Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª. SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA CLARA SOTTOMAYOR | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL RESPONSABILIDADE CIVIL POR FACTOS ILÍCITOS DIREITOS DE PERSONALIDADE DOENÇA MENTAL | ||
Data do Acordão: | 07/14/2016 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA | ||
Área Temática: | DIREITO CIVIL - RELAÇÕES JURÍDICAS / PESSOAS SINGULARES / DIREITOS DA PERSONALIDADE - DIREITO DAS OBRIGAÇÕES / FONTES DAS OBRIGAÇÕES / RESPONSABILIDADE CIVIL ( POR FACTOS ILÍCITOS ). DIREITO PROCESSUAL CIVIL - PROCESSOS ESPECIAIS / PROCESSO DE TUTELA DA PERSONALIDADE. DIREITO BIOMÉDICO - LEI DA SAÚDE MENTAL / INTERNAMENTO COMPULSIVO. | ||
Doutrina: | - Angelo Venchiarutti, La protezione Civilistica, 521, apud Henrique Sousa Antunes, Responsabilidade civil dos obrigados à vigilância…ob. cit., 287. - Capelo de Sousa, O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, 475. - Esther Gómez Calle, La Responsabilidad Civile de los Padres, Madrid, 1992, 172. - H. E. Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português, Teoria Geral do Direito Civil Português, Coimbra, 2000 (reimpressão de 1992), 258, n.º 423. - Henrique Sousa Antunes, Responsabilidade civil dos obrigados à vigilância de pessoa naturalmente incapaz, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2000, 287, 302, 306. - Jérôme Favrod e Agnes Maire, Recuperar da esquizofrenia, Guia prático para profissionais, Lusociência, 2014, 2, 5, 146-147. - João Paulo Remédio Marques, «Alguns aspectos da tutela da personalidade humana no novo código de processo civil de 2013», texto disponível in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Reforma_do_processo_civil.pdf . - Maria de Fátima Ribeiro, Anotação ao Artigo 70.º, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, 172, nota 6. - Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2.ª edição, 2007, 121. - Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 2005, 210. - Paulo Ferreira da Cunha, Direito Constitucional Aplicado, Coimbra, 2007, 220-222. - Pedro Pais de Vasconcelos, Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª edição, Almedina, Coimbra, 2015, 46. - Pires de Lima/Antunes Varela, “Código Civil” Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra, 490. - Tiago Soares da Fonseca, «Da tutela judicial dos direitos de personalidade», R.O.A., ano 66, Janeiro 2006, 255. | ||
Legislação Nacional: | CÓDIGO CIVIL (CC): - ARTIGOS 70.º, N.ºS 1 E 2, 483.º, N.º1, 488.º, N.º2, 489.º, 491.º, 493.º, N.ºS 1 E 2. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL (CPC): - ARTIGO 878.º E SS.. LEI DE SAÚDE MENTAL, LEI N.º 36/98, DE 24 DE JULHO: - ARTIGOS 12.º, 13.º, 22.º, 23.º. | ||
Sumário : | I - O disparo de projéteis, com arma de caça, na janela do autor e do seu filho menor é um facto voluntário, ilícito e culposo do réu, ao abrigo do art. 483.º, n.º 1 do Código Civil, uma vez que não ficou provada a sua inimputabilidade no domínio da responsabilidade civil. II - As providências previstas no art. 70.º, n.º 2 do Código Civil visam a proteção dos direitos de personalidade (p. ex. direito à vida, direito à integridade física e pessoal, direito à liberdade e direito à tranquilidade da vida familiar) contra uma ameaça de ofensa (providências preventivas) ou a atenuação, dentro do possível, dos efeitos de ofensa já consumada (providências atenuantes), e podem funcionar mesmo em situações puramente objetivas, independentemente de culpa do agente. III – É inerente à aplicação destas providências um conflito ou colisão de direitos de personalidade ou um problema de determinação do conteúdo e limites dos direitos de personalidade invocados pelas partes, havendo que proceder a um juízo de ponderação de bens e de concordância prática. IV – De acordo com uma lógica de concordância prática, a providência proibitiva imposta ao réu de permanecer em local público ou privado a uma distância de 500 m do Autor e do seu filho e dos seus bens, inclusivamente de ficar ou permanecer na casa onde os seus pais habitam, acompanhada de institucionalização do réu, sem ter por pressuposto parecer médico e sem limitação temporal, é demasiado drástica e severa para os direitos do réu à vida familiar e à autodeterminação, enquanto pessoa portadora de doença mental. V - Sendo o réu portador de uma doença mental de esquizofrenia paranóide, a sua institucionalização só pode ser decretada ao abrigo da lei de saúde mental, num processo de internamento compulsivo, sujeito a determinados pressupostos, de acordo com a especificidade da doença que o afeta e respeitando as suas necessidades de tratamento e de recuperação, pelo que não decretamos a institucionalização do réu e revogamos as providências definidas pelo acórdão recorrido ao abrigo do art. 70.º, n.º 2 do Código Civil. | ||
Decisão Texto Integral: |
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça:
I – Relatório
AA, divorciado, militar na reserva, residente na Av. ..., intentou em 5 de Agosto de 2014 ação declarativa de condenação contra BB, solteiro, repositor, residente na Av. … (casa dos pais), pedindo: a) Que o Réu seja proibido de permanecer em local público ou privado a uma distância de 500 m do Autor e do seu filho e dos seus bens, inclusivamente de ficar ou permanecer na casa onde os seus pais CC e DD habitam, dada a proximidade com a casa do Autor. b) Que o Réu seja proibido de se aproximar do Autor e de seu filho, seja em lugar de convívio, café ou via pública a uma distância de 500 m, sob pena de pagar ao Autor uma indemnização igual ou superior a 5.000.00 Euros. c) Em caso de não cumprimento das medidas acima referidas ser o Réu condenado no crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º do Código Penal. d) Que o Réu seja condenado a pagar todos os danos causados no imóvel, propriedade do Autor, que virão a ser contabilizados em liquidação de sentença. e) Que o Réu seja condenado numa indemnização a título de danos morais num valor não inferior a 2.500.00 Euros.
Para tal alega, em síntese:
1- O Autor é proprietário do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n° 0068 da freguesia de ..., lote 01. 2- No referido prédio, existem várias casas térreas, sendo o Autor proprietário de todas as casas, conforme consta do doc. 2, - Prédio U-005, Prédio U-004, Prédio U-003, Prédio U-001, Prédio U-0005, Prédio U-002. 3- O Autor vive atualmente no prédio U-003, Vivenda .... 4- O Prédio n° 6 - U-002 (casa 2) é propriedade do Autor e encontra-se arrendado aos pais do Réu CC e DD, que moram na vivenda n° 2, do referido lote 01. 5- O Réu sempre viveu com os seus pais até à maioridade, tendo-se ausentado da casa dos seus pais durante 3 anos. 6- No dia 8 de Fevereiro de 2014, pelas 14 horas, à porta da casa dos seus pais que são arrendatários do Autor, o Réu começou a ameaçar o Autor, proferindo a seguinte frase: «que a Polícia o ia buscar, eu tenho uma moradia de dois milhões de Euros na ... e estou aqui fechado neste quintal». 7- O Autor sabendo que o Réu é pessoa conflituosa e tinha já internamentos por problemas psicológicos não respondeu e abandonou o local. 8- Quando chegou, no mesmo dia, a casa, por volta das 21 horas, constatou que tinha os vidros partidos da janela do seu quarto, bem como a persiana e os vidros da janela do quarto do seu filho, estando também a parede esburacada em consequência de ter sido atingida por dois projéteis. 9- O Autor, perante tais factos, foi perguntar o que se tinha passado, e encontrou outro arrendatário EE, que habita na casa 4, a quem perguntou se sabia o que se tinha passado. 10- Este indivíduo relatou ao Autor que tinha ouvido tiros e tendo avistado o CC, perguntou-lhe o que se passava, ao que o mesmo respondeu "qual é o problema, estava a experimentar a caçadeira". 11- O Autor teve conhecimento que posteriormente lhe foram apreendidas armas, porque o pai do Réu BB era caçador e até o Réu tinha licença para uso e porte de armas de caça. 12- O Autor posteriormente contactou com a GNR que elaborou o Auto, tendo o Réu nesse dia desaparecido do local com a família só tendo sido localizado e identificado no dia seguinte. 13- O Réu após ter efetuado os disparos contra o quarto do filho do Autor, foi entregar a arma a um amigo, FF, que é Militar da GNR. 14- Este, mais tarde, entregou a referida arma junto das autoridades, afirmando que desconhecia os factos praticados pelo Réu CC, tendo de imediato entregue a referida arma no posto da GNR. 15- O Réu assumiu ter efetuado os disparos contra a residência do Autor em conversa com o seu vizinho EE, confirmando que estava a "testar a arma". 