Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | ISABEL SALGADO | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO ACIDENTE DE TRABALHO DANO BIOLÓGICO DANOS PATRIMONIAIS CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO CUMULAÇÃO DE INDEMNIZAÇÕES RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL | ||
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Data do Acordão: | 05/28/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
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Sumário : | I. A avaliação ressarcitória do dano da incapacidade funcional permanente - défice funcional permanente, que exige critérios de equidade, comporta um juízo de difícil prognose da vida futura do lesado, de mera probabilidade, devendo orientar o julgador os padrões de indemnização prosseguidos em casos análogos pelo Supremo Tribunal, na procura de uma justiça relativa. II. Tendo o lesado em consequência do acidente abandonado o trabalho noturno extra e os trabalhos ocasionais de pichelaria pelo quais auferia acréscimo remuneratório, necessário se torna repercutir a perda patrimonial no valor da indemnização, olhando ao tempo de vida activa restante. III. Em caso de acidente de viação e de trabalho, as respectivas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares, não sendo de deduzir a indemnização devida por acidente de trabalho já paga ao sinistrado em processo de acidente de trabalho, assumindo carácter subsidiário em relação ao responsável civil por facto ilícito. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça I. Relatório 1. AA intentou a presente acção declarativa de condenação em processo comum, contra Lusitânia Companhia de Seguros, S.A., alegando em síntese que, em consequência do acidente de viação que descreve, sofreu graves danos físicos e materiais, que a Ré está obrigada a indemnizar, uma vez que o sinistro ocorreu por culpa exclusiva do condutor do veículo seu segurado. Pede assim que a Ré seja a condenada a pagar : a) da quantia de € 242.092,53 (duzentos e quarenta e dois mil e noventa e dois euros e cinquenta e três cêntimos), acrescida de juros legais a contar da citação; b) as quantias a liquidar em execução de sentença referente a danos patrimoniais e não patrimoniais consequentes das intervenções cirúrgicas e demais tratamentos a que foi e que terá que ser submetido e despesas medicamentosas que suportou e terá que continuar a suportar; c) as indemnizações a liquidar em execução de sentença referente a danos patrimoniais e não patrimoniais decorrentes do agravamento futuro das sequelas de que o autor ficou a padecer e da necessidade do auxílio de terceira pessoa para a realização de atos da vida diária. Em 15 de junho de 2022 (ref. ......24, fls. 477) o autor apresentou requerimento no qual retirou, ao abrigo do disposto nos arts. 46.º, n.º 2, e 465.º, n.º 2, ambos do Cód. Proc. Civil, o alegado no art. 108.º da petição inicial – alegação de que ao valor de € 200.000,00 peticionado a título de indemnização por incapacidade total permanente para os trabalhos habituais de ...e ... ‘deverá ser deduzida a quantia já recebida pelo autor de € 32.907,47 a título de capital de remissão de pensão de acidente de trabalho, pelo que o valor daquele pedido se reduz a € 167.092,53’. No decurso do processo a ré aceitou a responsabilidade do segurado pela eclosão do acidente, mantendo a sua impugnação quanto ao valor da indemnização reclamada, natureza e dimensão dos danos alegados pelo Autor, que reputa de excessivos e desconformes com o estabelecido na lei e os critérios da jurisprudência em situações análogas. Realizada a audiência de discussão e julgamento, o Senhor Juiz proferia sentença que julgou parcialmente procedente a acção, nos termos do seguinte dispositivo -« condena -se a ré Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A. a pagar ao autor AA: a) a quantia de € 7.092,53 (dois mil setecentos e treze euros, setenta e três cêntimos), a título de danos patrimoniais, acrescida de juros de mora contados desde a data de citação e até efetivo pagamento, sendo devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil1; b) a quantia de € 50.000,00 (cinquenta mil euros), a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros contados desde a data da presente decisão (atualizadora) e até efetivo pagamento, sendo os juros devidos à taxa legal que em cada momento vigorar, através da portaria prevista no art. 559.º do Cód. Civil. Condeno ainda a ré Lusitânia, Companhia de Seguros, S.A. a, relativamente à medicação analgésica e consultas de acompanhamento médico na área de Medicina Física e de Reabilitação e tratamentos fisiátricos ulteriores ao encerramento da audiência final, liquidar ao autor o preço: 1. dos medicamentos analgésicos prescritos em receita médica, de acordo com esquema do médico assistente, para fazer face às dores que constituem sequelas do sinistro; 2. das consultas de acompanhamento médico na área de Medicina Física e de Reabilitação, na sequência das sequelas decorrentes do sinistro; 3. dos tratamentos fisiátricos que forem prescritos pelo médico fisiatra.» 2.Inconformadas, ambas as partes interpuseram recurso de apelação que foram julgados por acórdão do tribunal da Relação do Porto, conforme o seguinte dispositivo- « Pelo exposto, esta secção do tribunal da relação acorda em: julgar a apelação da ré integralmente improcedente por não provada; julgar a apelação do autor parcialmente por provada e, por via disso, condenar a ré no pagamento da quantia de 50.000 (cinquenta mil euros) a título de danos patrimoniais (dano biológico), sem qualquer dedução, acrescido de juros nos termos fixados, confirmando-se no restante a decisão recorrida.» 