental dos cidadãos constitucionalmente garantido, ou uma garantia constitucional do direito à liberdade individual, mas também tutelado por instrumentos jurídicos internacionais aos quais Portugal está vinculado, como a Convenção Europeia dos Direitos Humanos-CEDH e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos-PIDCP.

O art.º 5º da CEDH, reconhece que “toda a pessoa tem direito à liberdade”, ninguém podendo ser privado da liberdade, salvo se for preso em cumprimento de condenação, decretada por tribunal competente, de acordo com o procedimento legal.

Reconhece que a pessoa privada da liberdade por prisão ou detenção tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, em curto prazo de tempo, sobre a legalidade da sua detenção e ordene a sua libertação, se a detenção for ilegal1.

E nos termos do art.º 9º do PIDCP prevê-se que, “todo o indivíduo tem direito à liberdade” pessoal. Proibindo a detenção ou prisão arbitrárias, estabelece que “ninguém poderá ser privado da sua liberdade, excepto pelos motivos fixados por lei e de acordo com os procedimentos nela estabelecidos”.

Determina, ainda, que, “toda a pessoa que seja privada de liberdade em virtude de detenção ou prisão tem direito a recorrer a um tribunal, a fim de que este se pronuncie, com a brevidade possível, sobre a legalidade da sua prisão e ordene a sua liberdade, se a prisão for ilegal.

Não sendo um direito absoluto, o direito a não ser detido, preso ou privado da liberdade, total ou parcialmente, o art.º 27º n.º 3 da CRP elenca os casos em que se pode ser privado da liberdade, o que consta, também, das alíneas a), b), c) d) e f) do n.º 1 do art.º 5º da CEDH, preceito, no qual se inspirou o art.º 27º da CRP2.

As condições e o tempo de prisão, são disciplinadas por lei, como previsto, ainda, pelo citado art.º 27º, n.º 3, da CRP.

Não sendo respeitadas ou sendo violadas, prevê a CRP e o CPP meios processuais de reacção a eventual detenção ou prisão ilegal.

Para além dos meios normais de reacção, (como a arguição de invalidade, reclamação ou recurso), preveem os artigos 31º da CRP e 222º do CPP, a providência de habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude por virtude de prisão ou detenção ilegais.

O artigo 31.º da Constituição da República Portuguesa-CRP, sob a epigrafe Habeas Corpus, dispõe que:

«1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.

2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.

3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.”

Consagra, pois, este preceito constitucional, o direito à providência de habeas corpus como direito fundamental contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegais.

Densificando o artigo 31.º n.º 1 da CRP, dispõe o artigo 222.º do CPP que:

“1 - A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.

2 - A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:

a) Ter sido efetuada ou ordenada por entidade incompetente;

b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou,

c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.”

O pedido de habeas corpus, no sentido da jurisprudência e doutrina, visa reagir contra o abuso de poder, por prisão ou detenção ilegal e constitui não um recurso, mas uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma e com fim cautelar, destinada a pôr termo no mais curto espaço de tempo a uma situação ilegal de privação de liberdade3.

E extraordinária porque singular, com finalidade e processamento próprios4.

A providência de habeas corpus, sobretudo no que aqui mais releva, não se destina a apreciar a validade e o mérito de decisões judiciais, a apurar se foram ou não observadas as disposições da lei do processo e se ocorreram ou não irregularidades ou nulidades resultantes da sua inobservância; trata-se de matérias para as quais se encontram legalmente previstos meios próprios de intervenção no processo, onde devem ser conhecidas, de acordo com o estabelecido nos arts. 118.º a 123.º, do CPP e por via de recurso para os tribunais superiores (art.º 399.º e ss., do CPP)5.

A concessão do habeas corpus pressupõe a atualidade da ilegalidade da prisão, reportada ao momento em que a petição é apreciada6, não se admitindo, no nosso regime constitucional e legal, habeas corpus preventivo.

