Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA OLINDA GARCIA | ||
Descritores: | RESPONSABILIDADE CONTRATUAL CONTRATO MISTO CONTRATO BILATERAL INCUMPRIMENTO DO CONTRATO ALVARÁ LOTEAMENTO RESOLUÇÃO DO NEGÓCIO OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO DOAÇÃO QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DANOS PATRIMONIAIS REVISTA EXCECIONAL | ||
Data do Acordão: | 07/12/2022 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA A REVISTA. | ||
Indicações Eventuais: | TRANSITADO EM JULGADO. | ||
Sumário : |
I- Sendo a doação um contrato unilateral, não é esse o contrato que as partes celebram quando a autora (promotora imobiliária) cede uma parcela de terreno à Câmara Municipal (para integrar o domínio privado desta), como contrapartida da emissão de um alvará de loteamento urbano, sinalagma genético daquela cedência. Trata-se, sim, de um contrato de natureza onerosa (sendo ambas as prestações economicamente avaliáveis), que poderá ser qualificado como um contrato misto. II- Não cabe no poder contratual do cedente de uma parcela de terreno (no âmbito de um procedimento de concessão de um alvará de loteamento urbano) indicar à Câmara Municipal o que deve entender-se por “equipamento social” ou equipamento de uso coletivo. Trata-se de um conceito a definir pelos instrumentos legais aplicáveis a este tipo de operação urbanística. III- Não descarateriza a essência da finalidade “equipamento de uso coletivo” a instalação de uma superfície comercial (supermercado ou hipermercado) que ocupa cerca de 1,6% da área cedida, continuando mais de 98% dessa área a servir aquela finalidade. IV- No plano contratual, terá escassa importância, não permitindo, por isso, a resolução do contrato o eventual incumprimento que corresponde a cerca de 1,6% da parcela de terreno cedida, e que ocorre 36 anos depois da respetiva cedência. V- A indemnização por incumprimento contratual só existe quando se prova a existência de danos causados por esse incumprimento. Não provando a autora quais os concretos danos que lhe foram causados em consequência do alegado incumprimento contratual, falha um dos requisitos cumulativos da obrigação de indemnizar. | ||
Decisão Texto Integral: | Processo n. 2227/18.0T8VFX.L1.S1 Recorrente: QUINTA DA PIEDADE - IMÓVEIS E CONSTRUÇÕES, S.A
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. “QUINTA DA PIEDADE - IMÓVEIS E CONSTRUÇÕES, S.A.” propôs ação declarativa de condenação contra o MUNICÍPIO DE VILA FRANCA DE XIRA, na qual formulou o seguinte petitório: a) Seja o R. condenado a pagar à A., em consequência dos incumprimentos contratuais, e considerando a impossibilidade de restituição em espécie, valor correspondente à diferença entre o valor do terreno em causa, se lhe tivesse sido dado o destino constante da escritura de doação e o valor atual que passou a ter com o destino que lhe veio a ser dado; ou b) Seja declarada a resolução do contrato com fundamento em incumprimento definitivo imputável ao R., na verificação da condição resolutiva nele inscrita ou em alteração anormal das circunstâncias e, em consequência, ser o R. condenado a pagar à A. uma justa indemnização a liquidar; ou c) Seja anulado o contrato, com fundamento em erro sobre as circunstâncias que constituíram a base do negócio e, em consequência, ser o R. condenado a pagar à A. uma justa indemnização a liquidar; ou d) Seja o R. condenado a pagar à A. uma justa indemnização a liquidar, e) Seja o R. condenado a pagar à A. juros de mora comerciais sobre os referidos montantes, desde a citação até efetivo pagamento; f) Os referidos montantes deverão ainda ser acrescidos de sanção pecuniária compulsória, correspondente a juros à taxa de 5% ao ano, desde a data do trânsito em julgado da sentença a proferir. Alegou, em síntese, que no âmbito da sua atividade de compra, venda e revenda de imóveis adquiridos para esse fim, construção civil, promoção imobiliária, estudos e projetos de loteamentos, por escritura pública, outorgada em 20.12.1979, cedeu à Câmara Municipal de Vila Franca de Xira os terrenos destinados a arruamentos e espaços livres com a área aproximada de 7,9 e 14,5 hectares, respetivamente, e o valor estimado de dois milhões duzentos e quarenta mil escudos, e ainda várias parcelas de terreno a desanexar da propriedade descrita em primeiro lugar, destinadas a equipamento da mesma urbanização. A cedência feita pela A. ao Réu, do terreno em causa, tinha por fim a sua integral afetação à instalação de habitação e equipamentos sociais. Na parcela de terreno cedida pela A. não foram construídos nem instalados equipamentos ou habitações sociais, sendo que a A. nunca teria efetuado a referida cedência se soubesse que aquele terreno não iria ser afeto à construção e instalação de habitação e equipamentos sociais e que a totalidade ou partes da parcela de terreno em causa seria transmitida a terceiros para ser afeta a fins lucrativos de natureza e interesse privados. Alega, ainda, que o R. sabia e não podia ignorar que a parcela de terreno em causa se destinava à construção e instalação de equipamentos ou habitações sociais, assim como sabia ter assumido o dever contratual ou a obrigação juridicamente vinculante de destinar a parcela de terreno à construção e instalação de habitação e equipamentos sociais. Pelo que, ao ter agido como agiu, incumpriu o contratualmente estabelecido, levando a que deva ser condenado nos termos em que formulou os seus pedidos.
2. O Réu contestou a ação, excecionando a competência do tribunal em razão da matéria, defendendo serem competentes para apreciar a ação os tribunais administrativos. Invocou a cessação do direito de reversão e da correspondente indemnização, a prescrição da indemnização e impugnou a factualidade alegada, pugnando pela improcedência da ação.
3. Pela primeira instância foi proferida sentença que julgou a ação improcedente e absolveu o Réu dos pedidos.
4. A autora interpôs recurso de apelação, no âmbito do qual o Tribunal da Relação ... veio a proferir a seguinte decisão: «o presente coletivo acorda em julgar a apelação improcedente, assim mantendo a sentença recorrida»
5. Contra essa decisão, a autora interpôs recurso de revista excecional, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões: «A – DA RELEVÂNCIA JURÍDICA E SOCIAL DAS QUESTÕES SUB JUDICE 1ª. No caso sub judice suscita-se a seguinte questão controvertida, cuja apreciação, pela sua relevância jurídica e social, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito (v. art. 672º/1/a), b) e 2/a) do CPC): O contrato celebrado entre um particular e um Município, pelo qual se transmitiu a propriedade de determinado bem imóvel, com o encargo de esta entidade pública o destinar a fins de interesse e utilidade pública, nomeadamente habitação e equipamentos sociais, constitui uma doação modal, nos termos do art.963º e segs do Cod. Civil ou um mero contrato inominado de natureza privada/oneroso? – Cfr. texto nºs 1 a 6;
2ª. No caso em análise impõe-se uma decisão clarificadora deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça para, em conformidade, se proceder a uma melhor aplicação do direito e à decisão uniforme do presente e de muitos outros processos, em que se voltem a suscitar as mesmas questões (v. art. 672º/1/a) e b) e 2/a) do NCPC), evitando-se, neste caso e no futuro, a gritante injustiça que as decisões constantes do acórdão recorrido permitiriam, admitindo-se que os municípios possam dar um destino diverso a terrenos especificamente cedidos para fins de natureza e interesse público, nomeadamente transmitindo-os a terceiros para serem afectos a fins lucrativos de natureza e interesse privados, em clara violação dos princípios da justiça, legalidade, igualdade e proporcionalidade, em que assenta angularmente o Estado de Direito (v. arts. 2º, 9º/b), 17º, 18º, 62º, 103º, 104º e 266º da CRP) – cfr. texto nºs. 1 a 6; 3ª. Estas situações são claramente recorrentes, tendo “capacidade de expansão da controvérsia de modo a ultrapassar os limites da situação singular”, existindo ainda a “possibilidade de repetição, num número indeterminado de casos futuros” (v. Ac. STA de 2011.11.16, Proc. 0740/11, www.dgsi.pt) – cfr. texto nºs. 1 a 6.
