Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
3598/18.3T8BRR-D.L1-A.S1
Nº Convencional: 6ª SECÇÃO
Relator: GRAÇA AMARAL
Descritores: ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
RECURSO DE REVISTA
INSOLVÊNCIA
OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS
QUESTÃO FUNDAMENTAL DE DIREITO
IDENTIDADE DE FACTOS
ACORDÃO FUNDAMENTO
ACÓRDÃO RECORRIDO
PRESSUPOSTOS
REJEIÇÃO DE RECURSO
INCONSTITUCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA (COMÉRCIO)
Decisão: RECLAMAÇÃO INDEFERIDA
Sumário :
I – A oposição de acórdãos enquanto pressuposto de admissibilidade da revista previsto no artigo 14.º, do CIRE, impõe que determinada situação concreta, constituída por um núcleo factual similar, seja decidida, com base na mesma disposição legal, em sentidos diametralmente opostos.

II - Convergindo os acórdãos alegadamente em oposição no sentido de que a solvabilidade do devedor singular para efeitos de avaliação do “estado de insolvência” não se reconduz à mera existência de um activo superior ao passivo, mas tem de ser feita em sede de (im)possibilidade de cumprimento das obrigações vencidas, e tendo cada um deles proferido decisão em sentido diverso (o acórdão-fundamento, diversamente do acórdão recorrido, não manteve a insolvência declarada pelas instâncias) em função da de diferenças factuais essenciais, não se encontra caracterizada a oposição relevante de acórdãos por forma a permitir a admissibilidade da revista.

III - A interpretação do regime recursório estabelecido no artigo 14.º, do CIRE, nos termos decididos, não viola qualquer princípio ou imperativo constitucional.

Decisão Texto Integral:
Acordam em conferência na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça,

I - Relatório

1. AA e BB vêm reclamar para a conferência da decisão da relatora de não conhecimento do objecto do recurso de revista do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa (de 23.04.2024), que conheceu do recurso de apelação que interpuseram, julgando-o improcedente, mantendo a sentença que os declarou em estado de insolvência.

Consideram os Requerentes que a decisão reclamada deverá ser substituída por outra que, admitindo a revista, conheça do seu objecto e revogue o acórdão recorrido.

Defendem que, ao invés do decidido, a existência de contradição de acórdãos mostra-se patente, decorrendo da própria decisão reclamada.

Nas conclusões que formulam reconduzem a sua discordância à circunstância de a contradição de acórdãos em que sustentam a admissibilidade da revista se reportar ao critério de superioridade do activo face ao passivo.

Alegam, para o efeito, que tal critério foi totalmente desconsiderado (pela sentença e pelo acórdão recorrido) tendo, ao invés, sido valorado como determinante no acórdão-fundamento ao sustentar a decisão de inexistência da situação de insolvência.

Ilustram o seu entendimento quanto ao que apelidam de clarividente contradição de acórdãos, no fundamento do voto de vencido do Acórdão Fundamento que, tal como o acórdão recorrido, afirmam dos Reclamantes, desaplicou o critério previsto no n.º 3 do artigo 3.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas – CIRE.

2. O conhecimento da questão da inexistência de oposição de acórdão, encontra-se sustentado na decisão reclamada nos seguintes termos:

“2. Na invocação dos fundamentos para a revista, os Recorrentes fazem alusão à existência de oposição de acórdãos indicando como acórdão-fundamento o proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, datado de 17.11.2021, proferido no âmbito do processo n.º 769/20.6T8STR-B.C1.S1, tendo para o efeito procedido à junção de cópia deste aresto.

De acordo com o entendimento dos Recorrentes, a contradição dos julgados assenta no facto do acórdão-fundamento ter apreciado a questão da (in)existência de fundamento para a declaração de insolvência de pessoa singular decidindo, em sentido diverso ao do acórdão recorrido, tendo subjacente a mesma realidade fáctica.

Carecem, porém, de razão pois, conforme passaremos a justificar, para além do mais, os Recorrentes fazem assentar o seu posicionamento em termos de realidade fáctica referenciando factos que não se encontram apurados no factualismo que sustentou a fundamentação fáctica da decisão das instâncias.

Contudo, contrariamente ao que afirmam, evidenciam os autos que tais decisões se mostram fundadas em pressupostos fácticos diferentes justificando, por isso, a conclusão diversa a que cada um chegou relativamente à questão objecto da respectiva apreciação: verificação dos pressupostos da declaração de insolvência de pessoa singular.