O habeas corpus não exclui o direito ao recurso, nem é subsidiário do recurso, no sentido de apenas poder ser utilizado após se esgotarem outras formas de reação. Pode “coexistir”, com os demais meios judiciais comuns de reacção, como a arguição de invalidade, reclamação ou com o recurso7.

Não existe relação de litispendência ou de caso julgado entre o recurso e a providência de habeas corpus, como refere o artigo 219.º, n.º 2, do CPP.

Além disso, os motivos de «ilegalidade da prisão», como fundamento da providência de habeas corpus, têm de reconduzir-se à previsão das alíneas do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, de enumeração taxativa.

Assim, o STJ apenas tem de verificar, (a)se a prisão resulta de uma decisão judicial exequível, (b)se a privação da liberdade se encontra motivada por facto que a admite e (c)se estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados na lei ou em decisão judicial8.

E nos casos de abuso de poder, este há de ser facilmente perceptível dos elementos constantes do processo, há de tratar-se de um “erro grosseiro, patente e grave, na aplicação do direito”, em todas situações elencadas nas três alíneas do n.º 2 do art.º 222.º do CPP, entendimento que tem sido reiterado pela jurisprudência deste Supremo Tribunal de Justiça9.

2.2.2. Em relação a este caso, dispõe o art.º 215º do CPP, sob a epigrafe “prazos de duração máxima da prisão preventiva”, que:

«1 - A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:


a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;

c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1.ª instância;

d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.


2 - Os prazos referidos no número anterior são elevados, respetivamente, para
seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de máximo superior a 8 anos”, …
No caso em apreço, levando em conta o crime por que se encontra acusado o requerente e o disposto no n.º 2 do artigo 215.º, do CPP, o prazo de duração máxima da prisão preventiva sem que fosse deduzida acusação era de
seis meses, com o que, aliás, também o requerente concorda.

Tem sido entendimento pacífico, na jurisprudência deste Supremo Tribunal, que é a partir do momento do despacho judicial que aplica ao arguido a medida de coação de prisão preventiva que se contam os prazos máximos desta medida de coação correspondentes à fase pré-acusatória, e não do momento da detenção que o tenha precedido, como se decidiu nos Acs. deste STJ, de 19.07.2019, proferido no processo n.º 12/17.5JBLSB-L.S1, de 08.04.2020, de 11.11.2021, proc. 869/18.2JACBR-G.S1, de 20.12.021, proferido no processo n.º 543/19.2PALGS-D.S1 e 26.06.2024, proferido no proc. n.º 1529/23.8PFLRS-A.S1., posição com que o requerente parece também concordar.

Os dias de detenção em que tenha estado detido e que tenha precedido aquele despacho, contam-se como dias de detenção a descontar por inteiro, no cumprimento da pena nos termos do art.º 80º, n.º 1, do Código Penal.

Tem sido, igualmente, jurisprudência pacifica do Supremo Tribunal de Justiça, o entendimento de que, para a verificação do cumprimento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. a), do CPP, é relevante a data de dedução da acusação e não a notificação desta ao arguido, como decidido, entre muitos, nos acórdãos supra citados, e ainda, de 17.05.2023, proferido no proc. 3233/21.2T9VNF-J.S1, de 29.06.2023, proferido no proc. 787/22.0PBMTA-B.S1, e de 31.08.2023, proferido no proc. 442/23.3JABRG-B.S1.

Sendo, também, esta, a opinião da doutrina, não sendo julgada inconstitucional tal interpretação pelo Ac. do Tribunal Constitucional n.º 280/200810.

Como já referido, a acusação foi deduzida no dia 16.10.2024, ou seja, antes de completado o referido prazo de seis meses (que na pior das hipóteses, e como o recorrente admite e refere, teria de ser deduzida até 16.10.2024. Tal prazo completar-se-ia, pois, às 24,00 horas deste dia)11.

No dia 18.10.2024, a Mm.ª Juíza, referenciando a dedução de acusação pelo Ministério Publico, decidiu, por despacho, no sentido da manutenção da prisão preventiva, de que foi logo notificado.