16- A arma utilizada pelo Réu encontra-se apreendida e está a correr um processo neste Tribunal pelos factos praticados pelo Arguido. 17- Até ao momento o Autor não reparou a persiana, nem a janela, nem a parede onde são visíveis as marcas das balas. 18- O Autor é divorciado e tem um filho, GG, com 11 anos, que passa com o mesmo fins-de-semana e outros dias de semana, assim como férias e feriados e dias de aniversário, conforme fixado em Acordo do Exercício do Poder Paternal, que correu termos no processo 178 de 2006 na Conservatória do Registo Civil do ... e já transitada em Julgado em 08/11/2006 (Doc. 4) 19- Após a ocorrência destes factos, o menor recusa-se a ficar em casa do pai, não podendo este omitir a situação e temendo não só pela sua vida como pela vida do seu filho. 20- Estes factos obrigam o Autor a ir ao ..., desde Fevereiro de 2014, para estar com o menor, onde este reside com a mãe, não podendo passar os fins-de-semana e férias com o menor na sua casa. 21- O Réu continua a viver em casa dos pais e continua a ter uma atitude ameaçadora com o Autor. 22- O Autor teme pela sua vida, pela do seu filho e até pelos demais inquilinos que vivem no lote 01. 23- O Réu tem problemas psiquiátricos graves e já esteve internado devido a tais problemas, tendo já sido internado no Hospital Garcia de Orta na especialidade de psiquiatria. 24- O Réu já esteve internado no ano de 2006, no Hospital Miguel Bombarda e posteriormente no Hospital Garcia de Orta em Almada, no entanto, o mesmo não toma medicação, o que o torna mais perigoso, não só para o Autor e sua família, como para a comunidade em geral. 25- Perante os factos praticados pelo Réu, a sua mãe DD pediu o internamento compulsivo no Processo n° 45/14.3GBSXL-1ª Secção, que corre termos neste Tribunal, o que até agora não aconteceu. 26- O Réu, para agravar a sua situação clínica, não toma a medicação e ingere álcool, o que o torna mais perigoso e imprevisível, o que constitui um perigo para a comunidade. 27- O Réu sofre de esquizofrenia com comportamento delirante e paranóide, abusando do consumo do álcool. 28- O Réu abandonou o centro de dia onde estava a ser acompanhado, tendo a própria mãe DD assumido que o filho não toma medicação. 29- Está a correr processo contra o Réu na 1ª Secção do MP sob o n° 45/14.3GBSXL- 1ª Secção. 30- No entanto, o Autor teme que a delonga de tal processo, acarrete um perigo não só para si e para a sua família, mas também para todos os que vivem no lote 01, que temem pela sua integridade física, devido à personalidade do Réu. 31- O Autor está inibido de poder ficar com o seu filho em segurança em sua casa e de poder usufruir dos seus direitos como pai. 32- A proximidade entre a casa do Autor e a casa que os pais do Réu habitam é "porta com porta". 33- Não obstante, a mãe do Réu requerer o internamento compulsivo do seu filho, certo é que o mesmo permanece em casa dos pais onde toma as refeições e dorme, entrando e saindo do lote 01, sem quaisquer restrições. 34- As autoridades policiais, embora tenham feito as diligências devidas, não podem dar segurança ao Autor diariamente, nem ao seu filho, nem aos demais vizinhos que habitam perto de casa onde os pais do Réu habitam. Dos danos morais 35- O Autor vive em ansiedade e depressão, desde que tais factos ocorreram, agravadas pelas circunstâncias de não estar com o filho como fazia anteriormente. 36- O filho do Autor tinha vontade e adorava estar na casa do pai, no seu quarto, com os seus brinquedos e livros e estar com a sua avó paterna, não o podendo fazer após a ocorrência de tais factos. 37- O Autor teme pela sua vida e pela do seu filho e da sua mãe, pessoa de idade e que também vive nas proximidades, bem como de todas os que vivem no lote 01. 38- O Autor em virtude do comportamento do Réu que disparou contra o quarto do filho é obrigado a deslocar-se ao ... para estar com o menor. 39- O artigo 70° do Código Civil consagra que a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça à sua personalidade física e moral. 40- Os artigos 25.º e 26.º da Constituição da República Portuguesa consagram o direito à integridade pessoal e ao desenvolvimento da personalidade. 41- O artigo 27.º n° 1, da Constituição da Republica Portuguesa, consagra o direito à segurança.
O Réu regularmente citado na sua pessoa, por carta registada com a/r, que assinou, veio, com apoio judiciário, contestar a ação.
Como questão prévia suscita o Réu a pretensão dos presentes autos aguardarem o desfecho de uma alegada ação de interdição que corre contra o Réu sob o nº 45/14.3GBSXL. Este pedido foi indeferido, por não se tratar de uma ação de interdição mas sim de um processo-crime pelo mesmo episódio onde o aqui Réu é acusado pela prática de um crime de dano com arma de fogo.
O réu arguiu uma exceção dilatória que foi indeferida por decisão de 3-2-2015 com a refª 330453628. Aceita o que se alega nos artigos 1 a 4 da p.i., e impugna a factologia dos demais. Explica assim os acontecimentos: Quanto ao alegado em 6 da p.i., na realidade, o Autor questionou o aqui Réu sobre quando o mesmo deixaria o quintal e a casa arrendada pelos pais. O Réu limitou-‑se a responder de forma civilizada, não dando azo a mais conversa com o Autor. Quanto ao alegado em 8 da p.i., o Réu admite como parcialmente verdadeira a alegação. Explica ser proprietário de uma arma de caça, estando munido da respetiva licença de uso e porte e da apólice de seguro nº 0000000835, da SEGURO HH, que cobre a responsabilidade civil de caçador e o uso e porte ou detenção de arma de caça (doc. n.º 1). No dia 8 de Fevereiro de 2014, o Réu encontrava-se no quintal da casa dos seus pais a proceder à limpeza e manutenção da sua arma. Quando acidentalmente atingiu a tiro a persiana e os vidros de uma das janelas da casa do Autor. O Réu tem consciência que o acidente em questão provocou danos materiais na janela atingida. Razão pela qual se dirigiu à sua seguradora a fim de acionar o seguro de responsabilidade civil da arma de caça em questão. A seguradora requereu que o Autor entregasse um orçamento relativamente às reparações necessárias. O Autor já procedeu à entrega do documento solicitado, estando neste momento a aguardar uma resposta por parte da sua companhia de seguros. A reparação dos estragos causados está orçada em € 95,00 (noventa e cinco euros) acrescidos de IVA, conforme documento que ora se junta (doc.l). Nunca foi intenção do Réu disparar contra a habitação do Autor, razão pela qual impugnou o número 21 da p.i., visto que carece de fundamento. O incidente com a caçadeira foi ato isolado não havendo comportamentos, anteriores ou posteriores, do Réu que sustentem o receio alegado pelo Autor. Ademais, o Réu é um membro inserido na sociedade. Inexiste razão para os danos não patrimoniais peticionados pelo Autor porque inexiste dolo ou negligência grosseira que determinando a ilicitude do facto sejam merecedores de reparação. Acresce que é pedido que o Réu seja proibido de ficar ou permanecer na casa onde habitam os seus pais, atenta à proximidade com a casa do Autor. Porém, o Réu não tem condições próprias de subsistência, dependendo economicamente dos seus pais, uma vez que o seu trabalho é precário, desempenhando funções em part-time e auferindo a retribuição mensal não superior a € 250,00 (doc. n.º 3). O Réu tem mais familiares, nomeadamente irmãos, mas estes têm as respetivas vidas familiares organizadas, não tendo capacidade para receber mais um elemento em suas casas. Pelo que o Réu não tem alternativa e tem de morar com os seus pais. Juntou documentos. Entre eles um certificado de seguro de uma arma de caça marca Browning, com início às 0:00h de 1-4-2014 e termo às 24:00h de 31-5-2015, com a franquia mínima por sinistro de € 125,00. Destes documentos resulta que este seguro não cobre os eventuais danos dos acontecimentos dos autos, atenta a data destes, conforme alertou o Autor em tomada de posição constante de fls. 71.
O referido documento nº 3, para prova da remuneração mensal, nunca chegou a ser junto ao processo.
Relativamente à arma de fogo consta dos autos – cfr. fls. 77, que, efetivamente ao tempo da alegação, o Réu era proprietário de uma espingarda marca Browning, modelo Gold, calibre 12, de funcionamento semi-automático, para cujo porte e uso estava licenciado. Depois dos acontecimentos dos autos teve lugar um processo de cassação da licença. A arma foi apreendida, recuperada, e promoveu-se a declaração da sua perda a favor do Estado.