B – DA OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS 4ª. O acórdão recorrido e o acórdão fundamento estão em clara oposição relativamente à questão da natureza jurídica do contrato celebrado entre um particular e um Município, pelo qual se transmite a propriedade de determinado bem imóvel, com o encargo de esta entidade pública o destinar a fins de interesse e utilidade pública, nomeadamente habitação e equipamentos sociais – cfr. texto nºs. 7 a 11;
5ª. No douto acórdão recorrido decidiu-se que a escritura de cedência constitui “um contrato inominado de natureza privado / oneroso (…) não lhe sendo, no entanto, aplicável o regime da doação modal, a que alude o art. 963º do C. Civil” – cfr. texto nºs 7 a 11;
6ª. O douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 2013.03.12, que integra fundamento do presente recurso, decidiu, de forma oposta, que “o contrato de doação foi outorgado por imposição do R., Município de Lisboa, constituindo uma exigência prévia para que a autarquia local se dispusesse a permitir o licenciamento da construção (…) não exclui a sua natureza estritamente privada e a inerente sujeição às regras próprias do Código Civil. (…) Especificando, está-se perante uma doação modal ou com encargos, prevista nos arts. 963.º e segs. do CC, na medida em que a liberalidade foi acompanhada pelo encargo do donatário destinar o terreno doado a «via pública e equipamentos»” – cfr. texto nºs. 7 a 11;
7ª. Não se verificou in casu qualquer alteração substancial da regulamentação e princípios jurídicos aplicáveis e não foram as particularidades de cada caso – que, aliás, são coincidentes no essencial – que determinaram as soluções opostas das mesmas questões fundamentais de direito (v. art. 672º/1/c) do NCPC) - cfr. texto nºs. 7 a 11;
C – DA PROCEDÊNCIA DO RECURSO CA – DA NATUREZA DO CONTRATO, DE 1979.12.20 8ª. Contrariamente ao decidido no douto Acórdão recorrido, o contrato titulado pela escritura outorgada, em 1979.12.20, tem natureza privada e gratuita relativamente à cedência da área de 27,6 ha, constituindo uma doação modal, conforme tem decidido a jurisprudência dos nossos Tribunais Superiores (v. Acs. STJ de 2013.03.12, Proc. 5097/05.4TVLSB.L1.S1 e de 2005.09.22, Proc. 05B1723; cfr. Ac. RL de 2019.01.22, Proc. 5097/05.4 TVLSB.L2, da 7ª Secção e Acs. RP de 2018.06.13, Proc. 1366/15.3T8PVZ.P2 e de 2016.11.22, Proc. 1369/12.0TBPRD.P2 todos in www.dgsi.pt) – cfr. texto nºs. 12 a 16;
CB – DO INCUMPRIMENTO CONTRATUAL 9ª. Contrariamente ao decidido no douto Acórdão recorrido, o MVFX incumpriu frontalmente o contrato titulado pela escritura de cedência, de 1979.12.20, ao dar um destino diverso à parcela de terreno cedida – instalação de uma superfície comercial da marca ..., gerida e explorada por entidades de direito privado –, conforme tem constituído jurisprudência unânime dos nossos Tribunais Superiores (v. Acs. STJ de 2013.03.12, Proc. 5097/05.4TVLSB.L1.S1 e de 2005.09.22, Proc. 05B1723; cfr. Ac. RL de 2019.01.22, Proc. 5097/05.4 TVLSB.L2, da 7ª Secção e Acs. RP de 2018.06.13, Proc. 1366/15.3T8PVZ.P2 e de 2016.11.22, Proc 1369/12.0TBPRD.P2, todos in www.dgsi.pt) – cfr. texto nºs. 17 a 22;
CC – DA OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAR 10ª. Em consequência dos incumprimentos do MVFX e considerando a impossibilidade de restituição em espécie, a A. e ora recorrente tem direito a uma justa indemnização a liquidar (v. arts. 358º e 556º do CPC e arts. 564º e segs.do Cód. Civil), correspondente à diferença entre o valor actual do terreno se lhe tivesse sido dado o destino constante da escritura de cedência e o valor actual que passou a ter com o destino que, na realidade, lhe veio a ser dado (v. arts. 405º, 406º, 551º, 562º e segs, 762º e segs e 798º e segs. do Cód. Civil; cfr Acs. STJ de 2013.03.12, Proc. 5097/05.4TVLSB.L1.S1 e de 2005.09.22, Proc. 05B1723, Ac. RL de 2019.01.22, Proc. 5097/05.4 TVLSB.L2, da 7ª Secção e Acs. RP de 2018.06.13, Proc. 1366/15.3T8PVZ.P2 e de 2016.11.22, Proc. 1369/12.0TBPRD.P2, todos in www.dgsi.pt) – cfr. texto nºs. 23 a 25. Nestes termos, Deverá admitir-se o presente recurso, julgando-se verificados os requisitos da revista excepcional, e ser-lhe dado provimento, revogando-se o douto Acórdão recorrido, com as legais consequências. Só assim se decidindo será cumprido o direito e feita justiça.»
6. O Município recorrido apresentou resposta, que sintetizou nos seguintes termos: «a. O presente recurso foi interposto do douto acórdão de fls…, proferido pelo Tribunal da Relação ..., que acordou (e bem) em julgar apelação improcedente, mantendo a decisão da sentença proferida na 1ª instância, pelo Tribunal Judicial da Comarca ... que decidiu absolver o R. dos pedidos. b. Nas suas, aliás doutas, alegações de recurso de revista excecional considera a Recorrente que a decisão do douto acórdão, proferido pelo Tribunal da Relação ... assentou em diversos vícios, tais como, a necessidade de melhor aplicação do direto por estarem em causa questões controvertidas de relevância jurídica, social e de manifesto interesse geral, por considerar que a decisão está em oposição com outros acórdãos e pela incorreta interpretação da natureza jurídica do contrato celebrado em 20.12.1979, concluindo que a procedência do presente recurso afigura-se inquestionável. c. O douto acórdão de 22.10.2020, proferido pelo Tribunal da Relação ..., no entender da Recorrente coloca em causa questões controvertidas, cuja apreciação, pela sua relevância jurídica e social e manifesto interesse geral, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. d. Considera, ainda, a Recorrente, ao contrário do que foi sustentado na douta sentença de 1ª instância e no douto acórdão recorrido, que o contrato celebrado em 20.12.1979 representa uma doação modal, por se tratar de uma cedência gratuita de terrenos em que o destino tinha de ser habitação ou equipamentos sociais. e. Ao contrário do que vem a Recorrente sustentando nas suas alegações de recurso, parece claro que a cedência da parcela de 4.657,50 m2, nunca teria colocado em causa a cedência da parcela com 27,6 ha, porque não estava na esfera jurídica da Recorrente decidir, se cedia ou não a referida parcela, porquanto a mesma resultou do cumprimento de uma exigência legal, pela aprovação da operação de loteamento. f. O que, no nosso entender, a situação do caso concreto não se nos afigura minimamente configurável como uma doação. g. Por sua vez, considera a Recorrente que o douto acórdão recorrido e o acórdão fundamento (o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03.12.2013, proferido no Proc. 5097/05.4TVLSB.L1.S1, disponível para consulta em www.dgsi.pt), estão em clara oposição relativamente à questão da natureza jurídica do contrato, o que, não se pode conceder. h. O acórdão fundamento refere que não foi licenciada pelo Município de Lisboa qualquer operação de loteamento, não tendo sequer sido emitido qualquer alvará de loteamento, pelo que, não se avocou para a disciplina desta relação contratual as normas e os princípios do direito administrativo, bem como as regras sobre o licenciamento urbano. i. Por outro lado, no douto acórdão recorrido não estava na esfera da Recorrente decidir se cedia ou não a referida parcela, porquanto a mesma resultou do cumprimento de uma exigência legal, pela aprovação da operação de loteamento.
