Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
| ||
Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTÓNIO MAGALHÃES | ||
Descritores: | RECURSO DA MATÉRIA DE FACTO IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO PODERES DA RELAÇÃO LEI PROCESSUAL REAPRECIAÇÃO DA PROVA EXAME CRÍTICO DAS PROVAS PRINCÍPIO DA LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA CONTRADIÇÃO NULIDADE DE ACÓRDÃO NULIDADE PROCESSUAL ERRO DE JULGAMENTO ADMISSIBILIDADE DE RECURSO RECURSO DE REVISTA | ||
Data do Acordão: | 11/12/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA | ||
Sumário : | I. Não é pelo facto de a lei determinar que, para a alteração da decisão de facto, os meios de prova devem “impor” decisão diversa, que o Tribunal da Relação deve valorar apenas erros “notórios” de apreciação da prova; II. A Relação goza de autonomia decisória, “competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação sem exclusão de presunções judiciais”; III. À Relação, apesar de lhe escapar a imediação e a oralidade, características da 1ª instância, não lhe está vedada, assim, a possibilidade de valorar um depoimento ( dos vários que foram produzidos) que foi inicialmente desconsiderado e, com base no mesmo, alterar a matéria de facto provada; IV. O art. 682º, nº 3 do CPC tem a ver com contradições da decisão da matéria de facto e não com contradições na motivação dessa decisão; V. A análise critica da prova, a que respeita o art. 607º, nº 4 do CPC, respeita apenas à indicação ou especificação das razões que se revelem decisivas para a formação da convicção do tribunal e não ao mérito e à consistência da análise probatória, que não compete ao tribunal de revista avaliar.” | ||
Decisão Texto Integral: | Revista nº 8085/17.4T8PRT.P1.S1 Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça: * AA, casado, residente em ..., entretanto representado pela mulher, BB, por aplicação àquele de medida de acompanhamento geral, decretada por sentença de 11.6.2019 (junta aos autos a 24.09.2019), em razão da incapacidade de que ficou a padecer mercê do acidente destes autos intentou contra o FUNDO DE GARANTIA AUTOMÓVEL, com sede em Lisboa, acção de responsabilidade civil emergente de acidente de viação, instaurada a 13.4.2017, em que pede a condenação do R. a pagar-lhe a quantia de €557.920, pelos danos sofridos em resultado de acidente de viação, acrescida de actualização, de acordo com o índice de variação de preços ao consumidor (I.N.E.) e juros à taxa legal desde a citação. Alegou que em 2012, ocorreu na A20, P…, um acidente de viação que se ficou a dever a terceiro veículo, não identificado, que se atravessou à frente do carro do A., desaparecendo de imediato e determinando o despiste daquele, bem como as graves lesões de que padeceu e padecerá. Invocou danos de natureza não patrimonial no montante de € 460.000,00 e danos de natureza patrimonial, de € 97.920,00, tendo sido indemnizado pela seguradora do trabalho, enquanto trabalhador por conta de outrem). Contestou o FGA, arguindo desde logo, a prescrição do art. 498º, nº 1 do CC – três anos – por o acidente ter ocorrido em 2012 e o R. ter sido citado em 2017. Também invocou a sua ilegitimidade, já decidida em saneador. Relembrou os limites estabelecidos nos arts. 48º, 49º e 51. do DL 291/07, de 21.8, uma vez que o autor já recebeu indemnização da seguradora de acidentes de trabalho e do Fundo de Acidentes de Trabalho. De modo que não poderá o A. reclamar indemnização pelos danos a que respeita o pedido de € 460.000, 00, nem pelos lucros cessantes provenientes da sociedade de que era sócio, por a tanto não ter direito legal. Quanto ao sinistro, afirmou ter-se o A. despistado sozinho, sem intervenção de qualquer veículo e, ainda que assim não fosse, teria o demandante de demonstrar qual o tipo de veículo interveniente, qual a nacionalidade da matrícula e quais as circunstâncias do sinistro. Respondeu o A. à excepção de prescrição, arguindo o prazo de 5 anos previsto no art. 498º, nº 3, do CC, por referência ao prazo prescricional do crime de que foi vítima – ofensa à integridade física por negligência, mas grave (art. 148º, nºs 1 e 3 do Código Penal). Em despacho saneador, foi julgada improcedente a exceção de ilegitimidade e relegado para sentença o conhecimento de todas as demais questões, incluindo a da prescrição e o argumento legal do FGA quanto à não inclusão destes danos no âmbito da previsão do DL 291/07, de 21.8. Realizado julgamento, foi proferida sentença a qual julgou a acção improcedente, absolvendo o R. do pedido, por não considerar provada a versão do A., não conhecendo da prescrição nem da impugnação de direito invocada pelo FGA, achando prejudicados estes temas (implicitamente quanto ao segundo), mercê daquela decisão de facto. Porém, e mediante recurso de apelação do A., a sentença foi revogada e o R. condenado a indemnizar o A. na quantia global de € 390.000,00, com juros legais desde a presente data e até integral pagamento, absolvendo-o do demais peticionado. Não se conformou, desta vez, o Fundo de Garantia Automóvel que interpôs recurso de revista, em que formulou as seguintes conclusões: “1. A decisão de considerar como provados os factos que na douta sentença de primeira instância foram descritos como não provados nos pontos 23) e 24) carece em absoluto de fundamentação; 2. O Tribunal a quo não podia ter alterado o sentido da decisão da primeira instância sobre os pontos 23) e 24) da matéria de facto não provada, passando a considerá-los como provados, porque a prova produzida, reapreciada e confirmada não apontava nesse sentido, nem impunha essa alteração; 3. A Relação só pode e só deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa, caso contrário a alteração da matéria de facto considerada provada ou não provada constitui uma violação dos poderes de decisão da Relação, viciando o acórdão de nulidade; 4. Embora o Supremo Tribunal de Justiça não possa censurar o uso feito pela Relação dos poderes conferidos pelo artigo 662.