Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 5.ª SECÇÃO | ||
Relator: | VASQUES OSÓRIO | ||
Descritores: | COMPETÊNCIA DA RELAÇÃO JUIZ DE COMARCA ARQUIVAMENTO DO INQUÉRITO ABERTURA DE INSTRUÇÃO ASSISTENTE LEGITIMIDADE CRIME PARTICULAR INJÚRIA AGRAVADA QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DISCRIMINAÇÃO BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO | ||
Data do Acordão: | 07/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROVIDO | ||
Sumário : | I - A agravação do crime de injúria, prevista na parte final do art. 184.º do CP, só se preenche quando o agente ou funcionário tenha actuado com grave abuso de autoridade, não sendo pois, relevante, para esse efeito, que o agente tenha agido, apenas, com abuso de autoridade. II - Um magistrado judicial, no exercício das suas funções, pode ofender a honra e consideração de qualquer sujeito ou interveniente processual, mas a consideração da prática da conduta com grave abuso de autoridade não pode depender, apenas, da referida qualidade do agente e da sua actuação nessa qualidade. III - A actuação do juiz com grave abuso de autoridade antes depende da intensidade com que, no caso concreto, o bem jurídico tutelado foi afectado pela acção praticada, que deve representar um excesso considerável da competência funcional do agente e a instrumentalização da sua qualidade de funcionário. IV - Existindo divergências quanto à qualificação dos factos narrados na acusação particular – crime de injúria ou crime de injúria agravado –, não sendo de aceitar o entendimento de que o crime de injúria praticado por magistrado judicial no exercício das suas funções é, sempre, um crime de injúria agravado nos termos do disposto no art. 184.º do CP, e não constando da acusação particular factos reveladores de uma actuação com grave abuso de autoridade, não se descortina qualquer impedimento à qualificação dos factos narrados naquela peça como crime de injúria, p. e p. pelo art. 181.º, n.º 1, do CP, com o consequente reconhecimento da legitimidade dos assistentes para deduzirem acusação. | ||
Decisão Texto Integral: | RECURSO Nº 155/22.3TRLSB.S1 Recorrentes: AA, BB e CC. Recorridos: DD e Ministério Público. * Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça I. RELATÓRIO No Tribunal da Relação de Lisboa – funcionando como tribunal de 1ª instância – a arguida DD, com os demais sinais nos autos, requereu a abertura da instrução, invocando a nulidade insanável da acusação particular contra si deduzida pelos assistentes AA, BB e CC. Proferido despacho de abertura da instrução, considerada a desnecessidade de realização de diligências de prova e realizado o debate instrutório, o Exmo. Juiz Desembargador, em funções de juiz de instrução, proferiu em 28 de Novembro de 2023, decisão instrutória na qual decidiu «julgar nula, por ilegitimidade, a acusação deduzida pelos Assistentes AA, BB e CC contra a DD, Juiz ..., o que se declara, determinando o consequente arquivamento dos autos.». * Inconformado com a decisão, recorrem os assistentes para o Supremo Tribunal de Justiça, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões: 1 – O presente recurso tem por objecto: a) Inexistência de nulidade insanável por ilegitimidade da acusação particular deduzida pelos assistentes – não preenchimento do elemento objectivo do tipo de ilícito de injúria agravada – grave abuso de autoridade, p. e p. pelo art.º 184.º do Código Penal; b) Do preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito do crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1 do Código Penal e consequente prolação do competente despacho de pronúncia da denunciada/arguida DD. 2 – Emerge da decisão proferida pelo Sr. Juiz Desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa, 5ª Secção, na qualidade de Juiz de Instrução Criminal, em 29/11/2023, em sede de dispositivo: Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de Lisboa, enquanto Tribunal de Instrução em exercício de competências de Primeira Instância, julgar nula, por ilegitimidade, a acusação deduzida pelos Assistentes AA, BB e CC contra a DD, Juiz ..., o que se declara, determinando o consequente arquivamento dos autos. 3 – No recurso, sinalizou-se a facticidade que o tribunal a quo deu como indiciariamente demonstrada, bem como a pertinente motivação e respectivo enquadramento jurídico (que aqui se consideram descritas). 4 – A título proemial alertou-se o Tribunal ad quem para o seguinte: Se o Tribunal a quo entende que a acusação particular deduzida pelos assistentes é nula por a actuação da Mer.ª Juíza se enquadrar na prática do crime de injúria agravada, logo com natureza semi-pública, necessariamente teria igualmente de concluir que não se verificando a agravação, sempre estariam preenchidos os elementos objectivos e subjectivos da prática de um crime de injúria simples! Trata-se de um vício de raciocínio gritante, e contraditório nos seus precisos termos, cuja nota se deixa a fim de se extrair as devidas consequências, se o Tribunal ad quem assim o entender. O Tribunal recorrido parte da mesma premissa – factualidade aduzida pelos assistentes em sede de acusação particular – e chega a duas conclusões diferentes manifestamente incompatíveis em sede de direito penal, na medida em que o preenchimento do tipo agravado do crime de injúria necessariamente pressupõe a verificação, em sede de, elementos objectivos e subjectivos, do crime na vertente simples!! Curiosamente, ou talvez não, é exactamente a posição que a denunciada sintetiza no seu requerimento para abertura de instrução… DA INEXISTÊNCIA DE NULIDADE INSANÁVEL POR ILEGITIMIDADE DA ACUSAÇÃO PARTICULAR DEDUZIDA PELOS ASSISTENTES – NÃO PREENCHIMENTO DO ELEMENTO OBJECTIVO DO TIPO DE ILÍCITO DE INJÚRIA AGRAVADA – GRAVE ABUSO DE AUTORIDADE, P. E P. PELO ART.º 184.º DO CÓDIGO PENAL; 5 – É inquestionável que a denunciada DD detém a qualidade de funcionário, nos termos e para os efeitos do art.º 386.º do CP e que, aquando dos factos descritos na acusação particular em sindicância, verbalizou as expressões narradas, em exercício de funções como Juiz ..., aquando da leitura do acórdão que condenou os assistentes, outrora arguidos, nos subsecutivos termos: «Estes factos assumem uma gravidade extrema, são absolutamente inadmissíveis, são uma vergonha para a ..., são aquilo que da razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento». 6 – Os assistentes, cogitando o indisputável quadro factual, na miríade do crime de injúria, sempre entenderam que não se prefigurava o grave abuso de autoridade por parte da denunciada, sem prejuízo de, terem, por seguro, este ter existido, sem essa adjectivação. 7 – Os assistentes, sem descurar o caracter ilícito e ilegítimo das expressões verbalizadas aos outrora arguidos pela denunciada, não enquadram, nem enquadraram, a sua conduta num grave abuso de autoridade, na medida em que as mesmas foram transmitidas por via do instituto da alocução, nos termos do art.º 375.º, n.º 2 do CPP. 8 – Explicitando, teve respaldo processual, em sede temporal e formal, mas não substantivamente, nem tal se reconduzindo a qualquer exclusão da ilicitude, ou da culpa, em sede da conduta da denunciada, para efeitos jurídico-penais! 9 – A denunciada, no âmbito de poderes públicos delegados, regulamentares, estatutários ou concretos, emitiu juízos e opiniões após a leitura de um acórdão, ao abrigo de uma prerrogativa processual-penal, mas extravasando, ilegitimamente, o intuito desta, mas não de tal forma grave que preenchesse o tipo agravado de ilícito objectivo em análise. 10 – Nessas circunstâncias deduziram acusação particular, em tempo, legitimamente, e nas circunstâncias pelas quais foram notificados pelo Ministério Público, cfr. e ao abrigo do art.º 285.º do CPP, destacando-se do DESPACHO PROFERIDO PELO SR. PROCURADOR-GERAL ADJUNTO QUE O FORAM FACE À NATUREZA PARTICULAR DO CRIME EM APREÇO! Pelo exposto, carece de fundamento legal a conclusão de que a acusação deduzida pelos assistentes falece de legitimidade, pelo que enferma de nulidade insanável, na medida em que não estamos perante um crime semi-público, mas sim particular, sendo inaplicáveis os art.ºs 48.º, 49.º, 53.º e 119.º, al. b) do CPP e art.º184.ºdo CP, pelo que o Tribunal recorrido violou os mesmos. DO PREENCHIMENTO DOS ELEMENTOS OBJECTIVOS E SUBJECTIVOS DO TIPO DE ILÍCITO DO CRIME DE INJÚRIA, P. E P. PELO ART.º 181.º, N.º 1 DO CÓDIGO PENAL E, CONSEQUENTE PROLAÇÃO DO PERTINENTE DESPACHO DE PRONÚNCIA DA DENUNCIADA/ARGUIDA DD 11 – Realizou-se um excurso teórico-jurídico acerca do art.º181º, n.º 1 do Código Penal, onde se sinaliza, pela sua acuidade, que o bem jurídico protegido por estas tipificações é a honra e consideração. Estamos perante um bem jurídico complexo que inclui, quer o valor pessoal ou interior de cada indivíduo, radicado na sua dignidade, quer a própria reputação ou consideração exterior. (cfr. José Faria Costa in Comentário Conimbricense do Código Penal, T. I, Coimbra Editora, 1999, pp. 607 e 629) 12 – A protecção de tais bens é um reflexo do direito ao bom-nome e reputação, constitucionalmente previstos no art.º 26º da CRP. 13 – Nas ofensas à honra estão sempre em causa dois valores constitucionais de igual valor – a honra e a liberdade de expressão (art.ºs 26º e 37º da CRP) –, sendo que a prevalência de um deles em cada caso tem sempre que resultar de uma ponderação das circunstâncias do caso concreto, encontrando um equilíbrio que preserve sempre a liberdade de expressão, indispensável à subsistência de uma sociedade democrática, limitada pela proibição do aniquilamento da honra. 14 – As excepções à liberdade de expressão, nomeadamente para proteger a honra de outrem, devem ser interpretadas restritivamente e a necessidade das restrições deve ser determinada de modo convincente.” (Iolanda A.S. Rodrigues de Brito, in “Liberdade de Expressão e Honra das Figuras Públicas”, Coimbra Editora, 2010, pág. 80). 15 – Na sintética formulação do Supremo Tribunal Federal alemão, o que se protege "é a honra interior inerente à pessoa enquanto portadora de valores espirituais e morais e, para além disso, a valência deles decorrente, a sua boa reputação no seio da comunidade", a qual encontra o seu "fundamento essencial" na "irrenunciável dignidade pessoal" (Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, I, p. 607.) 16 – Pela sua impressividade e acutilância citou-se:"ofensivo da honra e consideração (...) [é] aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores. (...). Aquilo que a generalidade das pessoas (de bem) de um certo país e no ambiente em que se passaram os factos não considera difamação ou injúria, não deverá dar lugar a uma sanção reprovadora, como é a pena" (Beleza dos Santos, "Algumas Considerações sobre Crimes de Difamação e de Injúria", RLJ, Ano 92/165 e 166.) 17 – Expressivamente, e na sua eloquência, mencionou-se Manuel Costa Andrade quando escreve: "Uma expressão degradante só assume o carácter de «difamação» quando nela não avulta em primeiro plano a discussão objectiva das questões mas antes o enxovalho das pessoas. Para além da crítica polémica e extremada tem de se visar o rebaixamento das pessoas (...). Só poderá falar-se de «difamação» quando o juízo de valor ou a crítica perdem todo o contacto com a obra, a prestação ou o problema que os motiva ou com a discussão das questões de interesse comunitário. E, em vez disso, passam a obedecer apenas ao propósito de rebaixamento de uma pessoa. Atingindo-a no sentimento de auto-estima ou ferindo-a na sua dignidade pessoal e consideração social". (Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal – Uma perspectiva jurídico-criminal, pág. 293). 18 – – Nos presentes autos não restam dúvidas que as expressões dirigidas pela denunciada aos assistentes são ofensivas do seu bom-nome, reputação e consideração, agravadas por fazer apelo a pertencerem a uma etnia que irá ter vergonha destes pertencerem a essa comunidade. 19 – É inaceitável um pensamento destes à luz dos princípios do ordenamento jurídico europeu, constitucional, legal e processual! 20 – SALIENTE-SE QUE A ALOCUÇÃO REALIZADA PELA DENUNCIADA/ARGUIDA, NÃO TEM CARACTER OBRIGATÓRIO E APENAS DEVE SER EFECTIVADA SE O TRIBUNAL ENTENDER COMO CONVENIENTE PARA O CONDENADO EXORTAR-SE A CORRIGIR! 21 – Como se constata, as afirmações feitas pela denunciada, porque feitas de uma forma generalizante, dirigem-se a grupos identificados pela etnia “ciganos”, sendo os arguidos uma vergonha para a sua comunidade, pretendendo aventar que esta é diferente de qualquer outra, sem explicitar em que fundamenta tal asserção! 22 – Esta adjectivação generalista não deixa de revelar uma manifestação de uma pretensa inferioridade de “ciganos”, apresentando-os desde logo como inferiores a um outro grupo/comunidade, a uma distância civilizacional, por defeito, em relação a qualquer outro, maxime os outrora arguidos, e aqui assistentes, sendo uma afirmação espúria, descontextualizada, sem estribo sustentado, baseando-se, insolitamente, por parte de quem exerce funções de titular de órgão de soberania, no que se “ouve dizer”, assim construindo a sua opinião! 