Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1029/22.3T8PVZ.P1.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: RICARDO COSTA
Descritores: CONTRATO DE MÚTUO
NULIDADE POR FALTA DE FORMA LEGAL
CONFISSÃO
DOCUMENTO PARTICULAR
FORÇA PROBATÓRIA PLENA
FORMALIDADES AD SUBSTANTIAM
OBRIGAÇÃO DE RESTITUIÇÃO
CONHECIMENTO OFICIOSO
RECONHECIMENTO DA DÍVIDA
LIVRE APRECIAÇÃO DA PROVA
DIREITO PROBATÓRIO MATERIAL
PROVA TABELADA
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
DECLARAÇÃO NEGOCIAL
ACÓRDÃO UNIFORMIZADOR DE JURISPRUDÊNCIA
Data do Acordão: 11/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: REVISTA IMPROCEDENTE
Sumário :

I. A força probatória plena de declaração confessória extrajudicial, plasmada em documento particular, depende, como requisito essencial, de ser feita e dirigida à parte contrária do confitente, nos termos do art. 358º, 2, e 376º, 2, do CCiv., sob pena de ser livremente apreciada pelo tribunal; se a parte contrária apresenta o documento em juízo, tal requisito fica demonstrado (art. 342º, 1, CCiv.).

II. A declaração confessória extrajudicial não pode valer como confissão se «for declarada insuficiente por lei» (art. 354º, a), 1.ª parte, CCiv.); esta inadmissibilidade da confissão abrange as declarações confessórias com menção ou reconhecimento de causa em que a declaração não observou a formalidade “ad substantiam” exigida para a validade formal do negócio subjacente à obrigação pecuniária reconhecida como facto confessado (no caso, o art. 1143º, em conjugação com o art. 364º, 1, do CCiv.), uma vez que o regime da causa (em especial, o da sua validade) se alarga ao regime da declaração confessória (enquanto meio de prova), desencadeando por isso a aplicação do art. 361º do CCiv. («O reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente.») e a consequente valoração da declaração como documento particular (nos termos do art. 376º, 1, do CCiv.).

III. A nulidade do contrato de mútuo por inobservância da forma legalmente prescrita (arts. 1142º, 1143º, 220º, CCiv.) obriga à restituição da quantia mutuada, acrescida de juros moratórios (arts. 286º («conhecimento oficioso») e 289º, 1, do CCiv.).

Decisão Texto Integral:
Processo n.º 1029/22.3T8PVZ.P1.S1

Revista – Tribunal recorrido: Relação do Porto, 3.ª Secção


Acordam na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. AA e BB intentaram acção declarativa, sob a forma de processo comum, contra CC e cônjuge marido DD, pedindo a condenação dos Réus a pagarem-lhes € 250.000,00, acrescidos de juros vencidos no valor de € 8.100,00, ou subsidiariamente, a declaração de nulidade do contrato de mútuo, sem observância de formal legal, e a condenação dos Réus a restituírem-lhes o mesmo valor de € 250.000,00. Para tanto alegaram que os Réus emitiram uma confissão de dívida no valor peticionado, com fonte em mútuo celebrado por si e por EE, de quem são únicos e universais herdeiros.

Os Réus apresentaram Contestação, alegando que apenas receberam dos autores o valor de € 30.000,00, no que se reporta à declaração junta aos autos, e invocando a nulidade do documento de reconhecimento de dívida. No mais impugnaram a factualidade alegada pelos autores e as conclusões de direito, concluindo pela improcedência da acção.

Os Autores apresentaram Resposta, mantendo o pedido e a causa de pedir e invocando a improcedência da excepção deduzida.

2. Foi proferido despacho saneador, com fixação do valor da causa em € 258.100,00.

3. Realizada a audiência final de julgamento, o Juiz ... do Juízo Central Cível ... proferiu sentença, na qual se decidiu:

“A) Julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência, declarar nulo o contrato de mútuo descrito em c) dos factos provados e, em consequência, condenar os réus a pagar aos autores trinta mil euros (€30.000,00), acrescidos de juros, contados desde a citação até integral pagamento, à taxa legal para juros civis;

B) Julgar a presente acção improcedente no restante e, em consequência, absolver os réus do restante pedido contra si formulado.”