Vejamos.

3. Na sequência do já sublinhado, para que ocorra oposição de acórdãos, impõe-se que determinada situação concreta (constituída por um núcleo factual similar) seja decidida, com base na mesma disposição legal, em sentidos diametralmente opostos.

Acresce que a divergência frontal na questão (fundamental) de direito terá de assumir necessariamente natureza essencial para a solução do caso, isto é, tem de integrar a ratio decidendi no âmbito dos acórdãos em confronto.

Na situação dos autos, o Tribunal da Relação de Lisboa manteve a decisão da 1.ª instância, que declarou os Requeridos em situação de insolvência, partindo do entendimento de que a existência de activo superior ao passivo não constitui, por si só, pressuposto legal de solvabilidade nem indício como tal legalmente previsto, uma vez que a questão terá de ser apreciada em sede de (im)possibilitado de cumprir as obrigações vencidas.

Trata-se de posicionamento que, de modo algum, colide com o sufragado no acórdão fundamento.

Com efeito, a esse respeito refere o acórdão recorrido: “Assim, mesmo que os Recorrentes tivessem provado que o valor de mercados dos imóveis era superior a 650.000,00 €. – o que, efectivamente, não conseguiram –, ficou demonstrado que estão impossibilitados de cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas, por falta de meios de pagamento ou de bens de liquidez suficientes (v.g., dinheiro em caixa e depósitos bancários, créditos bancários vencidos, produtos e títulos de crédito fácil e oportunamente convertíveis em dinheiro).

Mesmo que o devedor possua um activo superior ao passivo, cabe-lhe demonstrar a sua “viabilidade económica”, ou seja, que tem capacidade bastante para assegurar o cumprimento das suas obrigações na data do respectivo vencimento.”.

Ao analisar a matéria de facto provada, concluiu que a situação se integrava na alínea b) do n.º1 do artigo 20.º do CIRE.

Na apreciação levada a cabo, refere o tribunal a quo:

- “(…) os Requeridos deixaram de pagar, por várias vezes, as prestações de vários contratos de mútuo que haviam celebrado com o Banco Espírito Santo, S.A. (mais tarde transmitidos para o Novo Banco, S.A), obrigando o Banco mutuante a instaurar outras tantas execuções para cobrança dos montantes em dívida e, pese embora tivesse penhorado os dois únicos prédios urbano propriedade dos Requeridos (identificados sob os nºs 2 e 12 dos factos provados), aquelas execuções tiveram de ser sustadas quanto aos prédios penhorados, em virtude de subsistirem penhoras anteriores.”.

Considerou, ainda, o acórdão recorrido, que não obstante os pagamentos que os mutuantes levaram a cabo – no montante de €90.881,12 – os mesmos não afastavam a “impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações”, porquanto e socorrendo-se do afirmado na sentença, apenas “revelam inconstância temporal e variabilidade dos montantes entregues, demonstrativa do não cumprimento pontual das obrigações assumidas e que conduziu, num primeiro momento, à propositura de acções executivas pelo credor requerente e, num segundo momento, à propositura de acção de insolvência”.

Por outro lado, evidencia-se do mesmo acórdão que, na ponderação da situação de solvabilidade dos Requeridos, foi dada relevância ao incumprimento das obrigações tributárias e da Segurança Social e o facto das respectivas entidade credoras terem tentado obter o pagamento dos seus créditos através da penhora dos imóveis dados de garantia ao banco mutuante, porquanto, realça, “é demonstrativo de que se verificou por parte dos Requeridos uma “suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas”.

Concluindo que se mostrava preenchido o facto-índice constante da alínea b) do n.º1 do artigo 20.º do CIRE, entendeu o acórdão que os Requeridos/Recorrentes não tinham demonstrado a sua solvência, justificando que “A afirmação dos Recorrentes de que gozam de “liquidez suficiente para fazer face aos créditos vencidos” é desmentida pela realidade dos factos provados. Apesar de serem proprietários de dois imóveis cujo valor de mercado, segundo os factos provados, ascende, actualmente, a 572.379,71 €, e de ambos auferirem rendimentos de valor mensal ilíquido de 7.025,39 €, – rendimento que, sem dúvida, lhes permite o pagamento faseado de algumas das dívidas de montante mais baixo, o que, aliás, têm feito – , o certo é que os rendimentos auferidos pelos requeridos não têm permitido o pagamento pontual da generalidade das obrigações vencidas dos requeridos, nomeadamente o crédito do requerente. Acresce que não está provado nos autos que tenham acesso ao crédito bancário, de forma a possibilitar o pagamento de todas as dívidas.”.