j. Neste sentido, a escritura de onde consta a cedência dos terrenos tem a designação de “Escritura pública ...de Loteamento e Urbanização da Propriedade Denominada …” (cf. ponto 3 dos factos provados da sentença proferida pelo Tribunal Judicial da Comarca ...), o que demonstra de forma inequívoca a natureza do contrato em causa, que se destinava a ceder os terrenos como contrapartida da concessão do alvará de licença de loteamento e não como uma faculdade.
k. Ora, considerando que a situação do douto acórdão recorrido e a do douto acórdão fundamento não versam sobre a mesma questão fundamental de direito, entende o Recorrido que a Recorrente não logrou demonstrar qual a causa das questões controvertidas, cuja apreciação, pela sua relevância jurídica e social e manifesto interesse geral, é claramente necessária para uma melhor aplicação do direito. l. Assim, entende o Recorrido que não se verificaram os pressupostos de que dependia o presente recurso de revista excecional. m. No que diz respeito, à natureza jurídica do contrato celebrado em 20.12.1979, a Recorrente embora parecendo querer induzir em erro este Venerando Supremo Tribunal de Justiça, subsumindo o litígio a um mero contrato de direito privado (denominado por doação modal), a verdade é que está em causa uma relação jurídico administrativa. n. E isto, porquanto, ao contrário do alegado no artigo 19º da douta p.i., não estava na esfera da Recorrente decidir se cedia ou não a referida parcela, porquanto a mesma resultou do cumprimento de uma exigência legal, pela aprovação da operação de loteamento, nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 19º, nº 2, do já revogado Decreto-Lei nº 289/73, de 6 de junho, matéria que hoje é regulada pelos artigos 44º e 45º do RJUE. o. Aliás, a escritura de 20.12.1979 demonstra de forma inequívoca a natureza do contrato em causa, que se destinava a ceder os terrenos como contrapartida da concessão do alvará de licença de loteamento e não como uma faculdade.
p. Pelo exposto, a natureza jurídica do contrato celebrado à semelhança do defendido no douto acórdão recorrido não pode representar uma doação modal. q. Assim, deve o douto acórdão recorrido manter-se nesta parte, uma vez que não assentou em qualquer violação da natureza jurídica do contrato de 20.12.1979, por não se verificarem os vícios assacados. r. Por outro lado, relativamente ao alegado incumprimento contratual por parte do Município, alega em síntese a Recorrente, que contrariamente ao decidido na douta sentença recorrida, o MVFX incumpriu frontalmente o contrato titulado pela escritura de cedência, de 1979.12.20, ao dar um destino diverso à parcela de terreno cedida – instalação de uma superfície comercial da marca ..., gerida e explorada por entidades de direito privado, o que não se concede – cf. fls. 26 das conclusões das alegações de recurso. s. A cedência do direito de superfície de uma parcela de 4.657,50 m2 para a instalação do M..., S.A., mais do que proporcionar a sustentabilidade do União Atlético ..., comporta benefícios para a sociedade e, em particular, para os utentes e utilizadores, por darem corpo às aspirações ou necessidades essenciais da vida em comunidade. t. Assim, no nosso entender a reversão só pode ser exercida se o Município afetar a área cedida a outras finalidades que não se pudessem integrar no conceito de utilização coletiva. O que não sucedeu! u. Na verdade, constitui orientação dominante no Supremo Tribunal Administrativo que em matéria de urbanismo, a noção de equipamento não pode assentar na conceção e valoração isolada de cada uma das várias componentes possíveis (desportivas ou culturais, serviços, administração, comércio, hotelaria, habitação) mas sim numa conceção unitária, integrada e de agregação funcional de equipamento, isto é, numa conceção tipológica e não meramente definitória a titulo de exemplo - cf. douto Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo proferido no processo nº 0120/0926, de 26 maio de 2010 in, www.dgsi.pt v. Para todos os efeitos, a unidade comercial privada que foi instalada na parcela cedida constitui equipamento público de utilização coletiva. w. O licenciamento da superfície comercial foi aprovado, nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 49º do Regulamento do Plano Diretor Municipal, que com a alteração de 2009, passou a prever para aquele espaço a localização de equipamentos de utilização coletiva, de zonas verdes e estabelecimentos de restauração e bebidas de apoio aos equipamentos. x. Assim, resulta evidente que os sucessivos contratos não alteraram o regime de titularidade da propriedade, que continua no domínio privado do município, pelo que os usos se destinam à prestação de serviços de interesse público e de apoio às populações, dando assim cumprimento ao contrato celebrado. y. Face ao exposto, deve a douto acórdão recorrido manter-se nesta parte, uma vez que não assentou em qualquer incumprimento contratual, por não se verificarem os vícios materiais assacados. z. Por fim, considerando que a Recorrente não concretiza qual o facto ilícito que determinou o alegado incumprimento do contrato, não existe obrigação de indemnizar. Termos em que o presente recurso deve ser julgado improcedente, com as legais consequências, com o que, V. Ex.cias, Venerandos Senhores Conselheiros, farão justiça.»
7. O recurso foi admitido pela Formação a que alude o art.672º, n.3, com base nas alíneas a) e b) do n.1 do art.672º. Após a prolação do acórdão da Formação, a autora juntou parecer de jurisconsulto, nos termos do art.680º, n.2 do CPC. Cabe apreciar.
II. FUNDAMENTOS
1. Admissibilidade e objeto do recurso. O presente recurso foi admitido como revista excecional, com base nas alíneas a) e b) do art.672º do CPC, como consta do acórdão da Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC. Nos termos do art.635º, n.4 do CPC o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente. Por outro lado, sendo o recurso admitido como revista excecional (em acórdão da Formação, transitado em julgado), é o seu âmbito de admissibilidade que define o concreto objeto da revista. Deve ainda ter-se presente que a este tribunal cabe apenas dar resposta às questões jurídicas que integram o objeto do recurso, não tendo, por isso, de rebater todo e qualquer ponto do argumentário que os recorrentes apresentem para defenderem as respetivas teses. O objeto do presente recurso é, assim, o de saber se a Câmara Municipal incumpriu o contrato celebrado com a recorrente em 1979 e se, consequentemente, lhe cabe o direito a uma indemnização, o que pressupõe a prévia identificação do contrato celebrado e do regime jurídico correspondente.
2. A factualidade apurada: As instâncias deram como provada a seguinte factualidade: «1.A A. é uma sociedade comercial que tem por objecto a compra, venda e revenda de imóveis adquiridos para esse fim, construção civil, promoção imobiliária, estudos e projectos de loteamentos. 2. No âmbito da sua actividade, a A. promoveu o loteamento e urbanização da denominada …, sita na Freguesia ..., município de Vila Franca de Xira. 3. Por escritura pública outorgada em 20.12.1979, intitulada Loteamento e Urbanização da Propriedade Denominada …, situada na Freguesia ..., 1ª Fase, que consta a fls.10 vs. e ss. e que aqui se dá por integralmente reproduzida, foi pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira concedido “(...) alvará de loteamento urbano (...)” para os prédios descritos na Conservatória do Registo Predial ... sob os n°s. ...85 a fls.88 vs. do livro ...6, ...85 a fls.113 do Livro ... e ...85 a fls.113 vs. do Livro ... a(...) que constituem a primeira fase da urbanização que passa a denominar-se “Urbanização ...”, situada na freguesia ...) nos termos do caderno de encargos - condições gerais e dentro dos limites indicados na planta do loteamento (...), ficando a representada da segunda outorgante (a A.) obrigada a executar todas as obras de urbanização avaliadas em trinta e nove milhões trezentos e trinta mil escudos, a pagar uma mais valia de seis milhões novecentos e quarenta e sete mil quatrocentos e trinta escudos (...)".