O objeto do processo foi alargado, tendo-se aditado dois factos, ao abrigo do artigo 5º, 2, b) do CPC - decisão de 3-2-2015 com a refª 330453628 – com o seguinte teor: Na acusação do processo-crime, por dano decorrente do disparo dos projéteis, o MP fez constar na descrição dos factos que «à data dos factos o arguido padecia de doença do foro mental "Esquizofrenia Paranóide" e no momento da sua prática encontrava-se em estado psicótico de contacto com a realidade, não lhe sendo possível distinguir a ilicitude dos factos praticados» e «Por esta razão, o arguido não teve o discernimento necessário para avaliar a gravidade dos seus actos».
Saneou-se a causa. Identificou-se o objeto do litígio e enunciaram-se os temas da prova. Em audiência de discussão e julgamento, foram juntas aos autos as fichas clínicas do Réu elaboradas na consulta externa de Psiquiatria no Hospital Garcia de Orta, assim como o relatório pericial psiquiátrico elaborado para o processo-crime em que o aqui Réu é arguido pelo mesmo episódio - p. nº 45/14.3GBSXL. Trata-se de relatório e conclusões elaborados no Serviço de Clínica Forense do Gabinete ML da Península de Setúbal. Foram os documentos notificados às partes – ata a fls. 94 – 1ª linha. Como se alcança da gravação da prova, as partes tiveram conhecimento concreto de tais documentos, já após a inquirição das testemunhas.
A audiência de discussão e julgamento foi gravada.
Foi proferido despacho sobre a matéria de facto provada e não provada.
Proferiu-se decisão de mérito que, a final, julgou a ação improcedente, absolveu o Réu dos pedidos e condenou o Autor nas custas.
Inconformado, recorre o Autor, recurso admitido como de apelação, a subir imediatamente, nos próprios autos, e efeito meramente devolutivo.
Foi proferida decisão singular do Relator, com a seguinte parte dispositiva:
«Julga-se a acção parcialmente procedente e em consequência, no que se condena: a) o Réu fica proibido de permanecer em local público ou privado a uma distância de 500 m do Autor e do seu filho e dos sem bens, inclusivamente de ficar ou permanecer na casa onde os seus pais CC e DD habitam, atenta à proximidade com a casa do Autor. b) o Réu fica proibido de se aproximar do Autor e de seu filho, seja em lugar de convívio, café ou via pública a uma distância de 500 m, sob pena de pagar ao Autor uma indemnização igual ou superior a 1.000.00 Euros. c) em caso de não cumprimento das medidas de a) e b)- onde se não inclui para estes efeitos o pagamento da indemnização - acima referidas o Réu pode vir a ser condenado no crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º do Código Penal. d) o Réu vai condenado a pagar todos os danos causados no imóvel, propriedade do Autor, que virão a ser contabilizados em liquidação de sentença. O Réu vai absolvido do demais peticionado.
Custas na 1ª instância (…).
Transitada, comunique-se, a fim de serem tomadas providências adequadas de acompanhamento, à força policial da área de residência do Réu, à Segurança Social, ao Serviço Hospitalar onde o Réu vem sendo assistido melhor identificado nos elementos clínicos juntos, e à Câmara Municipal da área de residência do Réu, sobretudo ainda em ordem a providenciar-se pela urgente institucionalização do Réu».
Tendo o Réu reclamado para a Conferência, foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação que julgou confirmada a decisão singular.
Inconformado, recorre o Réu para este Supremo Tribunal de Justiça, apresentando as seguintes conclusões: «1. Andou mal o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa ao efetuar uma errada interpretação do artigo que prevê o regime de inimputabilidade, revogando assim a decisão do Tribunal da 1.ª instância. 2. O Tribunal “a quo” dá como provado, e bem, que o Recorrente padece de esquizofrenia com comportamentos delirantes e paranóides. 3. Sendo esta uma doença do foro psiquiátrico e que tem como consequência “uma perda de contacto com a realidade (psicose), alucinações, delírios (crenças falsas), pensamento anormal e alteração do funcionamento social e laboral” (vide Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 02/04/2009). 4. O Tribunal “a quo” dá ainda como provado que doença retroage a data bastante anterior à data dos factos ora em litígio. 5. Referindo que o mesmo esteve internado no ano de 2006 no Hospital Miguel Bombarda e posteriormente no Hospital Garcia de Orta. 6. Considera, no entanto, o Tribunal “a quo” que pese embora seja o recorrente esquizofrénico, o mesmo não está considerado inimputável. 7. Decisão essa que, salvo o devido respeito, não resulta de uma correta interpretação do artigo 448.º do Código Civil.
Senão vejamos,
8. Resulta de tal artigo que a regra geral no nosso ordenamento jurídico é a imputabilidade do agente, sendo este responsável pelas consequências dos próprios actos. 9. No entanto, esta regra pode ser afastada quando se encontrem preenchidos os requisitos previstos no n.º 1 do artigo 488.º CC. 10. A saber: a) O agente se encontre incapacitado de entender ou querer no momento da prática do facto, 2) tal incapacidade não tenha sido provocada culposamente pelo agente e 3) e esta não seja transitória. 11. Ora, a esquizofrenia é uma doença do foro psiquiátrico que afecta a percepção do indivíduo, não tendo este real noção do seu comportamento e das consequências dos seus actos. 12. Tal perda de noção é uma consequência directa da doença em causa e, como tal, alheia à vontade do indivíduo. 13. Esta doença não tem até ao momento cura, pelo que o indivíduo que padeça da mesma se encontra permanente neste estado. 14. Resulta claro, assim, que o Recorrente preenche os três requisitos legalmente previstos para a inimputabilidade, visto que no momento da prática do facto o mesmo padecia de esquizofrenia com comportamentos delirantes e paranóides, não tendo capacidade para entender ou querer, não se tendo colocando culposamente e transitoriamente nesse estado. 15. Por outro lado, o n.º 2 do mesmo artigo estabelece como regra geral a presunção da inimputabilidade aos menores de sete anos e aos interditos por anomalia psíquica. 16. Não esgotando, porém, naqueles, os casos em que a inimputabilidade pode ser decretada. 17. O que tal disposição faz é tão-somente elencar duas situações em que há à partida tal presunção, sendo no entanto esta também ela ilidível mediante prova bastante em contrário. 18. Pelo que, salvo melhor opinião, a inimputabilidade deve ser aferida mediante os critérios do n.º1, o que permite que não só os menores de sete anos e os interditos por anomalia psíquica sejam inimputáveis. 19. Nestes termos, salvo o devido respeito, andou mal o Tribunal “a quo” na interpretação que fez desta norma, o que levou a uma decisão que, salvo melhor opinião, para além de violar a norma legal aplicável, prejudica gravemente os direitos do Recorrente a uma vida condigna e junto da sua família. 20. Termos em que, se requer a revogação da decisão proferida pelo Tribunal “a quo”, sendo confirmada a decisão da 1.ª instância, e consequentemente, seja o Recorrente considerado como inimputável, improcedendo, consequentemente todos os pedidos do Autor».