º n.ºs 1 e 2 do CPC, já pode verificar se a Relação, ao usar tais poderes, agiu dentro dos limites traçados pela lei para os exercer, ou se ocorreu violação da lei processual que disciplina os pressupostos e os fundamentos da reponderação, pela segunda instância, da decisão sobre a matéria de facto; 5. Os preceitos legais que preveem restrições à admissibilidade da revista quanto à decisão sobre a matéria de facto e à sua reapreciação pela Relação, devem ser acolhidos com as devidas cautelas e com o sentido interpretativo menos limitativo dos direitos e mais conforme ao direito fundamental de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva acolhido pelo artigo 20.º da CRP; 6. Por outro lado, a lei confere ao tribunal de revista amplos poderes de sindicância sobre o exercício dos poderes por parte da Relação na reapreciação da decisão de facto, mormente quanto aos parâmetros a observar, pelo que, quando o Supremo Tribunal de Justiça, em sede de revista, entenda que ocorrem ilegalidades ou contradições na decisão sobre a matéria de facto que inviabilizam a decisão jurídica do pleito, deve determinar que o processo volte ao tribunal recorrido, conforme o disposto no artigo 682.º, n.º 3, do CPC; 7. Na análise concreta ao Acórdão recorrido, verificamos que o Tribunal a quo, pese embora reconheça o mérito devido à sentença recorrida, focou-se em atribuir credibilidade a um único testemunho - de CC - para justificar uma alteração da matéria de facto dada como não provada até então, sendo que toda a restante prova aponta precisamente no sentido douta e minuciosamente decidido em primeira instância; 8. Não resulta da prova junta aos autos e muito menos da produzida em sede de audiência de julgamento, a intervenção e culpa de um veículo desconhecido na produção do acidente em crise nos presentes autos – não foram detetados quaisquer indícios no local ou no veículo que o autor conduzia que levem a essa conclusão, nem tão pouco tal resulta das declarações das duas testemunhas presentes no local – DD e EE; este mesmo acidente de viação foi objeto de processo-crime, o qual foi arquivado, tendo o mesmo sido qualificado como um despiste; igualmente correu termos processo de acidente de trabalho, no qual este acidente foi tratado como um despiste; 9. Saliente-se que o testemunho no qual “se joga toda a sorte da ação” advém da testemunha CC que não se encontra identificada na participação do acidente de viação e que surge, inusitadamente e pela primeira vez, em audiência de julgamento, não tendo prestado quaisquer declarações anteriormente, quer perante as autoridades policiais, quer durante o processo-crime, quer durante o processo de acidente de trabalho; 10. Este mesmo depoimento havia sido totalmente descredibilizado pelo tribunal de primeira instância na sentença proferida mas certo é que no Acórdão sob resposta são tecidas considerações “desculpabilizantes” face ao teor das críticas apontadas a este testemunho pela primeira instância, em total detrimento do princípio da imediação e numa clara violação dos limites aos poderes conferidos à Relação pelo artigo 662.º n.ºs 1 e 2 do CPC; 11. O recurso da matéria de facto não visa a obtenção de um segundo julgamento sobre aquela matéria por parte da Relação, sendo antes uma forma de obviar a eventuais erros, ou incorreções, cometidos na decisão recorrida, não se visando um novo julgamento, mas sim a legalidade da decisão recorrida na forma como apreciou a prova e nos segmentos concretos indicados pelo recorrente; 12. Existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em primeira instância e a efetuada em tribunal de recurso com base nas transcrições dos depoimentos, a sensibilidade à forma como a prova testemunhal se produz, e que se fundamenta num conhecimento das reações humanas e análise dos comportamentos psicológicos que traçam o perfil da testemunha, só logra obter concretização através do princípio da imediação; 13. As consequências concretas da aceitação de tal princípio definem o núcleo essencial do ato de julgar em que emerge o senso, a maturidade e a própria cultura daquele sobre quem recai tal responsabilidade, e quando a opção do julgador se centra em elementos diretamente interligados com o princípio da imediação, o tribunal de recurso não tem a possibilidade de sindicar a aplicação concreta de tal princípio; 14. Todas as considerações tecidas pelo Tribunal recorrido acerca do testemunho em causa são conclusões do próprio