4. Inconformados, os Autores interpuseram recurso de apelação para o Tribunal da Relação do Porto, que conduziu a ser proferido acórdão, no qual se julgou procedente a impugnação da matéria de facto, considerando provado sob a nova alínea c) o anterior facto não provado pela 1.ª instância (com modificações), improcedente o pedido de condenação dos Réus e Recorridos Apelados como litigantes de má fé e procedente a apelação, “revogando a decisão recorrida e, em substituição, condenar os réus/recorridos a pagarem aos autores/recorrentes, a quantia de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal, a contar desde a citação”.

5. Agora sem se resignarem, os Réus vieram interpor recurso de revista para o STJ, visando a revogação do acórdão e a manutenção da sentença de 1.ª instância e finalizando as suas alegações com as seguintes Conclusões:

“1 – Os Réus Recorrentes foram condenados a restituir o valor de 250.000€ por mero efeito da nulidade do contrato de mútuo por vício de forma.

2 – Para tanto valeu-se o Tribunal da Relação de “Declaração de Confissão de divida do empréstimo” considerando essa confissão como prova plena e tudo isso nos termos das disposições conjugadas dos Arts. 352, 358, 2, 375, 1 e 376, 2 do Código Civil.

3 – Desconsiderou, porém, o Tribunal da Relação as disposições dos Arts. 354, alª a), 364, nº 2 e 1143 do Código Civil e ainda do Art. 220 do mesmo Código.

4 – A confissão não faz prova contra os confitentes quando é declarada insuficiente por lei, Art. 354, alª a) do C. Civil, e a confissão extrajudicial dum mútuo tem que respeitar absolutamente a forma exigida para o mútuo já que essa forma é condição da sua validade, isto é, é condição “ad substantiam” e, por isso, a confissão para ser válida ou poder ser considerada só o poderia ser desde que respeitasse o disposto no Art. 364 do código Civil, ou seja, desde que a confissão resultasse de documento de igual ou superior valor probatório; isto é, a confissão teria que estar autenticada ou ser efectuada através de documento autêntico.

5 – Declarado como foi pelo Tribunal da Relação que o contrato de mútuo é nulo a obrigação de restituição só poderá fazer-se desde que os Recorridos efectuem a prova da entrega dos valores mutuados, o que jamais fizeram.

6 – Tal como afirmaram os Recorridos, no nº 8 da sua conclusão, ninguém entrega nem sequer possui em casa, uma tal quantia de dinheiro; ora, se não entregaram em dinheiro só existe a possibilidade de haverem entregue através de cheque ou transferência bancária, o que nunca alegaram nem provaram, o que se tivessem feito seria de fácil prova.

7 – Do retro exposto resulta que nunca o Tribunal da Relação poderia condenar os ora Recorrentes a liquidar aos Recorridos o valor de 250.000€ sem a prova da entrega desse valor já que a confissão exarada no documento junto aos autos é insuficiente nos termos do art. 354, alª a) e por isso não fazendo prova contra os confitentes; atente-se no título do art. que diz “Inadmissibilidade da confissão”.



Os Autores apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência da revista.


Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir, de acordo com o objecto recursivo delimitado pelas Conclusões da revista dos Réus e Recorrentes (arts. 635º, 2 a 4, 639º, 1 e 2, do CPC).

II) APRECIAÇÃO DO RECURSO E FUNDAMENTOS

1. Objecto do recurso

Em face do decidido pelo acórdão recorrrido, a questão da revista assenta na interpretação e aplicação dos arts. 352º, 353º, 354º, a) – este como normativo essencial de análise –, 355º, 4, 358º, 2, e 376º do CCiv. à confissão extrajudicial de declaração de dívida, tendo como subjacente um mútuo, emitida pelos Réus, em articulação com os arts. 1143º, 220º e 364º, também do CCiv.

Por um lado, está em causa a admissibilidade como confissão da “declaração confessória” de dívida resultante de mútuo em face da al. c) dos factos provados.