Por outro lado, no que se reporta ao alegado pelos Requeridos, relativamente ao valor dos imóveis de que são proprietários ser superior ao montante do passivo, foi considerado na decisão recorrida que não se encontrava demonstrada a superioridade do activo. Todavia, “mesmo que os Recorrentes tivessem provado que o valor de mercados dos imóveis era superior a 650.000,00 €. – o que, efectivamente, não conseguiram –, ficou demonstrado que estão impossibilitados de cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas, por falta de meios de pagamento ou de bens de liquidez suficientes (v.g., dinheiro em caixa e depósitos bancários, créditos bancários vencidos, produtos e títulos de crédito fácil e oportunamente convertíveis em dinheiro). Mesmo que o devedor possua um activo superior ao passivo, cabe-lhe demonstrar a sua “viabilidade económica”, ou seja, que tem capacidade bastante para assegurar o cumprimento das suas obrigações na data do respectivo vencimento.”.

No acórdão-fundamento a questão da demonstração da solvência da ali Devedora e, nessa medida, o afastamento da declaração de situação de insolvência, teve em consideração dois aspectos evidenciados da matéria de facto provada: a superioridade do activo e não resultar provada uma situação de incapacidade económica para cumprir a generalidade das suas obrigações pecuniárias (ausência de prova quanto à existência de uma descontinuidade ou suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas e a existência de outras dívidas para além das que se encontram garantidas por hipotecas e penhoras sobre o imóvel); nessa medida, concluiu que “o eventual recurso à via da ação executiva poderia permitir a satisfação do interesse dos credores sem necessidade de ser decretada a insolvência da devedora”.

Verifica-se, assim, que o sentido divergente das decisões em análise teve subjacente a realidade fáctica diversa de cada uma delas reportada quer à demonstração da superioridade do activo (o acórdão recorrido ao invés do acórdão fundamento não a considerou demonstrada), quer à (in)existência de demais débitos dos Devedores, aspecto que em ambos os arestos assumiu relevância enquanto parâmetro da solvibilidade, porquanto convergiram no entendimento de que tal apreciação não se reconduz à mera existência de um activo superior ao passivo, mas tem de ser feita em sede de (im)possibilidade de cumprimento das obrigações vencidas1.

Resultando evidenciada a inexistência da alegada oposição entre os acórdãos, circunstância impeditiva da admissibilidade do recurso de revista interposto pelos Recorrentes, mostra-se, com isso, comprometida a possibilidade de conhecer do objecto do recurso.

II - Apreciando

1. O entendimento da decisão proferida deverá ser reiterado, porquanto o posicionamento dos Recorrentes mostra-se sustentado num duplo equívoco: os Reclamantes, não só descuram o contexto fáctico que delimitou cada uma das decisões, como atribuem a cada um dos arestos alegadamente em confronto uma interpretação do artigo 3.º do CIRE, que não se mostra plasmada no seu teor. Como tal, encontra-se comprometida a caracterização da alegada oposição de acórdãos.

Mostra-se pacífico que na situação sob apreciação, por força do disposto no artigo 14.º, do CIRE, a admissibilidade do recurso dependeria da existência de oposição dos julgados: entre o acórdão recorrido e o acórdão-fundamento, quanto à mesma questão fundamental de direito.

Considera-se que a questão fundamental de direito se apresenta decidida de forma contraditória quando ocorre interpretação divergente relativamente a um mesmo regime normativo, em aplicação de um mesmo instituto ou figura jurídica fundamental . Para tal, impõe-se a verificação de uma identidade da situação factual subjacente a essa aplicação normativa.

É pois condição indispensável à oposição relevante de acórdãos que situações concretas, com similitude do respectivo núcleo factual, tenham sido decididas em sentido contrário, por aplicação da mesma base legal.

2. Do que parece ser o entendimento dos Recorrentes, a superioridade do activo sobre o passivo constituiria, por si só, pressuposto legal de solvabilidade por forma a afastar a situação de insolvência. Não será assim, nem tal conclusão pode ser retirada do acórdão-fundamento.

Na verdade, ambos os acórdãos (recorrido e fundamento) analisaram a factualidade que se lhes impunha subsumir tendo subjacente o mesmo entendimento no que toca ao citério-base pelo qual cabe aferir a existência de uma situação de insolvência, designadamente na interpretação do artigo 3.º, n.1 do CIRE, nos termos do qual é “considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas.”.