Sabido que, ressalvadas as questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões do recorrente que se define o objeto do recurso, são duas as questões a decidir: I – Requisitos da inimputabilidade nos termos do art. 488.º do Código Civil; II – Providências adequadas para evitar a consumação de ameaças à personalidade física e moral, ao abrigo do art. 70.º, n.º 2 do Código Civil.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II - Fundamentação de facto
No Tribunal da Relação, após modificação dos factos, dão-se como provados e não provados os seguintes factos:
«FACTOS DA PETIÇÃO INICIAL DADOS COMO PROVADOS: 1- O Autor é proprietário do prédio descrito na Conservatória do Registo Predial do ... sob o n° 0068 da freguesia de ..., lote 01. - facto admitido por acordo – artigo 10º da contestação - 2- No referido prédio, existem várias casas térreas, sendo o Autor proprietário de todas as casas, conforme consta do doc. 2 junto com a pi, - Prédio U-005, Prédio U-004, Prédio U-003, Prédio U-001, Prédio U-0005, Prédio U-002. - facto admitido por acordo – artigo 10º da contestação - 3- O Autor vive actualmente no prédio U-003, Vivenda .... - facto admitido por acordo – artigo 10º da contestação - 4- O Prédio n° 6 - U-002 (casa 2) é propriedade do Autor e encontra-se arrendado aos pais do Réu CC e DD, vivendo na vivenda n° 2, do referido lote 01. - facto admitido por acordo – artigo 10º da contestação - 5- O Réu sempre viveu com os seus pais até à maioridade, tendo-se ausentado da casa dos seus pais durante 3 anos. - facto resultante da globalidade dos depoimentos orais produzidos - 6- No dia 8 de Fevereiro de 2014, pelas 14 horas, à porta da casa dos seus pais que são arrendatários do Autor, o Réu começou a ameaçar o Autor, proferindo a seguinte frase: que a Polícia vai-te buscar; eu tenho uma moradia de dois milhões de Euros na ... e estou aqui fechado neste quintal. - vide página 126 a 127 do Relatório Pericial Psiquiátrico, declarações do Autor em audiência de Julgamento - 7- O Autor sabendo que o Réu é pessoa conflituosa e tinha já internamentos por problemas psicológicos não respondeu e abandonou o local. - facto resultante das declarações do Autor na audiência - 8- Quando chegou, no mesmo dia, a casa, por volta das 21 horas, constatou que tinha os vidros partidos da janela do seu quarto, tendo também atingido a persiana e os vidros da janela do quarto do seu filho, estando também a parede esburacada em consequência de ter sido atingida por dois projécteis. - facto resultante da globalidade dos depoimentos orais produzidos - 9- O Autor, perante tais factos, foi perguntar o que se tinha passado, e encontrou outro arrendatário EE, que habita na casa 4, se sabia o que se tinha passado. - facto resultante das declarações do Autor e do depoimento da testemunha EE - 10- Este indivíduo relatou ao Autor que tinha ouvido tiros e tendo avistado o CC, perguntou-lhe o que se passava, ao que o mesmo respondeu "qual é o problema, estava a experimentar a caçadeira". - facto resultante das declarações do Autor e do depoimento da testemunha EE - 11- O Autor teve conhecimento de que posteriormente lhe foram apreendidas armas, porque o pai do Réu BB era caçador e até o Réu tinha licença para uso e porte de armas de caça. - facto resultante da globalidade dos depoimentos orais produzidos - 12- O Autor posteriormente contactou com a GNR que elaborou o Auto, tendo o Réu nesse dia desaparecido do local com a família só tendo sido localizado e identificado no dia seguinte. - provado conforme certidão de fls. 78 e declarações do Autor - 13- O Réu posteriormente, a ter efectuado os disparos contra o quarto do filho do Autor, foi entregar a arma a um amigo, FF, que é Militar da GNR. - provado conforme certidão de fls. 78, depoimento da testemunha EE e declarações do Autor- 14- O mesmo mais tarde entregou a referida arma junto das autoridades, afirmando que desconhecia os factos praticados pelo Réu CC, tendo de imediato entregue a referida arma no posto da GNR. – provado conforme certidão de fls. 78 - 15- O Réu assumiu ter efectuado os disparos contra a residência do Autor em conversa com o seu vizinho EE, confirmando que estava a "experimentar a caçadeira". - facto resultante das declarações do Autor e do depoimento da testemunha EE - 16- A arma utilizada pelo R. encontra-se apreendida e está a correr um processo neste Tribunal pelos factos praticados pelo Arguido. - provado conforme certidão de fls. 78 - 17- Até ao momento o Autor não reparou a persiana, nem a janela, nem a parede onde são visíveis as marcas das balas. - facto resultante da globalidade dos depoimentos orais produzidos - 18- O Autor é divorciado e tem um filho, GG, com 11 anos que passa com o mesmo fins de semana e outros dias de semana, assim como férias e feriados e dias de aniversário, conforme fixado em Acordo do Exercício do Poder Paternal, que correu termos no processo 178 de 2006 na Conservatória do Registo Civil do ... e já transitada em Julgado em 08/11/2006. (Doc. 4) . – provado conforme acta da conferência e acordo de fls. 17 a 19 - 19- Após a ocorrência destes factos, o menor recusa-se a ficar em casa do pai, não podendo este omitir a situação e temendo não só pela sua vida como pela vida do seu filho. - facto resultante dos depoimentos do Autor e testemunhas EE e II - 20- Estes factos obrigam o Autor a ir ao ... desde Fevereiro de 2014, para estar com o menor, onde este reside com a mãe, não podendo passar os fins-de-semana e férias com o menor na sua casa. - facto resultante dos depoimentos do Autor e testemunhas EE e II - 21- O Réu continua a viver em casa dos pais e continua a ter uma atitude ameaçadora com o Autor. - facto resultante dos depoimentos do Autor e testemunhas EE, II e JJ - 22- O Autor teme pela sua vida, pela do seu filho e até pelos demais inquilinos que vivem no lote 71. - facto resultante dos depoimentos do Autor e testemunhas EE e II - 23- O Réu tem problemas psiquiátricos graves e já esteve internado devido a tais problemas, tendo já sido internado no Hospital Garcia de Orta na especialidade de psiquiatria. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunhas EE, II e JJ, documentos clínicos e exame pericial - 24- O Réu já esteve internado no ano de 2006, no Hospital Miguel Bombarda e posteriormente no Hospital Garcia de Orta em Almada, no entanto, o mesmo não toma medicação o que o torna mais perigoso, não só para o Autor e sua família, como para a comunidade em geral. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunhas EE, II e JJ, documentos clínicos e exame pericial - 26- O Réu para agravar a sua situação clínica não toma a medicação e ingere álcool o que o torna mais perigoso e imprevisível, o que constitui um perigo para a comunidade. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunha EE, documentos clínicos e exame pericial - 27- O Réu sofre de esquizofrenia com comportamento delirantes e paranóide, abusando do consumo do álcool. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunha EE, documentos clínicos e exame pericial - 28- O Réu abandonou o centro de dia onde estava a ser acompanhado, tendo a própria mãe DD assumido que o filho não toma medicação. - facto resultante dos documentos clínicos e exame pericial - 29- Está a correr processo contra o Réu na 1ª Secção do M. P. sob o n° 45/14.3GBSXL- 1ª Secção. - provado conforme certidão de fls. 77 e ss - 30- No entanto, o Autor teme que a delonga de tal processo, acarrete um perigo não só para si e para a sua família e todos os que vivem no lote 71, temem pela sua integridade física, devido à personalidade do Réu. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunhas EE e II - 31- O Autor está inibido de poder ficar com o seu filho em segurança em sua casa e poder usufruir dos seus direitos como pai. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunhas EE e II - 32- A proximidade entre a casa do Autor e a casa que os pais do Réu habitam é "porta com porta". - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunhas EE e II - 33- O Réu permanece em casa dos pais onde toma as refeições e dorme, entrando e saindo do lote 01, sem quaisquer restrições. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunhas EE, JJ e II - 34- As autoridades policiais, embora tenham feito as diligências competentes, não podem dar segurança ao Autor diariamente, nem ao seu filho, nem aos demais vizinhos que habitam perto de casa onde os pais do Réu habitam. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunhas EE e II - 35- O Autor vive em ansiedade e depressão desde que tais factos ocorreram agravado pelas circunstâncias de não estar com o seu filho como fazia anteriormente. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunhas EE e II - 36- O filho do Autor tinha vontade e adorava estar na casa do pai, no seu quarto, com os seus brinquedos e livros e estar com a sua avó paterna, não o podendo fazer após a ocorrência de tais factos. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunhas EE e II - 37- O Autor teme pela sua vida e pela do seu filho e da sua mãe, pessoa de idade e que também vive nas proximidades, bem como de todas os que vivem no lote 01. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunhas EE e II - 38- O Autor em virtude do comportamento do Réu que disparou contra o quarto do filho é obrigado a deslocar-se ao ... para estar com o menor. - facto resultante dos depoimentos do Autor, testemunhas EE e II -
FACTOS DA CONTESTAÇÃO DADOS COMO PROVADOS:
O Réu tem consciência que o acidente em questão provocou danos materiais na janela atingida. – facto confessado pelo Réu no artigo 19º da contestação –
FACTOS QUE RESULTAM DA INSTRUÇÃO DA CAUSA COM INTERESSE PARA OS FACTOS DADOS COMO PROVADOS: Com interesse resulta do relatório pericial – cfr. fls. 92 – que existe por parte do Réu sério risco de abandono da terapêutica instituída e consequente agravamento da patologia psiquiátrica, podendo vir a oferecer perigo não só para o próprio como para terceiros.