3. Revista Inconformada, a Ré interpõe recurso de revista, ao abrigo dos artigos 629º nº1 e 671º nº1 do C.P.C; no final das suas alegações extraiu as conclusões que se transcrevem: «1-Não concorda a Recorrente com o entendimento do tribunal a quo que entendeu ampliar o montante do dano biológico para €50.000,00. 2- Não concorda a Recorrente com o entendimento do tribunal a quo segundo o qual não é dedutível, ao Dano Biológico na vertente patrimonial, a indemnização que o A. tinha já recebido a título de acidente de trabalho. 3- Não teve em conta o tribunal a quo na ampliação do dano biológico na vertente patrimonial, que de acordo com Relatório sobre a Avaliação da Capacidade de Trabalho e de Ganho e do Potencial de Reabilitação e Reintegração Profissional, junto aos autos, o A. manifestou elevada satisfação face às funções que realiza, tendo concluído, aquele relatório, que o trabalho que o A. desenvolve é compatível com o seu perfil e funcionalidade. 4-Nas atuais funções desempenhadas pelo A., não existe qualquer esforço suplementar. 5-O Tribunal a quo, na ampliação do valor de Dano Biológico, teve em consideração um défice permanente de 17 pontos (atente-se ao ponto 3- Dano Biológico, 9º paragrafo, do Acórdão em análise) quando, na verdade, o défice permanente do A., de acordo com o relatório de pericial do dano em direito civil do INML, foi de 11 pontos. 6-Entende a Recorrente que o valor total de €50.000,00, a título de dano biológico, fixado pelo tribunal a quo, é um exagero tendo em conta as sequelas do A. e o défice de 11 pontos e é uma decisão atentadora das regras de equidade. 7- Não ficou provado, pelo A., qual o valor auferido nos trabalhos extra, nem tão pouco qual a periodicidade da realização desse trabalho. 8-Não teve em consideração o tribunal a quo que não é devido o acréscimo remuneratório por trabalho noturno quando a retribuição do trabalhador tenha sido acordada, aquando da celebração do contrato de trabalho, tendo já em conta o horário de trabalho prestado e a especial penosidade do trabalho noturno. 9-A lei admite que a prestação de trabalho noturno não confira o direito a acréscimo remuneratório “Quando a retribuição seja estabelecida atendendo à circunstância de o trabalho dever ser prestado em período noturno” [art.º 266/3/al.c, do CT]. 10- Andou mal o tribunal a quo em conferir um acréscimo indemnizatório tendo em conta o trabalho noturno e extra. 11-Insurge-se a Recorrente quanto à posição do juiz a quo em não deduzir ao montante fixado a título de dano biológico, seguindo a Recorrente o entendimento do tribunal da 1ª instância neste aspeto. 12-Olvidou o tribunal a quo na sua fundamentação que o montante atribuído a título de dano biológico, foi na sua dimensão patrimonial: perda de capacidade de ganho, conforme é referido na sentença da primeira instância. 13-O A. na P.I peticiona indemnização por dano patrimonial futuro, puro, e não por dano biológico, facto que não foi tido em conta pelo tribunal a quo. 14-A indemnização pela perda da capacidade de ganho tem, exatamente, a mesma natureza da indemnização fixada em sede de acidentes de trabalho para compensar a perda de rendimentos salariais associada ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidentes de trabalho e compensado pela atribuição de um certo capital de remição. 15-Ambas as indemnizações (laboral e dano biológico na vertente patrimonial) se destinam a compensar o mesmíssimo dano, sendo que as estas, não são cumuláveis, mas antes complementares – artigo 17.º da Lei n.º 98/2009, de 4 de setembro. 16-O Autor está a ser indemnizado duas vezes pelo mesmo dano, ou seja, duas compensações pelo reflexo que as lesões sofridas tiveram na sua capacidade de ganho. 17-Concorda integralmente a recorrente com a decisão do tribunal a quo quanto á dedução da indemnização recebida no processo de AT, porque as duas indemnizações, civis e laborais, não podem ser cumuláveis, tal como vem sido decidido pelos tribunais superiores, cujas exemplos de algumas decisões constam das contra-alegações. 18-Tendo em conta o artigo 9 nº3 da Portaria 377/2008 de 26 de maio nos casos em que não haja lugar à indemnização pelos danos previstos na alínea a) do artigo 3 (Dano Patrimonial Futuro), é também inacumulável a indemnização por dano biológico com a indemnização por acidente de trabalho. 19- Deve o acórdão recorrido ser revogado e proferido douto acórdão que, dando procedência ao recurso interposto, declare que a indemnização pela perda da capacidade de ganho arbitrada nos presentes autos e a indemnização em sede de acidentes de trabalho têm a mesma natureza e se destinam a indemnizar os mesmos danos e, em consequência, determine a dedução desta indemnização na primeira, com as legais consequências, o que se requer. * Nas contra-alegações o autor pugnou, em síntese, pela improcedência da argumentação da Ré e a subsistência do julgado. * O autor interpôs recurso subordinado que não foi admitido, conforme decisão da relatora proferida na reclamação apensa. * II. Admissibilidade e objecto do recurso Mostram-se preenchidos os requisitos de admissão da revista, em conformidade com o disposto nos artigos 629º, nº1 e 671º, nº1 do CPC.2 Sendo o objecto do recurso delimitado pelas conclusões do recorrente (cfr. artigos 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, do Código do Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do Código do Processo Civil), importa apreciar e decidir se, é adequado in casu o montante de Euros 50.000,00, fixado a título de reparação dos danos patrimoniais - “dano biológico”, e se deve ser deduzido o valor pago ao autor em sede do acidente de trabalho. III. Fundamentação A. Os Factos Vem assente das instâncias: 1– No dia ... de ... de 2013, cerca das 23 horas e 35 minutos, o veículo ligeiro de passageiros ..