Por outro lado, tendo em conta o pedido subsidiário dos Autores, está em sindicação a obrigação de restituição do ou dos valores mutuados perante a eventual nulidade a título formal do mútuo celebrado entre as partes.

2. Factualidade

Foram os seguintes os factos considerados provados pelas instâncias, após modificação operada pelo acórdão recorrido.

“a) Por escritura pública de 2 de Setembro de 2021, exarada de fls. 31ª 31, verso, no livro de notas para escrituras diversas n.º 132, do Cartório Notarial de ... de FF, com certidão junta como documento n.º 1 junto com a petição inicial, cujo conteúdo aqui dou por reproduzido, AA declarou nomeadamente, em simultâneo com a apresentação das correspondentes certidões, que EE falecera em ... de Agosto de 2021, no estado de casado com a declarante, sucedendo-lhe como herdeiros a declarante e o seu filho, BB; (alínea a) dos factos assentes)

b) Os réus apuseram as suas assinaturas no escrito junto como documento n.º 2 junto com a petição inicial, datado de 28 de Dezembro de 2020, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, do qual consta nomeadamente o título “declaração de confissão de dívida do empréstimo” e “ser devedores da quantia de duzentos e cinquenta mil euros e sem juros a AA”; (alínea b) dos factos assentes)

c) Em momento anterior a 28 de dezembro de 2020, e ao longo de vários anos, EE e a autora AA entregaram aos réus, a solicitação destes, a quantia global de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), a título de mútuo, que estes usaram em proveito comum do casal.”

3. Fundamentação de direito

3.1. A pedra de toque das alegações dos Recorrentes consiste na alegada violação das regras de direito probatório material, por imputar ao acórdão recorrido a consideração de facto como provado recorrendo a disposições expressas da lei que fixam a força probatória de determinado meio de prova. De acordo com os Recorrentes, há erro de direito em aplicar ao caso o regime legal da confissão – como sustentado no acórdão recorrido –, uma vez que não se poderia ter convocado a natureza de “prova plena” da confissão traduzida na declaração de dívida resultante de “empréstimo”, tal como constante do doc. 2 junto com a petição inicial, datado de 28/12/2020, referida na al. b) dos factos provados, em face da inadmissibilidade da confissão à luz do art. 354º, a), do CCiv.

Este fundamento de alegação está coberto pela faculdade de impugnação excepcional da matéria de facto, nos termos dos arts. 674º, 3, 2.ª parte, e 682º, 2, 2.ª parte, do CPC (a contrario sensu): sindicação da aplicação dos efeitos de prova “vinculada” ou “tarifada” (impugnação de prova considerada pelo acórdão recorrido com força probatória plena).

Em cheque está a conclusão do acórdão recorrido, uma vez mobilizados os arts. 358º, 2, e 376º, 1 e 2, do CCiv.:

“(…) pelo que se mostra perfeitamente provado que a declaração de dívida que consta do documento junto aos autos, e assinado pelos réus, não nos deixa dúvidas do valor da dívida dos réus aos autores, o que justifica a alteração da matéria de facto, eliminando-se o facto não provado e passando esse facto não provado a constar do facto provado c) (…).”

3.2. Resultou provado que os Réus apuseram as suas assinaturas nesse documento, no qual consta do título a menção de “declaração de confissão de dívida do empréstimo”.

Nesse documento assinado pelos Réus consta o seguinte:

Nós abaixo assinando CC (…) e pelo Marido DD (…) Declaro para devidos efeitos legais ser devedores da quantia de Duzentos e cinquenta mil euros e sem juros a AA (…) Comprometemo-nos a pagar a referida quantia no dia 28 de Dezembro de 2021”.

Uma vez que nessa declaração os Réus reconhecem a realidade de um facto que lhes é desfavorável (serem devedores da quantia monetária de € 250 000,00) e favorece a parte contrária (a aqui Autora e credora AA), estamos na presença, para efeitos de qualificação do meio de prova, de uma confissão, de acordo com o art. 352º do CCiv.