4. Nos termos da mesma escritura, além do mais, foi estabelecido que a A. cedia “(...) à Câmara Municipal de Vila Franca de Xira, na primeira fase, os terrenos destinados a arruamentos e espaços livres com a área aproximada de sete vírgula nove e catorze vírgula cinco hectares, respectivamente, e o valor estimado de dois milhões duzentos e quarenta mil escudos, e ainda as seguintes parcelas de terreno a desanexar da propriedade descrita em primeiro lugar e que constitui o artigo um da Secção C, destinadas a equipamento da mesma urbanização nos termos da Portaria seiscentos e setenta e oito barra setenta e três, tudo descriminado na planta de cedências que fica anexa a este acto sob o número quatro; Terreno destinado a habitação e equipamentos sociais que entra imediatamente na posse da Câmara, como domínio privado: Parcela com a área de vinte e sete vírgula seis hectares assinalada na planta de loteamento a desanexar da propriedade denominada …, inscrita na respectiva matriz sob o artigo um da Secção C e descrita na Conservatória do Registo Predial ... sob o número dezasseis mil seiscentos e oitenta e cinco a folhas cento e treze verso do Livro ..., confronta por todos os lados com a propriedade donde é desanexada e à qual é atribuído o valor de dois milhões setecentos e sessenta mil escudos entram também de imediato na posse desta Câmara os prédios urbanos atrás já descritos insertos nesta mesma propriedade”.
5. Em 1980.01.10, a Câmara Municipal de Vila Franca de Xira emitiu o alvará de licença de loteamento urbano n. ...0, do qual consta o seguinte: “(...) No uso da competência que me confere o art. 353° do Código Administrativo, e de harmonia com o disposto no n.° 1 do art. 19° do Decreto-Lei n.° 289/73, de 6 de Junho, hei por conveniente passar o presente alvará de licença, que assino e faço autenticar, à Sociedade de Quinta da Piedade, Limitada, residente em … a quem foi autorizado, em reunião desta Câmara Municipal, realizada em 21.11.79, o loteamento urbano do/s prédio/s sito/s em … da Freguesia ... com as confrontações discriminadas na escritura lavrada a fls. 50 a 55v. do Livro de Notas para Escrituras Diversas n.° 77 anexa, o qual está inscrito na matriz predial rústica da Freguesia ... sob os artigos da matriz descritos na escritura anexa por fotocópia, da Secção C, e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.° ...85, a fls. 113v. do Livro ... e 88v. do ..., tendo os projectos definitivos das respectivas obras de urbanização sido aprovados em reunião da mesma Câmara realizada em 21.11.79 (...). A realização do loteamento fica sujeita às seguintes prescrições, de acordo com o contrato lavrado em 20.12.1979 de fls. 50 a 55v. do Livro de Notas do Notariado Privativo desta Câmara Municipal n° 77: (...) 3. Para instalação dos equipamentos gerais e outros fins especificados na escritura são cedidas as parcelas: equipamento e habitação social - 27,6 ha; áreas verdes dispersas -14,5 ha; arruamentos, parqueamentos e passeios - 7,9 ha identificadas na planta a que se refere on°.1. (...)”.
6. Pela Apresentação ...7, de 1981.01.13, foi registralmente inscrita a desanexação do “prédio n.° ...85, um talhão de terreno, com a área de 27,6 ha., e as construções dos artigos n°s 281 e 664 urbanos, descritos, respectivamente, sob os n°s: 28171, a fls. 126v.; 28172, a fls. 127 e 28173, a fls. 127v., todos neste Livro ...2". 7. A parcela de terreno cedida pela A. nos termos da escritura pública outorgada em 1979.12.20 passou a estar autonomamente descrita na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n°. ...71, a fls. 126v. do Livro ...2. 8. Da descrição predial n°.28171 consta o seguinte: “Prédio urbano, composto de uma parcela de terreno, com a área de 27,6 ha, destinado a habitação e equipamentos sociais, é situado no local denominado «…», na Freguesia .... Confronta por todos os lados com terrenos da …. Fazia parte do art. cadastral n° 1 da Secção C, com o valor atribuído de 2.760.000$00. Desanexado do n.° 16685, a fls. 113, do Livro ...”. 9. Posteriormente a parcela de terreno cedida pela A. passou a estar descrita na Conservatória do Registo Predial ..., sob o n°. ...85 da Freguesia .... 10. Da descrição predial n°. 00030/27... consta o seguinte: “... - Terreno com a área de 276.000 m2, destinado a construções para habitação e equipamentos sociais - Confronta: ..., ... ... e ..., terrenos da …. Fazia parte do art. 1 da Secção C - V.V.: 2.760.000$00. Desanexado do n° 16.685, a fls. 113v. do Livro ...”. 11. Pela Apresentação ...0, de 2001.09.12, foi desanexado do referido prédio n°. 00030/27... o prédio n.° 00912/01... - ..., com a área de 38.490 m2. 12. Da descrição predial n°. 00912/01... consta o seguinte: “URBANO. DENOMINAÇÃO: …. SITUADO EM: .... ÁREA TOTAL: 38490 m2. ÁREA DESCOBERTA: 38490 m2. MATRIZ n.°: 1302. NATUREZA: Urbana. FREGUESIA: ... e .... COMPOSIÇÃO E CONFRONTAÇÕES: Parcela de Terreno destinado à construção do Complexo Desportivo .... ...: Rua ...; ...: Rua ...; ...: ... (4a fase); ...: Rua ... e terreno destinado à GNR. Desanexado do prédio n.° 00030/27....” 13. Pela Apresentação ...0, de 2001.09.12, foi registada a constituição do direito de superfície sobre o referido prédio n°. 00912/01..., a favor do União Atlético .... 14. O direito de superfície referido em 13) foi constituído pelo R., por escritura de 26.5.1994, para a construção do Complexo Desportivo ..., composto por dois campos de futebol, balneários e uma pista de atletismo. 15. Após a outorga da escritura aludida em 14), o União Atlético ... ocupou o prédio referido em 12), onde construiu, entre outros, um campo de futebol e pista de atletismo. 16. Pela Apresentação ...25, de 2015.07.29, foi inscrita a desanexação do referido prédio n°. 00912/01..., de “uma parcela de terreno, com a área de 4.657,50 m2, descrita sob o n.° ...29 - ...”. 17. Da descrição predial n°. 1803/20... consta o seguinte: “URBANO. SITUADO EM: ... - Rua .... ÁREA TOTAL: 4657,5 m2. ÁREA DESCOBERTA: 4657,5 m2. MATRIZ n.°: 3059. NATUREZA: Urbana. FREGUESIA: ... e .... COMPOSIÇÃO E CONFRONTAÇÕES: PARCELA DE TERRENO DESTINADA A CONSTRUÇÃO. ...: Avenida ...; ...: Rua ...; ...: União Atlético ...; ...: Posto de combustível. MATRIZ: Artigo provisório participado em 2015/05/28. Desanexado do prédio n.° 912/20... - ...”. 18. Pela Apresentação ...25, de 2015.07.29, foi registada a cedência pelo União Atlético ... do direito de superfície sobre o prédio n°. 1803/20... a favor da sociedade K..., Ldª. 19. No prédio descrito sobre o n°. 1803/20... foi construída e está actualmente em funcionamento uma superfície comercial da marca ..., gerida e explorada por entidades de direito privado, com uma área de construção superior a 3.200 m2. 20. A cedência pela ora A. do terreno em causa tinha por fim a sua afectação à instalação de habitação e equipamentos sociais. 21. O R. sabia que de acordo com a escritura referida em 3) e do alvará de loteamento a parcela de terreno cedida se destinava à construção e instalação de equipamentos e/ou habitações sociais. 22. O R. sabia que a A. só cedeu a parcela de terreno em virtude das exigências resultantes do alvará de loteamento. 23. Em 24.7.2013 a União Atlético ... requereu ao R. autorização para ceder à K..., Ldª., uma parcela de 4.657,50 m2 a desafectar da parcela de terreno de 38.490 m2 referida em 12), destinando-se a mesma à construção de uma unidade comercial. 24. O licenciamento da superfície comercial foi aprovado pela Câmara Municipal. 25. Da parcela cedida pela A. à R. está afecta à unidade comercial cerca de 13%. 26. A acção deu entrada em juízo a 26.06.2018, tendo o R. sido citado a
3. O direito aplicável: 3.1. A presente revista foi admitida (pela Formação a que alude o art.672º, n.3 do CPC) como revista excecional, com base nas alíneas a) e b) do n.1 do art.672º do CPC. Cabe, assim, apreciar a questão de saber se o acórdão recorrido fez a correta aplicação do direito quando entendeu que o contrato celebrado entre a autora e a CMVFX tinha a natureza de um “contrato inominado”, bem como quando concluiu que não tinha existido incumprimento contratual, tendo decidido que, por isso, a autora não tinha direito a indemnização.