-..-ZN circulava Estrada Nacional n.º 12 (estrada da Circunvalação), ao km 8,2, no sentido A../Am, conduzido por BB, seu proprietário à data. 2 – A estrada da Circunvalação é composta por duas faixas de rodagem, separadas por um separador central, permitindo uma o trânsito no sentido A../Am (estrada Exterior da Circunvalação) e a outra no sentido Am.../A (estrada Interior da Circunvalação). 3 – No referido local, a faixa de rodagem da estrada Exterior da Circunvalação: é plana, descrevendo uma reta, sendo a faixa de rodagem visível em toda a sua largura a mais de 50 metros de distância; b) é constituída por duas vias de trânsito, ladeada pela direita, considerando o seu sentido único, por uma berma e pela esquerda por um separador central em betão e área ajardinada, interrompido em áreas de cruzamento; c) é entroncada pelo seu lado direito, considerando o seu sentido único, pela rua ...; d) situa-se dentro de uma localidade, sendo ladeada por diversas habitações, estabelecimentos comerciais e instalações hospitalares como o Hospital de ... e o ...; e) é iluminada por diversos postes de iluminação pública; f) tem o pavimento asfaltado, limpo e bem conservado. 4 – No referido dia, hora e local, o tempo estava seco. 5 – O veículo ..-..-ZN circulava pela estrada Exterior da Circunvalação, no seu referido sentido único, pela via de trânsito na direita. 6 –O autor seguia como passageiro no banco traseiro do veículo ..-..-ZN, deslocando-se com os seus colegas de trabalho para o seu local de trabalho. 7 – No mesmo dia e hora, circulava na rua ..., em aproximação à estrada da Circunvalação, o veículo ligeiro de passageiros ..-..-ZS, propriedade de E..., lda, conduzido por CC. 8 – A condutora do veículo ..-..-ZS pretendia cruzar a faixa de rodagem da estrada Exterior da Circunvalação, transpor a abertura do separador central existente na zona de entroncamento e iniciar a circulação, no sentido Am.../A, pela estrada Interior da Circunvalação. 9 – Na rua ... existe um sinal de STOP junto ao entroncamento com a estrada Exterior da Circunvalação, que se apresenta ao trânsito que circula nesta rua com destino à estrada da Circunvalação. 10 – A condutora do veículo ..-..-ZS não deteve a sua viatura junto ao sinal referido no ponto 9 – factos provados –, não aguardando a passagem do veículo ..-..-ZN. 11 – O veículo ..-..-ZS intercetou a trajetória do veículo ..-..-ZN, quando este se encontrava a não mais do que 3 metros de distância, sendo embatido pela parte frontal deste na sua parte lateral esquerda. 12 – Em resultado do embate, o autor sofreu um movimento de chicote cervical, com embate da cabeça no banco da frente. 13 – A ré, enquanto seguradora, e o E..., lda, enquanto tomador, declararam acordar que a primeira assumiria o risco da ocorrência de sinistros causados pelo veículo de matrícula ..-..-ZS, nos termos constantes do documento intitulado apólice n.º .....44, junto aos autos e que aqui se dá por transcrito, suportando a indemnização eventualmente devida a terceiros lesados. 14 – Em resultado do sinistro referido: a) Durante 2 dias, o autor viu totalmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal; correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal; b) Durante 227 dias, o autor viu parcialmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos correntes da vida diária, familiar e social, como alimentar-se e fazer a sua higiene pessoal; c) Durante 2 dias, o autor viu totalmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos próprios da sua atividade profissional; d) Durante 227 dias, o autor viu parcialmente condicionada a sua autonomia na realização dos atos próprios da sua atividade profissional; e) O autor sofreu dor quantificável num grau 4, numa escala até 7 (quantum doloris);f) O autor ficou definitivamente afetada na sua integridade física e psíquica, com repercussão nas atividades da vida diária, incluindo familiares e sociais, num grau 11, numa escala até 100;g) O autor sofreu uma afetação da sua aparência (imagem estética) num grau 2, numa escala até 7;h) A consolidação médico-legal das lesões sofridas pelo autor ocorreu em ... de março de 2014. 