E confissão eficaz e extrajudicial – porque feita fora de processo em juízo –, de acordo com os arts. 353º, 1, e 355º, 1 e 4, do CCiv.

E ainda confissão feita por escrito e assinada em documento particular (arts. 358º, 2, 363º, 2, e 373º, 1, do CCiv).

3.3. Não tem aqui aplicação o disposto no art. 458º, 1, do CCiv. («Se alguém, por simples declaração unilateral, prometer uma prestação ou reconhecer uma dívida, sem indicação da respetiva causa, fica o credor dispensado de provar a relação fundamental, cuja existência se presume até prova em contrário.»), pois esta disposição legal respeita às situações em que alguém reconhece uma dívida sem indicar a relação que está na origem da mesma. Ora, no caso sub judice, os aqui Réus enunciaram expressamente no documento referido na alínea b) dos factos provados a causa da dívida reconhecida, declarando que esta se reporta a um “empréstimo”, não sendo necessário presumir a existência de causa pois a mesma resulta da própria declaração de dívida – como bem sustentou o acórdão recorrido.

3.4. De acordo com o art. 358º, 2, do CCiv., a confissão extrajudicial, em documento autêntico ou particular, considera-se provada nos termos aplicáveis a estes documentos e, se for feita à parte contrária ou a quem a represente, tem força probatória plena; caso contrário, será livremente valorada pelo juiz1.

Assim, enquanto documento particular que enforma a confissão, temos documento com a força probatória conferida pelo art. 376º do CCiv., de modo que, nos termos do n.º 1 (documento particular), sendo a autoria reconhecida (basta não ser impugnada, nos termos do art. 374º, 1, do CCiv.), faz prova plena quanto às (i) declarações atribuídas ao seu autor (“materialidade das declarações feitas no documento”2), sem prejuízo da arguição e prova da falsidade do documento.

Por sua vez, preceitua o n.º 2 do mesmo art. 376º que (ii) os factos compreendidos na declaração se consideram provados na medida em que forem contrários aos interesses do declarante, enquanto confissão desses factos; e, acrescenta-se, «a declaração é indivisível, nos termos prescritos para a prova por confissão» (nos termos do art. 360º do CCiv.) – ou seja, tanto a declaração confessória incide sobre a existência do que é declarado pelos declarantes, como sobre o reconhecimento do facto declarado como confessado, indissociavelmente, sempre com prevalência do previsto no art. 358º do CCiv.3.

De todo o modo, a força probatória de declaração confessória escrita, independentemente de ser plasmada em documento particular, para ser plena, tem sempre que – especificamente enquanto confissão – ser feita à parte contrária, pois só assim se garante a força probatória plena da declaração confessória como reconhecimento do facto confessado em sentido desfavorável ao interesse do declarante e favorável à parte contrária nos efeitos da declaração – pois esse é objecto da confissão de acordo com o art. 352º do CCiv., independentemente de ser escrita e documentada, e dele não nos podemos desligar4. E neste objecto é que se aplica a parte final do art. 358º, 2: prova plena se – na condição, portanto, de ser – feita à parte contrária favorecida (ou quem a represente): “a exigência da sua direção à contraparte do confitente visa uma finalidade que prescinde da efetiva receção pelo destinatário, esgotando-se com o sentido que lhe é imprimido pelo declarante ao dirigi-la; basta, por isso, a iniciativa por este tomada (…); a declaração confessória feita à parte contrária, na previsão do art. 358-2 CC, é uma declaração dirigida, mas não uma declaração recetícia”, por ser “mais credível quando feita, por escrito, à parte favorecida pela realidade do facto confessado”5.

Só assim será de compreender o alcance do art. 358º, 2, na relação com o art. 376º, 1 e 2, do CCiv., tendo em conta a especificidade do meio de prova confissão.

Ora, é de afirmar, quanto a este requisito, que, perante este regime, a declaração confessória tem que ser feita perante os credores, aqui Autora/Autores, ou comunicada ou dirigida aos credores, aqui Autora/Autores, para ser provida da força probatória plena quanto ao facto confessado – a dívida da quantia em dinheiro de € 250.000.