Conforme explicita o acórdão-fundamento, tal impossibilidade resulta da ausência de meios para saldar as dívidas vencidas, seja por insuficiência patrimonial, seja por ausência de garantias prestadas por terceiros, ou por falta de acesso ao crédito (nomeadamente bancário).

Em sintonia com este entendimento – apreciação da situação de insolvência em sede de (im)possibilidade de cumprimento das obrigações vencidas – encontra-se o acórdão recorrido ao afirmar ter ficado demonstrado que os Requeridos “estão impossibilitados de cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas, por falta de meios de pagamento ou de bens de liquidez suficientes (v.g., dinheiro em caixa e depósitos bancários, créditos bancários vencidos, produtos e títulos de crédito fácil e oportunamente convertíveis em dinheiro)”, tendo, por isso, integrado a matéria fáctica na alínea b) do n.º1 do artigo 20.º do CIRE.

Conforme se fez salientar na decisão objecto de reclamação, a subsunção jurídica levada a cabo pelo acórdão recorrido encontra-se justificada nas seguintes passagens reportadas:

• ao incumprimento generalizado das respectivas obrigações:

a) “os Requeridos deixaram de pagar, por várias vezes, as prestações de vários contratos de mútuo que haviam celebrado com o Banco Espírito Santo, S.A. (mais tarde transmitidos para o Novo Banco, S.A), obrigando o Banco mutuante a instaurar outras tantas execuções para cobrança dos montantes em dívida e, pese embora tivesse penhorado os dois únicos prédios urbano propriedade dos Requeridos (identificados sob os nºs 2 e 12 dos factos provados), aquelas execuções tiveram de ser sustadas quanto aos prédios penhorados, em virtude de subsistirem penhoras anteriores.”.

b) “é demonstrativo de que se verificou por parte dos Requeridos uma “suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas”.

• aos pagamentos irregulares levados a cabo pelos Requeridos, no montante de €90.881,12: “revelam inconstância temporal e variabilidade dos montantes entregues, demonstrativa do não cumprimento pontual das obrigações assumidas e que conduziu, num primeiro momento, à propositura de acções executivas pelo credor requerente e, num segundo momento, à propositura de acção de insolvência”;

• à não demonstração da solvência dos Requeridos por alegada superioridade do activo:

a) “A afirmação dos Recorrentes de que gozam de “liquidez suficiente para fazer face aos créditos vencidos” é desmentida pela realidade dos factos provados. Apesar de serem proprietários de dois imóveis cujo valor de mercado, segundo os factos provados, ascende, actualmente, a 572.379,71 €, e de ambos auferirem rendimentos de valor mensal ilíquido de 7.025,39 €, – rendimento que, sem dúvida, lhes permite o pagamento faseado de algumas das dívidas de montante mais baixo, o que, aliás, têm feito – , o certo é que os rendimentos auferidos pelos requeridos não têm permitido o pagamento pontual da generalidade das obrigações vencidas dos requeridos, nomeadamente o crédito do requerente. Acresce que não está provado nos autos que tenham acesso ao crédito bancário, de forma a possibilitar o pagamento de todas as dívidas.”;

b) “mesmo que os Recorrentes tivessem provado que o valor de mercados dos imóveis era superior a 650.000,00 €. – o que, efectivamente, não conseguiram –, ficou demonstrado que estão impossibilitados de cumprir a generalidade das suas obrigações vencidas, por falta de meios de pagamento ou de bens de liquidez suficientes (v.g., dinheiro em caixa e depósitos bancários, créditos bancários vencidos, produtos e títulos de crédito fácil e oportunamente convertíveis em dinheiro). Mesmo que o devedor possua um activo superior ao passivo, cabe-lhe demonstrar a sua “viabilidade económica”, ou seja, que tem capacidade bastante para assegurar o cumprimento das suas obrigações na data do respectivo vencimento.”.