15 – Após o sinistro, e em consequência deste ou dos tratamentos das lesões dele decorrentes, o autor: a) em .... de julho de 2013, foi admitida no serviço de urgência do Hospital de ...; b) à entrada no Hospital de ..., padecia de:i) ferida corto contusa da mucosa da boca; ii) sensação de parestesias e dor nos membros superiores; iii) lesão cervical (existente, mas não diagnosticada de imediato) em C5-C6 e C6-C7, com volumosas procidências disco-osteofíticas posteriores, associadas a hipertrofia dos ligamentos posteriores, que reduzem marcadamente o calibre do canal medular, com possível compressão do canal medular; o cordão medular apresenta nestes dois níveis um ténue hipersinal em T2; discopatia do nível C6-C7 estendendo-se para a esquerda, podendo contactar e comprimir a raiz C7 esquerda, no seu trajeto para o buraco de conjugação; compressão radicular C6-C7 bilateral moderado a grave e C5 esquerdo; c) no Hospital de ...: i) foi medicado com ibuprofeno, bem como com paracetamol e tramadol; ii) realizou raio-X da coluna vertebral e ecografia abdominal; d) em .... de julho de 2013, teve alta do Hospital de ...; e) compareceu a consulta externa ou realizou exames complementares de diagnóstico em:i) ... de julho de 2013, compareceu a consulta externa no Hospital ..., com queixa de cervicalgia; ii) 25 de julho de 2013, realizou eletromiografia;iii) 26 de julho de 2013, realizou RMN da coluna cervical; iv) 29 de outubro de 2013, compareceu a consulta externa no Hospital ..., com queixa de perda de força motora, tendo indicação para cirurgia; v) em ... de março de 2014, compareceu a consulta externa no Hospital ...; f) realizou tratamentos de medicina física de reabilitação durante três meses no Hospital de ...; g) em 31de outubro de 2013 foi sujeito a cirurgia no Hospital ... (discectomiae artrodese tipo Smith Robinson C5-C6 e C6-C7 com placa Slim Line da Zimmer); h) em 1 de novembro de 2013, teve alta do Hospital ...; i) após a alta hospitalar, usou colar cervical; j) 30 dias após a alta hospitalar, iniciou tratamentos de fisioterapia, que manteve até fevereiro de 2014; k) apresenta permanentemente:i) mancha cicatricial rosada, oblíqua, situada na face lateral direita do pescoço, com 3cm de comprimento, quase impercetível; ii) mobilidade (rigidez) cervical: flexão máxima 40º, extensão máxima 40º, rotação direita máxima 40º, rotação esquerda máxima 60º; iii) cicatriz linear e hipopigmentada, oblíqua, situada no quadrante abdominal inferior direito, com 4 cm de comprimento; iv) reflexo tricipital diminuído à esquerda; v) necessidade de medicação analgésica segundo esquema do médico assistente, e acompanhamento médico na área de Medicina Física e de Reabilitação, com tratamento fisiátrico com a periodicidade definida pelo médico fisiatra; vi) necessidade de realizar esforços suplementares no exercício da sua atividade profissional; l) sente: i) dor cervical ocasional; ii) maior dificuldade em manter pinça contra resistência entre D1-D4 e D1-D5, bilateralmente. 16 – O autor nasceu em ... de ... de 1973. 17 – Na data do acidente, o autor sofria, desde há cerca de 20 anos, de dores nas costas. 18 – Até à data do acidente, o autor era normalmente bem constituído e trabalhador. 19 –O sinistro, os tratamentos a que foi sujeito e as sequelas físicas por aquele provocadas: a) causaram ao autor dor física, dificuldades em dormir; b) ficou impossibilitado de correr e fazer grandes caminhadas c) tem maior dificuldade na realização de movimentos finos com as mãos; d) tem maior dificuldade em pegar em objetos com peso superior a 2 kg; e) deixou de praticar futebol f) causaram e causam tristeza e angústia ao autor. 20 – À data do acidente, o autor prestava trabalho por conta de outrem para os C.. . ........ .. ......... .... com a categoria profissional de carteiro. 21 – Em junho de 2013, o autor recebeu os seguintes abonos brutos por conta de outrem pelo exercício da profissão de carteiro (..) Total de 1417,78. 22 – Nos seguintes anos, o autor declarou apenas rendimentos brutos por conta de outrem, e nos seguintes valores: a) 2012 -14 896,88; b) 2013 12 016,63; c) 2014 12 587,94; d) 2015 14 433,37; e) 2016 8 567,52. 23–Em resultado do acidente, o autor ficou com uma incapacidade parcial permanente para o trabalho de 16,7%. 24 – No âmbito do processo por acidente de trabalho instaurado com base no acidente dos autos, o autor recebeu o capital de remição de € 32.907,47. 25 – A Companhia de Seguros Ageas Portugal, S.A., por força do contrato de seguro do ramo “acidentes de trabalho, trabalhadores por conta de outrem”, celebrado com C.. ........ .. ......... ...., titulado pela apólice n.º ............27, tendo o autor como beneficiário, pagou diretamente ao autor indemnização por incapacidade temporária e assumiu custos e despesas com tratamentos e deslocações efetuadas ao autor no âmbito de prestações (em espécie) por acidente de trabalho, que ascenderam a € 25.019,24, sendo € 7.266,15 a título de indemnização pelos períodos de incapacidade temporária. 26 – A ré procedeu, em novembro de 2017, ao pagamento/reembolso à Companhia de Seguros Ageas Portugal, S.A. do montante de € 25.019,24 referido em 25 – factos provados. 27 – Entre 24 de fevereiro de 2016 a 14 de junho de 2016, o autor esteve de baixa médica, com incapacidade temporária para o trabalho certificada com “classificação da situação” como “doença natural”. 28 – A avaliação de desempenho do autor anualmente efetuada pela sua entidade patronal teve os seguintes resultados, numa escala crescente de 1 a 4: 2008 a 2012 2 (adequado); 2013 a 2014 3 (relevante). 29 – A avaliação de desempenho do autor anualmente efetuada pela sua entidade patronal teve os seguintes resultados, numa escala crescente de 1 a 5: 2015 - 2,3; 2016 – 1,9; 2017- 2; 2018- 2,1; 2019-1,9; 2020- 2,5. 30 – Antes do acidente o autor exercia todas e quaisquer tarefas inerentes à sua categoria profissional, nomeadamente, efetuava cargas e descargas, divisão de médios, divisão de finos, tirava serviço das máquinas de divisão e dividia encomendas, entre outros, sem qualquer tipo de limitação. 