Ora, os Autores apresentaram com a petição inicial essa declaração, como Doc. 2, demonstrando que a declaração fora dirigida e, inclusivamente, recebida pelos credores da dívida confessada, na qualidade de parte contrária dos confitentes (art. 342º, 1, do CCiv.).

Sem prejuízo.

3.5. Mesmo assim, a confissão não tem idoneidade para fazer prova contra o confitente se «for declarada insuficiente por lei»: art. 354º, a), 1.ª parte, do CCiv.

Na verdade, é insuficiente a confissão “quando a lei exige uma forma especial para a existência do acto, como, por exemplo, escritura pública; já não quando essa exigência se destine à simples prova da declaração (cfr. art. 364.º, n.º 2)”6. Ou seja, quando o facto confessado(-reconhecido) implica a observância de uma “formalidade ad substantiam” (e não uma “formalidade ad probationem”), de acordo com o art. 364º, 1, do CCiv.7.

No caso, estamos perante uma declaração confessória com menção ou reconhecimento da causa, em que o facto confessado – a dívida de uma certa quantia em dinheiro – tem a sua fonte na celebração de um contrato de mútuo, com a obrigação de o mutuário – aqui, os declarantes – restituírem «outro tanto do mesmo género e qualidade» (art. 1142º do CCiv.) – aqui, a quantia de € 250.000, até certa data e sem juros. A existência de “causa negocial” para o facto reconhecido por via da confissão é que faz a diferença, uma vez que o regime da causa (em especial, o da sua validade) se alarga ao regime da declaração confessória (enquanto meio de prova). Na verdade, afirmar que “se contraiu o mútuo de x ou que se deve x por contrato de mútuo é a mesma coisa”; estamos perante um “reconhecimento causal” equivalente a uma confissão também inerente à celebração do mútuo subjacente (“A figura da declaração confessória da realização e do conteúdo dum negócio jurídico (…) integra assim um reconhecimento causal.”)8.

Se assim é, a declaração confessória tem que adoptar a forma exigida para a causa subjacente ao facto reconhecido na declaração – neste caso, o mútuo –, pois é evidente que o reconhecimento da obrigação pecuniária de restituição está fundado nesse mesmo mútuo e só assim se admite o seu reconhecimento na declaração feita.

Assim sendo, aplica-se, para a validade formal do mútuo, a norma do art. 1143º do CCiv.: «Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de mútuo de valor superior a € 25 000 só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado e o de valor superior a € 2 500 se o for por documento assinado pelo mutuário».

No caso, consta da factualidade apurada que a dívida reconhecida diz respeito a um “empréstimo”, sendo utilizada a forma singular, no valor único e global de € 250.000,00.

Uma vez que na alínea c) dos factos provados se dá como provado que o referido valor de € 250.000,00 foi entregue aos réus ao longo de vários anos, cabia aos Autores, que invocam a celebração do contrato de mútuo, o ónus de alegação e prova dos respectivos factos constitutivos, que incluem, necessariamente, os factos que comprovem a observância da forma legal, alegando e provando o valor de cada um dos “empréstimos” realizados – ou “parcelas” do “empréstimo” –, demonstrando que cada um tinha valor inferior a € 250.00,00 – o que não se logrou.

Sendo o valor do mútuo, no único montante apurado em termos finais, superior a € 25.000, a validade de tal contrato dependia da sua celebração por escritura pública ou por documento particular autenticado – formalidade ad substantiam, de acordo com o art. 364º, 1, do CCiv. –, pelo que a forma legalmente exigida não pode ser substituída por outro meio de prova ou por outro documento que não seja de força probatória superior.

É precisamente ao art. 364º, 1, do CCiv. que a al. a) do art. 354º se refere quando torna irrelevante a confissão que seja insuficiente à luz da lei aplicável – no caso, a lei aplicável à validade da causa negocial da confissão extrajudicial escrita.

Logo, para valer como confissão extrajudicial escrita (e fazer prova plena contra o confitente, se fosse o caso) haveria que documentar a declaração confessória através da forma exigida para o mútuo subjacente e causal, sob pena de inadmissibilidade da confissão.