23 – Esta apreciação apresenta-se de teor explícito e inequivocamente discriminatório, ofensivo desse “grupo” identificado como “ciganos”, e nos quais os assistentes se incluem! 24 – Apresentam-se lesivos do seu direito à igualdade, à honra e à consideração, sendo igualmente discriminatórios em função da sua etnia, em confronto, por violação, com os art.ºs 6.º, 7.º, 8.º, 10.º, 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e12.º, 13.º e 26.º da Constituição da República Portuguesa. 25 – Os assistentes, no dia em causa nos presentes autos, foram humilhados, em sede de audiência de discussão e julgamento, publicamente, ouvindo, obrigatoriamente, o que pela denunciada foi verbalizado, extraindo-se das declarações desta uma censura acrescida pelo facto de serem de uma ..., como se não fosse suficiente a condenação que sofreram, não tendo qualquer caracter pedagógico, ou de exortação, para os próprios, e muito menos para a comunidade em que se inserem. 26 – Num outro prisma, alerta-se para o facto de que as frases, que são objecto dos presentes autos, só podem traduzir-se, PARA UM ENTENDEDOR MÉDIO nos moldes supra expostos, qual seja, ofensivo da honra e consideração dos visados/assistentes, quer interna quer externamente, nos termos propugnados. 27 – Com efeito, relativamente ao elemento subjectivo do tipo, elemento interno, de carácter psicológico (onde se torna desnecessária a verificação de dolo específico, – a especial intenção de ofender, bastando consabidamente, o dolo genérico –) é pacífico que o mesmo se retira dos dados objectivados supra transcritos recorrendo-se ainda às regras da experiência, sobejamente consentâneas com o que acabou de se expor. 28 – Nessa medida os assistentes entendem que estão preenchidos todos os elementos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito do crime de injúria simples, p. e p. pelo art.º 181.º, n.º 1 do Código Penal, pelo que deve ser prolatado o pertinente despacho de pronúncia da denunciada/arguida DD pela prática de três crimes dessa natureza, nos termos fácticos elencados supra em II.III, e que aqui se consideram dados como reproduzidos, por economia processual. 29 – Cautelarmente, igualmente se aduziu que o juízo de probabilidade razoável de condenação, enunciado no n.º 2 do art.º 283.º do CPP, aplicável à pronúncia ou não pronúncia, não equivale a um juízo de certeza exigido ao Juiz na condenação. 30 – Quer a doutrina, quer a jurisprudência, vêm entendendo aquela «possibilidade razoável» de condenação como uma possibilidade mais positiva que negativa: o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido ou, os indícios são os suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição. 31 – Ora, essa alta probabilidade de condenação, na sequência da pronúncia pela qual os assistentes pugnam, afigura-se mais do que exorbitante. Ao não pronunciar a denunciada/arguida DD pela prática de três crimes de injúria simples, nos termos em que o fez, o Tribunal recorrido violou os art.ºs 6.º, 7.º, 8.º, 10.º, 12.º da Declaração Universal dos Direitos do Homem, 14.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2.º, 8.º, 12.º, 13.º, 26.º da Constituição da República Portuguesa, 181.º do Código Penal, e 50.º do CPP. NESTES TERMOS E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADO O DESPACHO RECORRIDO NOS EXACTOS TERMOS DEFINIDOS NA PRESENTE PEÇA, QUAIS SEJAM, SER A DENUNCIADA/ARGUIDA DD PRONUNCIADAO PELA PRÁTICA, EM AUTORIA MATERIAL DE 3 (TRÊS) CRIMES DE INJÚRIA SIMPLES, P. e P. PELO ART.º 181.º DO CP. DESSA FORMA, SERÁ FEITA A TÃO PEDAGÓGICA JUSTIÇA. * O recurso foi admitido por despacho de 11 de Janeiro de 2024. * Respondeu ao recurso o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto do Tribunal da Relação de Lisboa, alegando, em síntese, que não subscreve o entendimento firmado no despacho recorrido segundo o qual, um juiz que, no exercício de uma competência legal, pratica um crime de injúria, actua sempre com grave abuso de autoridade, realçando que a agravação do art. 184º do C. Penal exige a actuação com grave abuso de autoridade, não bastando, para o seu preenchimento, a simples afirmação de que o agente é juiz, pelo que, assiste legitimidade aos assistentes para deduzirem acusação particular e, afirmando ainda que, visando os assistentes a pronúncia da arguida pela prática de crimes de injúria, não tendo a decisão recorrida pronunciado, nem não pronunciado aquela, e dada a inexistência de indícios suficientes dos factos que constam dos artigos 6 e 7 da acusação particular, deve ser proferido despacho de não pronúncia, e concluiu que, «deve proceder parcialmente o recurso dos assistentes, nomeadamente quanto à suscitada questão da legitimidade para deduzirem acusação particular, improcedendo no demais. V.ª Exas. Farão, contudo, a costumada JUSTIÇA!». * A Sra. Juiz ... arguida não respondeu ao recurso. * * Tendo os recorrentes requerido a realização de audiência, na vista a que se refere o art. 416º, nº 1 do C. Processo Penal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto junto deste Supremo Tribunal apôs o seu visto. * Por despacho do Relator de 6 de Maio de 2024, não foi admitida a audiência. Não foi apresentada reclamação do despacho para a conferência. * Colhidos os vistos, foram os autos presentes à conferência. Cumpre decidir. * * * * II. FUNDAMENTAÇÃO A) Factos relevantes 1. Em 14 de Junho de 2022, AA, BB e CC denunciaram ao Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, a prática pela Mma. Juiz ..., DD, de um crime de discriminação, p. e p. pelo art. 240º, nº 2, b) do C. Penal. 2. Por despacho de 31 de Março de 2023 foram os denunciantes admitidos a intervir nos autos na qualidade de assistentes. 3. Em 18 de Abril de 2023 o Magistrado do Ministério Público titular do inquérito proferiu o seguinte despacho: “(…). I - ENCERRAMENTO DO INQUÉRITO: Declaro encerrado o inquérito (artigo 276.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). II – ARQUIVAMENTO: a) Factos denunciados AA, BB e CC, ora assistentes nos autos, apresentaram denúncia contra DD, Juiz ..., porquanto (em súmula): a) em 15-02-2022, pelas 09:30 horas, no Juízo Central Criminal ..., a denunciada procedeu à leitura do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1498/20.6...; b) no decurso da referida diligência dirigiu aos denunciantes, na presença de todos os restantes intervenientes, o seguinte: Estes factos assumem uma gravidade extrema, são absolutamente inadmissíveis, são uma vergonha para a ..., são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento; c) estas palavras ofenderam os denunciantes na sua honra e consideração; d) porque os comentários em causa são discriminatórios; e) ao afirmar que os factos perpetrados pelos arguidos são uma vergonha para a ... e que são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento, discriminou os denunciantes em razão da sua etnia; f) os denunciantes suportaram a censura dirigida a qualquer pessoa condenada pela prática de um crime, porém, ao contrário do que aconteceria se não pertencessem à ..., foram alvo de uma censura acrescida; g) censura essa que consubstancia, conforme se explicitou, uma discriminação em razão da origem étnica e que os ofendeu na sua honra e consideração. b) Qualificação jurídica: A conformação dos factos, tal como apresentada pelos assistentes, suscita a respetiva subsunção jurídico-penal aos seguintes crimes: - discriminação e incitamento ao ódio e à violência, previsto e punível pelo artigo 240.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal; e - injúria agravada, previsto e punível pelo artigo 181.º, n.º 1, e 184.º do Código Penal. c) Diligências de inquérito: Procedeu-se à realização das diligências tidas por pertinentes com vista a investigar a existência de crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação, sempre com ponderação dos princípios da necessidade de assegurar os meios de prova necessários à realização das finalidades do inquérito e da proibição da prática de atos inúteis que emana do disposto no artigo 130.º do Código de Processo Civil e aplicável ao processo penal ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal. Neste conspecto foram solicitados e juntos aos autos os seguintes elementos documentais: 1. nota biográfica e registo disciplinar da Sra. Juiz ... DD (REF. ....71): - recolhe-se desta prova documental que nada consta do registo disciplinar da Sra. Juiz ...; 2. cópia da ata de audiência de julgamento (leitura de acórdão) que teve lugar no dia 15 de fevereiro de 2022, no âmbito do processo comum coletivo 1498/20.6... (REF. ....55): - recolhe-se desta prova documental quem esteve presente na audiência de julgamento; 3. cópia integral da gravação da audiência de julgamento (leitura de acórdão) que teve lugar no dia 15 de fevereiro de 2022, no âmbito do processo comum coletivo 1498/20.6... (REF. ....55): - recolhe-se deste elemento probatório o teor da alocução dirigida pela denunciada aos ali arguidos. Consideram-se, ainda, os seguintes elementos probatórios: O acórdão proferido no processo 1498/20.6..., consultado via CITIUS, do qual decorre que aquele tribunal coletivo, na parte aqui relevante, decidiu: A – Quanto ao ali arguido AA: a. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 2 (dois) crimes homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal, nas penas de 3 (três anos de prisão por cada um deles; b. Absolver o arguido pela prática, em co-autoria, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal; c. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 1(um) crime de ofensas à integridade física qualificadas, previsto e punido pelo art. 145º, nº1, al. a) do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão; d. Atenta a natureza do ilícito e a legitimidade dos sujeitos o Tribunal decide homologar a desistência de queixa no que concerne ao crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º do Código Penal e declarar, em consequência, nessa parte, extinto o procedimento criminal. e. Condenar o arguido pela prática, como autor material e em concurso real com os crimes acima elencados, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro [em concurso aparente, com a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d) do citado diploma legal], com referência aos artigos 26.º e 30.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1(um) ano e 6 (seis) meses de prisão. f. Em cúmulo jurídico das penas supra mencionadas condenar o arguido na pena única de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão. B – Quanto ao ali arguido BB: a. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 2 (dois) crimes homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal, nas penas de 4 (quatro) anos de prisão por cada um deles; b. Absolver o arguido pela prática, em co-autoria, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal; c. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 1 (um) crime de ofensas à integridade física qualificadas, previsto e punido pelo art. 145º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 2(dois) anos de prisão; d. Atenta a natureza do ilícito e a legitimidade dos sujeitos o Tribunal decide homologar a desistência de queixa no que concerne ao crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º do Código Penal e declarar, em consequência, nessa parte, extinto o procedimento criminal; e. Em cúmulo jurídico das penas supra mencionadas condenar o arguido na pena única de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão. C – Quanto ao ali arguido CC: a. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 2 (dois) crimes homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal, nas penas de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um deles; b. Absolver o arguido pela prática, em co-autoria, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal; c. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 1 (um) crime de ofensas à integridade física qualificadas, previsto e punido pelo art. 145º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 2(dois) anos e 3(três) meses de prisão; d. Atenta a natureza do ilícito e a legitimidade dos sujeitos o Tribunal decide homologar a desistência de queixa no que concerne ao crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º do Código Penal e declarar, em consequência, nessa parte, extinto o procedimento criminal; e. Em cúmulo jurídico das penas supra mencionadas condenar o arguido na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão. O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 30 de agosto de 2022, proferido na sequência de recurso interposto pelos ali arguidos e o qual, na parte aqui relevante, decidiu: i. quanto aos ali arguidos AA e BB: a) Julgar o recurso interposto pelos arguidos AA e BB parcialmente procedente e, em consequência: b) Passa a integrar a matéria de facto não provada, o segmento descrito no ponto 39 dos factos provados com o teor no que foi acompanhado pelo arguido BB; c) Passa a integrar a matéria de facto não provada, o segmento descrito no ponto 67 dos factos provados: fique aberta com um simples carregar de um botão seja (comummente conhecida por faca de abertura automática) e o segmento do artigo 73 dos factos provados correspondente; d) Reduz-se a pena parcelar relativa ao crime de detenção de arma proibida para 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão e a pena única aplicadas ao arguido AA para 4 (quatro) anos de prisão, em que vai agora condenado; e) No mais, confirmam a decisão recorrida. ii. quanto ao ali arguido CC: a) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido CC e confirmar na íntegra a decisão recorrida. Não se procedeu à inquirição das testemunhas indicadas pelos denunciantes porquanto, encontrando-se a audiência de julgamento em que ocorreram os factos gravada, tais inquirições seriam redundantes e não acrescentariam novo conhecimento aos autos. Não se procedeu à constituição da denunciada como arguida porquanto tal diligência só é obrigatória quando o inquérito corra contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime. d) Apreciação e ponderação dos indícios: O Ministério Público deverá deduzir acusação quando, durante o inquérito, tiverem sido recolhidos indícios suficientes da verificação de crime e de quem foi o seu agente. Não existindo tais indícios, deverá o inquérito ser arquivado. Indícios suficientes são aqueles de que resulte uma possibilidade razoável de vir a ser aplicada em julgamento uma pena ou medida de segurança [a este propósito refere Jorge de Figueiredo Dias (DIREITO PROCESSUAL PENAL, 1.º volume, Coimbra Editora, pág. 133) que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado, ou quando esta seja mais provável do que a absolvição” e, “... a alta probabilidade, contida nos indícios recolhidos, de futura condenação tem de referir-se no plano fáctico e não no plano jurídico.”]. Assim, torna-se necessário, findas as diligências de inquérito, proceder a um juízo antecipatório da probabilidade de, face aos indícios produzidos, vir a ser obtida uma condenação num eventual julgamento. Tal decisão traduz-se, essencialmente, na análise e interpretação dos indícios colhidos e da sua suficiência para permitir ultrapassar a dúvida razoável em que se sustenta o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção da inocência. Dito de outra forma, haverá que realizar um juízo de prognose a partir dos indícios recolhidos, avaliar até que ponto será expectável que estes se venham a manter na fase de julgamento, e ponderar da maior ou menor probabilidade de obter uma condenação [ou, por outras palavras, na formulação do Tribunal da Relação de Évora plasmada no acórdão de 28 de janeiro de 1997, publicado no Boletim do Ministério da Justiça, n.º 463, pág. 661 e ss., indícios suficientes serão aqueles que, “conjugados e relacionados, criem a convicção de que, a manterem-se em julgamento, haverá sérias probabilidades de conduzir à condenação do arguido pelo crime que lhe é imputado”]. Deve ter-se presente que, na determinação e realização das diligências de investigação, há uma permanente ponderação da sua utilidade visando a descoberta da verdade material, mas sempre adequadamente moldada pelo princípio da proibição da prática de atos inúteis. Levando em conta os conceitos expostos, e descendo ao caso vertente, importa então aferir se das diligências probatórias produzidas foram recolhidos indícios suficientes para concluir que se verificou a prática de crime e de que foi possível identificar o seu autor. - QUANTO AO CRIME DE DISCRIMINAÇÃO E INCITAMENTO AO ÓDIO E À VIOLÊNCIA: O crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência encontra-se previsto no artigo 240.º do Código Penal, assumindo particular interesse na presente situação a previsão da alínea b) do seu n.º 2, a qual dispõe: (…) 2 – Quem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade: (…) b) Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica; (…) é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos. Decorre da citada norma que incorre na prática de tal crime quem: a) publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade; b) difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica. Vejamos se dos factos denunciados e dos elementos probatórios recolhidos decorrem indícios da prática pelo agente – a denunciada Juiz ... – dos elementos do tipo objetivo e subjetivo. Tal como acima referido, imputa-se à denunciada o facto de, no decurso da audiência de julgamento em que procedeu à leitura do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1498/20.6..., ter dirigido aos denunciantes a seguinte afirmação: Estes factos assumem uma gravidade extrema, são absolutamente inadmissíveis, são uma vergonha para a ..., são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento. Tal afirmação foi proferida na sala de audiências do tribunal e em sede de audiência de julgamento, na sequência da leitura de decisão condenatória na qual os três ora denunciantes eram arguidos e enquadrada no que a lei define como ‘alocução ao arguido exortando-o o corrigir-se’. Desde logo cabe referir que falece o elemento do tipo objetivo que exige que a afirmação seja feita por qualquer meio destinado a divulgação. É sabido que, regra geral, as audiências de julgamento são públicas, contudo, a publicidade de audiência não é ilimitada e, tão pouco, é um meio destinado à divulgação dos atos ou decisões que ali são proferidas. Note-se, por exemplo, que é permitida aos órgãos de comunicação social a narração circunstanciada do teor de atos processuais a cujo decurso for permitida a assistência do público em geral, mas, regra geral, não é autorizada a transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som relativas à prática de qualquer ato processual. Meio destinado a divulgação será aquele que visa a difusão do seu conteúdo por um sem número de destinatários ou cujo público-alvo seja o mais lato possível. Assim, a afirmação acima referida e proferida no referido contexto, ainda que feita em lugar público – porque acessível ao público –, não foi feita por meio destinado à sua divulgação. Ademais, também não se verifica injúria dos denunciantes por causa da sua origem étnica. A afirmação em causa não contém qualquer juízo ofensivo da honra ou consideração devida aos denunciantes, ou aos cidadãos com origem de .... Após a leitura de decisão condenatória, a lei atribui ao juiz a faculdade de dirigir ao arguido uma breve alocução exortando-o a corrigir-se. Contextualizando a afirmação, podemos ler da mesma que a denunciada, na qualidade de juíza que presidia à diligência, alertou os ali arguidos para: - a extrema gravidade das suas condutas – os três foram condenados em penas de prisão efetiva pela prática de diversos crimes, entre os quais homicídios qualificados sob a forma tentada; - que tais condutas são inadmissíveis – os três arguidos foram condenados pela prática de vários crimes, entre os quais alguns atentaram contra a vida de terceiros; - que a prática de crimes de tal gravidade são uma vergonha para a ... pois que envergonham os que não têm tais comportamentos; e - que contribuem para dar razão aos que alimentam discursos de cariz discriminatório da referida etnia. Mesmo despindo a afirmação do seu contexto – alocução dirigida a arguidos condenados exortando-os a corrigirem-se – não se alcança qualquer apologia discriminatória da origem étnica dos visados. Por último, cabe ainda referir que o crime em apreço exige o dolo ao nível do tipo subjetivo. Não se vislumbra dos factos apurados e do respetivo contexto que o fim visado pela denunciada, ao proferir a afirmação transcrita, fosse discriminar os ora denunciantes em função da sua origem étnica. - QUANTO AO CRIME AGRAVADO DE INJÚRIA: O crime de injúria encontra-se previsto no artigo 181.º do Código Penal. Decorre da citada norma que incorre na prática de tal crime quem: a) imputar factos a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, ofensivos da sua honra ou consideração; ou b) dirigir-lhe palavras ofensivos da sua honra ou consideração. Ocorre agravação da pena, nos termos do artigo 184.º do Código Penal, quando o facto é praticado contra magistrado no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade. Para efeitos da lei penal a expressão funcionário abrange os magistrados judiciais. O procedimento criminal pelo crime de injúria depende de acusação particular, mas, nos casos em que ocorre agravação da pena, é suficiente a queixa ou participação. Vejamos se dos factos denunciados e dos elementos probatórios recolhidos decorrem indícios da prática pelo agente – a denunciada Juiz ... – dos elementos do tipo objetivo e subjetivo. Tal como já referido, imputa-se à denunciada o facto de, no decurso da audiência de julgamento em que procedeu à leitura do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1498/20.6..., ter dirigido aos denunciantes a seguinte afirmação: Estes factos assumem uma gravidade extrema, são absolutamente inadmissíveis, são uma vergonha para a ..., são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento. Remete-se aqui para as considerações já tecidas na parte respeitante ao crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência. Ademais, a afirmação foi proferida em obediência à previsão legal que atribui ao juiz a faculdade de dirigir ao arguido condenado uma breve alocução exortando-o a corrigir-se. Donde, não se verificam os elementos do tipo objetivo e/ou subjetivo do crime de injúria e, tão pouco, a agravação de tal crime por não se verificar que a denunciada tenha atuado com grave abuso de autoridade. Soçobrando o elemento agravante, ressuma a natureza particular do crime, a qual se apreciará infra atenta a falta de legitimidade do Ministério Público para a promoção do procedimento criminal dependente de acusação particular. e) Decisão: Face ao exposto, não se vislumbrando demais diligências de investigação obrigatórias ou essenciais para a descoberta da verdade, DECIDO o arquivamento do inquérito, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por se ter recolhido prova bastante de se não ter verificado o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência ou o crime agravado de injúria. f) Comunicações: NOTIFIQUE o presente despacho, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal, nomeadamente: i. aos assistentes AA, BB e CC; ii. ao ilustre mandatário dos assistentes. COMUNIQUE o presente despacho, com cópia e nos termos habituais, à Exma. Senhora Procuradora-Geral Regional de Lisboa. g) Prescrição do procedimento criminal: Em cumprimento e para os efeitos do disposto no ponto 3. da circular n.º 8/2008, de 23 de maio, da Procuradoria-Geral da República, consigno que a prescrição do procedimento criminal pelo crime com prazo mais longo ocorrerá a 15 de fevereiro de 2032. III – ACUSAÇÃO PARTICULAR: a) Factos denunciados AA, BB e CC, ora assistentes nos autos, apresentaram denúncia contra DD, Juiz ..., porquanto (em súmula): a) em 15-02-2022, pelas 09:30 horas, no Juízo Central Criminal ..., a denunciada procedeu à leitura do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1498/20.6...; b) no decurso da referida diligência dirigiu aos assistentes, ali arguidos, na presença de todos os restantes intervenientes, o seguinte: Estes factos assumem uma gravidade extrema, são absolutamente inadmissíveis, são uma vergonha para a ..., são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento; c) estas palavras ofenderam os assistentes na sua honra e consideração; d) porque os comentários em causa são discriminatórios; e) ao afirmar que os factos perpetrados pelos ali arguidos são uma vergonha para a ... e que são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento, discriminou os assistentes em razão da sua etnia; f) os assistentes suportaram a censura dirigida a qualquer pessoa condenada pela prática de um crime, porém, ao contrário do que aconteceria se não pertencessem à ..., foram alvo de uma censura acrescida; g) censura essa que consubstancia, conforme se explicitou, uma discriminação em razão da origem étnica e que os ofendeu na sua honra e consideração. b) Qualificação jurídica: A conformação dos factos, tal como apresentada pelos assistentes, suscita a respetiva subsunção jurídico-penal, para além dos ilícitos já apreciados em sede de despacho de arquivamento, ao seguinte crime: - injúria, previsto e punível pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal. c) Diligências de inquérito: Procedeu-se à realização das diligências tidas por pertinentes com vista a investigar a existência de crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação, sempre com ponderação dos princípios da necessidade de assegurar os meios de prova necessários à realização das finalidades do inquérito e da proibição da prática de atos inúteis que emana do disposto no artigo 130.