31 – Após o acidente, o autor ficou sem poder executar algumas das tarefas inerentes à categoria de ... profissional acima referidas, nomeadamente, as tarefas que exigissem condução de veículos, manipulação de cargas com mais de 2 Kgs, estatismos prolongados em carga, movimentos finos com os dedos das mãos efeito pinça, e movimentos da cabeça frequentes. 32 – Até à data do acidente, o autor sempre prestou trabalho noturno, auferindo subsídio de trabalho noturno e subsídio de pequeno-almoço. 33 – Pelo trabalho noturno prestado o autor auferia um valor médio mensal de € 141,00 mensais e a título de subsídio de pequeno-almoço um valor médio mensal de € 19,21 34 – Em resultado das sequelas de que ficou a padecer, o autor deixou de efetuar trabalho noturno. 35– Após o acidente, o autor passou a cumprir tarefas, tidas pela entidade empregadora como compatíveis com o seu perfil de funcionalidade, de organizar (dividir) correio não separado automaticamente pelos distribuidores automáticos, procedendo ao registo em sistema informático específico e encaminhando-o para o serviço de distribuição. 36 – O autor manifesta elevada satisfação perante solução adotada pela sua entidade patronal. 37– O autor executava ainda, de forma ocasional e por sua conta, serviços de pichelaria, com o respetivo pagamento de uma contraprestação monetária. 38 – As sequelas de que o autor ficou a padecer impedem o autor de executar tais serviços. * B. Enquadramento Jurídico Está em discussão o valor da indemnização a atribuir ao autor em resultado de acidente de viação de que foi vítima, no que respeita ao dano decorrente da incapacidade funcional permanente, “dano biológico”, na sua dimensão patrimonial, tal como denominado pelas partes e pelas instâncias. A título preliminar a mencionar que o conceito doutrinal do “dano biológico,” referido pelas partes e pelas instâncias, potencia aferições de forma desgarrada e nem sempre rigorosa, privilegiando-se por isso a denominação o dano da incapacidade funcional permanente/défice funcional permanente.3 Orientação que sufragamos, conforme se decidiu nesta secção no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21-04-2022, acerca da natureza do dano da incapacidade funcional permanente/défice funcional permanente (que vem sendo também designado por “dano biológico”) - «(…) o dano biológico tanto pode ser ressarcido como dano patrimonial, como pode ser compensado a título de dano moral; tanto pode ter consequências patrimoniais como não patrimoniais. Ou seja, depende da situação concreta sob análise, a qual terá de ser apreciada casuisticamente, verificando-se se a lesão originará, no futuro, durante o período activo do lesado ou da sua vida, e por si só, uma perda da capacidade de ganho ou se se traduz, apenas, numa afectação da sua potencialidade física, psíquica ou intelectual, sem prejuízo do natural agravamento inerente ao decorrer da idade. Tem a natureza de perda ‘in natura’ que o lesado sofreu em consequência de certo facto nos interesses (materiais, espirituais ou morais) que o direito violado ou a norma infringida visam tutelar (…)» Assim, é entendimento pacífico que mesmo as pequenas incapacidades ainda quando não impliquem directamente uma redução da capacidade de ganho, constituem sempre um dano patrimonial indemnizável (seja de natureza patrimonial, seja como dano não patrimonial – ou, se quisermos, classificado naquele tertium genus), dada a inferioridade em que o lesado se encontra na sua condição física, quanto à resistência e capacidade de esforço. Com efeito, uma incapacidade permanente parcial não se esgota na incapacidade para o trabalho, constituindo em princípio um dano funcional, mas sempre, pelo menos, um dano em si mesmo que perturba a vida da relação e o bem-estar do lesado ao longo da vida. Pelo que é de considerar autonomamente esse dano, distinto do referido dano patrimonial, não se diluindo no dano não patrimonial, na vertente do tradicional pretium doloris ou do dano estético. O lesado não pode ser objecto de uma visão redutora e economicista do homo faber. A incapacidade permanente (geral) de que está afectada a vítima constitui, nesta perspectiva, um dano em si mesmo, cingindo-se à sua dimensão anátomo-funcional. A incapacidade permanente geral (IPG) corresponde a um estado deficitário de natureza anatómica-funcional ou psicosensorial, com carácter definitivo e com impacto nos gestos e movimentos próprios da vida corrente comuns a todas as pessoas. Pode ser valorada em diversos graus de percentagem, tendo como padrão máximo o índice 100. Esse défice funcional pode ter ou não reflexo directo na capacidade profissional originando uma concreta perda de capacidade de ganho”.» 4 * Nos autos, a sentença arbitrou nesse segmento a indemnização no valor de € 40 000,00 pela repercussão do dano biológico na atividade laboral e subtraiu o valor de € 32.907,47, correspondente ao montante da indemnização já satisfeita ao autor em sede laboral, condenando a Ré a pagar ao autor o valor remanescente de € 7.092,53. O acórdão da Relação alterou a indemnização para o valor de € 50 000,00, pelas razões já mencionadas e sem qualquer dedução. A recorrente discorda, desde logo, do incremento do valor final da indemnização alegando em suporte, que é de 11 e não 17, o défice permanente do autor, de acordo com o relatório de pericial do dano em direito civil do INML, o trabalho noturno não tem de ser remunerado e, a circunstância de o desempenho profissional actual do autor apresentar nível de satisfação. Que dizer? Está em debate a avaliação do dano da incapacidade funcional permanente -défice funcional permanente, para o qual haverá de se recorrer a critérios de equidade, nos termos do art. 566.