Ora, a forma exigida para a validade formal do mútuo (civil), para o montante mutuado, não foi observada na declaração confessória, uma vez aplicado o que se determina no art. 1143º do CCiv.

Se assim é, temos que aplicar o art. 361º do CCiv.:

«O reconhecimento de factos desfavoráveis, que não possa valer como confissão, vale como elemento probatório que o tribunal apreciará livremente

É o que julgamos ser a solução para a primeira questão colocada nesta instância pelos Recorrentes, conduzindo a que, em parte, as Conclusões dos Recorrentes possam ser sufragadas quanto – e apenas quanto – à inadmissibilidade como confissão da declaração de dívida; logo, tal documento particular escrito, insusceptível de valer como declaração confessória, está sujeito à livre apreciação no reconhecimento dos factos desfavoráveis ao declarante.

Posto isto.

3.6. Se a declaração de dívida não pode ser valorada como confissão, deve ser valorada como documento particular, de acordo com o art. 376º, 1, do CPC: prova plena quanto à autoria-proveniência e à existência da materialidade das declarações e prova sujeita a livre apreciação do julgador quanto ao demais conteúdo intrínseco do documentado (veracidade e validade das declarações representadas, tendo em conta os factos desfavoráveis de reconhecimento de crédito alheio)9.

Ficou provado que, em momento anterior a 28 de Dezembro de 2020, “ao longo de vários anos”, EE e a Autora AA “entregaram aos Réus, a solicitação destes, a quantia global de € 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil euros), a título de mútuo, que estes usaram em proveito comum do casal” – alínea c), depois de modificação pela Relação.

O facto de ser emprestado por mútuo a quantia de € 250.000 pode resultar da livre apreciação do julgador da prova constante do processo ou da construção de presunções judiciais ou de facto, nos termos do art. 607º, 4, e 5, 1.ª parte, uma vez excluída a confissão como meio de prova e a sua eventual força probatória plena, nos termos do art. 607º, 5, 2.ª parte, do CPC, sempre por força do art. 663º, 2, do CPC.

Neste contexto, excluindo-se agora a confissão como prova plena e independentemente dela, o acórdão recorrido argumentou:

“Ouvida a prova gravada e analisados os documentos dos autos, resulta que:

Os réus admitem ter assinado o documento onde se confessam devedores da quantia de € 250.000,00;

A ré admite ter sido a própria a escrever o conteúdo de tal documento;

Desse documento consta que a dívida é resultante de empréstimo;

Os réus admitiram, nas suas declarações de parte, terem recebido € 30.000,00 por conta desse empréstimo, referindo a ré que os recebeu no dia em que entregou o documento de confissão de dívida assinado.

Por sua vez, os autores, também em declarações de parte, disseram que o valor que consta do documento referido, é o total de vários empréstimos em dinheiro, que foram feitos ao longo dos anos.

Ora, confrontando as declarações de parte dos autores e dos réus, somos forçados a concluir que a versão dos factos apresentada pelos réus/recorridos não merece credibilidade, desde logo porque nenhuma outra prova existe que vá ao seu encontro, sendo, ainda, certo que as regras da experiência comum não permitem acreditar que alguém assina uma declaração/confissão de dívida, de um valor como o que está em causa, se não tiver recebido a quantia correspondente.

Já as declarações dos autores são corroboradas pelo teor do documento em causa, sendo que as afirmações de que o valor total do empréstimo resulta de vários empréstimos em dinheiro, feitos ao longo dos anos, acaba mesmo por ser confirmado pelas declarações dos réus, os quais admitem terem recebido 30.000,00 euros, precisamente por conta do valor da dívida que confessaram (embora refiram que não chegaram a receber o restante, o que, como referido, não se afigura credível).”

A decisão sobre a matéria de facto proferida pela Relação, neste contexto fora da prova “tarifada” e sujeita à livre apreciação, conducente ao facto provado c) – tendo concorrido também para isso a confissão escrita tida como “tarifada”, agora subtraída –, não foi objecto de impugnação nem pode ser sindicada em revista.