º do Código de Processo Civil e aplicável ao processo penal ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal. Neste conspecto, assume particular relevância o seguinte elemento probatório: 1. cópia integral da gravação da audiência de julgamento (leitura de acórdão) que teve lugar no dia 15 de fevereiro de 2022, no âmbito do processo comum coletivo 1498/20.6... (REF. ....55): - recolhe-se deste elemento probatório o teor da alocução dirigida pela denunciada aos ali arguidos. Não se procedeu à inquirição das testemunhas indicadas pelos assistentes porquanto, encontrando-se a audiência de julgamento em que ocorreram os factos gravada, tais inquirições seriam redundantes e não acrescentariam novo conhecimento aos autos. Não se procedeu à constituição da denunciada como arguida porquanto tal diligência só é obrigatória quando o inquérito corra contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime. d) Posição do Ministério Público em face dos indícios: Tal como se explanou em sede de despacho de arquivamento na parte respeitante à apreciação e ponderação dos indícios quanto ao crime agravado de injúria, e que aqui se dá por reproduzido, mantém-se o entendimento da não existência de indícios de ter sido proferido juízo ofensivo da honra ou consideração devida aos assistentes. e) Comunicações: Em face da natureza particular do crime ora em apreço, DETERMINO: i. a notificação dos assistentes para em 10 dias, querendo, deduzirem acusação particular, nos termos do artigo 285.º do Código de Processo Penal, e, bem assim, pedido de indeminização civil, nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; ii. a notificação do mandatário dos assistentes nos mesmos termos e para os mesmos fins. (…). 4. Em 3 de Maio de 2023 os assistentes deduziram, além do mais, acusação particular, nos seguintes termos: “(…). 1. AA, BB e CC, doravante assistentes, foram constituídos arguidos, acusados e julgados no âmbito do processo nº 1498/20.6..., que correu termos no Juízo Central Criminal ... – Juiz .... 2. No âmbito do referido processo, na fase de julgamento, presidiu ao coletivo de juízes a Meritíssima Juiz ... DD, doravante arguida. 3. Realizada a audiência, foi agendado o dia 15.02.2022, às 9h30, para a leitura do acórdão. 4. À data e hora agendadas para a diligência acima mencionada, além da arguida, no papel de Juiz ..., e dos assistentes, na qualidade de arguidos, estavam presentes, nomeadamente, o Exmo. Sr. Procurador da República EE, a Escrivã Auxiliar FF e os arguidos GG, HH e II. 5. Neste seguimento, durante a diligência, a arguida, dirigindo-se aos aqui assistentes, e aos demais arguidos, e na presença de todos os restantes intervenientes, afirmou o seguinte: «Estes factos assumem uma gravidade extrema, são absolutamente inadmissíveis, são uma vergonha para a ..., são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os que não têm este comportamento». Ao atuar desta forma, a arguida quis e conseguiu ofender a honra e a consideração pessoal dos assistentes, atuando no exercício das suas funções e na presença de todos aqueles que naquelas circunstâncias se encontravam no Juízo Central Criminal ... e que, por esse motivo, presenciaram a factualidade supra descrita. A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. Nestes termos, a arguida cometeu, em autoria material, três crimes de injúria, previstos e púnicos pelo nº 1 do artigo 181º do Código Penal. (…)”. 5. O Magistrado do Ministério Público titular do inquérito não acompanhou a acusação particular. 6. Notificada da acusação particular, a arguida requereu a abertura da instrução, em síntese, com os seguintes fundamentos: - Os factos investigados no inquérito, na decorrência da denúncia apresentada pelos assistentes, são susceptíveis de integrar a prática de um crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181º e 184º do C. Penal, crime que, nos termos do disposto no art. 188º, nº 1, a) do mesmo código, tem natureza semipública, competindo ao Ministério Público a titularidade da respectiva acção penal, cabendo-lhe deduzir acusação ou arquivar o inquérito, como arquivou; - Entendendo os assistentes, como parece entenderem, que do inquérito resultam indícios suficientes da prática de crime de natureza semipública, deviam ter requerido a abertura da instrução, nos termos do art. 287º, nº 1, b) do C. Processo Penal, o que não fizeram; - Tendo os assistentes optado por deduzir acusação por crime de natureza semipública, sem que o Ministério Público tenha, previamente, deduzido acusação pela prática de tal crime, padece a acusação particular da nulidade insanável prevista na alínea b) do art. 119º do C. Processo Penal, por falta de promoção do processo pelo Ministério Público; - Na verdade, um juiz, no exercício das suas funções, não é susceptível de cometer um crime de injúria na sua forma simples, uma vez que, ao fazê-lo, estará sempre a agir com grave abuso das suas funções e, portanto, a cometer, necessariamente, o crime de injúria na forma agravada; - Assim, carecem os assistentes de legitimidade para deduzirem acusação particular por crime de natureza semipública, não acusado pelo Ministério Público, antes por este arquivado, verificando-se, outrossim, a excepção do caso decidido, por não terem os assistentes requerido a abertura da instrução, nos termos sobreditos; - Devem, pois, ser os autos arquivados, sem mais; - Assim não se entendendo, sendo verdadeiros os factos narrados nos pontos 1 a 4 da acusação particular, embora o ponto 4 se mostre truncado e descontextualizado, é falso o mais referido no articulado quanto à intenção das palavras proferidas, sendo que as expressões em causa foram ditas no contexto da publicitação de uma decisão condenatória, direccionadas a arguidos condenados em penas de prisão por crimes contra a vida, tendo o juízo censura formulado tido absoluto respeito pela dignidade dos visados, não atingindo qualquer grupo étnico, pelo que, os factos narrados na acusação particular não preenchem o tipo de ilícito nela imputado; - Deve, em consequência, ser proferido despacho de não pronúncia. 7. Aberta a fase da instrução, não houve lugar a diligências de prova e, realizado o debate instrutório, foi proferido o despacho recorrido, que tem o seguinte teor: “(…). DECISÃO INSTRUTÓRIA RELATÓRIO DD, Juiz ..., notificada da acusação particular contra si deduzida pelos Assistentes AA, BB e CC, requereu a abertura de instrução invocando, em síntese, que: - Os factos objecto do inquérito, são susceptíveis de constituir a prática de um crime de injúria agravada, previsto e punido pelos art.º 181.º e 184.º do Código Penal, o qual tem natureza semi-pública; - Apenas o Ministério Público tem legitimidade para deduzir acusação por tais factos e, no uso das suas competências, decidiu pelo arquivamento do inquérito; - Virem os Assistentes deduzir acusação pela prática de crimes de natureza semi-pública, sem prévia acusação do Ministério Público, tem como consequência a nulidade insanável do acto, o que invoca e pretende ver declarado; - Caso assim não seja entendido, e assumindo a veracidade dos primeiros quatro factos da acusação particular, conclui que tal factualidade não preenche o tipo de crime imputado pelos Assistentes. Termina pugnando pelo arquivamento dos autos. Admitida a instrução, e considerando a desnecessidade de realização de diligências de produção de prova, foi realizado debate instrutório. O Tribunal é o competente. Cumpre decidir. QUESTÃO PRÉVIA Suscita a Arguida a questão da legitimidade para os Assistentes deduzirem acusação pelos factos em apreço, por corresponderem a crime de natureza semi-pública. Vejamos, então. Resulta dos autos que: 1. Na sequência de participação apresentada contra a Arguida, foi instaurado inquérito cujo despacho final do Ministério Público decidiu «I - ENCERRAMENTO DO INQUÉRITO: Declaro encerrado o inquérito (artigo 276.º, n.º 1, do Código de Processo Penal). II ARQUIVAMENTO: a) Factos denunciados AA, BB e CC, ora assistentes nos autos, apresentaram denúncia contra DD, Juiz ..., porquanto (em súmula): a) em 15-02-2022, pelas 09:30 horas, no Juízo Central Criminal ..., a denunciada procedeu à leitura do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1498/20.6...; b) no decurso da referida diligência dirigiu aos denunciantes, na presença de todos os restantes intervenientes, o seguinte: “Estes factos assumem uma gravidade extrema, são absolutamente inadmissíveis, são uma vergonha para a ..., são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento.” c) estas palavras ofenderam os denunciantes na sua honra e consideração; d) porque os comentários em causa são discriminatórios; e) ao afirmar que os factos perpetrados pelos arguidos são uma vergonha para a ... e que são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento, discriminou os denunciantes em razão da sua etnia; f) os denunciantes suportaram a censura dirigida a qualquer pessoa condenada pela prática de um crime, porém, ao contrário do que aconteceria se não pertencessem à ..., foram alvo de uma censura acrescida; g) censura essa que consubstancia, conforme se explicitou, uma discriminação em razão da origem étnica e que os ofendeu na sua honra e consideração. b) Qualificação jurídica: A conformação dos factos, tal como apresentada pelos assistentes, suscita a respetiva subsunção jurídico-penal aos seguintes crimes: discriminação e incitamento ao ódio e à violência, previsto e punível pelo artigo 240.º, n.º 2, alínea b), do Código Penal; e injúria agravada, previsto e punível pelo artigo 181.º, n.º 1, e 184.º do Código Penal. c) Diligências de inquérito: Procedeu-se à realização das diligências tidas por pertinentes com vista a investigar a existência de crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação, sempre com ponderação dos princípios da necessidade de assegurar os meios de prova necessários à realização das finalidades do inquérito e da proibição da prática de atos inúteis que emana do disposto no artigo 130.º do Código de Processo Civil e aplicável ao processo penal ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal. Neste conspecto foram solicitados e juntos aos autos os seguintes elementos documentais: 1. nota biográfica e registo disciplinar da Sra. Juiz ... DD (REF. ....71): - recolhe-se desta prova documental que nada consta do registo disciplinar da Sra. Juiz ...; 2. cópia da ata de audiência de julgamento (leitura de acórdão) que teve lugar no dia 15 de fevereiro de 2022, no âmbito do processo comum coletivo 1498/20.6... (REF. ....55): - recolhe-se desta prova documental quem esteve presente na audiência de julgamento; 3. cópia integral da gravação da audiência de julgamento (leitura de acórdão) que teve lugar no dia 15 de fevereiro de 2022, no âmbito do processo comum coletivo 1498/20.6... (REF. ....55): - recolhe-se deste elemento probatório o teor da alocução dirigida pela denunciada aos ali arguidos. Consideram-se, ainda, os seguintes elementos probatórios: O acórdão proferido no processo 1498/20.6..., consultado via CITIUS, do qual decorre que aquele tribunal coletivo, na parte aqui relevante, decidiu: “A Quanto ao ali arguido AA: a. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 2 (dois) crimes homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal, nas penas de 3(três anos de prisão por cada um deles; b. Absolver o arguido pela prática, em co-autoria, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal; c. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 1(um) crime de ofensas à integridade física qualificadas, previsto e punido pelo art. 145º, nº1, al. a) do Código Penal, na pena de 2(dois) anos de prisão; d. Atenta a natureza do ilícito e a legitimidade dos sujeitos o Tribunal decide homologar a desistência de queixa no que concerne ao crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º do Código Penal e declarar, em consequência, nessa parte, extinto o procedimento criminal. e. Condenar o arguido pela prática, como autor material e em concurso real com os crimes acima elencados, de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea c) da Lei 5/2006, de 23 de Fevereiro [em concurso aparente, com a prática de um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, alínea d) do citado diploma legal], com referência aos artigos 26.º e 30.º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1(um) ano e 6(seis) meses de prisão. f. Em cúmulo jurídico das penas supra mencionadas condenar o arguido na pena única de 4 (quatro) anos e 3 (três) meses de prisão. B Quanto ao ali arguido BB: a. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 2 (dois) crimes homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal, nas penas de 4 (quatro) anos de prisão por cada um deles; b. Absolver o arguido pela prática, em co-autoria, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal; c. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 1 (um) crime de ofensas à integridade física qualificadas, previsto e punido pelo art. 145º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 2(dois) anos de prisão; d. Atenta a natureza do ilícito e a legitimidade dos sujeitos o Tribunal decide homologar a desistência de queixa no que concerne ao crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º do Código Penal e declarar, em consequência, nessa parte, extinto o procedimento criminal; e. Em cúmulo jurídico das penas supra mencionadas condenar o arguido na pena única de 4 (quatro) anos e 10 (dez) meses de prisão. C Quanto ao ali arguido CC: a. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 2 (dois) crimes homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal, nas penas de 3 (três) anos e 6 (seis) meses de prisão por cada um deles; b. Absolver o arguido pela prática, em co-autoria, de 1 (um) crime de homicídio qualificado, na forma tentada, p. e p. pelos artigos 131.º, 132.º, n.ºs 1 e 2, alíneas e) e h), 22.º, 23.º e 73.º, todos do Cód. Penal; c. Condenar o arguido pela prática, em co-autoria, de 1 (um) crime de ofensas à integridade física qualificadas, previsto e punido pelo art. 145º, nº 1, al. a) do Código Penal, na pena de 2(dois) anos e 3(três) meses de prisão; d. Atenta a natureza do ilícito e a legitimidade dos sujeitos o Tribunal decide homologar a desistência de queixa no que concerne ao crime de dano, previsto e punido pelo art. 212º do Código Penal e declarar, em consequência, nessa parte, extinto o procedimento criminal; e. Em cúmulo jurídico das penas supra mencionadas condenar o arguido na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão.” O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 30 de agosto de 2022, proferido na sequência de recurso interposto pelos ali arguidos e o qual, na parte aqui relevante, decidiu: “i. quanto aos ali arguidos AA e BB: a) Julgar o recurso interposto pelos arguidos AA e BB parcialmente procedente e, em consequência: b) Passa a integrar a matéria de facto não provada, o segmento descrito no ponto 39 dos factos provados com o teor no que foi acompanhado pelo arguido BB; c) Passa a integrar a matéria de facto não provada, o segmento descrito no ponto 67 dos factos provados: fique aberta com um simples carregar de um botão seja (comummente conhecida por faca de abertura automática) e o segmento do artigo 73 dos factos provados correspondente; d) Reduz-se a pena parcelar relativa ao crime de detenção de arma proibida para 1 (um) ano e 3 (três) meses de prisão e a pena única aplicadas ao arguido AA para 4 (quatro) anos de prisão, em que vai agora condenado; e) No mais, confirmam a decisão recorrida. ii. quanto ao ali arguido CC: a) Negar provimento ao recurso interposto pelo arguido CC e confirmar na íntegra a decisão recorrida.” Não se procedeu à inquirição das testemunhas indicadas pelos denunciantes porquanto, encontrando-se a audiência de julgamento em que ocorreram os factos gravada, tais inquirições seriam redundantes e não acrescentariam novo conhecimento aos autos. Não se procedeu à constituição da denunciada como arguida porquanto tal diligência só é obrigatória quando o inquérito corra contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime. d) Apreciação e ponderação dos indícios: O Ministério Público deverá deduzir acusação quando, durante o inquérito, tiverem sido recolhidos indícios suficientes da verificação de crime e de quem foi o seu agente. Não existindo tais indícios, deverá o inquérito ser arquivado. Indícios suficientes são aqueles de que resulte uma possibilidade razoável de vir a ser aplicada em julgamento uma pena ou medida de segurança. Assim, torna-se necessário, findas as diligências de inquérito, proceder a um juízo antecipatório da probabilidade de, face aos indícios produzidos, vir a ser obtida uma condenação num eventual julgamento. Tal decisão traduz-se, essencialmente, na análise e interpretação dos indícios colhidos e da sua suficiência para permitir ultrapassar a dúvida razoável em que se sustenta o princípio in dubio pro reo, corolário do princípio da presunção da inocência. Dito de outra forma, haverá que realizar um juízo de prognose a partir dos indícios recolhidos, avaliar até que ponto será expectável que estes se venham a manter na fase de julgamento, e ponderar da maior ou menor probabilidade de obter uma condenação. Deve ter-se presente que, na determinação e realização das diligências de investigação, há uma permanente ponderação da sua utilidade visando a descoberta da verdade material, mas sempre adequadamente moldada pelo princípio da proibição da prática de atos inúteis. Levando em conta os conceitos expostos, e descendo ao caso vertente, importa então aferir se das diligências probatórias produzidas foram recolhidos indícios suficientes para concluir que se verificou a prática de crime e de que foi possível identificar o seu autor. QUANTO AO CRIME DE DISCRIMINAÇÃO E INCITAMENTO AO ÓDIO E À VIOLÊNCIA: O crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência encontra-se previsto no artigo 240.º do Código Penal, assumindo particular interesse na presente situação a previsão da alínea b) do seu n.º 2, a qual dispõe: “(…)2 - Quem, publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade: b) Difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica; é punido com pena de prisão de 6 meses a 5 anos.” Decorre da citada norma que incorre na prática de tal crime quem: a) publicamente, por qualquer meio destinado a divulgação, nomeadamente através da apologia, negação ou banalização grosseira de crimes de genocídio, guerra ou contra a paz e a humanidade; b) difamar ou injuriar pessoa ou grupo de pessoas por causa da sua raça, cor, origem étnica ou nacional, ascendência, religião, sexo, orientação sexual, identidade de género ou deficiência física ou psíquica. Vejamos se dos factos denunciados e dos elementos probatórios recolhidos decorrem indícios da prática pelo agente a denunciada Juiz ... dos elementos do tipo objetivo e subjetivo. Tal como acima referido, imputa-se à denunciada o facto de, no decurso da audiência de julgamento em que procedeu à leitura do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1498/20.6..., ter dirigido aos denunciantes a seguinte afirmação: “Estes factos assumem uma gravidade extrema, são absolutamente inadmissíveis, são uma vergonha para a ..., são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento.” Tal afirmação foi proferida na sala de audiências do tribunal e em sede de audiência de julgamento, na sequência da leitura de decisão condenatória na qual os três ora denunciantes eram arguidos e enquadrada no que a lei define como locução ao arguido exortando-o a corrigir-se . Desde logo cabe referir que falece o elemento do tipo objetivo que exige que a afirmação seja feita por qualquer meio destinado a divulgação. É sabido que, regra geral, as audiências de julgamento são públicas, contudo, a publicidade de audiência não é ilimitada e, tão pouco, é um meio destinado à divulgação dos atos ou decisões que ali são proferidas. Note-se, por exemplo, que é permitida aos órgãos de comunicação social a narração circunstanciada do teor de atos processuais a cujo decurso for permitida a assistência do público em geral, mas, regra geral, não é autorizada a transmissão ou registo de imagens ou de tomadas de som relativas à prática de qualquer ato processual. Meio destinado a divulgação será aquele que visa a difusão do seu conteúdo por um sem número de destinatários ou cujo público-alvo seja o mais lato possível. Assim, a afirmação acima referida e proferida no referido contexto, ainda que feita em lugar público porque acessível ao público, não foi feita por meio destinado à sua divulgação. Ademais, também não se verifica injúria dos denunciantes por causa da sua origem étnica. A afirmação em causa não contém qualquer juízo ofensivo da honra ou consideração devida aos denunciantes, ou aos cidadãos com origem de .... Após a leitura de decisão condenatória, a lei atribui ao juiz a faculdade de dirigir ao arguido uma breve alocução exortando-o a corrigir-se. Contextualizando a afirmação, podemos ler da mesma que a denunciada, na qualidade de juíza que presidia à diligência, alertou os ali arguidos para: a extrema gravidade das suas condutas os três foram condenados em penas de prisão efetiva pela prática de diversos crimes, entre os quais homicídios qualificados sob a forma tentada; que tais condutas são inadmissíveis os três arguidos foram condenados pela prática de vários crimes, entre os quais alguns atentaram contra a vida de terceiros; que a prática de crimes de tal gravidade são uma vergonha para a ... pois que envergonham os que não têm tais comportamentos; e que contribuem para dar razão aos que alimentam discursos de cariz discriminatório da referida etnia. Mesmo despindo a afirmação do seu contexto alocução dirigida a arguidos condenados exortando-os a corrigirem-se não se alcança qualquer apologia discriminatória da origem étnica dos visados. Por último, cabe ainda referir que o crime em apreço exige o dolo ao nível do tipo subjetivo. Não se vislumbra dos factos apurados e do respetivo contexto que o fim visado pela denunciada, ao proferir a afirmação transcrita, fosse discriminar os ora denunciantes em função da sua origem étnica. QUANTO AO CRIME AGRAVADO DE INJÚRIA: O crime de injúria encontra-se previsto no artigo 181.º do Código Penal. Decorre da citada norma que incorre na prática de tal crime quem: a) imputar factos a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, ofensivos da sua honra ou consideração; ou b) dirigir-lhe palavras ofensivos da sua honra ou consideração. Ocorre agravação da pena, nos termos do artigo 184.º do Código Penal, quando o facto é praticado contra magistrado no exercício das suas funções ou por causa delas, ou se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade. Para efeitos da lei penal a expressão funcionário abrange os magistrados judiciais. O procedimento criminal pelo crime de injúria depende de acusação particular, mas, nos casos em que ocorre agravação da pena, é suficiente a queixa ou participação. Vejamos se dos factos denunciados e dos elementos probatórios recolhidos decorrem indícios da prática pelo agente a denunciada Juiz ... dos elementos do tipo objetivo e subjetivo. Tal como já referido, imputa-se à denunciada o facto de, no decurso da audiência de julgamento em que procedeu à leitura do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1498/20.6..., ter dirigido aos denunciantes a seguinte afirmação: “Estes factos assumem uma gravidade extrema, são absolutamente inadmissíveis, são uma vergonha para a ..., são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento.” Remete-se aqui para as considerações já tecidas na parte respeitante ao crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência. Ademais, a afirmação foi proferida em obediência à previsão legal que atribui ao juiz a faculdade de dirigir ao arguido condenado uma breve alocução exortando-o a corrigir-se. Donde, não se verificam os elementos do tipo objetivo e/ou subjetivo do crime de injúria e, tão pouco, a agravação de tal crime por não se verificar que a denunciada tenha atuado com grave abuso de autoridade. Soçobrando o elemento agravante, ressuma a natureza particular do crime, a qual se apreciará infra atenta a falta de legitimidade do Ministério Público para a promoção do procedimento criminal dependente de acusação particular. e) Decisão: Face ao exposto, não se vislumbrando demais diligências de investigação obrigatórias ou essenciais para a descoberta da verdade, DECIDO o arquivamento do inquérito, nos termos e ao abrigo do disposto no artigo 277.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, por se ter recolhido prova bastante de se não ter verificado o crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência ou o crime agravado de injúria. f) Comunicações: NOTIFIQUE o presente despacho, nos termos do disposto no artigo 277.º, n.º 3 e 4, do Código de Processo Penal, nomeadamente: i. aos assistentes AA, BB e CC; ii. ao ilustre mandatário dos assistentes. COMUNIQUE o presente despacho, com cópia e nos termos habituais, à Exma. Senhora Procuradora-Geral Regional de Lisboa. g) Prescrição do procedimento criminal: Em cumprimento e para os efeitos do disposto no ponto 3. da circular n.º 8/2008, de 23 de maio, da Procuradoria-Geral da República, consigno que a prescrição do procedimento criminal pelo crime com prazo mais longo ocorrerá a 15 de fevereiro de 2032. III ACUSAÇÃO PARTICULAR: a) Factos denunciados AA, BB e CC, ora assistentes nos autos, apresentaram denúncia contra DD, Juiz ..., porquanto (em súmula): a) em 15-02-2022, pelas 09:30 horas, no Juízo Central Criminal ..., a denunciada procedeu à leitura do acórdão proferido no âmbito do processo n.