º, n.º 3, do Código Civil. Significando que o cálculo de uma indemnização ressarcitória deste tipo de danos implica um juízo de difícil prognose da vida futura do lesado no futuro, de mera probabilidade, devendo orientar o julgador os padrões de indemnização prosseguidos em casos análogos pelo Supremo Tribunal, na procura de uma justiça relativa nos termos do artigo. 8.º, n.º 3, do Código Civil. Importará, pois, atender à perda da capacidade aquisitiva de rendimentos que a incapacidade funcional acarreta ao longo da vida do lesado, os esforços acrescidos que empreenderá para exercer a sua atividade profissional e as limitações e restrições inerentes à sua realização pessoal e que digam respeito ao comprometimento da prática de actividade físicas, desportivas e lúdicas que até à ocorrência do sinistro aquele levava a cabo. Nesse desiderato, o Supremo Tribunal de Justiça vem observando, tal como v.g. seu Acórdão de 25-02-2021: «I- A determinação de indemnizações por dano biológico, na sua vertente patrimonial, e particularmente por danos não patrimoniais, obedece a juízos de equidade assentes numa ponderação casuística, à luz das regras da experiência comum. II - Esse «juízo de equidade das instâncias, alicerçado, não na aplicação de um estrito critério normativo, mas na ponderação das particularidades e especificidades do caso concreto, não integra, em bom rigor, a resolução de uma questão de direito, pelo que tal juízo prudencial e casuístico das instâncias deverá, em princípio, ser mantido.»5 No Acórdão do STJ de 18-10-2018 –« (..) V. Tendo o ajuizamento no cálculo da indemnização levado a efeito por qualquer das instâncias – “maxime” pela Relação – se fundado, em último e decisivo termo, em critérios de equidade e sem dissociação de entendimentos “minimamente uniformizados” e, portanto, compaginando-se com a exigível segurança na aplicação do direito e demais imperativos decorrentes do princípio da igualdade, deverá tal juízo prudencial e casuístico, em princípio, ser mantido pelo STJ..»6 Ou ainda, como se expôs a propósito no recente Acórdão do STJ de15-03-2022 «(…) V - Não estando em causa a aplicação de critérios normativos, não compete ao STJ sindicar o exacto valor indemnizatório fixado, mas proceder apenas ao controle dos pressupostos normativos do recurso à equidade e dos limites dentro dos quais deve situar-se o juízo equitativo, nomeadamente em função dos princípios da proporcionalidade e da igualdade conducentes à razoabilidade do valor encontrado.»7 Prosseguindo estes parâmetros, analisemos a situação em juízo. O acórdão da Relação assentou o valor arbitrado de Euros 50.000,00 (na componente biológica) no quadro factual seguinte: i) défice permanente que atinge 16,7 -17 (ponto 32 dos factos provados; ii) as consequências patrimoniais futuras; iii) a necessidade de realizar esforços suplementares no exercício da sua atividade profissional- tal com consta dos pontos 23, 30, 31, 33, 34, 37 e 38 dos factos provados. Considerou que o valor fixado neste domínio na sentença - Euros 40,000,00- se afigurava proporcional ao dano biológico no caso em concreto e adequado, se comparado com os valores semelhantes atribuídos pela jurisprudência; acresceu ainda a exigência da repercussão da perda patrimonial do lesado verificada em consequência da impossibilidade de realizar o trabalho noturno extra, remunerado e ainda os trabalhos ocasionais de pichelaria, perfazendo o total de Euros 50.00,00. Revisitada a jurisprudência mais recente deste tribunal, destacando pelo recorte factual próximo ao caso em juízo, os citados Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 7-3-2019, no processo nº 203/14, e de 6-2-2020, no processo nº 2251/12 - incapacidade de 19% - valor da indemnização 40 mil euros, não nos merece qualquer reparo o valor arbitrado de Euros 40.000,00. Argumenta ainda a ré recorrente que o tribunal recorrido errou ao relevar o trabalho noturno como perda patrimonial, pois que, a sua prestação não corresponde necessariamente a um acréscimo de remuneração. Os argumentos invocados não têm suporte na matéria de facto provada, conforme resulta dos pontos 32, 33 e 34 dos factos provados. Pelo que necessário se torna repercutir a perda patrimonial do autor, resultante da interrupção do trabalho noturno extra, pelo qual auferia acréscimo remuneratório certo, e também pelos trabalhos ocasionais de pichelaria remunerados (em valor não apurado) olhando ao tempo de vida activa restante (cerca de 18 anos) é devida e, o valor 10.000,00 ajustado à perda futura desse rendimento, em consequência do acidente. Em suma, o valor de Euros 50.000,00 arbitrado pela Relação na reparação do dano biológico - dimensão patrimonial- não justifica qualquer intervenção de retificação pelo Supremo. Improcede este fundamento do recurso. * Finalmente, a recorrente persiste na exigida dedução do valor já recebido pelo autor em sede da responsabilidade devida por acidente de trabalho, que afirma corresponder à indemnização pela perda da capacidade de ganho, que tem a mesma natureza da indemnização fixada em sede de acidentes de trabalho para compensar a perda de rendimentos salariais, associada