3.2. Os fundamentos do acórdão recorrido. Face à tese da autora, defendendo que a cedência da parcela em causa teria correspondido a uma doação modal, afirmou-se no acórdão recorrido: «Discordamos de tal entendimento, desde logo porque a situação não se nos surge minimamente configurável como uma doação em que o doador revelando um “espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito” (art. 940.º, n. 1 do CC). E, a ser assim, não se revelaria sequer necessária a abordagem da cláusula modal, visto esta apenas poder relevar na eventualidade de se entender estarmos face a uma doação. Analisando o caso em apreço, atenta a factualidade apurada, consideramos ser de seguir o acórdão do STJ de 20-03-2014 que esteve também na base do posicionamento assumido pela Exma. Juíza da decisão recorrida. Com efeito, a similitude entre o caso que aqui nos traz e o que vem descrito em tal aresto do nosso Supremo Tribunal e a abordagem criteriosa que no mesmo é feita a todas as questões aí e aqui colocadas, desmontando a argumentação vertida neste nosso recurso, leva-nos a assumir tal douto acórdão como referência aqui. E depois de se transcrever a fundamentação do referido acórdão de 2014, acrescenta-se que: «(…) no nosso caso, teremos ainda a acrescentar que a escritura de onde consta a cessão dos terrenos e se encontra referida a sua destinação, tinha, para que não restassem dúvidas sobre o negócio que se realizava, a designação de “Escritura pública ...de Loteamento e Urbanização da Propriedade Denominada …” (ponto 3 dos factos provados), o que denota, sem dúvida, a natureza do contrato em causa, onde se visava fundamentalmente ceder os terrenos como contrapartida da concessão do alvará de licença de loteamento e não como liberalidade. Estamos assim, perante um contrato inominado de natureza privado / oneroso, regulado pelas estipulações nele contidos e subsidiariamente pelas disposições que mais se aproximam do contrato típico mais afim, sem esquecer as regras comuns a todos os contratos, não lhe sendo, no entanto, aplicável o regime da doação modal, a que alude o art. 963.° e segs, do C. Civil. Não assiste assim razão à apelante nesta questão, pelo que a mesma improcede.» No que respeita à questão de saber se existiu incumprimento contratual da Câmara Municipal, o acórdão recorrido transcreve, em grande medida, a fundamentação da decisão da primeira instância, e acrescenta o seguinte: «Para além do que é referido na sentença, que secundamos, sempre se dirá também que não logrou a A./recorrente comprovar a essencialidade da destinação da parcela cedida no âmbito do contrato celebrado, posto que a cedência dos terrenos surge como contrapartida necessária e legal do loteamento pretendido pela Apelante - esse sim o fulcro do negócio - não tendo ficado provado que a recorrente não o teria celebrado caso soubesse então que a finalidade da cedência viria a ser desrespeitada (…) O referido contrato foi essencialmente celebrado, tendo em vista o loteamento em questão e não ficou minimamente demonstrado que não lhe era indiferente o destino que as parcelas de terreno cedidos viriam a ter, que para si era essencial que o recorrido viesse a dar-lhes o destino previsto na escritura, pelo que não pode vir agora invocar a existência dessa essencialidade e a verificação duma situação de incumprimento por parte do R. Refira-se ainda ser duvidoso que se tenha de considerar que o destino dado ao terreno cedido (meros 4.657,50 m2, dos 27,6 ha cedidos para equipamento e habitação social) para instalação da superfície comercial da marca ..., que foi cedida a título de direito de superfície, não possa ser tida como equipamento social, numa acepção ampla de tal conceito dos nossos dias. Com efeito, afigura-se-nos que essas superfícies comerciais são hoje entendidas como espaços de utilidade para as populações onde se encontram inseridos, embora sejam pertença e exploradas por entidades privadas, pois que dão satisfação a necessidades essenciais da vida em comunidade, designadamente em urbanizações com elevado índice habitacional e muitas vezes com poucos espaços comerciais de apoio. Por outro lado, registe-se ainda que a parcela destinada a esta estrutura comercial - os referidos 4.657,50m2 - representa uma diminuta parte da totalidade destinada à dita finalidade de equipamento e habitação social - 27,6 ha -, o que sempre levaria a que se considerasse não se poder falar num desvirtuar da utilização feita, no âmbito de tal espaço global.» Depois de seguir a fundamentação do Acórdão do STA, de 26.05.2010, concluiu-se que: «Defendemos também esta visão integradora, pelo que, para além de tudo o que já foi referido, se salienta que a área ocupada com a instalação da superfície comercial da marca ... - 4.657,50m2 -, é uma pequena parcela dos 27,6 ha cedidos, sendo que na perspectiva apontada não poderia nunca ser considerada como passível de desvirtuar a finalidade pretendida pela cedente. Pelo que se deixa dito, há, pois, que concluir não se registar qualquer situação de incumprimento contratual por parte do R., pelo que também esta questão não procede. A ser assim, como se entende que é, sustentando a apelante no seu recurso a obrigação de indemnizar por parte do recorrido, com base no alegado incumprimento contratual, não se tendo apurado a sua existência, obviamente fica também prejudicada a apreciação dessa questão.»
3.3. Alega o recorrente que: «No caso em análise impõe-se uma decisão clarificadora deste Venerando Supremo Tribunal de Justiça para, em conformidade, se proceder a uma melhor aplicação do direito e à decisão uniforme do presente e de muitos outros processos, em que se voltem a suscitar as mesmas questões (…), evitando-se, neste caso e no futuro, a gritante injustiça que as decisões constantes do acórdão recorrido permitiriam, admitindo-se que os municípios possam dar um destino diverso a terrenos especificamente cedidos para fins de natureza e interesse público, nomeadamente transmitindo-os a terceiros para serem afectos a fins lucrativos de natureza e interesse privados, em clara violação dos princípios da justiça, legalidade, igualdade e proporcionalidade, em que assenta angularmente o Estado de Direito» Deve, desde já, esclarecer-se o seguinte: a este tribunal cabe apenas julgar o caso concreto, com base na factualidade concretamente apurada, e não proferir decisões dogmáticas válidas para um número indeterminado de casos, como a recorrente parece entender. Naturalmente que situações aparentemente equiparáveis do ponto de vista da tipicidade da sua problemática jurídica podem, em concreto, ter soluções normativas diversas, por assentarem em factualidades distintas. De igual modo, não está este tribunal vinculado ou sugestionado por solução já adotadas em casos aparentemente similares, que decidiram em sentidos diversos, pois cada decisão e cada percurso decisório tem a singularidade que a respetiva factualidade específica lhe imprime. No que respeita ao objeto da revista, entende a recorrente, em síntese, que o contrato que celebrou com a CMVFX em 1979 tem a natureza de uma doação modal, defendendo, consequentemente, que, ao ter autorizado a instalação de uma superfície comercial nessa parcela de terreno a CM teria incumprido aquele encargo, pelo que lhe assistiria o direito a uma indemnização (já que a resolução da doação não seria possível, nos termos do art. 966º do CC, por não ter sido convencionada).