FACTOS DA PETIÇÃO INICIAL DADOS COMO NÃO PROVADOS: 25- Perante os factos praticados pelo Réu, a sua mãe DD pediu o internamento compulsivo no Processo n° 45/14.3GBSXL-1ª Secção, que corre termos neste Tribunal, o que até agora não aconteceu. - por falta de prova -
FACTOS DA CONTESTAÇÃO DADOS COMO NÃO PROVADOS:
Por falta de prova testemunhal e/ou documental não se provam os seguintes factos da contestação:
-No dia 8 de Fevereiro de 2014, o Réu encontrava-se no quintal da casa dos seus pais a proceder à limpeza e manutenção da sua arma. Quando acidentalmente atingiu a tiro a persiana e os vidros de uma das janelas da casa do Autor. O Réu dirigiu-se à sua seguradora a fim de accionar o seguro de responsabilidade civil da arma de caça em questão. A seguradora requereu que o Autor entregasse um orçamento relativamente às reparações necessárias. O Autor já procedeu à entrega do documento solicitado, estando neste momento a aguardar uma resposta por parte da sua companhia de seguros. -A reparação dos estragos causados está orçada em € 95,00 (noventa e cinco euros) – o Réu não fez prova deste valor e o doc. de fls. 55 junto para prova do facto não se lhe refere sequer - - Nunca foi intenção do Réu disparar contra a habitação do Autor. - O incidente com a caçadeira foi acto isolado não havendo comportamentos, anteriores ou posteriores, do Réu que sustentem o receio alegado pelo Autor. - Porém, o Réu não tem condições próprias de subsistência, dependendo economicamente dos seus pais, uma vez que o seu trabalho é precário, desempenhando funções em part-time e auferindo a retribuição mensal não superior a € 250,00 (doc. n.º 3). O Réu tem mais familiares, nomeadamente irmãos, mas estes têm as respectivas vidas familiares organizadas, não tendo capacidade para receber mais um elemento em suas casas. Pelo que o Réu não tem alternativa e tem de morar com os seus pais.
FACTOS DA DECISÃO DE 3-2-2015 com a refª 330453628 DADOS COMO NÃO PROVADOS:
No momento da prática dos actos referidos o Réu encontrava-se em estado psicótico de contacto com a realidade, não lhe sendo possível distinguir a ilicitude dos factos praticados. Não teve o discernimento necessário para avaliar a gravidade dos seus actos».
III – Fundamentação de direito
1. Trata-se de uma ação de responsabilidade civil por factos ilícitos, em que o autor pede uma indemnização por danos patrimoniais e não patrimoniais ao réu, a quem foi diagnosticada uma esquizofrenia (facto provado n.º 27), bem como que o réu seja proibido de permanecer em local público ou privado a uma distância de 500 m do autor e do seu filho e dos seus bens, inclusivamente de ficar ou permanecer na casa onde os seus pais habitam, atenta a proximidade com a casa do autor.
A sentença do tribunal de 1.ª instância considerou que, pelo facto de o réu, à data da prática dos factos, padecer de doença do foro mental “Esquizofrenia Paranóide” e se encontrar em estado psicótico de contacto com a realidade, não lhe sendo possível distinguir o carácter errado ou correto dos seus atos nem ter o discernimento necessário para avaliar a gravidade destes, falece o carácter ilícito do disparo feito e o réu não é suscetível de um juízo de culpa, devendo considerar-se inimputável, nos termos do art. 488.º, n.º 1 do Código Civil. Em consequência, a sentença absolveu o réu do pedido indemnizatório e das providências solicitadas, pois, embora estas últimas dependam apenas da ilicitude da ofensa e não da culpa, não seriam adequadas nem proporcionais às circunstâncias do caso.
O Tribunal da Relação procedeu a alterações da matéria de facto e revogou a sentença do tribunal de 1.ª instância, confirmando e reproduzindo integralmente decisão singular do Relator.
O acórdão recorrido condenou o réu, portador de doença mental designada por esquizofrenia (mas considerado imputável, por falta de prova da inimputabilidade), ao pagamento de indemnização ao autor, com base no art. 493.º do CC, considerando que o disparo dos projéteis pelo autor (facto provado n.º 8) consiste num dano provocado por coisa móvel que o réu tinha o dever de vigiar (n.º 1) ou numa atividade perigosa (n.º 2), presumindo-se a culpa deste. Decretou ainda, por aplicação do art. 70.º, n.º 2 do Código Civil, uma medida de afastamento do réu em relação ao autor e ao seu filho menor a uma distância de pelo menos 500 metros, o que retira àquele o direito de habitar a casa arrendada pelos seus pais ao autor, e ordenou a institucionalização do réu após o trânsito em julgado.
O recorrente, BB, alegou, na revista, que o acórdão recorrido, apesar de dar como provado que o réu padece de esquizofrenia, não o considerou inimputável, violando assim o art. 488.º, n.º 1 do Código Civil, que não exige qualquer declaração de inimputabilidade. Alega ainda que a decisão recorrida prejudica gravemente os direitos do recorrente à habitação e a uma vida condigna junto da sua família, por força da providência decretada ao abrigo do art. 70.º, n.º 2 do CC.
O recorrido, por sua vez, contra-alegou que o réu não está declarado inimputável e que o facto de o mesmo padecer de doença mental não tem como consequência imediata e automática a sua incapacidade, e que as medidas de afastamento e a indemnização arbitrada podem e devem ser impostas para proteger as pessoas e as coisas quando terceiros põem em perigo a personalidade ou o património do indivíduo.
2. O autor invoca a proteção cível dos direitos de personalidade, prevista no art. 70.º do Código Civil. Dispõe o art. 70.º n.º 1 do CC que “a lei protege os indivíduos contra qualquer ofensa ou ameaça de ofensa à sua personalidade física e moral”, acrescentando o nº 2 da disposição que “independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida”. Esta disposição constitui uma norma geral de tutela da personalidade física e moral de uma pessoa, possibilitando a esta a reação contra qualquer ofensa ilícita ou ameaça à sua vida, à sua integridade física, moral e pessoal, à liberdade, ao bom nome e à privacidade ou outro direito fundamental.
Esta norma decorre da dignidade da pessoa humana e protege um conjunto indeterminado de bens jurídicos pessoais não tipificados, os vários modos de ser físicos, psíquicos e morais da personalidade, de acordo com uma visão mais ampla e rica da pessoa (cf. H. E. Hörster, A Parte Geral do Código Civil Português,Teoria Geral do Direito Civil Português, Coimbra, 2000, p. 258, n.º 423), assumindo uma natureza materialmente constitucional, pois remete para o catálogo de direitos, liberdade e garantias consagrados na Constituição (cf. Paulo Ferreira da Cunha, Direito Constitucional Aplicado, Coimbra, 2007, pp. 220-222). O art. 70.º, n.º 1 tem uma formulação geral e indeterminada de forma a abranger, no seu âmbito de proteção, aspetos da personalidade cuja lesão ou ameaça de violação só com a evolução dos tempos assumam um significado ilícito, p. ex a identidade genética ou o controlo sobre os dados pessoais (Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, Coimbra Editora, 2005, p. 210) ou os direitos «à nacionalidade, à proteção da saúde e do repouso, à segurança social, ao trabalho, à educação e à cultura, à habitação, ao ambiente de vida humana (sadio e ecologicamente equilibrado)» (cf. Maria de Fátima Ribeiro, Anotação ao Artigo 70.º, Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, p. 172, nota 6)
A tutela fornecida pelo art. 70.º do CC é de tal forma ampla, que pode ser invocada perante a simples possibilidade de dano.
A garantia cível dos direitos de personalidade não se limita ao dever de indemnizar os lesados depois de preenchidos os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos, pelo risco ou por factos lícitos. A tutela cível dos direitos de personalidade abrange, nos termos do n.º 2 do art. 70.º do CC, as providências adequadas às circunstâncias do caso, destinadas a evitar a consumação da ameaça ou a atenuar os efeitos da ofensa já verificada.
Esta tutela pode, assim, ser preventiva, em caso de ofensa não consumada destes direitos, e atenuante, nas situações em que já se deu a consumação da ofensa ou o início dessa consumação, destinando-se a atenuar, dentro do possível, os seus efeitos. Estas providências podem ser cumuladas umas com as outras e com o pedido indemnizatório, ou ser requeridas no processo especial regulado nos artigos 878.º e seguintes do CPC.
O termo «ameaça» usado na lei não tem o sentido de ato ou efeito de ameaçar, mas um significado amplo que abrange quer a iminência de ameaça, quer a ofensa em curso, qualquer que seja a intenção do agente (cf. Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, Tomo III, Pessoas, 2.ª edição, 2007, p. 121).
As providências atenuantes têm, também, por finalidade, eliminar ou minorar os efeitos de ofensa já realizada, podendo, em simultâneo, funcionar como medidas preventivas de futuras lesões, quando se trate de factos continuados.