Nem sequer foi impugnado o modo de construção presumida da al. c) dos factos provados, como ao STJ poderia ter sido pedido (como presunção judicial ou de facto) no que respeita, em especial, às entregas “ao longo de vários anos”.

Logo, o que temos no acórdão recorrido – após se excluir a consideração da declaração confessória como prova plena, como aqui se entendeu previamente – é uma decisão de facto insindicável nos termos do art. 662º, 1 e 4, do CPC, na mobilização de prova livre e submetida ao superior escrutínio do julgador, sem afastamento pelos Recorrentes desta regra por força das impugnações admitidas em revista para superar essa insindicabilidade (nomeadamente para controlo da, ou das, presunções de facto tiradas para modificação da al. c) dos factos provados).

De todo o modo – entrando no pedido subsidiário dos Autores.

3.7. Não se provaram os montantes entregues para finalizar esse montante global ou único de € 250.000 mutuados: seja a quantia de cada uma das entregas; seja o momento de cada uma dessas entregas.

Ao contrário da 1.ª instância, que considerou provada a entrega apenas de € 30.000 a título de mútuo, em momento anterior a 28 de Dezembro de 2020, por EE aos Réus, a solicitação destes, a Relação considerou provado ter havido sucessivas “entregas”, que constituíram e concorreram para um mútuo de € 250.000.

Não havendo essa prova quanto aos sucessivos “empréstimos”, e respectivo montante – tendo ficado arredado o provado quanto aos € 30.000 –, apenas temos como provada a entrega de uma quantia de € 250.000, a título de mútuo, sem validade formal de acordo com o art. 1143º do CCiv., em conjugação com o art. 220º, uma vez não provada a observância da forma exigida para o mútuo de uma quantia com aquele montante, isto é, superior a € 25.000.

Tal nulidade acarreta a aplicação dos arts. 286º («declarada oficiosamente pelo tribunal») e 289º, 1 («efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente»), do CCiv.

3.8. Foi esta igualmente a conclusão do acórdão recorrido, que se sufraga, tendo sido tal conhecido pelas partes para efeitos de reacção nesta revista (v., em esp., a Conclusão 1. da revista).

Na verdade, a Relação partiu do teor do documento de declaração de dívida e, através da conjugação da prova produzida e das “regras de experiência comum”, considerou provado o que consta da alínea c).

Por isso, concluiu, de direito, que, “ainda que se considere que os mútuos feitos ao longo do tempo possam, em parte, ser nulos por falta de forma, nos termos do art. 220.º do Código Civil, nomeadamente o mútuo do valor de € 30.000,00 admitido pelos réus, o certo é que, ainda que o mútuo esteja ferido de nulidade por inobservância de forma, daí não se segue que os Réus devessem ser absolvidos da restituição da totalidade do valor em dívida, pois, conforme jurisprudência pacífica do STJ, declarada a nulidade do contrato de mútuo o mutuário está obrigado a restituir o capital mutuado, com juros de mora a contar da citação, como consequência da declaração de nulidade (…)”.

Efectivamente, constitui jurisprudência consolidada do STJ que, da declaração de nulidade, susceptível de conhecimento oficioso (arts. 286º, CCiv.; 608º, 2, 2.ª parte, CPC), de um contrato de mútuo, com efeito retroactivo, nos termos dos arts. 286º e 289º, 1, do CCiv., “resulta a obrigação de restituição integral da quantia recebida pelo “mutuário” na pressuposição da validade do mútuo, ficando sem efeito todas as cláusulas eventualmente acordadas entre as partes, nomeadamente as referentes à retribuição do mútuo e a garantias prestadas” – como se asseverou no recente Ac. de 12/12/202310, em concretização do que se acentua, em geral, sobre os efeitos da declaração da nulidade na doutrina civilística11.

Em abono, foi proferido o AUJ do STJ n.º 3/2018, de 12/12/201712, que uniformizou jurisprudência no seguinte sentido: “O documento que seja oferecido à execução ao abrigo do disposto no art. 46.º, n.º 1, al. c), do CPC de 1961 (na redacção dada pelo DL n.º 329-A/95, de 12-12), e que comporte o reconhecimento da obrigação de restituir uma quantia pecuniária resultante de mútuo nulo por falta de forma legal goza de exequibilidade, no que toca ao capital mutuado.”