º 1498/20.6...; b) no decurso da referida diligência dirigiu aos assistentes, ali arguidos, na presença de todos os restantes intervenientes, o seguinte: “Estes factos assumem uma gravidade extrema, são absolutamente inadmissíveis, são uma vergonha para a ..., são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento;” c) estas palavras ofenderam os assistentes na sua honra e consideração; d) porque os comentários em causa são discriminatórios; e) ao afirmar que os factos perpetrados pelos ali arguidos são uma vergonha para a ... e que são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento, discriminou os assistentes em razão da sua etnia; f) os assistentes suportaram a censura dirigida a qualquer pessoa condenada pela prática de um crime, porém, ao contrário do que aconteceria se não pertencessem à ..., foram alvo de uma censura acrescida; g) censura essa que consubstancia, conforme se explicitou, uma discriminação em razão da origem étnica e que os ofendeu na sua honra e consideração. b) Qualificação jurídica: A conformação dos factos, tal como apresentada pelos assistentes, suscita a respetiva subsunção jurídico-penal, para além dos ilícitos já apreciados em sede de despacho de arquivamento, ao seguinte crime: injúria, previsto e punível pelo artigo 181.º, n.º 1, do Código Penal. c) Diligências de inquérito: Procedeu-se à realização das diligências tidas por pertinentes com vista a investigar a existência de crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação, sempre com ponderação dos princípios da necessidade de assegurar os meios de prova necessários à realização das finalidades do inquérito e da proibição da prática de atos inúteis que emana do disposto no artigo 130.º do Código de Processo Civil e aplicável ao processo penal ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal. Neste conspecto, assume particular relevância o seguinte elemento probatório: 1. cópia integral da gravação da audiência de julgamento (leitura de acórdão) que teve lugar no dia 15 de fevereiro de 2022, no âmbito do processo comum coletivo 1498/20.6... (REF. ....55): - recolhe-se deste elemento probatório o teor da alocução dirigida pela denunciada aos ali arguidos. Não se procedeu à inquirição das testemunhas indicadas pelos assistentes porquanto, encontrando-se a audiência de julgamento em que ocorreram os factos gravada, tais inquirições seriam redundantes e não acrescentariam novo conhecimento aos autos. Não se procedeu à constituição da denunciada como arguida porquanto tal diligência só é obrigatória quando o inquérito corra contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime. d) Posição do Ministério Público em face dos indícios: Tal como se explanou em sede de despacho de arquivamento na parte respeitante à apreciação e ponderação dos indícios quanto ao crime agravado de injúria, e que aqui se dá por reproduzido, mantém-se o entendimento da não existência de indícios de ter sido proferido juízo ofensivo da honra ou consideração devida aos assistentes. e) Comunicações: Em face da natureza particular do crime ora em apreço, DETERMINO: i. a notificação dos assistentes para em 10 dias, querendo, deduzirem acusação particular, nos termos do artigo 285.º do Código de Processo Penal, e, bem assim, pedido de indeminização civil, nos termos do artigo 77.º, n.º 1, do Código de Processo Penal; ii. a notificação do mandatário dos assistentes nos mesmos termos e para os mesmos fins.» 2. Os Assistentes deduziram acusação particular contra a Arguida, pelos seguintes factos: «1. AA, BB e CC, doravante assistentes, foram constituídos arguidos, acusados e julgados no âmbito do processo n. 0 1498/20.6..., que correu termos no Juízo Central Criminal ... - Juiz .... 2. No âmbito do referido processo, na fase de julgamento, presidiu ao coletivo de juízes a Meritíssima Juiz ... DD, doravante arguida. 3. Realizada a audiência, foi agendado o dia 15,02.2022, às 9h30, para a leitura do acórdão. 4. A data e hora agendadas para a diligência acima mencionada, além da arguida, no papel de Juiz ..., e dos assistentes, na qualidade de arguidos, estavam presentes, nomeadamente, o Exmo. Sr. Procurador da República EE, a Escrivã Auxiliar FF e os arguidos GG, HH e II, 5. Neste seguimento, durante a diligência, a arguida, dirigindo-se aos aqui assistentes, e aos demais arguidos, e na presença de todos os restantes intervenientes, afirmou o seguinte: «Estes factos assumem uma gravidade extrema, são absolutamente inadmissíveis, são uma vergonha para a ..., são aquilo que dá razão a todos quantos dizem, e há bastantes que dizem, coisas de cariz discriminatório e, portanto, são, de facto, um belíssimo contributo para essas teses e envergonham os outros que não têm este comportamento» 6. Ao atuar desta forma, a arguida quis e conseguiu ofender a honra e a consideração pessoal dos assistentes, atuando no exercício das suas funções e na presença de todos aqueles que naquelas circunstâncias se encontravam no Juízo Central Criminal ... e que, por esse motivo, presenciaram a factualidade supra descrita. 7. A arguida agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.» 3. Imputaram à Arguida a prática, em autoria material, de três crimes de injúria, previstos e punidos pelo n.º 1 do artigo 181.º do Código Penal. Apreciando. Conforme resulta do despacho de arquivamento do inquérito, a injúria pode revestir duas formas com diferentes enquadramentos processuais. Se o crime for praticado na sua modalidade simples, assume natureza de crime particular (art.º 188.º do Código Penal). Se o crime for praticado na modalidade agravada tal como previsto no art.º 184.º do Código Penal, já a natureza do crime será semi-pública, dependendo do impulso processual do Ministério Público ao qual compete deduzir acusação. Ora, quanto à injúria agravada, decidiu o Ministério Público pelo arquivamento dos autos. Vieram os Assistentes deduzir acusação, desta feita apenas por injúria simples, crime para o qual, indubitavelmente, têm legitimidade para acusar. A questão da legitimidade ficaria assim resolvida pela natureza do crime, excepto se for possível o entendimento de que a qualificação jurídica dos factos está errada, o que poderá ocorrer se dos mesmos decorrer a circunstância agravante do art.º 184.º do Código Penal, ou se, apesar dela concretamente existir, tiver sido omitida desses mesmos factos de forma a permitir a imputação de um crime menos grave, com diferente natureza, apenas para permitir acusar particularmente e ultrapassar o arquivamento decidido pelo Ministério Público. Atentos os factos imputados pelos Assistentes, os mesmos apenas permitem a imputação de um crime de injúria. A circunstância agravante, recorde-se, é «se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade». Conforme apreciado no despacho de arquivamento, a qualidade de funcionário, para efeitos penais, abrange o exercício de funções jurisdicionais, pelo que a Arguida, Juiz ..., tem essa qualidade. Também não restam dúvidas que os factos foram praticadas no efectivo exercício das funções de Juiz ..., na alocução final subsequente à leitura de um acórdão. O ponto essencial para dirimir esta questão prévia será saber se, tal como configurados os factos, os mesmo têm associados uma prática com grave abuso de autoridade e o mesmo foi omitido da descrição de forma a inviabilizar a correcta qualificação jurídica e permitir a iniciativa acusatória dos Assistentes. Por grave abuso de autoridade deverá entender-se o uso indevido de poderes legitimamente concedidos, muito para além da função para os quais foram atribuídos. Ou seja, os factos deverão ser praticados no desempenho de qualquer prerrogativa ou direito inerente ao cargo. A imputada afirmação terá sido proferida ao abrigo da norma processual que ao juiz confere a faculdade de dirigir ao arguido condenado uma breve alocução exortando-o a corrigir-se (art.º 375.º/2 do Código de Processo Penal). Ora, sendo o crime de injúria um crime doloso, a utilização do direito conferido ao Juiz de dirigir ao arguido condenado uma breve alocução exortando-o a corrigir-se para, então, injuriar o Arguido, sujeitando-o a tal ofensa sob a capa do desempenho de uma faculdade legalmente atribuída será, necessariamente, um grave abuso de autoridade. Ou seja, não se concebe que, usando o exercício de uma competência legal, um Juiz dolosamente se determine à prática de um crime de injúria e o não faça sem estar abrangido pela circunstância do grave abuso de autoridade. Tal como no crime de abuso de poder, que pressupõe que o agente actue com violação dos seus deveres inerentes à função pública que exerce, desconsiderando o interesse público em benefício de interesses particulares, entende-se que no caso da agravação do crime de injúria também estaremos perante uma situação de violação dos deveres da Arguida, enquanto Juíza, desconsiderando a finalidade da sua autoridade judiciária, em benefício de interesses particulares que se traduziriam na dolosa comissão de um crime de injúria. Desta forma, a descrição dos factos apresentada pelos Assistentes contém, em si mesmo, a exibição de um grave abuso de autoridade pelo que, em bom rigor, não está correcta a qualificação jurídica dos mesmos. Entende o Tribunal que, tal como configurada a factualidade imputada na acusação particular, a mesma importa a prática de um crime de injúria agravada (art.º 181.º e 184.º do Código Penal). Tendo tal crime natureza semi-pública, carecem os Assistentes de legitimidade para deduzirem acusação particular, o que, nos termos dos art.º 119.º al. b), 48.º, 49.º e 53.º do Código de Processo Penal, constitui nulidade insanável. Em todo caso, e a talhe de foice, uma vez que a matéria teve, necessariamente, que ser apreciada por este Tribunal para alcançar a conclusão agora enunciada, sempre se dirá que se entende que, no caso concreto, não se verificam os elementos do tipo objetivo e/ou subjetivo do crime de injúria, tal como ponderado pelo Ministério Público no despacho de arquivamento, pelo que sempre estaria condenada ao naufrágio a acusação formulada. Porém, sendo prévia a questão da ilegitimidade dos Assistentes para deduzirem acusação pelos factos que descreveram, que se reconhece existir, declara-se a nulidade da acusação formulada e consequente arquivamento dos autos. DECISÃO Nestes termos, e face ao exposto, decide o Tribunal da Relação de ..., enquanto Tribunal de Instrução em exercício de competências de Primeira Instância, julgar nula, por ilegitimidade, a acusação deduzida pelos Assistentes AA, BB e CC contra a DD, Juiz ..., o que se declara, determinando o consequente arquivamento dos autos. Custas pelos Assistente, fixando-se em 2 UC a respectiva taxa de justiça individual. Solidariamente, vão ainda condenados nos demais encargos. (…)”. * * * Âmbito do recurso Dispõe o art. 412º, nº 1 do C. Processo Penal que, a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido. As conclusões constituem, pois, o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso. Consistindo as conclusões num resumo do pedido, portanto, numa síntese dos fundamentos do recurso levados ao corpo da motivação, entre aquelas [conclusões] e estes [fundamentos] deve existir congruência. Deste modo, as questões que integram o corpo da motivação só podem ser conhecidas pelo tribunal ad quem se também se encontrarem sumariadas nas respectivas conclusões. Quando tal não acontece deve entender-se que o recorrente restringiu tacitamente o objecto do recurso. Por outro lado, também não deve ser conhecida questão referida nas conclusões, que não tenha sido tratada no corpo da motivação (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. 