Tribunal que decidiu fazer um novo julgamento e nova apreciação do testemunho produzido em sede de audiência de julgamento; trata-se de uma mera mudança de convicção, sem “tomar em consideração todas as provas produzidas”, em total desrespeito ao preceituado no art. 413º do CPC; 15. Não é apontado o erro na apreciação da prova constante da sentença recorrida, nem qual concreto meio de prova impunha (e não, permitia) uma decisão diferente e por que razão; 16. O Acórdão sob resposta mais não faz do que tentar colmatar as críticas apontadas pela primeira instância ao depoimento da testemunha em causa, forçando, a todo o custo, a sua credibilização de forma a promover uma alteração fulcral à matéria de facto dada como provada e a reverter na totalidade o sentido da sentença proferida; 17. O Acórdão recorrido violou os poderes legais de alteração da decisão sobre a matéria de facto pela segunda instância, tendo desrespeitado regras de direito adjetivo de cumprimento estrito e extravasando indevidamente os seus poderes cognitivos, perpetrando uma nulidade processual; 18. O incumprimento pela Relação, ou o cumprimento defeituoso por contradição intrínseca, do dever de fundamentação sobre cada um dos pontos da matéria de facto impugnada, de modo a explicar e justificar a autónoma convicção, constitui violação quer da disciplina processual a que aludem os arts. 640.º e 662.º, n.º 1, quer do método de análise crítica da prova prescrito no art. 607.º, n.º 4, aplicável por força o disposto no art. 663.º, n.º 2, todos do CPC, impondo-se, por isso, anular o acórdão recorrido; 19. Impõe-se que este Tribunal superior declare verificada tal nulidade, e declare que o Tribunal recorrido fez um mau uso dos poderes que a proposição descrita no artigo 662.º do CPC lhe concede, com as legais consequências, designadamente anulando o acórdão recorrido e impondo uma nova decisão sobre a matéria de facto pela Relação, ou repristinando a anterior formulação dos factos em causa, considerando-os não provados e proferindo sobre eles a competente decisão de Direito; 20. A decisão recorrida é, ainda, nula por violação dos limites dos poderes de decisão da Relação; 21. Ao decidir como decidiu, o Tribunal recorrido violou, entre outras, as disposições legais constantes dos artigos 413.º, 607.º, n.º 4, 640.º e 662.º n.º 1 e 2 do CPC.” Pede, a terminar, que o acórdão recorrido “seja julgado nulo na parte que determinou a alteração da decisão sobre a matéria de facto não provada constante nos pontos 23) e 24) da douta sentença da primeira instância e por violação dos limites dos poderes de decisão da Relação e revogado, repristinando-se a anterior formulação dos factos em causa, considerando-os não provados, ou impondo-se uma nova decisão sobre a matéria de facto pela Relação, determinando-se que o processo volte ao tribunal recorrido - artigo 682.º, n.º 3, do CPC - e proferindo sobre eles decisão de Direito, não podendo a decisão do presente pleito deixar de ser no mesmo sentido da douta decisão proferida em primeira instância, com total improcedência da presente ação e absolvição da ré dos pedidos.” O Autor/recorrido contra-alegou pugnando pela rejeição do recurso ou, para o caso de assim não se entender, a improcedência do mesmo, Cumpre decidir. Após modificação, a Relação deu como provada a seguinte matéria de facto: “1. O sinistro 1– No dia 20 de abril de 2012, cerca das 11 horas e 55 minutos, o veículo ligeiro de passageiros, matrícula ..-..-RF, conduzido pelo autor, circulava na autoestrada A20 (Via de …), ao Km …, no sentido F…/A…, junto à saída Mercado …. 2– No local, a A20 é constituída por duas faixas de rodagem, separadas por um separador central, permitindo uma das faixas o trânsito no sentido F…/A…, permitindo a outra o trânsito no sentido A…/F…, cada uma delas com três vias de trânsito. 3– No sentido F…/A…, a A20 desenvolve-se no local numa curva para a esquerda, com pendor marcadamente ascendente, existindo uma quarta via de trânsito, à direita das três vias de trânsito acima referidas, sendo ela uma “via de trânsito de abrandamento”, estando separada daquelas vias de trânsito de circulação na A20, durante algumas dezenas de metros antes da separação física de pavimentos, por uma linha longitudinal contínua. 4 – Na ocasião, havia chovido e o piso encontrava-se molhado. 5– Quando o veículo de matrícula ..-..-RF circulava nas circunstâncias referidas no ponto 1 – factos provados –, o seu condutor perdeu o controlo do mesmo, desviando-se bruscamente da sua trajetória e capotando. 2. O dano biológico 6 – Em resultado do sinistro referido: a) Durante 327 dias, o(a) autor(a) viu totalmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal; b) Durante 343 dias, o(a) autor(a) viu parcialmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal; c) O(A) autor(a) sofreu dor quantificável num grau 6, numa escala até 7 (quantum doloris); d) O(A) autor(a) ficou definitivamente afetada na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 81, numa escala até 100; e) O(A) autor(a) sofreu uma afetação da sua aparência (imagem estética) num grau 4, numa escala até 7; f) A consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo(a) autor(a) ocorreu em 18 de fevereiro de 2014. 