A aplicação das providências previstas no art. 70.º, n.º 2 do CC não depende de culpa do lesante, já que os pressupostos destas providências não se confundem com os pressupostos da responsabilidade civil por factos ilícitos (art. 483.º, n.º 1), bastando que o facto seja voluntário e ilícito. Trata-se de uma providência de proteção, que deve funcionar mesmo em situações puramente objetivas, independentemente de culpa do agente (Menezes Cordeiro, ob. cit., p. 121) Contudo, inerente a estes litígios está muitas vezes um conflito ou colisão de direitos de personalidade ou de determinação do conteúdo e limites dos direitos de personalidade invocados pelas partes, havendo que proceder a um juízo de ponderação de bens e de concordância prática (Cf. João Paulo Remédio Marques, «Alguns aspectos da tutela da personalidade humana no novo código de processo civil de 2013», texto disponível in http://www.cej.mj.pt/cej/recursos/ebooks/ProcessoCivil/Reforma_do_processo_civil.pdf). Da ideia de adequação resulta que, quanto à providência a adotar em concreto, vigora o princípio da atipicidade e que o juiz goza de discricionariedade na sua determinação.
Este juízo de adequação não se pode fazer em abstrato nem através de um quadro apriorístico de solução de conflitos de direitos, mas em concreto, isto é, tomando-se em consideração a particularidade de cada caso.
Para aferir da adequação da medida a aplicar deve ter-se em conta os fins de proteção da personalidade, devendo a medida ser suficiente para cessar a ameaça ou a lesão, de acordo com o «princípio do mínimo dano», isto é, «perante soluções alternativas, deverá procurar-se aquela que, assegurando a tutela dos direitos de personalidade, tenha em conta os interesses do agente, não lhe causando lesões desnecessárias ou desproporcionadas» (cf. Tiago Soares da Fonseca, «Da tutela judicial dos direitos de personalidade», ROA, ano 66, Janeiro 2006, p. 255)
Nas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos (Teoria Geral do Direito Civil, 8.ª edição, Almedina, Coimbra, 2015, p. 46), «Quanto à natureza e conteúdo das providências, a lei diz apenas que serão “as adequadas às circunstâncias do caso”. Deixa-se assim, uma larguíssima margem de liberdade ao juiz a quem forem requeridas. Mas esta liberdade não pode ser total nem sem critério. Da letra da lei resulta desde logo que as providências devem ser adequadas, o que exclui o excesso. Deve, assim, entender-se que, ao decretar as providências, o juiz não deve exceder o que for suficiente e deve actuar com moderação, de modo a lesar ou perturbar o menos possível terceiros. Há que encontrar, caso a caso, um equilíbrio entre o mínimo possível de lesão ou incómodo a terceiros e a eficácia necessária. Tudo isto de acordo com o prudente arbítrio do julgador».
O art. 70.º, n.º 2 do CC remete assim para juízos de equidade, estando o tribunal obrigado a decretar, de entre as alternativas possíveis, aquelas medidas que sejam menos severas ou menos drásticas.
3. Estando em causa uma ação de responsabilidade civil, importa saber se o réu tem capacidade delitual ou capacidade de culpa, isto é, discernimento para apreciar convenientemente os atos que praticou e o livre exercício da sua vontade.
Em princípio, o dever de responder só existe se o agente tiver capacidade intelectual e volitiva, isto é, se for capaz de ponderar o valor dos seus atos e determinar-se de harmonia com o juízo deles feito (cf. Henrique Sousa Antunes, Responsabilidade civil dos obrigados à vigilância de pessoa naturalmente incapaz, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2000, p. 287). Na formulação da doutrina e da jurisprudência italianas, a capacidade de entender consiste no poder de apreciar adequadamente o valor social do ato concreto praticado e a capacidade de querer na faculdade de se determinar de modo autónomo, mais do que em função dos seus impulsos (Cf. Angelo Venchiarutti, La protezione Civilistica, p. 521, apud Henrique Sousa Antunes, Responsabilidade civil dos obrigados à vigilância…ob. cit., p. 287).
Para que estejam verificados os requisitos da inimputabilidade, o agente deve encontrar-se incapacitado de entender ou de querer no momento da prática do facto; tal incapacidade não pode ter sido culposamente provocada pelo agente e não pode ser transitória.
A inimputabilidade não tem de ser declarada num processo autónomo, como alega o autor na sua contra-alegação, bastando a prova, no presente processo, de doença mental que incapacite o sujeito de entender e de querer, e que os factos ilícitos foram praticados num momento em que não gozava de capacidade de discernimento nem de consciência, desde que não se tenha colocado culposamente nesse estado, sendo este transitório, como o caso das pessoas que se alcoolizam e depois provocam danos.
Presume-se a falta de imputabilidade dos menores de sete anos e dos interditos por anomalia psíquica (art. 488.º, n.º 2 do CC). Mas trata-se de uma mera presunção, pois podem estes sujeitos ter o discernimento bastante para entender e querer. A norma apenas visa facilitar a tarefa probatória. Também não pode deduzir-se, a contrario, que os maiores de sete anos ou os inabilitados por anomalia psíquica sejam sempre responsáveis (Pires de Lima/Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. I, 4.ª edição, Coimbra, p. 490). Há apenas uma presunção de imputabilidade, que incumbe afastar ao autor da lesão, que se queira prevalecer da inimputabilidade.
No caso vertente, provou-se que o réu é portador de uma doença mental designada por esquizofrenia paranóide e que abusa do consumo de álcool (facto provado n.º 27). Consoante relatório da perícia médico-legal proferido no âmbito do processo-crime n.º 45/14.4 GBSXL, solicitado pelos Serviços do Ministério Público da Comarca do Seixal, 1.ª secção, junto ao presente processo a fls. 74 a 92, o réu, agora recorrente, padece de esquizofrenia paranóide, afirmando-se nesse relatório que «quando e para os factos de que é arguido não estaria capaz de se avaliar e de se determinar de acordo com essa avaliação, integrando os pressupostos médico-legais de inimputabilidade» (cf. fls. 91).
Neste relatório, proferido em 09-07-2014, conclui-se que o réu padecia de uma doença do foro mental, de caráter duradouro e permanente, e que à data da prática dos factos o réu não se mostrava consciente da ilicitude dos seus atos: «O examinado encontrava‑se em estado psicótico. A psicose é um estado de doença mental grave que implica uma perda de contacto com a realidade. Existiram sintomas que interferiram com a capacidade de avaliação do real e no processamento cognitivo da informação, não sendo capaz de distinguir a ilicitude dos atos praticados» (cf. fls. 92).
No caso sub judice, o acórdão recorrido eliminou o facto considerado provado pelo tribunal de 1.ª instância, segundo o qual no momento da prática dos factos o réu «encontrava-se em estado psicótico de contacto com a realidade, não lhe sendo possível distinguir o carácter errado dos mesmos. Por isso o réu não teve o discernimento necessário para avaliar a gravidade dos seus actos». Esta alteração factual foi justificada na circunstância de o relatório psiquiátrico ter sido proferido num processo penal e de não ser transponível para um processo onde se afere da responsabilidade civil do réu. Por ter sido eliminado este facto, não podemos dar como provada a inimputabilidade do réu para o efeito da responsabilidade civil pelos danos causados. A apreciação do valor probatório dos relatórios periciais é matéria de livre apreciação da prova que não é sindicável por este Supremo Tribunal e o conceito de inimputabilidade, enquanto conceito jurídico, pressupõe necessariamente uma componente factual, que não ficou demonstrada após o exercício do poder modificativo dos factos pelo Tribunal da Relação. O recorrente também não solicitou, na alegação de revista, a apreciação da legalidade da modificação da matéria de facto a que procedeu o Tribunal da Relação, pelo que não podemos analisar esta questão.
3.1. No nosso sistema jurídico, aplica-se o princípio da irresponsabilidade de pessoa inimputável, mas esta regra não é absoluta e comporta uma atenuante baseada na equidade e na consideração dos interesses dos lesados, podendo uma pessoa inimputável ser condenada ao dever de reparação dos danos (art. 489.º do CC). Em consequência, mesmo que se considerasse o réu inimputável, este poderia ser condenado, por motivos de equidade, a pagar uma indemnização ao lesado. Contudo, como afirmam Pires de Lima/Antunes Varela (Código Civil Anotado, Vol. I, ob. cit., p. 490), a condenação não se impõe aos tribunais, que recorrem a juízos de equidade para decidir acerca da procedência, ou não, de um pedido indemnizatório contra uma pessoa inimputável.