Sendo o requerente notificado da acusação a 22.10.2024, como foi certificado na certidão junta.

Não se dizendo porque razão, só nesta data lhe foi notificada a acusação, também não cabem no âmbito da petição de Habeas Corpus, os atrasos ou irregularidades eventualmente cometidos, que deverão ser objecto de requerimento, reclamação ou eventual recurso, no tempo e sede própria.

Além disso, notificado o arguido da acusação, sanadas ficaram, quaisquer “irregularidades” que pudessem, eventualmente, ter-se verificado.

Assim, quando em 23.10.2024, o requerente deu entrada do requerimento de pedido de habeas corpus, estava perfeitamente regularizada a situação jurídico-processual do requerente, não se verificando qualquer motivo para invocar irregularidades e muito menos o pedido de habeas corpus.

E, com a dedução da acusação o prazo de duração máxima da prisão preventiva passou a ser o relativo à condenação em 1.ª instância, previsto no artigo 215.º, n.º 1, al. c) e 2, ou, sendo requerida a instrução, o do artigo 215.º, n.º1, al. b) e n.º 2, o que, no caso, está longe de se verificar.

2.2.3. Em suma, não se verifica qualquer das situações a que se referem as alíneas a), b) e c) do n.º 2 do art.º 222º, do CPP.

Verificando-se que a prisão preventiva, em que o peticionante atualmente se encontra, resulta de uma decisão judicial exequível, decisão proferida pelo juiz de instrução competente, que a privação da liberdade se encontra motivada por facto pelo qual a lei a admite e que estão respeitados os respetivos limites de tempo fixados por lei, carece a presente petição de habeas corpus de fundamento bastante.

3. Decisão

Pelo exposto, acorda-se em:

(i)-indeferir o pedido de habeas corpus apresentado por AA, por falta de fundamento bastante - artigo 223.º, n.º 4, al. a), do CPP;

(ii)-condenar o peticionante nas custas, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs, nos termos do artigo 8.º, n.º 9, e da Tabela III do Regulamento das Custas Processuais.


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Supremo Tribunal de Justiça, 31 de Outubro de 2024.

António Augusto Manso (relator)

Jorge Raposo (Adjunto)

Carlos Campos Lobo (Adjunto)

Nuno António Gonçalves (Presidente da secção)

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(1) - v. ac. do STJ, de 14.07.2021, proc. 2885/10.3TXLSB-AA.S1, www.dgsi.pt.

(2) - v. ac. do STJ, de 24.04.2024, Proc. n.º 2592.08.7PAPTM-C.S1, www.dgsi.pt.

(3) - v. ac. do STJ de 02.06.2021, 156/19.9T9STR-A.S1, www.dgsi.pt.)

(4) - Eduardo Maia Costa, 2016, p. 48, citado por Tiago Caiado Milheiro in Comentário Judiciário ao CPP, AAVV, Coimbra, Almedina, tomo III, em anotação ao art.º 222º do CPP.

(5) - ac. do STJ de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TDPRT-A.S1, www.dgsi.pt.

(6) – ac. do STJ de 22.03.2023, Proc. n.º 631/19.5PBVLG-MC.S1, in www.dgsi.pt.

(7) - ac. STJ de 19-11-2020 - A. Gama, citado por Tiago Caiado Milheiro, in Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, AA.VV., t. III, Coimbra, Almedina, 2022, p. 586)

(8) - ac. do STJ de 16.11.2022, proc. 4853/14.7TD PRT-A.S1, www.dgsi.pt

(9) – ac. do STJ de 20.11.2019, proc. n.º 185/19.2ZFLSB-A.S1,www.dgsi.pt.

(10) -v. Tiago Caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, AA.VV., Tomo III, Coimbra, Almedina, 2022, p. 592/593.

(11)- porquanto se trata de um prazo de natureza substantiva, devendo computar-se nos termos dos artigos 296.º e 279.º, do Código Civil como se diz no citado acórdão do STJ de 11.11.2021.