ao grau de incapacidade laboral e compensado pela atribuição de um certo capital de remição. A questão suscitada pela recorrente deixou há muito de dividir a jurisprudência dos tribunais superiores. Na simultaneidade de acidente de viação e de trabalho, as respectivas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares; por outro lado, a responsabilidade laboral pela ocorrência do sinistro assume carácter subsidiário em relação ao responsável civil por facto ilícito.8 Premissas que se filiam no ensinamento de Vaz Serra sobre a matéria, assim sintetizado - “A solução de que as indemnizações por acidentes simultaneamente de viação e de trabalho se não cumulam e apenas se completam até ao ressarcimento total do dano causado ao lesado é manifestamente exacta, pois a finalidade da indemnização é reparar o prejuízo causado ao lesado e não atribuir a este um lucro.”9 Do que resulta que a indemnização laboral é consumida ou pode vir a ser consumida pela indemnização que venha a ser arbitrada com base em facto ilícito, beneficiando desta consumpção o responsável a título laboral.10 Podendo então afirmar-se que em tal circunstância, de concurso de responsabilidades para ressarcimento dos mesmos danos, existe uma pluralidade de responsáveis, a título solidário, sendo um caso de solidariedade imprópria, porquanto o responsável a título laboral pode fazer repercutir no terceiro responsável a totalidade da responsabilidade que lhe cabe. A temática justificou, de resto, tratamento exaustivo no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.2012, proferido nesta secção e o qual se transcreve para melhor elucidação: « (…) não é controvertida a conclusão segundo a qual a responsabilidade primacial e definitiva é a que incide sobre o responsável civil, quer com fundamento na culpa, quer com base no risco, podendo sempre a entidade patronal ou respectiva seguradora repercutir aquilo que, a título de responsável objectivo pelo acidente laboral, tenha pagado ao sinistrado. Desta fisionomia essencial do concurso ou concorrência de responsabilidades (que não envolve um concurso ou acumulação real de indemnizações pelos mesmos danos concretos) pode extrair-se a conclusão que este figurino normativo preenche, no essencial, a figura da solidariedade imprópria ou imperfeita, já que:- no plano das relações externas, o lesado/sinistrado pode exigir alternativamente a indemnização ou ressarcimento dos danos a qualquer dos responsáveis, civil ou laboral, escolhendo aquele de que pretende obter em primeira linha a indemnização, mas sem que lhe seja lícito somar, em termos de acumulação real, ambas as indemnizações; - no plano das relações internas, a circunstância de haver um escalonamento de responsabilidades, sendo um dos obrigados a indemnizar o responsável definitivo pelos danos causados, conduz a que tenha de se outorgar ao responsável provisório (a entidade patronal ou respectiva seguradora) o direito ao reembolso das quantias que tiver pago, fazendo-as repercutir definitivamente, directa ou indirectamente, no património do responsável ou responsáveis civis pelo acidente. Têm sido, todavia, acentuadas algumas particularidades ou aspectos específicos e peculiares desta relação de solidariedade imprópria. Assim:- no que toca ao regime das relações externas, acentua-se que (ao contrário do que ocorre na normal solidariedade obrigacional – art. 523º do CC ) o pagamento da indemnização pelo responsável pelo sinistro laboral não envolve extinção, mesmo parcial, da obrigação comum, não liberando o responsável pelo acidente de viação: é que, se a indemnização paga pelo detentor ou condutor do veículo extingue efectivamente a obrigação de indemnizar a cargo da entidade patronal, já o inverso não será exacto, na medida em que a indemnização paga por esta entidade não extinguiria a obrigação a cargo do responsável pela circulação do veiculo que causou o acidente (cfr., por exemplo, o Ac. de 19/10/10, proferido pelo STJ no P. 696/07.2TBMTS.P1.S1); e daí que se qualifique como sub-rogação legal (e não como direito de regresso) o fenómeno da sucessão da entidade patronal ou respectiva seguradora nos direitos do sinistrado contra o causador do acidente, referentemente à parcela da indemnização que tiver satisfeito ( cfr. Acs. de 9/3/10, proferido pelo STJ no P. 2270/04.6TBVLG.P1.S1, e de 11/1/01, proferido no P. 4760/07.0TBBRG.G1.S1);- no plano das relações internas, tem sido acentuado que o quadro normativo aplicável é o que resulta estritamente do disposto na lei dos acidentes de trabalho em vigor (actualmente, o art. 31º da Lei 100/97), sendo esse direito ao reembolso do responsável laboral efetivado necessariamente por uma de três formas: - substituindo-se ao lesado na propositura da acção indemnizatória contra os responsáveis civis, se lhe pagou a indemnização devida pelo sinistro laboral e o lesado não curou de os demandar no prazo de 1 ano a contar da data do acidente; - intervindo como parte principal na causa em que o sinistrado exerce o seu direito ao ressarcimento no plano da responsabilidade por factos ilícitos, aí efetivando o direito de regresso ou reembolso pelas quantias já pagas; - exercendo o direito ao reembolso contra o próprio lesado, caso este tenha recebido (em processo em que não haja tido lugar a referida intervenção principal) indemnização que represente duplicação da que lhe tinha sido outorgada em consequência do acidente laboral”.»11 