7 – Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o(a) autor(a): a) encontra-se permanentemente incapaz de exercer qualquer atividade profissional; b) carece permanentemente de ajudas medicamentosas, de acompanhamento médico e o auxílio de terceira pessoa; c) apresenta permanentemente: i) marcha com alguma lentificação; ii) cicatriz nacarada na transição parietoccipital, medindo 8,5 cm de comprimento em relação com ferimentos que foi suturado; iii) cicatriz nacarada na região frontal do crânio, à direita da linha média com um discreto afundamento na extremidade mais posterior medindo 3,5 cm de comprimento, em relação com aplicação de cateter; iv) cicatriz nacarada com vestígios de pontos estendendo-se da região pré-auricular direita até à região pré-auricular esquerda, contornando a região frontal pelo bordo anterior do couro cabeludo, com cerca de 45 cm de comprimento, depois de retificada; v) cicatriz nacarada na face anterior do pescoço, transversal, medindo 9 cm de comprimento em provável relação com traqueostomia; vi) várias cicatrizes nacaradas infracentimétricas na região clavicular direita em relação com aplicação de cateter; vii) cicatriz nacarada no flanco esquerdo do abdómen, medindo 12 cm de comprimento; viii) cicatriz nacarada na linha média abdominal medindo 12 cm de comprimento; ix) complexo cicatricial nacarado com uma zona discretamente acastanhada na face anteromedial do antebraço esquerdo, estendendo-se do cotovelo ao 1/3 distal do antebraço medindo 18x9 cm; x) cicatriz nacarada puntiforme na face anterolateral do 1/3 proximal do antebraço; xi) complexo cicatricial nacarado, pouco aparente estendendo-se da face posterior do 1/3 distal do antebraço esquerdo até ao dorso da mão medindo 8x4 cm. 8 – O autor nasceu em ... de fevereiro de 1976. 9– Sendo uma pessoa fisicamente bem constituída, alegre, calma, saudável e dinâmica 10 – O autor ficou física e psiquicamente diminuído aos olhos de quanto o conheciam, situação que lhe acarretou desgosto e reflexos negativos de origem psicológica, abstendo-se da companhia dos amigos. 11 – As lesões sofridas pelo autor provocaram-lhe profundo desgosto, anulando-lhe o seu dinamismo e vida de relação social, tirando-lhe grande alegria de viver. 3. Danos patrimoniais 12 – Por total incapacidade para o trabalho, o autor deixou de exercer qualquer atividade laboral. 13 – Auferia à data do acidente um salário mensal no valor de € 2.745,00. 14 – O autor tinha à data do acidente a profissão de ..., sendo àquela data sócio da empresa D...Lda.. 15 – Foi esta sociedade constituída em 22 de fevereiro de 2011, obtendo no primeiro ano de serviço um lucro de € 8.641,971. 16 – No ano de 2012, esta sociedade apresentou um prejuízo no montante de € 126.000,00, tendo encerrado no ano de 2015. 17 – Era reconhecida ao autor uma elevada capacidade intelectual, desenvolvendo, com genialidade, a atividade de engenheiro de informática. 4. Limites do alegado direito do autor 18– Em virtude deste sinistro ter sido também considerado como acidente de trabalho, a Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., assumiu o tratamento clínico do demandante, assim como a responsabilidade pelos danos causados no que concerne a essa vertente, liquidando ao autor: a) a pensão anual, atualizável anualmente, de € 31.976,00, com início em 06.06.2014, calculada com base na retribuição anual de € 39.970,00 e na I.P.A.T.Q.P, acrescida de € 3.997,00 por cada filho menor a seu cargo (2 filhos); b) subsídio de elevada incapacidade no valor de € 5.533,70; c) prestação para auxílio de terceira pessoa no valor 461,14 mensais; d) a quantia de € 25,00 por conta de transporte; e) a quantia de € 62.540,58 a título de indemnização pela ITS. 19– A Fidelidade – Companhia de Seguros, S.A., presta ainda assistência e acompanhamento médico permanente ao autor. 20– O autor foi notificado, por ofício datado de 6 de julho de 2012, do despacho de arquivamento do inquérito n.º 6605/12.0... 21 – A presente ação deu entrada em 14 de abril de 2017, tendo a ré sido citada em 19 de abril de 2017. 23– Quando o veículo de matrícula ..-..-RF circulava nos termos descritos no ponto 1 – factos provados –, uma viatura de marca Range Rover, de cor verde escura, que circulava pela via de trânsito do meio, no mesmo sentido de marcha F…/A., efetuou uma manobra de mudança de direção, invadindo, de forma abrupta, a totalidade da via de trânsito por onde circulava o veículo de matrícula ..-..-RF. (dado como provado pela Relação) 24– Para não embater na viatura de marca Range Rover, o autor ensaiou uma manobra evasiva, sendo esta a causa de perda do controlo da viatura e do seu subsequente capotamento. (dado como provado pela Relação) Mantiveram-se como não provados os seguintes factos: 22 – O veículo de matrícula ..-..-RF circulava a uma velocidade não superior a 80 Km/h, atendendo ao facto do piso se encontrar molhado. 23- (passou a provado) 24- (passou a provado) 25– Antes do sinistro, o autor era habitual praticante de todos os tipos de desportos, designadamente os mais radicais e que envolviam grande disponibilidade de esforço físico. 