3, 2020, Universidade Católica Editora, pág. 335 e seguintes). Assim, atentas as conclusões formuladas pelos recorrentes, as questões a decidir no presente recurso, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, por ordem de precedência lógica, são: - A de saber se existe nulidade insanável, por ilegitimidade, da acusação particular deduzida pelos assistentes, relativamente ao crime de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181º, nº 1 e 184º do C. Penal; - A de saber se estão suficientemente indiciados factos preenchedores do tipo do crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1 do C. Penal. * * Questão prévia A título de questão prévia, apontam os recorrentes – conclusão 4 – a existência de uma contradição no raciocínio expendido no despacho recorrido pois, por um lado, entendeu que a acusação particular é nula por a actuação nela imputada traduzir a prática de um crime de injúria agravado, logo, de com natureza semipública, e por outro, entendeu que, não se verificando a agravação, também não estavam verificados os elementos do tipo do crime de injúria. Com ressalva do respeito devido, não cremos que tenham razão. Explicando. É irrefutável o acerto da afirmação dos recorrentes no sentido de que o preenchimento do tipo do crime de injúria agravado pressupõe, necessariamente, o preenchimento do tipo do crime de injúria simples, digamos assim. É a consequência lógica da relação de especialidade existente entre tipos base e tipos agravados ou qualificados. Acontece que não é nestes termos que a questão é colocada no despacho recorrido. Quando o Sr. Juiz Desembargador, em funções de juiz de instrução, abordou a problemática da nulidade da acusação particular, fê-lo na perspectiva da legitimidade para a promoção do processo penal, relativamente aos crimes semipúblicos e particulares (arts. 48º a 50º do C. Processo Penal). Para tanto, cuidou apenas dos factos narrados na acusação e sua qualificação jurídico-penal, para concluir que, preenchendo os mesmos, em seu entender, a prática de um crime de injúria agravado, p. e p. pelo arts. 181º, nº 1 e 184º do C. Penal, atento o disposto no art. 188º, nº 1, a) do mesmo código, a dedução de acusação particular narrando factos jurídico-penalmente qualificáveis como crime semipúblico, sem prévia acusação do Ministério Público, origina a nulidade insanável prevista na alínea b) do art. 119º do C. Processo Penal. Quando o Sr. Juiz Desembargador, em funções de juiz de instrução, já na parte final da argumentação que levou ao despacho recorrido, depois de ter concluído pela ilegitimidade dos assistentes para deduzirem a acusação particular e de ter afirmado que esta [ilegitimidade] era questão prévia, abordou a problemática da verificação dos elementos do tipo do crime de injúria simples, e concluiu, obiter dictum, pela sua não verificação, fê-lo já numa distinta perspectiva, na da suficiente ou insuficiente indiciação dos factos narrados aptos ao preenchimento dos elementos típicos de tal crime. Assim fixados os termos da questão, temos por inequívoco que não se verifica qualquer contradição na fundamentação do despacho recorrido, uma vez que as duas premissas tidas por opostas, se encontram colocadas em distintos planos, um, referente à legitimidade dos assistentes para acusarem, outro, referente à insuficiência de indícios comprovativos da verificação dos factos por eles acusados. Em conclusão, não enferma o despacho recorrido do imputado vício de raciocínio. * * Da nulidade insanável, por ilegitimidade, da acusação particular deduzida pelos assistentes 1. Alegam os assistentes, ora recorrentes – conclusões 5 a 10 – que, sendo inquestionável que a denunciada, enquanto Juiz ..., tem a qualidade de funcionária para os efeitos do art. 386º do C. Penal, e que verbalizou as expressões narradas no decurso da publicitação do acórdão que os condenou, sempre entenderam que a conduta daquela não configurava um grave abuso de autoridade, na medida em que foi actuada na alocação referida no art. 357º, nº 2 do C. Processo Penal, e por isso, notificados que foram pelo Sr. Procurador-Geral Adjunto, nos termos do art. 285º do mesmo código, deduziram acusação particular, pelo que, carece de fundamento legal o entendimento de não terem legitimidade para acusar e de estar verificada a nulidade insanável prevista na alínea b) do art. 119º ainda do mesmo código, dado estar em causa a acusação por crime de natureza particular. Vejamos. Na denúncia apresentada pelos assistentes mostra-se relatada, além do mais, a alocução que a Sra. Juiz ... arguida lhes dirigiu na audiência de julgamento em que foi publicitado o acórdão que os condenou, alocução que sentiram como atentatória das respectivas honra e consideração, bem como, discriminatória em razão da sua etnia, e concluíram pelo cometimento do crime de discriminação, p. e p. pelo art. 240º, nº 2, b), do C. Penal. O Sr. Procurador-Geral Adjunto titular do inquérito entendeu poderem estar em causa os crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, p. e p. pelo art. 240º, nº 2, b), do C. Penal e de injúria agravada, p. e p. pelos arts. 181, nº 1 e 184º do mesmo código. Feitas as necessárias e convenientes diligências de prova, aquele Magistrado proferiu o despacho a que alude o art. 277º do C. Processo Penal no qual, relativamente ao crime de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, entendeu não estar suficientemente indiciado i) que a afirmação imputada, apesar de proferida em local público, tenha sido feita por qualquer meio destinado à divulgação, ii) que a afirmação proferida tenha constituído injúria dos assistentes em razão da sua origem étnica e iii) que a Sra. Juiz ... denunciada, ao proferir a afirmação, tenha querido discriminar os assistentes em razão da sua origem étnica, e, relativamente ao crime de injúria agravada, remetendo para os antecedentes fundamentos e acrescentando que a afirmação em causa foi produzida no âmbito da norma que atribui ao juiz a faculdade de se dirigir ao arguido condenado, exortando-o a corrigir-se, entendeu não estarem verificados os elementos típicos do crime de injúria nem a previsão da circunstância agravante, por não se verificar ter a Sra. Juiz ... actuado com grave abuso de autoridade, pelo que, soçobrando esta circunstância, ressuma a natureza particular do crime e o seu reflexo na legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo. Nesta decorrência, o mesmo Magistrado determinou o arquivamento do inquérito e ordenou a notificação dos assistentes, nos termos do disposto no art. 285º do C. Processo Penal para deduzirem, querendo, acusação particular. Os assistente deduziram acusação particular, imputando à Sra. Juiz ... denunciada a prática de três crimes de injúria, p. e p. art. 181º, nº 1, do C. Penal. O Sr. Procurador-Geral Adjunto não acompanhou a acusação particular. A Sra. Juiz ... denunciada requereu a abertura da instrução visando que, a final, fosse ordenado o arquivamento dos autos, por ilegitimidade dos assistentes para deduzirem acusação por factos cuja qualificação jurídico-penal corresponde ao cometimento de crime semipúblico [embora os assistente o tenham qualificado como crime particular], sem prévia acusação do Ministério Público por tal crime, e assim não se entendendo, que fosse proferido despacho de não pronúncia, pois os factos que na acusação dos assistentes lhe são atribuídos, não preenchem o tipo dos crimes de injúria imputados. Aberta a fase de instrução e realizado o debate instrutório, o Sr. Juiz Desembargador, em funções de juiz de instrução, proferiu decisão que declarou nula, por ilegitimidade, a acusação deduzida pelos assistentes contra a Sra., Juiz ... arguida, e determinou o arquivamento dos autos. Dito isto. 2. Nos termos do disposto no art. 219º, nº 1 da Constituição da República Portuguesa, compete ao Ministério Público representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal e defender a legalidade democrática. O Ministério é um órgão do Estado de administração da justiça, autónomo, portanto, independente dos tribunais, mas que com eles colabora na descoberta da verdade e realização do direito, dotado de estrutura e organização próprias, sujeito, na sua actuação, a critérios de legalidade estrita e objectividade, que constitui uma dimensão fundamental da estrutura acusatória do nosso sistema processual (Figueiredo Dias e Nuno Brandão, Direito Processual Penal, Os Sujeitos Processuais, 1ª Edição, 2022, Gestlegal, págs. 125 e seguintes e Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, Vol. I, 2ª Edição, 2ª Reimpressão, 2020, Universidade Católica Editora, págs. 237 e seguintes). A estrutura acusatória do processo penal, constitucionalmente garantida no nº 5 do art. 32º da Lei Fundamental, no seu sentido básico actual, significa que a entidade que julga seja distinta da entidade que investigou e acusou. Trata-se de uma garantia do julgamento imparcial e independente, onde se distingue entre a acusação, a instrução e o julgamento, cabendo a primeira ao órgão acusador, portanto, ao Ministério Público, a segunda, ao juiz de instrução e a terceira ao juiz do julgamento. Já sabemos que compete ao Ministério Público o exercício da acção penal, cabendo-lhe, neste âmbito, colaborar com o tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito (nº 1 do art. 53º do C. Processo Penal),) e, em especial, a) receber as denúncias, as queixas e as participações e apreciar o seguimento a dar-lhes, b) dirigir o inquérito, c) deduzir acusação e sustentá-la efectivamente na instrução e no julgamento, d) interpor recurso, ainda que no exclusivo interesse da defesa e, e) promover a execução das penas e das medidas de segurança (nº 2 do mesmo artigo). Tornando efectiva esta competência, estabelece o art. 48º do C. Processo Penal, com a epígrafe «Legitimidade» que, [o] Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos 49º a 52º. Com particular relevo para a questão em análise, dispõe o art. 49º do mesmo código, com a epígrafe «Legitimidade em procedimento dependente de queixa», no seu nº 1 que, [q]uando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas deem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo, e dispõe o art. 50º também do mesmo diploma legal, com a epígrafe «Legitimidade em procedimento dependente de acusação particular», no seu nº 1, que, [q]uando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem , se constituam assistente e deduzam acusação particular. Como se vê, a lei, relativamente a alguns crimes, condiciona a actividade do Ministério Público, em sede de promoção do processo, à existência de queixa, e à existência de queixa e de acusação particular. No primeiro caso, temos os crimes semipúblicos, e no segundo, os crimes particulares. Em termos práticos, a legitimidade do Ministério Público para a promoção do processo penal é aferida da seguinte forma: - Não existindo norma que exija queixa e/ou acusação particular [crime público], o Ministério Público pode promover o processo livremente; - Existindo norma que exija queixa [crime semipúblico], o Ministério Público só pode promover o processo depois de esta ter sido apresentada, mas tendo-o sido, no termo do inquérito compete-lhe arquivar ou acusar; - Existindo norma que exija acusação particular [crime particular], o Ministério Público só pode promover o processo depois de ter sido apresentada queixa, e tendo-o sido, no termo do inquérito, só pode acusar, depois de o assistente ter deduzido acusação particular. A falta de promoção do processo pelo Ministério Público, nos termos do art. 48º do C. Processo Penal, determina a nulidade insanável prevista na alínea b) do art. 119º do mesmo código. Note-se que, porque estamos no campo das nulidades, o erro que a preenche reporta-se ao modo do acto processual praticado sendo, portanto, um error in procedendo e não, um error in judicando, um erro relativo ao julgamento, portanto, um erro que viciou o raciocínio de quem decide (João Conde Correia, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo I, 2021, Almedina, pág. 1233 e seguintes). Para concluir, tenha-se igualmente presente que o Assento nº 1/2000, de 16 de Dezembro de 1999 (DR, I-A, de 6 de Janeiro de 2000) firmou a seguinte jurisprudência: Integra a nulidade insanável da alínea b) do art. 119º do Código de Processo Penal a adesão posterior do Ministério Público à acusação deduzida pelo assistente relativa a crimes de natureza pública e semipública e fora do caso previsto no artigo 284º, nº 1, do mesmo diploma legal. 3. Recordando, sinteticamente, os dados da questão, temos que os assistentes, na sequência de despacho de arquivamento do Ministério Público por crimes de discriminação e incitamento ao ódio e à violência, p. e p. pelo art. 240º, nº 2, b), do C. Penal e de injúria agravado, p. e p. pelos art. 181º, nº 1 e 184º do mesmo diploma legal, e após notificação para o efeito pelo titular do inquérito, deduziram acusação contra a Sra. Juiz ... arguida, imputando-lhe a prática de três crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1 do C. Penal, vindo esta a requerer a abertura da instrução com vista, além do mais, ao reconhecimento da ilegitimidade dos assistentes para deduzirem acusação particular por crime de natureza semipública, porque os factos imputados devem ser qualificados como três crimes de injúria agravados, vindo o Sr. Juiz Desembargador, em funções de juiz de instrução, sufragando este entendimento, a declarar nula a acusação particular por ilegitimidade dos assistentes. Não se questiona a natureza do crime de injúria e do crime de injúria agravado. O primeiro é um crime particular, pois o respectivo procedimento depende de acusação particular, como decorre do proémio do nº 1 do art. 188º do C. Penal, enquanto o segundo é um crime semipúblico, pois o respectivo procedimento depende de queixa ou participação, como resulta da alínea a) do nº 1 do mesmo artigo. Em regra, os factos narrados nas peças acusatórias são concordantes com a qualificação jurídico-penal que nelas são feitas pelos respectivos autores, sejam Magistrados do Ministério Público, sejam assistentes. E quando existe tal concordância, nenhum problema relativo à validade da peça em causa sobrevem. Já não assim, porém, quando a qualificação jurídico-penal dos factos descritos na acusação é susceptível de controvérsia, e é exactamente isso o que temos nos autos. Ciente desta dificuldade, o Sr. Juiz Desembargador, em funções de juiz de instrução, expressou o seu entendimento nestes termos: A questão da legitimidade ficaria assim resolvida pela natureza do crime, excepto se for possível o entendimento de que a qualificação jurídica dos factos está errada, o que poderá ocorrer se dos mesmos decorrer a circunstância agravante do art.