3.4. Vejamos, numa breve síntese, a configuração factual do caso concreto: Por escritura pública de “Loteamento e Urbanização”, realizada em 20.12.1979, a sociedade autora, na qualidade de promotora imobiliária (factos provados n.1 e 2) cedeu à Câmara Municipal de Vila Franca de Xira (CM) duas parcelas de terreno destinadas a arruamentos e espaços verdes, bem como uma parcela de 276.000 metros quadrados (ou seja, 27,6 hectares), destinada a habitação e equipamentos sociais e assumiu ainda a obrigação de executar obras de urbanização (factos provados n.3 e n.4). Em contrapartida, recebeu da CM o alvará de loteamento n....0 (factos provados n.3 e n.5). Em 2001 (data que consta da apresentação para registo predial referida nos pontos n.11, 12 e 13 da factualidade provada), a CM cedeu, em direito de superfície, a favor do União Atlético ... (facto provado n.13), uma sub-parcela, desanexada da parcela cedida pela autora em 1979 à CM, com a área de 38.490 metros quadrados, destinada à construção de um complexo desportivo, onde foi construído um campo de futebol e pista de atletismo (facto provado n.15). Em 2015 (data que consta da apresentação para registo referida nos pontos 16 e 18 da factualidade provada), foi desanexada da sub-parcela referida um terreno com a área de 4.657,50 metros quadrados, a qual foi cedida, em direito de superfície, pelo União Atlético ..., com autorização da CM (facto provado n.23) à sociedade “K..., Ldª” (facto provado n.18). Neste terreno veio a ser construída uma superfície comercial da marca ... (facto provado n.19). Resulta do facto provado n.23 que o terreno com a área de 4.657,50 m2, onde foi implantada a referida superfície comercial, era desafetado da sub-parcela de 38.490 m2 (que tinha o União Atlético ... como superficiário). E consta do facto provado n.25 que a área afetada à instalação da superfície comercial (4.657,50 m2) corresponde a 13% “da parcela cedida pela autora à ré”. Ora, é manifesto que no facto provado n.25 existe um ostensivo lapso de escrita, que necessita de uma correção matemática, pois é notório para qualquer pessoa que 4.657,50 m2 não correspondem a 13% de 276.000 m2, devendo aquele n.25 ser interpretado corretivamente em harmonia com a restante factualidade provada. A área cedida, em 2001, pela CM ao União Atlético ... (38.490 m2) correspondia a menos de 14% (valor aproximado) da parcela de 276.000 m2 que a autora cedeu, em 1979, à CM. A área que o União Atlético ... cedeu, em 2015, para instalação da superfície comercial correspondeu a cerca de 13% da sub-parcela que lhe havia sido cedida pela CM. Assim, conclui-se que a área cedida para instalação da superfície comercial correspondeu apenas a cerca de 1,6% (valor aproximado) da área total da parcela que a autora cedeu à CM em 1979. Por outro lado, conclui-se, ainda, do confronto entre os factos provados n.3, n.18 e n.19 que entre a data na qual a autora cedeu a referida parcela à CM – 1979 – e a data em que foi cedido (pelo União Atlético ..., com consentimento da CM) a área onde se encontra instalada a superfície comercial – 2015 – passaram cerce de 36 anos. *
3.5. Vejamos agora os problemas normativos que integram o objeto do recurso.
3.5.1. Quanto à identificação do contrato celebrado. Como emerge do ponto n.4 da factualidade provada (no qual se reproduz o que consta da escritura pública celebrada em 1979), a cedência da parcela de 27,6 hectares é uma das componentes das várias obrigações que a autora assumiu para com a Câmara Municipal, enquanto contrapartida pela concessão do alvará de loteamento urbano. Pela referida escritura pública, denominada de “Loteamento e Urbanização”, a autora (na qualidade de promotora imobiliária – facto provado n.1) assumiu um programa debitório, integrado não apenas pela cedência daquela parcela de 27,6 ha, mas também pela cedência de terrenos destinados a arruamentos e espaços verdes (facto provado n.3) e ainda pela obrigação de executar as obras de urbanização referidas no ponto n.2 da factualidade provada. Conclui-se, assim, com facilidade, que a cedência daquela parcela de 27,6 ha não foi o objeto específico de um simples contrato de doação (art.940º do CC) que, por espírito de liberalidade, a autora tivesse decidido ceder à Câmara Municipal. Representou, sim, apenas um segmento do programa debitório que, nos termos dos instrumentos urbanísticos próprios (Portaria n.678/73 e Planta de Cedências), como referido no ponto n.4 da factualidade provada, a autora teve de cumprir para que a CM lhe concedesse o alvará de loteamento. Constata-se, portanto, que as partes celebraram um contrato bilateral, de natureza complexa, no qual a autora (enquanto promotora imobiliária) assumiu a realização de um feixe de prestações de natureza diversa, como contrapartida da concessão do alvará de loteamento urbano. Sendo a doação, por definição, um contrato unilateral ou não sinalagmático[1] (o que não é descaraterizado pela existência de uma condição ou de um encargo ou até de um propósito residualmente remuneratório, como na hipótese do art.941º do CC)[2], dúvidas não existem de que o negócio que as partes celebraram não pode ter a natureza de uma doação, porque nele se não identificam os elementos legalmente e doutrinalmente definidores de tal figura jurídica. Como afirmam Pires de Lima e Antunes Varela: «Forçoso é, para haver doação, que a atribuição patrimonial seja gratuita, e que não exista, portanto, um correspetivo de natureza patrimonial.»[3] Ora, como resulta da factualidade provada (pontos 3, 4 e 5), as atribuições patrimoniais realizadas pela autora em favor da CM foram a contrapartida do recebimento de um alvará de construção, ou seja, de um bem jurídico dotado de valor económico, o que, pela bilateralidade ou correspetividade de prestações, reveladora da presença de um sinalagma genético, afasta completamente, no caso concreto, a figura da doação. Percorrendo a factualidade provada, não se encontra qualquer ponto que expresse a condicionalidade da declaração negocial da autora, ou seja, que sustente a ideia de que, por declaração de vontade da autora, a cedência da parcela de terreno à Câmara Municipal foi, por si, sujeita à condição de ser destinada a fins de equipamento social e que, se a cedente soubesse que tais fins não viriam a ser cumpridos não teria procedido àquela cedência. Não se identifica, assim, uma autónoma declaração de vontade de doar algo por parte da autora. Aliás, como consta do ponto n.22 da factualidade provada, a autora só cedeu aquela parcela de terreno “em virtude das exigências resultantes do alvará de loteamento”. De onde se pode concluir que não existiu uma espontânea e genuína vontade de doar para beneficiar o donatário, mas sim para receber uma contrapartida (o alvará de loteamento). Não existe, portanto, qualquer negócio cuja eficácia normativa plena (ao longo do seu tempo de vigência) integrasse uma variante de natureza condicional, como aconteceria caso se tratasse de uma doação com encargos.