26– O autor tornou-se incapacitado sexualmente, facto que causou um profundo abalo na sua vida marital.” Questão prévia da admissibilidade do recurso. Como diz Abrantes Geraldes, em Recursos em Processo Civil, 5ª edição, pág. 312, “… é admissível recurso de revista quando sejam suscitadas questões relacionadas com o modo como a Relação aplicou as normas de direito adjectivo conexas com a apreciação da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, maxime quando seja invocado pelo recorrente o incumprimento de deveres previstos no art. 662º.” Pode ser exercida, pois, censura sobre a aplicação o uso que a Relação fez dos poderes de reapreciação da matéria de facto (cfr. Ac. STJ de 9.7.2014, proc. 5944/07.6TBVNG.P1.S1; e o de 14.9.2021, no proc. 864/18.1T8VFR.P1. S1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt). Como assim, não existe obstáculo à apreciação do recurso que questiona, precisamente, o uso desses poderes. Do fundo do recurso. Do acórdão da Relação consta o excerto que aqui se transcreve: “ (…) E, até aqui [depois de analisar a restante prova produzida] continuamos sem ver demonstrada a presença de um terceiro veículo. Todavia, eis que surge, em contra-mão, na mesma sessão de audiência, a testemunha CC, que se identificou como teólogo, mais vocacionado para a psicoterapia, não tendo nunca contatado diretamente com o A. ou a com a sua atual representante legal, BB. Não tendo nunca sido referenciado como testemunha ocular, nos processos policiais e no do trabalho, foi com surpresa que o ouvimos dizer que, com a sua mulher [recentemente falecida, e também indicada como testemunha pelo autor, logo após o despacho saneador, não se estranhando, como refere o FGA, que o não tenham sido logo na pi (?)], assistiram ao acidente, lamentando até hoje não ter contatado as autoridades policiais de imediato. Com efeito, provinham do sul, de Fátima, e, já na VCI, do lado contrário ao Estádio do …, seguiam atrás do Ford escuro (do autor), ambos na faixa mais à direita, das três que existem no sentido sul-norte, quando, em cima da saída para o Mercado …, um Jeep grande e escuro (um Range Rover verde), provindo da segunda fila, do lado esquerdo, se atravessou abruptamente à frente do carro do autor, colocando em perigo todos os veículos que por ali seguiam. Para se desviar, o Ford saiu para o lado esquerdo, entrou em despiste aos “ss” (já depois da saída do Mercado …), passando a carrinha da Staples e indo embater nos rails do lado direito (sentido sul-norte). Assim, a passagem abrupta do terceiro veículo foi a causa do despiste do carro do A. A testemunha explicou não ter parado logo ali para não criar mais risco para os restantes utentes da via e por ter verificado que a carrinha da Staples o fez, estando assegurado o auxílio ao sinistrado, e não vendo necessidade de, numa via rápida daquelas, em dia de chuva, todos os veículos ficarem por ali imobilizados. Perante a estranheza de um testemunho imprevisto e novo, haveria que indagar exaustivamente da sua razão de ciência e credibilidade. Foi o que sucedeu. Explicou, então, que, com a mulher, era habitual irem a … em momentos que considerassem mais significativos, como por ocasião da Páscoa. Não se recordando de imediato do mês em que ocorreram os factos, foi então que se lembrou de ser Páscoa, para referir o mês de abril. Questionado pela razão de apenas agora surgir como testemunha e de como chegou à fala com o autor ou com a sua atual representante legal, a mulher deste, esclareceu que foi a sua falecida mulher quem tratou de tudo: procurou logo nesse dia, junto do INEM e dos Hospitais da cidade, saber onde se encontrava a vítima daquele acidente e, detetando-a no Hospital de …, entrou em contacto com as funcionárias administrativas, informando-as de que assistira ao acidente e disponibilizando o seu número de telefone para o caso de ser necessário alguém entrar em contacto consigo (era aquilo que poderíamos fazer como pessoas de bem). Mais tarde, meses à frente (em agosto, segundo julga), BB ligou à mulher da testemunha, tendo-lhe a D. FF (falecida mulher da testemunha) contado o que vira, como está em crer, mas não pôde precisar porque elas falaram entre si, não tendo a testemunha intervindo diretamente. Depois disso, nenhum dos dois (CC ou FF) foi contactado para nada oficial, senão agora para o julgamento Antes de atentarmos no valor e fiabilidade deste testemunho, cumpre saber o que disse BB a respeito destes contactos com a falecida mulher da testemunha CC. Foi inquirida na segunda sessão de julgamento, depondo de modo simples e plangente. Confirmou que, no Hospital de …, quando o seu marido aí se encontrava, uma funcionária lhe ia trazendo, quase todos os dias, papéis com n.