Pode ler-se, com pertinência, na fundamentação desse AUJ o seguinte:

“(…) uma vez constatada a nulidade do negócio subjacente ao título executivo apresentado e sendo esse vício do conhecimento oficioso, tal título pode valer de fundamento, não para o cumprimento específico do contrato, mas para a restituição do que houver sido prestado, como consequência legal da nulidade, nos termos do art. 289.º, n.º 1, do CC. Daí que o título não possa valer, designadamente, para exigir os juros que tenham sido estipulados no contrato, por este ser nulo, mas apenas os juros de mora, à taxa legal desde a citação para a acção executiva, por força do que dispõem os arts. 805.º, n.º 1, e 806.º do mesmo código.”

Logo, por esta via, é de chegar ao mesmo resultado decisório que chegou a Relação: a condenação à restituição da totalidade da quantia em dinheiro mutuada, por aplicação dos arts. 220º, 286º, 289º, 1, 1142º e 1143º do CCiv., acrescida de juros moratórios, uma vez assente a não alteração dos factos consolidados em 2.ª instância em face da insindicabilidade da decisão sobre a matéria de facto.

Assim sendo.

Falece o constante das Conclusões 5. a 7. (1.ª parte) da revista, razão pela qual, ainda que com fundamentação não inteiramente coincidente, há que confirmar o acórdão recorrido, uma vez subsumido o direito aos factos provados (art. 682º, 1 e 2, do CPC).

III) DECISÃO

Em conformidade, julga-se improcedente a revista, confirmando-se o acórdão recorrido.

Custas pelos Recorrentes.

STJ/Lisboa, 12/11/2024

Ricardo Costa (Relator)

Maria Teresa Albuquerque

Cristina Coelho

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)

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1. LUÍS PIRES DE SOUSA, Direito probatório material comentado, Almedina, Coimbra, 2020, sub art. 358º, pág. 96.↩︎

2. LUÍS PIRES DE SOUSA, Direito probatório… cit., sub art. 376º, pág. 163.↩︎

3. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A confissão no direito probatório, 2.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pág. 284 e nt. 23.↩︎

4. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, “Artigo 358º”, Código Civil anotado, Volume I (Artigos 1.º a 761.º), com a colaboração de M. Henrique Mesquita, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, pág. 318, ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Artigo 358º”, Código Civil comentado, I, Parte geral (artigos 1.º a 396.º), coord.: António Menezes Cordeiro, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 1035; no STJ v. o Ac. de 10/4/2024, processo n.º 5217/17, in www.dgsi.pt.↩︎

5. JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A ação declarativa comum à luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2013, pág. 261.↩︎

6. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, “Artigo 354º”, ob. cit., pág. 315; convergente: JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A ação declarativa comum… cit., pág. 257.↩︎

7. PIRES DE LIMA/ANTUNES VARELA, “Artigo 364º”, ob. cit., págs. 322-323.↩︎

8. V., neste sentido, JOSÉ LEBRE DE FREITAS, A confissão… cit., págs. 450 e ss, com sublinhado nosso.↩︎

9. V. LUÍS PIRES DE SOUSA, “Artigo 376º”, Direito probatório… cit., págs. 161-162, 163 (seguindo ADRIANO VAZ SERRA na eficácia probatória dos documentos particulares: “Provas (Direito probatório material)”, BMJ n.º 112, 1962, págs. 69, 77); em aplicação, v. o Ac. do STJ de 2/3/2021, processo n.º 918/12, in www.dgsi.pt.↩︎

10. Processo n.º 1981/20, in www.dgsi.pt.↩︎

11. Por todos, CARLOS MOTA PINTO, Teoria geral do direito civil, 4.ª ed. por António Pinto Monteiro e Paulo Mota Pinto, Coimbra Editora, Coimbra, 2005, págs. 625-626.↩︎

12. Publicado in DR, 1.ª Serie, n.º 35, de 19/2/2018, pág. 1000 e ss.↩︎