A imputabilidade serve, assim, apenas para traçar a fronteira entre um dever de responder ex lege e um dever de responder ex aequitate (Henrique Sousa Antunes, Responsabilidade civil dos obrigados à vigilância…ob. cit., p. 302), sendo este último subsidiário e condicionado à circunstância de o agente ter bastantes bens para responder. Segundo a jurisprudência alemã, para que o juiz imponha este dever de reparar segundo a equidade, deve existir uma diferença patrimonial considerável que torne injusto o gozo pacífico pelo incapaz dos seus bens e a assunção total do dano pelo lesado (Cf. Esther Gómez Calle, La Responsabilidad Civile de los Padres, Madrid, 1992, p. 172). Para que seja possível uma condenação de pessoa inimputável é necessário que se prove que esta tem possibilidades económicas para o fazer sem sacrifícios elevados, que os lesados se encontrem carenciados e que não seja possível obter a reparação das pessoas obrigadas à vigilância, abrangendo-se, conforme defende Henrique Sousa Antunes (Responsabilidade civil dos obrigados à vigilância…ob. cit., p. 306), quer a impossibilidade jurídica (o vigilante afastou a responsabilidade pelos meios previstos no art. 491.º do CC), quer a impossibilidade de facto (a pessoa obrigada à vigilância não tem bens), e ainda a hipótese de não haver pessoa obrigada à vigilância.
4. Tendo o réu capacidade delitual em termos civilísticos e não tendo ficado provada a factualidade necessária para se concluir pela sua inimputabilidade, incorre em responsabilidade civil por factos ilícitos com base em culpa provada ao abrigo do art. 483.º, n.º 1 do CC. Consideramos que não se trata de um dano causado por uma coisa móvel, mas pelo agente que manejou a arma, não consistindo, portanto, o caso dos autos numa situação de culpa presumida ao abrigo do art. 493.º, n.º 1 do CC, nem de atividade perigosa nos termos do art. 493.º, n.º 2 do CC.
Vejamos os factos:
«6- No dia 8 de Fevereiro de 2014, pelas 14 horas, à porta da casa dos seus pais que são arrendatários do Autor, o Réu começou a ameaçar o Autor, proferindo a seguinte frase: que a Polícia o ia buscar, eu tenho uma moradia de dois milhões de Euros na ... e estou aqui fechado neste quintal. (…) 8- Quando chegou, no mesmo dia, a casa, por volta das 21 horas, constatou que tinha os vidros partidos da janela do seu quarto, tendo também atingido a persiana e os vidros da janela do quarto do seu filho, estando também a parede esburacada em consequência de ter sido atingida por dois projecteis. (…) 13- O Réu posteriormente, a ter efectuado os disparos contra o quarto do filho do Autor, foi entregar a arma a um amigo, FF, que é Militar da GNR. (…) 15- O Réu assumiu ter efetuado os disparos contra a residência do Autor em conversa com o seu vizinho EE, confirmando que estava a "testar a arma". 16- A arma utilizada pelo R. encontra-se apreendida e está a correr um processo neste Tribunal pelos factos praticados pelo Arguido».
Atenta a factualidade provada, o réu incorreu em dolo, na medida em que, no plano naturalístico, dada a conflitualidade e as ameaças dirigidas ao autor, teve intenção de causar o dano ou, pelo menos, conformou-se com essa possibilidade, incorrendo em dolo eventual.
Sendo assim, por ter o réu praticado um facto ilícito com culpa dolosa deve pagar indemnização pelos danos patrimoniais causados, a calcular em execução de sentença, tal como vem condenado pelo acórdão recorrido.
5. O acórdão recorrido, para garantir a proteção do direito do lesado à integridade física e à tranquilidade da vida familiar, decretou a institucionalização do réu, como forma de concretização das providências cautelares, ao abrigo do art. 70.º, n.º 2 do Código Civil, com a finalidade de evitar a consumação de ameaça de ofensa à personalidade física e moral do autor e do seu filho menor.
A aplicação das providências previstas nesta norma depende apenas de um juízo de adequação às concretas circunstâncias do caso, devendo-se ter em conta, no caso sub judice, as características da doença mental de que o réu é portador e a eficácia das medidas para evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ameaça já consumada, de acordo com um princípio da proibição do excesso.
O autor invoca a tutela do seu direito à integridade física ameaçado pelo réu, e o direito ao convívio com o seu filho menor dentro da sua residência, uma vertente dos direitos familiares pessoais e do direito ao sossego e à tranquilidade, bem como a ameaça de lesão ao seu património.
As medidas peticionadas têm um caráter proibitivo – afastamento em relação ao lesado e seu filho menor numa distância não inferior a 500 metros e desalojamento da casa onde habita com seus pais, dada a proximidade desta da casa do autor – e uma finalidade preventiva, ou seja, dirigem-se a evitar a ocorrência de futuras lesões.
As providências preventivas (tal como as atenuantes) apenas se justificam para a tutela de direitos de personalidade, que se definem por serem direitos de natureza não patrimonial, como o invocado direito à integridade física, mas não para a defesa do direito de propriedade ou de outros direitos patrimoniais.
Para ajuizar da proporcionalidade e adequação da medida decretada, é necessário ponderar que o réu sofre de esquizofrenia paranóide. «A esquizofrenia é uma doença heterogénea que se manifesta de diversos modos. Trata-se de uma perturbação do tratamento e da integração da informação. A pessoa que sofre desta doença pode apresentar sintomas de distorção da realidade que se expressam por ideias delirantes e alucinações. Pode também manifestar-se por uma redução das capacidades de expressão, uma dificuldade em concretizar as atividades da vida diária e um retraimento social. Estes últimos sintomas são geralmente os mais estáveis e persistentes. Confundem-se facilmente com a depressão ou certos efeitos secundários da medicação. Enfim, a doença pode revelar-se por uma desorganização na forma de se expressar, sob os planos verbal e comportamental. Estas diferentes manifestações podem, no seu conjunto, estar presentes em simultâneo ou não e com diferentes intensidades. Do ponto de vista temporal, a doença passa frequentemente despercebida até ao fim da adolescência. É geralmente muito ativa na década que segue o seu início e tende a atenuar-se em seguida. Inicia-se frequentemente com um episódio psicótico, caracterizado por sintomas de distorção da realidade e de desorganização. Os neurolépticos agem sobre os sintomas psicóticos e permitem reduzir o risco de novos episódios. No que se refere às alterações do funcionamento da vida diária (…) o tratamento consiste então em treinar as capacidades da pessoa para que esta possa reassumir as suas actividades quotidianas e sociais; o que poderia corresponder à fisioterapia após uma fratura. O treino pode ser realizado a nível comportamental e cognitivo. (…) As fases agudas da doença são regra geral tratadas no hospital, de modo a permitir instaurar um tratamento medicamentoso. Os restantes tratamentos efectuam-se na comunidade» (Jérôme Favrod e Agnes Maire, Recuperar da esquizofrenia, Guia prático para profissionais, Lusociência, 2014, p. 2).
Durante os últimos trinta anos, a esquizofrenia foi uma das doenças relativamente à qual a investigação científica efetuou imensos progressos no plano terapêutico. Os medicamentos mostraram-se úteis para permitir o desenvolvimento da psiquiatria ambulatória, mas os novos serviços e intervenções psicossociais permitiram a numerosas pessoas com esquizofrenia ter vidas mais produtivas e ricas (cf. Jérôme Favrod/Agnes Maire, Recuperar da esquizofrenia, ob. cit., p. 147). Importa, não apenas cuidar da redução e estabilização dos sintomas da doença, mas combater atitudes de discriminação e de exclusão, e tentar a recuperação da pessoa (Jérôme Favrod/Agnes Maire, ob. cit., pp. 146-147).
Segundo os factos provados n.º 6 e n.º 8, o réu ameaçou o autor dizendo «a Polícia vai-te buscar; eu tenho uma moradia de dois milhões de Euros na ... e estou aqui fechado neste quintal» e disparou com uma arma para a janela do seu quarto e para a janela do quarto do seu filho. Mas não se conhecem episódios de violência física tentada ou consumada do réu perante o autor, o filho, a mãe do autor ou os vizinhos.
Está provado que o autor se sente ameaçado na sua segurança e na sua vida (factos provados n.º 21, 22, 24, 26, 28 e 30) e que (facto n.º 19) o filho menor do autor revela ter medo do réu e não pode passar os fins-de-semana e férias com o pai na casa deste (factos provados n.º 20, 31 e 36).
Neste contexto, entendeu o acórdão recorrido que, sendo a casa do autor «porta com porta» com a do réu, deve ser aplicada uma medida preventiva de institucionalização do réu para garantir o seu afastamento em relação ao autor e ao seu filho menor.
Segundo Capelo de Sousa (O Direito Geral de Personalidade, Coimbra Editora, Coimbra, 1995, p. 475), para que sejam decretadas as providências preventivas, não basta a ameaça da personalidade física ou moral, devendo ainda exigir-se que «seja significativo o mal cominado e ponderável o receio, o medo ou a perturbação pela sua cominação».
Pese embora o sentimento de medo do autor e do seu filho, deve ponderar-se na análise da perigosidade do réu, que este logo após os factos entregou a arma a um amigo, que por sua vez a entregou à GNR (factos provados 13 e 14) e que não se provaram quaisquer atos de ofensa à integridade física do autor, do filho menor ou de outros vizinhos.