ºs de telefone de pessoas que nem conhecia, a maioria indagando sobre o estado de saúde daquele, pois foi conhecido o aparato do acidente. Não respondeu nem telefonou a alguns deles, porque lidava com uma situação desesperadora, mas, mais tarde (talvez em setembro de 2012), telefonou à D. FF, que não conhecia, e obteve desta a informação de que presenciara o sinistro, descrevendo-lhe o modo como este se deu e a intervenção de um terceiro veículo. De posse desta informação, a depoente transmitiu-a à sua advogada, esperando que esta pudesse utilizá-la, se e quando possível. Perguntada sobre a razão por que, em 2015, atuando como representante do marido, em auto de tentativa de conciliação, perante o MP do Tribunal do Trabalho de …, disse “No dia 20.04.2012, pelas 11.00 horas, em serviço, no …, e segundo relato da Polícia, uma vez que o sinistrado não tem memória do acidente, sofreu o acidente dos autos – acidente de viação – ao dirigir-se a um cliente, quando conduzia um veículo automóvel ligeiro, tendo perdido o controlo do veículo, numa curva, e embatido no separador central seguindo-se o capotamento (…)”, não se referindo à presença do terceiro veículo, respondendo que o seu discurso no TT foi “com base nos relatórios que tinha” e que, porventura, “falhou ali qualquer coisa”. Quid iuris? Interveio ou não um terceiro veículo, provocando o despiste do A. e qual a dinâmica do despiste e capotamento? Volvendo aos testemunhos, já observámos apresentarem os dois primeiros fragilidades que não permitem coonestar a prova dos factos 23 e 24. Ressalvámos, então, pequenos pormenores que podem ajudar a compreender os movimentos e forças em que se traduz a dinâmica do acidente: o veículo do A. proveio detrás da carrinha da Staples e atravessou-se-lhe à frente; a via da esquerda, das três existentes, ficou transitável. A carrinha da Staples seguia na via mais à direita (sentido sul-norte). O carro do A. surgiu detrás da carrinha, passou à frente desta e foi embater nos rails. Estas circunstâncias são coincidentes entre os três testemunhos ditos presenciais e não há razão para deles duvidar, nestes segmentos. E o terceiro, CC? Por que foi afastado pela primeira instância? Consignou-se na sentença, nesta parte, o seguinte: «Afigura-se ao tribunal ser insólito e implausível que a testemunha, após ter presenciado um acidente como o descrito, em que – na versão por si apresentada em tribunal – o despiste ocorreu por causa de uma manobra perigosa do jipe, não tenha, em tempo útil, procurado dar a informação que tinha, como testemunha presencial, à polícia ou aos familiares do mesmo (para mais tendo sabido o Hospital para onde o condutor tinha sido levado). Também a dinâmica do acidente descrita pouco tem a ver com relatada na petição inicial. Note-se que a testemunha afirma que se desviou da viatura capotada. Trata-se de uma narrativa que pode ser engendrada por quem não assistiu ao embate. No entanto, somente quem assistiu sabe que, antes da viatura capotada sobre o pavimento, existia outro obstáculo (este anómalo). Referimo-nos à guarda de proteção retorcida que veio a causar estragos à IVECO (bem visível no croquis e nas fotografias). A testemunha não refere que se desviou da guarda retorcida (que ocupava a via de trânsito da direita, impedindo a sua passagem), não explicando como passou por ela sem se desviar. E se se tivesse desviado, para a via de trânsito central, não se percebe porque teve de se desviar da viatura capotada, já que esta não estava sobre tal via central». Salvo o devido respeito, discordamos desta perceção da prova em causa. Não pode afirmar-se que o normal para quem assiste a um acidente seja procurar fornecer à polícia ou aos familiares do sinistrado as informações de que disponha, sobretudo se não parar no local, engrossando as aglomerações de curiosos que dificultam o trânsito e a ação das autoridades policiais e médicas. Assegurando-se de que estão presentes outros cidadãos que podem solicitar a comparência de quem preste auxílio – como, no caso, os ocupantes da carrinha Staples – e circulando numa auto-estrada, o normal - parece-nos - é prosseguir o caminho e, logo que possível, prestar as informações que se detêm. Quem percorre e percorreu, quase diariamente, as estradas do país, por ex., nas idas e vindas para e das comarcas, tem a experiência de - assistindo a acidentes rodoviários, e assegurando-se da presença de pessoas que podem demandar o necessário socorro -prosseguir o caminho, só mais tarde procurando transmitir a informação de que dispõe. E porquê fazê-lo à Polícia ou à família da vítima (que nem se sabe quem seja), quando a primeira ideia é a de procurar saber do estado de saúde da pessoa sinistrada? Estamos em crer ser esse o imediato sentimento que se manifesta, pois não são todos os que mantêm a frieza de, ato contínuo, contatar as autoridades policiais. Então, estabelecer comunicação preferencial com o Hospital, surge para muitos (onde se inclui a relatora) como a solução não irracional de se inteirar do estado de saúde da vítima e explicar aí, então, estar-se disponível para o que for necessário, haja em vista o que se experienciou. Não podemos, por isso, assentir com a primeira observação consignada na sentença a este respeito. Quanto ao segundo argumento, é idêntica a conclusão. A testemunha explicou o que viu, mas não lhe foi perguntado como conseguiu passar, apesar da existência das guardas de proteção retorcidas, como ainda, e ao invés, vê-se do croqui de fls. 21 e da Ilustração de fls. 61 v.