º 184.º do Código Penal, ou se, apesar dela concretamente existir, tiver sido omitida desses mesmos factos de forma a permitir a imputação de um crime menos grave, com diferente natureza, apenas para permitir acusar particularmente e ultrapassar o arquivamento decidido pelo Ministério Público. Atentos os factos imputados pelos Assistentes, os mesmos apenas permitem a imputação de um crime de injúria. A circunstância agravante, recorde-se, é «se o agente for funcionário e praticar o facto com grave abuso de autoridade». Conforme apreciado no despacho de arquivamento, a qualidade de funcionário, para efeitos penais, abrange o exercício de funções jurisdicionais, pelo que a Arguida, Juiz ..., tem essa qualidade. Também não restam dúvidas que os factos foram praticadas no efectivo exercício das funções de Juiz ..., na alocução final subsequente à leitura de um acórdão. O ponto essencial para dirimir esta questão prévia será saber se, tal como configurados os factos, os mesmo têm associados uma prática com grave abuso de autoridade e o mesmo foi omitido da descrição de forma a inviabilizar a correcta qualificação jurídica e permitir a iniciativa acusatória dos Assistentes. Por grave abuso de autoridade deverá entender-se o uso indevido de poderes legitimamente concedidos, muito para além da função para os quais foram atribuídos. Ou seja, os factos deverão ser praticados no desempenho de qualquer prerrogativa ou direito inerente ao cargo. A imputada afirmação terá sido proferida ao abrigo da norma processual que ao juiz confere a faculdade de dirigir ao arguido condenado uma breve alocução exortando-o a corrigir-se (art.º 375.º/2 do Código de Processo Penal). Ora, sendo o crime de injúria um crime doloso, a utilização do direito conferido ao Juiz de dirigir ao arguido condenado uma breve alocução exortando-o a corrigir-se para, então, injuriar o Arguido, sujeitando-o a tal ofensa sob a capa do desempenho de uma faculdade legalmente atribuída será, necessariamente, um grave abuso de autoridade. Ou seja, não se concebe que, usando o exercício de uma competência legal, um Juiz dolosamente se determine à prática de um crime de injúria e o não faça sem estar abrangido pela circunstância do grave abuso de autoridade. Tal como no crime de abuso de poder, que pressupõe que o agente actue com violação dos seus deveres inerentes à função pública que exerce, desconsiderando o interesse público em benefício de interesses particulares, entende-se que no caso da agravação do crime de injúria também estaremos perante uma situação de violação dos deveres da Arguida, enquanto Juíza, desconsiderando a finalidade da sua autoridade judiciária, em benefício de interesses particulares que se traduziriam na dolosa comissão de um crime de injúria. Desta forma, a descrição dos factos apresentada pelos Assistentes contém, em si mesmo, a exibição de um grave abuso de autoridade pelo que, em bom rigor, não está correcta a qualificação jurídica dos mesmos. Entende o Tribunal que, tal como configurada a factualidade imputada na acusação particular, a mesma importa a prática de um crime de injúria agravada (art.º 181.º e 184.º do Código Penal). Tendo tal crime natureza semi-pública, carecem os Assistentes de legitimidade para deduzirem acusação particular, o que, nos termos dos art.º 119.º al. b), 48.º, 49.º e 53.º do Código de Processo Penal, constitui nulidade insanável. Vale isto dizer, que muito embora os factos imputados na acusação particular só permitam convocar o crime de injúria, deles pode decorrer – ao que parece, implicitamente, ou por voluntária omissão – a indiciação de factualidade preenchedora da circunstância agravante do art. 184º do C. Penal, portanto, a prática do facto, por funcionário, com grave abuso de autoridade, pois que, não sendo questionável a qualidade de funcionário, relativamente à Sra. Juiz ... arguida, e de se encontrar a mesma em exercício de funções, no momento da prática da acção imputada, e devendo entender-se por grave abuso de autoridade o uso indevido de poderes legitimamente concedidos, muito para além da função para os quais foram atribuídos, conclui o Sr. Juiz Desembargador não ser aceitável que um magistrado judicial, no exercício de uma competência legal, dolosamente pratique um crime de injúria, e não veja agravada a sua conduta pela verificação da circunstância do grave abuso de autoridade, tal como sucede com o crime de abuso de poder, que exige que o agente actue com violação dos seus deveres inerentes à função pública que exerce, desconsiderando o interesse público em benefício de interesses particulares, e remata, afirmando que a narração de factos levada à acusação particular contém um grave abuso de autoridade pelo que, não está correctamente qualificada, pois corresponde à prática de um crime de injúria agravado. Com ressalva do respeito devido, que é muito, não comungamos deste entendimento, pelas razões que se passam a expor. Sendo verdade que o crime de abuso de poder, previsto no art. 382º do C. Penal, tem como elemento constitutivo do respectivo tipo objectivo o abuso de poderes ou a violação dos deveres funcionais do funcionário, é também verdade que não existe previsão legal deste crime, agravado pela circunstância de grave abuso de poder. A circunstância qualificativa prevista na parte final do art. 184º do C. Penal, como inequivocamente resulta da sua letra, só se encontrará preenchida quando o agente ou funcionário tiver actuado com grave abuso de autoridade, não sendo pois, relevante, para esse preenchimento, que o agente tenha agido, apenas, com abuso de autoridade. A exigência de grave abuso de autoridade representa uma restrição na definição do abuso típico, para efeitos de preenchimento da circunstância qualificativa (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 3ª Edição, 2015, Universidade Católica Editora, pág. 736 e Figueiredo Dias, Actas do Código Penal, 1993, pág. 241, a propósito do mesma expressão, relativamente ao crime de sequestro agravado e Rodrigues da Costa, Crimes de Difamação e Injúria Agravados nos termos do art. 184º do Código Penal, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, Volume I, 2001, Coimbra Editora, pág. 348), sendo certo que, porque nos encontramos no campo da pequena criminalidade, não vemos que possa aqui ter cabimento o entendimento de Figueiredo Dias (Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo I, 2ª Edição, 2012, Coimbra Editora, pág. 73 e seguintes), secundado por Paulo Pinto de Albuquerque (op. cit., pág. 517), relativo à alínea m) do nº 2 do art. 132º do C. Penal, segundo o qual, o homicídio praticado por funcionário nesta qualidade, inexistindo causas de justificação, será sempre praticado com abuso de autoridade e este será sempre grave. É claro que um juiz, no exercício das suas funções, pode ofender a honra e consideração de forma agravada, seja de um advogado, seja de outro juiz, seja de qualquer sujeito ou interveniente processual, designadamente, de um arguido. Porém, ter por assente que, em qualquer circunstância, a injúria cometida por juiz, no exercício das suas funções é, necessariamente, uma injúria agravada afigura-se-nos excessivo e carecido de fundamento bastante. A agravação não pode depender, sem mais, da qualidade de magistrado judicial do agente e da sua actuação sob essas vestes. Antes terá de depender da intensidade com que, no caso concreto, o bem jurídico tutelado foi afectado pela acção praticada. Dito de outro modo, a acção imputada tem de consubstanciar um excesso considerável da competência funcional do agente e a instrumentalização da sua qualidade de funcionário. Assim, o caminho a seguir para a resolução do problema proposto deveria ter tido, como primeiro passo, a fixação dos factos tidos por suficientemente indiciados, seguido da análise e concretização da respectiva qualificação jurídico-penal para depois, e sendo disso ainda caso [v.g., por se ter concluído pela suficiente indiciação de factos susceptíveis de integrarem a prática de um crime de injúria, simples ou agravado], se aferir a legitimidade dos assistentes. In casu, no pressuposto, por mera hipótese de raciocínio, de que a narração de factos que consta da acusação particular é susceptível de preencher o tipo objectivo do crime de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1, do C. Penal, tendo por certo que, dessa narrativa, não consta, expressamente, qualquer facto ou conclusão de facto que, indiciariamente, demonstre ter a Sra. Juiz ... arguido agido com grave abuso de autoridade, consideramos que da sua [da narrativa] globalidade não resulta, contrariamente ao entendimento do Sr. Juiz Desembargador em funções de juiz de instrução, que contém, em si mesmo, a exibição de um grave abuso de autoridade. Na verdade, no pressuposto, mais uma vez, por mera hipótese de raciocínio, de que a Sra. Juiz ... arguida actuou com abuso de autoridade, as circunstâncias em que o fez – alocução final a arguidos acabados de condenar pela prática de crimes graves, prevista no nº 2 do art. 375º do C. Processo Penal, nos termos usados, relatados na acusação e que, de novo, por mera hipótese de raciocínio, se têm como aptos ao preenchimento do tipo objectivo do crime do art. 181º, nº 1 do C. Penal [note-se que no despacho recorrido, em mero obiter dictum, o Sr. Juiz Desembargador afirmou ser seu entendimento que, no caso concreto, não se verificam os elementos do tipo objetivo e/ou subjetivo do crime de injúria, mas sem que tenha fixado os factos indiciariamente provados e expresso o raciocínio conducente à sua atipicidade, face ao referido crime] – não permitem concluir que o abuso de autoridade foi grave. Nesta decorrência, sempre seria de afastar a qualificação da narrativa com a agravação prevista no art. 184º do C. Penal, daí resultando a imputação de três crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1 do C. Penal e a consequente legitimidade dos assistentes para deduzirem acusação particular. 4. Questão distinta, da qual o despacho recorrido não conheceu, por ter decidido, previamente, a questão da ilegitimidade dos assistentes, é a de saber se existem nos autos, suficientemente indiciados, factos praticados pela Sra. Juiz ... arguida susceptíveis de preencherem o tipo, objectivo e subjectivo, dos acusados crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1 do C. Penal. E porque a Relação, como 1ª instância, não conheceu de tal questão, designadamente, fixando os factos tidos por suficientemente indiciados e os factos tidos por insuficientemente indiciados, também dela não pode este Supremo Tribunal conhecer. 5. Em conclusão: - Existindo divergências sobre a qualificação jurídico-penal dos factos narrados na acusação particular – crime de injúria simples ou crime de injúria agravado –, não sendo de aceitar a proposição de que o crime de injúria praticado por magistrado judicial no exercício das suas funções é sempre agravado, nos termos do art. 184º do C. Penal, e não se descortinando na acusação particular deduzida pelos assistente, uma narração de factos reveladora de uma actuação da arguida, enquanto magistrada judicial, executada com grave abuso de autoridade, a qualificação dessa narrativa como prática de três crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1 do C. Penal é de aceitar, com a consequente legitimidade dos assistentes para deduzirem acusação; - Procedendo a questão da legitimidade dos assistentes, devem os autos baixar à Relação, enquanto 1ª instância, para conhecimento da questão da suficiência ou insuficiência dos indícios existentes quanto à prática dos imputados crimes de injúria. * * * * III. DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo da 5.ª Secção Criminal, em conceder provimento ao recurso. Em consequência, decidem: A) Revogar o despacho recorrido; B) Reconhecer a legitimidade dos assistentes para deduzirem a acusação particular. C) Ordenar a baixa dos autos à Relação, enquanto 1ª instância, para apreciação da questionada suficiência ou insuficiência dos indícios existentes, quanto à prática dos acusados crimes de injúria, p. e p. pelo art. 181º, nº 1, do C. Penal e consequente prolação de despacho de pronúncia ou de não pronúncia (art. 308º, nº 1 do C. Processo Penal). * D) Recurso sem tributação, atenta a sua procedência (art. 515º, nº 1, b) do C. Processo Penal, a contrario). * (O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94º, nº 2 do C. Processo Penal). * * Lisboa, 4 de Julho de 2024 Vasques Osório (Relator) Agostinho Torres (1º Adjunto) Leonor Furtado (2ª Adjunta) |