Padecendo o réu da doença mental de esquizofrenia paranóide, associada ao consumo de álcool e ao incumprimento da medicação, é no domínio da lei da saúde mental (lei n.º 36/98, de 24 de julho) que a questão deve ser tratada através de um processo de internamento compulsivo, na medida em que o réu, em virtude da doença de que é portador, revele perigosidade para a comunidade. O internamento em hospital é a medida mais adequada nas fases agudas da esquizofrenia, mas a ciência aconselha a que sejam evitados períodos de internamento hospitalar demasiado longos, que tendem a agravar a doença (Jérôme Favrod e Agnes Maire, Recuperar da esquizofrenia, ob. cit., p. 2).
No caso sub judice, ficou provado que foi instaurado um processo-crime, pendente (com despacho de acusação) à data da sentença de 1.ª instância, e no seio do qual pode ficar resolvida a questão do afastamento do réu através da aplicação de medida de segurança.
No processo consta a informação de que o MP, em processo crime pendente (processo n.º 45/14.3GBSXL), proferiu despacho de acusação do arguido por «um crime de dano com arma de fogo, p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts 212.º, n.º 1 do Cód. Penal e art. 86.º, n.º 3 por referência ao art. 3.º, n.º 6 ambos da lei n.º 5/2002, de 23-02» e requereu, ao abrigo do disposto nos artigos 20.º e 91.º do Código Penal, que o arguido seja considerado inimputável em razão de anomalia psíquica e que lhe seja aplicada medida de segurança.
O acórdão recorrido não considerou provado que a mãe do réu tivesse requerido o processo de internamento compulsivo. Têm legitimidade para intentar este processo, para além dos pais ou representantes legais, qualquer pessoa com legitimidade para requerer a sua interdição, as autoridades de saúde pública e o Ministério Público (art. 13.º, n.º 1).
Nos termos do art. 12.º da lei de saúde mental, o processo de internamento compulsivo pode ser requerido em relação a pessoas portadoras de anomalia psíquica grave que criem perigo para bens jurídicos de relevante valor: «1 - O portador de anomalia psíquica grave que crie, por força dela, uma situação de perigo para bens jurídicos, de relevante valor, próprios ou alheios, de natureza pessoal ou patrimonial, e recuse submeter-se ao necessário tratamento médico pode ser internado em estabelecimento adequado. 2 - Pode ainda ser internado o portador de anomalia psíquica grave que não possua o discernimento necessário para avaliar o sentido e alcance do consentimento, quando a ausência de tratamento deteriore de forma acentuada o seu estado».
Dispõe o art. 13.º da referida lei: «1 - Tem legitimidade para requerer o internamento compulsivo o representante legal do portador de anomalia psíquica, qualquer pessoa com legitimidade para requerer a sua interdição, as autoridades de saúde pública e o Ministério Público. 2 - Sempre que algum médico verifique no exercício das suas funções uma anomalia psíquica com os efeitos previstos no artigo 12.º pode comunicá-la à autoridade de saúde pública competente para os efeitos do disposto no número anterior. 3 - Se a verificação ocorrer no decurso de um internamento voluntário, tem também legitimidade para requerer o internamento compulsivo o diretor clínico do estabelecimento».
A lei prevê um processo de internamento compulsivo urgente, no art. 22.º, que estipula o seguinte: «O portador da anomalia psíquica pode ser internado compulsivamente de urgência, nos termos dos artigos seguintes, sempre que, verificando-se os pressupostos do artigo 12.º, n.º 1, exista perigo iminente para os bens jurídicos aí referidos, nomeadamente por deterioração aguda do seu estado».
No artigo 23.º (Condução do internando) dispõe-se que: «1 - Verificados os pressupostos do artigo anterior, as autoridades de polícia ou de saúde pública podem determinar, oficiosamente ou a requerimento, através de mandado, que o portador de anomalia psíquica seja conduzido ao estabelecimento referido no artigo seguinte. 2 - O mandado é cumprido pelas forças policiais, com o acompanhamento, sempre que possível, dos serviços do estabelecimento referido no artigo seguinte. O mandado contém a assinatura da autoridade competente, a identificação da pessoa a conduzir e a indicação das razões que o fundamentam. 3 - Quando, pela situação de urgência e de perigo na demora, não seja possível a emissão prévia de mandado, qualquer agente policial procede à condução imediata do internando. 4 - Na situação descrita no número anterior o agente policial lavra auto em que discrimina os factos, bem como as circunstâncias de tempo e de lugar em que a mesma foi efectuada. 5 - A condução é comunicada de imediato ao Ministério Público com competência na área em que aquela se iniciou».
Em relação à perigosidade do réu, portador da doença mental de esquizofrenia, esta é uma consequência da doença e costuma cessar com a medicação e as terapias psicológicas adequadas.
É enquanto doença que a esquizofrenia tem que ser tratada, sendo este assunto demasiado complexo e especializado para ser decidido numa ação de responsabilidade civil e por aplicação das regras de direito civil, sem perícias médicas de avaliação do estado mental da pessoa afetada pela doença e das suas necessidades, tendo em vista o seu tratamento.
A tutela, ainda que cível e cautelar, dos direitos de personalidade do lesado envolve a restrição de direitos de personalidade do lesante (in casu, o direito a viver em ambiente familiar), a qual deve ser justificada e proporcional, em termos de um juízo de ponderação e de concordância prática.
Na ponderação de interesses inerente ao juízo de proporcionalidade deve-se ter em conta as caraterísticas da doença de que padece o réu, o interesse do doente e a eficácia da decisão para o tratamento da doença.
O internamento do réu em hospital psiquiátrico ou outra instituição, enquanto providência cautelar destinada à proteção dos direitos de personalidade de terceiros, teria de ser sempre uma medida provisória, destinada a durar enquanto durasse a perigosidade, devendo favorecer-se, após a cessação do perigo, a manutenção do paciente no seu meio natural de vida.
As providências decretadas pelo acórdão recorrido provocam o desenraizamento da pessoa do ambiente familiar e os laços afetivos com a família constituem um factor que promove a recuperação e a inserção social da pessoa portadora de doença mental. Está cientificamente demonstrado que a psicoeducação familiar e individual reduz a taxa de recaída; a terapia cognitiva e comportamental reduz os sintomas psicóticos; o treino de habilidades sociais melhora a evolução; o acompanhamento intensivo na comunidade reduz as hospitalizações (cf. Jérôme Favrod e Agnes Maire, Recuperar da esquizofrenia, ob. cit., p. 5).
A institucionalização, nos períodos em que o doente esteja medicado e recuperado, constitui uma restrição da liberdade desnecessária à finalidade de proteção e implica a cessação do seu direito de habitar com os pais no imóvel que estes tomaram de arrendamento ao autor.
De acordo com uma lógica de concordância prática, a providência proibitiva imposta ao réu de permanecer em local público ou privado a uma distância de 500 m do Autor e do seu filho e dos seus bens, inclusivamente de ficar ou permanecer na casa onde os seus pais habitam, acompanhada de institucionalização do réu, sem ter por pressuposto parecer médico e sem limitação temporal, é demasiado drástica e severa para os direitos do réu à vida familiar e à autodeterminação, enquanto pessoa portadora de doença mental. Note-se que a decisão de institucionalização não foi ancorada em qualquer relatório médico que a recomendasse, e que a questão da proteção de terceiros não pode ser separada dos problemas de saúde mental do réu.
Conforme afirmamos, o internamento psiquiátrico dos doentes portadores de esquizofrenia deve ser feito numa instituição especializada para o seu tratamento e permitir o regresso da pessoa ao seu meio natural após recuperação medicamente comprovada e o processo adequado para o decretar não é uma ação de responsabilidade civil.
Sendo assim, decidimos que a institucionalização do réu só pode ser decretada ao abrigo da lei de saúde mental, num processo de internamento compulsivo, sujeito a determinados pressupostos, de acordo com a especificidade da doença que afeta o réu e respeitando as suas necessidades de tratamento e de recuperação.
Em consequência, revogamos as providências decretadas pelo acórdão recorrido ao abrigo do art. 70.º, n.º 2 do CC.
IV – Decisão
Pelo exposto, decide-se, na 1.ª Secção deste Supremo Tribunal de Justiça, conceder parcialmente a revista e absolver o réu das providências decretadas pelo acórdão recorrido.
No mais, mantém-se o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrido e pelo recorrente (este sem prejuízo do apoio judiciário) na proporção do respetivo decaimento.
Lisboa, 14 de julho de 2016
Maria Clara Sottomayor (Reletora)
Roque Nogueira
Alexandre Reis
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