º do “Anexo Documental”, não ocuparem essas guardas senão a faixa da direita, tendo ainda as duas testemunhas inquiridas em primeiro lugar afirmado que a faixa da esquerda ficou transitável. Também se não vê que seja penhor de credibilidade de um testemunho de acidente a coincidência exata entre o respetivo conteúdo e o que se encontra descrito na pi (?), sendo que, no que aqui é essencial e lhe foi inequivocamente questionado – a causa do despiste do RF -, CC exibiu um depoimento sereno, verosímil e firme. Julgamos, com honestidade, estarem assim afastadas as razões pelas quais o tribunal a quo desprezou o testemunho de CC. Além disso, como começámos por explicitar, o valor da prova testemunhal não se mede pela quantidade, podendo o tribunal julgar provados os factos com base no depoimento de uma única testemunha ainda que toda a demais prova aponte em sentido contrário (o que aqui não sucede), desde que se atente no leitmotiv do bom senso e das regras da experiência. Finalmente, a razão pela qual a mulher do A., agora sua representante legal, não mencionou anteriormente - maxime em TT, único local onde verificamos ter dito algo sobre o sinistro - a versão que lhe transmitira a falecida mulher de CC, ainda que esta circunstância, contando com o testemunho deste último, assume uma importância menor. Consideramos compreensível a atitude da mulher do sinistrado, diante da calamidade que, de uma vez, desmoronou sobre a vida do seu marido, da sua própria e da dos dois filhos menores (a estes alude o relatório do INML e o auto de tentativa de conciliação do Tribunal do Trabalho), primeiro, porque tendo passado à sua advogada a mensagem prestada pela D. FF, BB esperou, naturalmente, que aquela a utilizasse nos termos legalmente cabíveis. Depois, em auto de conciliação no TT, e para efeitos de receber as indemnizações e pensões da seguradora do trabalho, a Fidelidade, não tendo a aí depoente, em representação do A., assistido ao sinistro, era suficiente dizer o que disse, porque, de facto, foi essa versão que ficou constando dos documentos oficiais, não tendo a informação passada pela D. FF sido tratada oficialmente (sendo certo que o lesado esperava, haviam mais de três anos, pela indemnização que imediatamente lhe seria atribuível, a do Trabalho). Finalmente, não vemos também o que pretendeu o julgador a quo quando afirmou ter o lesado sido notificado do arquivamento do inquérito relativo ao crime de ofensas à identidade física, a 6.7.2012, não tendo então reagido e prestado a informação fornecida pela D. FF. É que, em julho de 2012, a crer nas palavras de BB (e da testemunha CC), aquela não havia ainda falado com a D. FF; depois, porque, ignorando-se que terceiro veículo interveio e quem o conduzia, que sentido teria reiniciar um inquérito contra desconhecidos? Por estas razões, estamos convictos que não é razoável nem aceitável a desconsideração do testemunho de CC, do qual resulta a prova dos factos 23 e 24.” Como se nota, a Relação desconsiderou as razões avançadas pela 1ª instância para a descredibilização da testemunha CC e valorou decisivamente o depoimento por ela prestado, dando como provados os factos 23 e 24, inicialmente dados como não provados. Insurge-se o recorrente contra o facto de o acórdão recorrido ter valorado o depoimento da dita testemunha por tal depoimento não “impor” decisão diversa da da 1ª instância, devido ao facto de à 2ª instância escapar a imediação e a oralidade e, ainda, ao facto de a restante prova apontar toda ela no sentido decidido em 1ª instância, o que viciará o acórdão de nulidade, que radicará na violação quer da disciplina processual a que aludem os arts. 640º e 662º, n.º 1, quer do método de análise crítica da prova prescrito no art. 607º, nº 4, aplicável por força do disposto no art. 663º, nº 2, todos do CPC. Todavia, e em primeiro lugar, cumpre afirmar que nenhuma das alegadas violações implica a “nulidade processual” do acórdão. O acórdão só seria nulo nos termos do art. 615º do CPC, vício que não lhe é assacado, ou em consequência de uma nulidade processual antes cometida, que não foi identificada. Depois, à Relação, apesar de lhe escapar a imediação e a oralidade, características da 1ª instância, não lhe está vedada a possibilidade de valorar um depoimento que foi inicialmente desconsiderado e, com base no mesmo, alterar a matéria de facto provada Como se tem entendido, “com o sistema da documentação e registo da prova produzida na audiência final, a lei fez prevalecer a garantia do segundo grau de jurisdição sobre as vantagens da imediação na apreciação da prova testemunhal” e aceitou que “para a 2ª instância, esta falta de imediação não prejudicava a efectividade do princípio da livre apreciação da prova” (cfr. Ac. STJ de 21 de Maio de 2009, proc. n.º 08B1466, www.dgsi.pt). Por isso, “não obstante o papel relevante da imediação na formação da convicção do julgador e de essa imediação estar mais presente no Tribunal da 1.ª instância, daí não se retira que a convicção formada pelo julgador na 1ª instância deva, sem mais, prevalecer sobre o juízo probatório formado pelo Tribunal da Relação sobre cada um dos factos julgados em 1.ª instância e objecto de impugnação, de acordo com as provas produzidas constantes dos autos e à luz do critério da sua livre e prudente convicção, nos termos do artigo 607º, nº 5, ex vi do artigo 663º, nº 2, ambos do Código Processo Civil, em ordem a verificar a ocorrência de erro de julgamento”(Ac. STJ de 5.12.2019, 13951/16.1T8LSB.L2.L1.S2). Aliás, o nº 1 do art. 662º do CPC, que o recorrente vê violado, dita precisamente o entendimento contrário. Como se escreveu , citando-se Luís Filipe Pires de Sousa, no Ac. STJ de 29.3.2022, proc. 893/19.8T8BJA.E1.S1, subscrito como adjunto pelo ora relator, “o Código de Processo Civil de 2013, com a redação conferida ao nº 1 do art. 662.