No mesmo sentido ilustra o Acórdão do STJ de 11-07-2019- «I- Em caso de acidente de viação e de trabalho, as respectivas indemnizações não são cumuláveis, mas antes complementares, assumindo a responsabilidade infortunística laboral carácter subsidiário. II – Na condenação da seguradora no pagamento da indemnização devida por acidente de viação não se deve deduzir a indemnização devida por acidente de trabalho já paga ao sinistrado em processo de acidente de trabalho.»12 Afirma ainda a recorrente que este dano ora ressarcido corresponde precisamente àquele outro pelo qual o autor foi já ressarcido pela seguradora do trabalho e que determinou o capital de remissão recebido pelo autor- (ponto 24 dos factos provados, no valor de € 32.907,47). Não se acompanha a conclusão. O dano da incapacidade funcional permanente-défice funcional permanente (“dano biológico”) corresponde a uma realidade que mesmo no plano do estrito do rebate no património do lesado, não se confunde com a perda de rendimentos salariais associada ao grau de incapacidade laboral a atender no processo laboral. A pensão atribuída no âmbito da reparação do acidente de trabalho visa indemnizar tout court a perda ou diminuição da capacidade geral de ganho do sinistrado. O dano da incapacidade funcional permanente/défice funcional permanente (“dano biológico”) consiste numa lesão na integridade do sujeito enquanto pessoa, na sua globalidade psicofísica, do qual podem decorrer danos patrimoniais e/ou danos não patrimoniais, podendo os primeiros assumir feição de danos emergentes ou de lucros cessantes, e que contempla, para além do resto, a maior penosidade e esforço no exercício da actividade corrente e profissional do lesado. Se em razão desse dano corporal, o lesado tem de desenvolver esforços suplementares para a realização das tarefas profissionais, ainda que não lhe seja determinado diminuição do salário, existe ainda assim uma incidência danosa com expressão patrimonial, podendo impedir a ou dificultar a progressão, ou novos trabalhos. De qualquer forma, ainda que concebível a invocada sobreposição de danos indemnizados, o que não sucede in casu, face ao quadro normativo vigente, sendo a responsabilidade primacial e definitiva do responsável civil, é a entidade patronal ou respectiva seguradora que poderá fazer repercutir aquilo que, a título de responsável objectivo pelo acidente laboral, tenha pagado ao sinistrado. Diversamente, os responsáveis pela reparação dos danos emergentes de acidente de trabalho ficam desonerados do pagamento de indemnização destinada a ressarcir os mesmos danos já reparados pelos responsáveis dos danos consequentes ao acidente de viação.13 * Concluindo, não colhe o pretendido abatimento na indemnização arbitrada que se vem de analisar, dos valores de capital de remição pagos ao autor pela seguradora laboral; bem andou a Relação ao alterar nesse ponto a sentença. IV. Decisão Pelo exposto, julga-se improcedente a revista, confirmando o julgado. * As custas são a cargo da ré recorrente. Lisboa, 28.05.2024 Isabel Salgado (relatora) Ana Paula Lobo Fernando Baptista _______
1. Este valor resultou da fixação de indemnização no valor de € 40 000,00 pela repercussão do dano biológico (dimensão patrimonial) subtraído o montante da indemnização já satisfeita ao autor em sede laboral (de € 32.907,47), condenando a ré no pigmento ao autor no valor remanescente – € 7.092,53. 2. Cfr. também nota 1; a Ré recorrente perdeu em toda a linha o recurso de apelação. Quanto ao segmento indemnizatório que ora impugna na revista , respeitante ao valor atribuído pelo “dano biológico” - vertente material, o autor reclamava a indemnização no valor de Euros 200, 000,00 ; a sentença fixou o seu valor em Euros 40,000,00, abatendo de seguindo o montante pago ao autor no âmbito do pr4oecesos por acidente de trabalho (a)no total de € 7.092,53 ; a Relação veio a fixar a indemnização em € 50.000,00 e excluiu a dedução do valor pago ao autor em sede laboral . Estão, pois, preenchidos os requisitos gerais do valor da acção e da sucumbência -cf. AUJ n.º 7/2022 de 18.10- a conjugação do critério da reformatio in mellius com o critério da segmentação da decisão por componentes indemnizatórias; cf. também, AUJ nº10/2015, de 14.05.2015. 3. O “dano biológico” foi consagrado em texto de lei na portaria nº 377/2008 de 26.5, que o define como “o dano pela ofensa à integridade física e psíquica (dano biológico), de que resulte ou não perda da capacidade de ganho, determinado segundo a Tabela Nacional para Avaliação de Incapacidades Permanentes em Direito Civil” 4. Relatado por Fernando Baptista, membro do Colectivo, no processo n.º 96/18.9T8PVZ.P1. S1, disponível em www.dgsi.pt. 5. Cf. Acórdão do STJ de 25-02-2021, proc. nº 3014/14.0T8GMR.G1. S1, in www.dgsi.pt 6. No proc. nº3643/13.9TBSTB.E1. S1 in www.dgsi.pt 7. No proc.nº2957/12.0TCLRS.L1. S1, in www.dgsi.pt 8. Cf. Acórdão do STJ (secção social) de 14.12.2016, no proc. n.º 1255/07.5TTCBR-A.C1. S1, in www.dgsi.pt. 9. Em anotação ao acórdão do STJ de 30.05.1978, in RLJ Ano 111º, páginas 327 e seguintes. 10. Actualmente a Lei n.º 98/2009, de 04 de setembro. 11. No proc n.º 40/08.1TBMMV.C1. S1 em revista excecional e relatado por Lopes do Rego, disponível in www.dgsi.pt. 12. No proc nº 1456/15.2T8FNC.L1. S1, disponível in www.dgsi.pt. 13. Sem prejuízo de caber a este a opção pela indemnização que tiver por mais favorável – Cf. artigo 17.º da NLAT. |