Embora a qualificação dogmática do contrato em causa não seja necessária para a aplicação do regime jurídico pertinente, pois o que releva é o seu conteúdo prestacional, sempre se poderá adiantar que a figura em causa, embora apresente alguma aproximação ao contrato de troca (figura que deixou de ter regulamentação legal entre os contratos tipicamente nominados)[4], é suscetível de ser qualificada como um contrato misto, na medida em que nele se interligam prestações de natureza diversa[5]. De todo o modo, repita-se, a qualificação teórica do contrato não é um ponto de partida para a convocação de determinado regime jurídico; é, sim, um ponto de chegada, depois de interpretado o seu conteúdo fáctico-normativo. Apreciando uma hipótese próxima da que se coloca no presente caso, o STJ pronunciou-se, em acórdão de 20.03.2014, no processo n. 5528/05.3TCLRS.L1.S (relator Tavares de Paiva) quanto à natureza do contrato nos seguintes termos: «Numa escritura de cedência de terrenos para o domínio público municipal, em que a, aqui, autora, no âmbito de uma operação de loteamento urbano, declara em resultado do cumprimento da cláusula 5.ª do alvará de licença de loteamento, que cede ao Município L para instalação de equipamentos gerais determinados lotes de terreno, configura um contrato inominado de natureza privado/oneroso, regulado pelas estipulações nele contidos e subsidiariamente pelas disposições, que mais se aproximam do contrato típico mais afim, sem esquecer as regras comuns a todos os contratos, não lhe sendo, no entanto, aplicável o regime da doação modal, a que alude o art. 963.º e segs., do CC.[6]»
* 3.5.2. Quanto à questão do alegado incumprimento contratual. Entendeu-se no acórdão recorrido (bem como na sentença por ele confirmada) que a superfície comercial instalada em parte do terreno que a autora havia cedido à Câmara Municipal ainda poderia ser entendida como “equipamento social”, numa aceção ampla, considerando tratar-se de um espaço de utilidade para as populações do meio onde se encontra inserido. Por outro lado, considerou-se no acórdão recorrido que, atendendo à diminuta área ocupada pela superfície comercial no contexto da totalidade da parcela cedida, dificilmente se poderia concluir que a finalidade da cedência havia sido desvirtuada. 3.5.2.1. Saber se uma superfície comercial (da marca ...) pode caber no conceito de “equipamento social” não é conclusão a que se chegue pelo conteúdo das declarações dos contratantes. Trata-se, no caso concreto, de um conceito a extrair dos instrumentos legais de natureza administrativa, aplicáveis no domínio das questões urbanísticas. Em termos gerais, os fins a que os terrenos cedidos pelos particulares aos municípios se destinam até poderão, em alguns casos, ser definidos em concreto pelos cedentes (casos em que, muito provavelmente, existirá doação modal), mas tal não acontece, tipicamente, nas operações de loteamento urbano, pois nestas as finalidades a que se destinam os terrenos cedidos (domínio público ou domínio privado do município) encontram-se previamente traçadas pelos instrumentos legais próprios dessas operações. A obrigação de destinar a parcela cedida a equipamento social não emerge do conteúdo negocial do contrato, mas sim do seu conteúdo legal, ou seja, estabelecido pela lei. E se no estatuto legal de alguns contratos (nomeadamente dos contratos típicos, por exemplo, compra e venda, doação, locação, etc.) a modelação do conteúdo legal visa (de modo imperativo ou supletivo) tutelar diretamente interesses dos contratantes (ou de determinado contratante), outras hipóteses existem nas quais a vinculação legal de um contratante à prossecução de determinado escopo serve, primordialmente, interesses gerais. É o caso dos presentes autos. O facto de a referida parcela de terreno se encontrar legalmente afetada à instalação de equipamentos sociais não serve qualquer interesse direto do autor (como serviria caso se tratasse de um negócio condicional ou modal). Trata-se de um escopo tipicamente pré-definido pelos instrumentos normativos aplicáveis às operações urbanísticas. O acórdão recorrido convocou na sua fundamentação a jurisprudência firmada no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo, de 26.05.2010 (relator Luís Pais Borges), no processo n.120/09, o qual, embora proferido num contexto normativo diferente do dos presentes autos (por se tratar de uma ação de natureza administrativa), se ocupou de conceitos operativos que também são equacionáveis no caso presente. Tratava-se de saber, nesse caso, o que devia ser entendido por equipamentos sociais ou equipamentos de utilização coletiva, bem como de saber se esse fim deveria considerar-se desvirtuado, pelo facto de uma percentagem (cerca de 18%) da construção ter sido destinada a habitação, quando o Plano Diretor Municipal previa que o imóvel onde a construção foi implantada se destinava apenas a equipamentos sociais ou de uso coletivo. Sobre o conceito de “equipamento”, sumariou-se nesse acórdão do STA o seguinte: «Em matéria de urbanismo, a noção de equipamento não pode assentar na concepção e valoração isolada de cada uma das várias componentes possíveis (desportivas ou culturais, serviços, administração, comércio, hotelaria, habitação), mas sim numa concepção unitária, integrada e de agregação funcional de equipamento, isto é, numa conceção tipológica e não meramente definitória». E acrescentou-se, ainda em sumário, que: «Perpassa pela legislação aplicável em matéria de urbanismo […] uma ideia lógica e coerente de consideração do planeamento urbanístico “em função do uso dominante” do solo, o que claramente favorece a tese da concepção tipológica dos equipamentos, numa perspetiva de integração relacional, substituindo o tradicional modelo de zonamento monofuncionalista por um modelo de zonamento plurifuncional.» Nos termos do art. 43º do DL n.555/99 (alterado pela Lei n.60/2007), respeitante às operações de loteamento: «1- Os projetos de loteamento devem prever áreas destinadas à implantação de espaços verdes e de utilização coletiva, infraestruturas viárias e equipamentos. 2 - Os parâmetros para o dimensionamento das áreas referidas no número anterior são os que estiverem definidos em plano municipal ou intermunicipal de ordenamento do território.» Daqui decorre que a afetação finalística das áreas integrantes de determinado loteamento é definida pelos instrumentos legais aplicáveis, e não pela vontade dos contratantes de cada específica operação de loteamento. É, portanto, claro que, neste tipo de operações, está fora do alcance normativo da declaração de vontade do cedente de uma parcela de terreno indicar a que concreta finalidade essa parcela deve ser destinada. Essa é uma função dos instrumentos legais aplicáveis, densificados pelo conteúdo do Plano Diretor Municipal respetivo. Nos termos da Portaria n.216-B/2008 (de 3 de março), que veio complementar o disposto no art.43º do DL n.555/90, entende-se por “equipamento de utilização coletiva”: «áreas afectas às instalações (inclui as ocupadas pelas edificações e os terrenos envolventes afectos às instalações) destinadas à prestação de serviços às colectividades (saúde, ensino, administração, assistência social, segurança pública, protecção civil, etc.), à prestação de serviços de carácter económico (mercados, feiras, etc.) e à prática de actividades culturais, de recreio e lazer e de desporto.» Da formulação desta norma, pode concluir-se que o conceito de equipamentos destinados a utilização coletiva tem natureza exemplificativa (e não taxativa) e que entre os exemplos aí apontados cabe a “prestação de serviços de carácter económico (mercados, feiras, etc.)”. Nos termos do Decreto Regulamentar n. 9/2009 (de 29 de Maio), do Ministério do Ambiente, do Ordenamento do Território e do Desenvolvimento Regional, que visou a uniformização dos conceitos técnicos a usar nos domínios do ordenamento do território e do urbanismo[7], as diferentes expressões para designar “equipamentos” (“sociais”, “de interesse social”, etc.) passam a corresponder ao conceito de “equipamentos de utilização coletiva”, recebendo a seguinte definição: «Os equipamentos de utilização coletiva são as edificações e os espaços não edificados afetos à provisão de bens e serviços destinados à satisfação de necessidades coletivas, designadamente nos domínios da saúde, da educação, da cultura e do desporto, da justiça, da segurança social, da segurança pública e da proteção civil.» Assim, também nesta definição (tal como na referida Portaria n.216-B/2008) se identifica a natureza exemplificativa das diferentes tipologias de equipamentos de utilização coletiva, pelo que (mesmo sem pretender entrar na dogmática do direito do urbanismo) não será destituído de fundamento, nem teleologicamente descabido, poder considerar a instalação de um supermercado ou hipermercado como um equipamento destinado à satisfação de necessidades coletivas, e, consequentemente, ainda comportável no conceito de equipamento de utilização coletiva. Como afirma Dulce Lopes: «A noção de equipamento de utilização coletiva distingue-se da noção de equipamentos públicos e de equipamentos de uso público, seja porque àquela não se encontra aliada a nota da titularidade pública (podendo, por isso, ser equipamentos detidos por entidades privadas), seja ainda porque não lhe é essencial o uso geral pelo público, podendo a sua fruição ser reservada a quem preencha determinadas condições (daí falar-se em “utilização coletiva”).»[8]