º, ampliou substancialmente os poderes e deveres da Relação no âmbito da modificação da matéria de facto”; de acordo com o autor, “face a esta relevante alteração normativa, dúvidas não subsistem de que a Relação há-de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a primeira instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida, em função do princípio da imediação da prova ou de qualquer outro” (Prova por Presunção no Direito Civil, 3ª edição revista, 2017, Almedina, pág. 185). Por outro lado, não é pelo facto de a lei “impor” decisão diversa que o Tribunal da Relação deve valorar apenas erros notórios de apreciação da prova. Basta que a Relação adquira de forma inequívoca uma nova convicção a partir da prova produzida para que seja possível a modificação de facto. Como é jurisprudência e doutrina pacíficas, e se referiu, a Relação goza de autonomia decisória “competindo-lhe formar e formular a sua própria convicção sobre os meios de prova sujeitos a livre apreciação sem exclusão de presunções judiciais” (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, págs. 796 e 797). Ora, observando o acórdão recorrido, verifica-se que a Relação apreciou as provas segundo a sua convicção. Não a formou a partir de elementos desgarrados ou mediante juízos discricionários. Pode não concordar-se com alguns juízos ou determinadas afirmações que fez. Porém, não é ao Supremo que cabe apreciar a consistência desses juízos. Como se escreveu no acórdão de 30.11.2021, proc. 212/15.2T8BRG-B.G1.S1, não publicado, “não cabe ao tribunal de revista intrometer-se na apreciação do mérito da análise probatória realizada nem tão pouco na aferição da sua consistência; (…) ao tribunal de revista não [compete] sindicar o eventual erro desse julgamento nos domínios da apreciação e valoração da prova livre nem da livre e prudente convicção do julgador”. Dito de outra maneira, saber se o Tribunal da Relação decidiu bem ou mal é matéria que não compete ao Supremo, por se reconduzir à eventual existência de erro de julgamento, que não é sindicável em sede de recurso de revista cfr. Ac. STJ de 17.9.2024, proc.1484/21.9T8GMR.G1.S1). Como assim, não tem qualquer relevância para a sorte deste recurso alegar, com o propósito de evidenciar a existência de erro de julgamento, que “não foram detectados quaisquer indícios no local ou no veículo do autor a intervenção de um veículo desconhecido” ou que “o acidente foi qualificado no processo-crime ou no acidente de trabalho como um despiste” ou que a testemunha não está identificada na participação do acidente de viação e que não prestou anteriormente quaisquer declarações, Aliás, a Relação não disse o contrário. Simplesmente, , a partir de outro ponto de vista, formou outra convicção (ao aceitar, por exemplo, a justificação dada pela testemunha CC para o facto de não ter parado no local do acidente ou ao desvalorizar o facto de não haver coincidência exacta entre o conteúdo do depoimento e a versão da petição), convicção que o Supremo não pode avaliar ou sindicar. E não se pode dizer que a Relação tenha formado essa convicção sem “tomar em consideração todas as provas produzidas“ (art. 413º do CPC). Pelo contrário: como ressalta da transcrição atrás efectuada, a Relação tomou em consideração toda a prova produzida, que analisou detalhadamente. Também não colhe a argumentação de que se verificou o “cumprimento defeituoso por contradição intrínseca, do dever de fundamentação sobre cada um dos pontos da matéria de facto impugnada, de modo a explicar e justificar a autónoma convicção”, pois, como ressuma do acórdão, a Relação apreciou, de forma aprofundada, as vicissitudes da prova, sem que tenha incorrido em qualquer contradição lógica (que não é, aliás, identificada). Aliás, o art. 682º, nº 3 do CPC, que se indica como violado, tem a ver não com contradições na motivação dessa decisão mas com contradições na decisão da matéria de facto, que aqui não são identificadas. O recorrente invoca, ainda, a violação do art. 607º, nº 4, do CPC, no que respeita à análise crítica da prova. Porém, essa análise respeita apenas à indicação ou especificação das razões que se revelem decisivas para a formação da convicção do tribunal (cfr. Ac. STJ de 11.7.2019, 24369/16.6T8LSB.L1.S1), não respeita ao mérito e à consistência da análise probatória, que o tribunal de revista não pode avaliar (Ac. STJ de 1.10.2024, proc. 15319/18.6T8LSB.L1.S1). Ora, lida a fundamentação da decisão da Relação, não se verifica falta de análise crítica. Pode-se não concordar com o mérito da análise probatória, não se pode é afirmar que a Relação não procedeu à análise crítica da prova (de toda ela), que não indicou as razões que se revelaram decisivas para a formação da sua convicção. O recurso tem, assim, de improceder. Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido. Custas pelo recorrente. * Lisboa, 12 de Novembro de 2024 António Magalhães (Relator) Jorge Arcanjo Jorge Leal |