3.5.2.2. O facto de um supermercado ou hipermercado ser explorado por particulares, segundo a sua própria lógica comercial (e não por entidades públicas), caraterística que a autora tanto acentua nas suas alegações, não encontra qualquer respaldo nos instrumentos legais (supra referidos), enquanto critério qualificativo ou distintivo do que deve entender-se por equipamento de utilização coletiva. Como é notoriamente do conhecimento geral, equipamentos públicos existem que (em determinadas circunstâncias contratuais) podem ser geridos por privados (por exemplo, em parcerias) sem que, com isso percam a sua natureza de equipamentos públicos. Não é, portanto, o facto de determinado equipamento ser gerido por um particular ou segundo uma lógica lucrativa que afasta, necessariamente, a natureza de equipamento público ou a natureza de equipamento de utilização coletiva. Sobre a hipótese de no conceito de “equipamento de utilização coletiva” poderem caber atividades comerciais ou de prestação de serviços, explorados por particulares com fim lucrativo (aliás, expressamente referidas no Decreto Regulamentar n.9/2009), afirma Dulce Lopes: «Trata-se (…) de serviços ou atividades comerciais que, mais do que proporcionar um rédito aos seus promotores (ainda que nada exclua que esse rédito exista e seja elevado, uma vez que é ele que sustém a atividade em causa), comportam benefícios para a sociedade e, em particular, para os seus utentes e utilizadores, por darem corpo às aspirações ou necessidades essenciais da vida em sociedade.»[9]
3.5.2.3. Por outro lado, ainda que se entendesse que uma superfície comercial do género supermercado ou hipermercado não seria comportável no conceito de equipamento de utilização coletiva, sempre o facto de apenas uma diminuta parte da parcela cedida pela autora para equipamentos (cerca de 1,6%) estar afetada a tal atividade permitirá concluir que não se encontra descaraterizada, na sua essência, a finalidade a que a parcela cedida foi destinada, pois mais de 98% da sua área continua a cumprir essa finalidade. Esta é a interpretação que se harmoniza com a jurisprudência do supra referido acórdão do STA, de 26.05.2010, no qual se entendeu que o facto de um terreno ser destinado (segundo o Plano Diretor Municipal) a equipamento, não seria descaraterizado na sua essência pelo facto de numa parte (cerca de 18%) ter sido construída habitação. Efetivamente, como se afirma nesse aresto: «(…) numa perspetiva monofuncionalista e isolada de “equipamento” teríamos que uma área destinada exclusivamente a equipamentos não poderia admitir a inclusão de uma componente de serviços (como a restauração ou outros), e talvez as aldeias olímpicas ou similares (cuja natureza de equipamento público e de utilização coletiva ninguém contestará) não pudessem comportar qualquer tipo de habitação para os atletas.» O critério de preservação da essencialidade do fim a que determinada área se encontra destinada (segundo os instrumentos urbanísticos aplicáveis), que foi seguido no referido acórdão do STA, é, por similitude teleológica, também aquele que pertinentemente se adequa às particularidades do caso dos presentes autos, permitindo concluir que não existiu um desvio do fim minimamente relevante para dar acolhimento às pretensões da autora cedente, sejam pretensões indemnizatórias, sejam quaisquer pretensões que respeitem à eficácia pós contratual da cedência feita.
3.6. Colocando o problema em análise apenas no plano da relação contratual, ainda que se entendesse que a Câmara Municipal não teria respeitado integralmente o fim a que o terreno cedido havia sido destinado, facilmente se concluiria que tal desvio finalístico apresentaria diminuto relevo na globalidade do programa contratual (entendido em sentido amplo), tanto quanto à área em causa como quanto ao elemento temporal do incumprimento. Efetivamente, como emerge da factualidade provada, a autora cedeu, em 1979, à Câmara Municipal uma parcela com a área de 276.000 metros quadrados (ou seja: 27,6 hectares). Em 2001, uma sub-parcela desse terreno, com a área de 38.490 metros quadrados (ou seja, cerca de 14% da parcela inicial) foi cedida, em direito de superfície, pela Câmara Municipal ao União Atlético ..., o qual, por sua vez, em 2015, cedeu (também em direito de superfície) 4.657,50 metros quadrados à “K..., Ldª”, onde foi instalada a superfície comercial “C...”. Por simples cálculo aritmético de valor aproximado, facilmente se constata que o terreno onde se encontra instalado o supermercado corresponde a cerca de 13% da sub-parcela cedida ao União Atlético ... e cerca de 1,6% da parcela que o autor cedeu, em 1979, à Câmara Municipal. Por outro lado, tendo em conta que a cedência dos 4.657,50 m2 se encontra registada como tendo ocorrido em 2015, facilmente se concluiu que durante 36 anos (ou seja, de 1979 a 2015) a parcela cedida pelo autor à Câmara Municipal se encontrou integralmente destinada a servir fins de equipamento social. Nem o autor alega o contrário. Este quadro factual permite concluir que, a existir incumprimento parcial das obrigações assumidas pela CM, esse incumprimento, pela diminuta área de terreno a que respeitaria e pela circunstância temporal de apenas ter ocorrido 36 anos depois da cedência do terreno, apresentaria “escassa importância”, o que, em termos dogmáticos, nunca permitiria a resolução do contrato[10], como decorre do art.802º, n.2 do CC; norma esta que é uma expressão do princípio da boa-fé contratual[11]. Efetivamente, um pequeno desvio do fim, que respeite apenas a uma diminuta percentagem (no caso concreto, cerca de 1,6%) da área cedida, não assumiria, na globalidade do programa contratual a que as partes se vincularam (seja qual for, em geral, a natureza do contrato celebrado) um relevo tal que legitimasse o cedente, do ponto de vista do seu interesse, a invocar a resolução do contrato. Efetivamente, tal desvio não corresponderia a um desequilíbrio prestacional suscetível de justificar a destruição do vinculo contratual, sobretudo depois de terem passado 36 anos em que o contrato foi integralmente cumprido. Embora dos autos não conste que tivesse sido estabelecido qualquer limite temporal à vigência daquela afetação da parcela cedida, sempre, do ponto de vista de um raciocino teórico, se poderia questionar se a sua indeterminabilidade ou perpetuidade (dado o facto de a devedora ser uma entidade que, em princípio, não desaparecerá) não seria suscetível de sofrer uma limitação decorrente da superveniência da reordenação dos interesses coletivos. Porém, o desenvolvimento desta linha argumentativa não se torna necessário para justificar a solução do caso concreto.
3.7. No que respeita ao pedido de indemnização formulado pela autora, o acórdão recorrido não se pronunciou especificamente sobre essa questão por a ter considerado prejudicada pela solução dada à questão do incumprimento do contrato. Concordando, embora, com a decisão do acórdão recorrido, sempre se pode acrescentar que, em rigor, a autora não alegou nem provou que tivesse sofrido um dano. Limitou-se a invocar um critério (uma espécie de “teoria da diferença”) que (a seu ver) deveria ser tomado em conta para determinar a medida da indemnização [vd. ponto 10º das conclusões das alegações]. Todavia, como decorre do art.798º do CC, para que um devedor possa ser contratualmente responsabilizado terá de se encontrar demonstrado que ele causou determinado prejuízo. Cabe, portanto, ao credor demonstrar os danos que lhe foram causados pela prestação incumprida. O facto de o montante concreto de determinada indemnização poder ser relegado para liquidação não se confunde com a necessidade de demonstrar quais os efetivos danos que o requerente sofreu. Como afirma Antunes Varela: «A falta de cumprimento da obrigação só dá lugar à obrigação de indemnizar se, como geralmente sucede, o credor sofrer com ela um prejuízo. Sem dano – patrimonial ou não patrimonial – não há obrigação de indemnizar, não existe responsabilidade civil.»[12]
Em síntese, no âmbito do quadro normativo aplicável, conclui-se que o acórdão recorrido não merece censura, pois encontrou a solução jurídica adequada à factualidade assente.
DECISÃO: Pelo exposto, decide-se pela improcedência da revista e confirma-se o acórdão recorrido. Custas na revista: pela recorrente.
Lisboa, 12.07.2022
Maria Olinda Garcia (Relatora). Ricardo Costa António Barateiro Martins
Sumário (art. 663º, nº 7, do CPC). ______________________________________________________
[7] Afirma-se no Preâmbulo deste diploma: “Pretende-se, assim, através do presente decreto regulamentar, evitar a actual dispersão e imprecisão de conceitos utilizados por instrumentos de gestão territorial, nomeadamente o recurso a expressões que não são objecto de definição, a utilização do mesmo conceito com diferentes significados ou do mesmo instituto jurídico com diferentes designações, bem como a utilização de conceitos indeterminados ou incorrectos.» |