O acórdão-fundamento, tendo subjacente o mesmo entendimento, considerou que a factualidade assente não permitia concluir que a devedora se encontrasse impossibilitada de cumprir as suas obrigações vencidas, como exige o art.3º, n.1 do CIRE. E da análise dos factos apurados refere que os mesmos “não revelam a existência de uma descontinuidade ou suspensão generalizada do pagamento das obrigações vencidas” nem “a impossibilidade de o devedor satisfazer pontualmente a generalidade das suas obrigações” justificando em face:

• da extensão das dívidas: “sobre o prédio urbano identificado em 3., se encontram inscritas hipotecas e penhoras a favor de mais três credores para além do credor requerente. Todavia, como consta do ponto 19 da factualidade provada, dois dos processos executivos, no âmbito dos quais foram registadas as respetivas penhoras sobre o imóvel referido no ponto 3 da factualidade, já se encontram extintos. A agora recorrente não tem dívidas à Autoridade Tributária ou Segurança Social (ponto 24 da factualidade provada) (…) da factualidade assente não consta que a requerida tenha outro tipo de dívidas além das que se encontram garantidas por hipotecas e penhoras sobre o imóvel indicado no ponto 3 dessa factualidade.”;

• dos meios de satisfação das mesmas: “Acresce que, como assente no ponto 21 da factualidade provada, e reconhecido no acórdão recorrido, o imóvel tem um valor de mercado superior ao valor das dívidas, pelo que o eventual recurso à via da ação executiva poderia permitir a satisfação do interesse dos credores sem necessidade de ser decretada a insolvência da devedora”.

3. Dos excertos transcritos, tal como explicado no despacho singular objecto de reclamação, resulta evidenciada a ausência de oposição entre os acórdãos, pois que não só não se vislumbra que neles se tenha enveredado por uma interpretação díspar do n.º3 do artigo 3.º do CIRE, como a conclusão diferente a que cada um dos arestos chegou decorre, unicamente, das razões factuais que se impunham apreciar .

Na verdade, tal como realçado no despacho singular objecto de reclamação, o sentido divergente das decisões em análise teve subjacente a realidade fáctica diversa de cada uma delas reportada quer à demonstração da superioridade do activo (o acórdão recorrido ao invés do acórdão fundamento não a considerou demonstrada), quer à (in)existência de demais débitos dos Devedores, aspecto que em ambos os arestos assumiu relevância enquanto parâmetro da solvibilidade, porquanto convergiram no entendimento de que tal apreciação não se reconduz à mera existência de um activo superior ao passivo, mas tem de ser feita em sede de (im)possibilidade de cumprimento das obrigações vencidas

Assim sendo, uma vez que o proferimento de decisão em sentido diverso radica na especificidade da realidade factual reportada à possibilidade dos devedores quanto ao cumprimento das obrigações vencidas, não pode deixar de se concluir pela inexistência de oposição de acórdãos.

4. Defendem ainda os Recorrentes que a interpretação do artigo 14.º, do CIRE, no sentido determinado, ao concluir pela inexistência de oposição de acórdãos, mostra-se inconstitucional por violar o princípio da proporcionalidade plasmado no artigo 18.º, n.º2, da Constituição da República Portuguesa.

Tal posicionamento parte desde logo do equívoco de descurarem a desigualdade fáctica essencial acima realçada. Na verdade, a diversidade fáctica apontada subjacente a cada um dos acórdãos não se reporta a qualquer aspecto lateral, antes integra, conforme referido, a identidade substancial determinante do sentido de cada decisão.

Por outro lado, na sequência do referido no despacho singular, os Recorrentes não têm em conta a análise que, neste âmbito, se impõe fazer em termos de avaliação preliminar de indagação da existência de oposição de acórdãos (enquanto requisito de admissibilidade da revista), que não se consubstancia nem se compadece na avaliação do mérito da acção, ou seja, não pode constituir uma análise do objecto do recurso em termos de apreciação de eventual erro de julgamento.

Acresce que a interpretação do artigo 14.º, do CIRE, no sentido atribuído na presente decisão – condicionando a admissibilidade da revista às situações de oposição de acórdãos -, não se mostra desconforme com a Constituição, porquanto representa uma opção legítima por parte do legislador ordinário2, incluída nos poderes que detém de definir as circunstâncias e os termos da admissibilidade dos recursos em matéria cível.

Nesse sentido, tal como sublinhado no despacho reclamado, o Tribunal Constitucional vem decidindo, de forma consistente, que, em matéria cível, a lei ordinária pode proceder ao estabelecimento de um sistema de recursos não garantindo um direito irrestrito ao recurso, nem mesmo a um terceiro grau de jurisdição3.

Consequentemente, a interpretação do regime recursório estabelecido no artigo 14.º, do CIRE, nos termos decididos, não viola qualquer princípio ou imperativo constitucional.

II - Decisão

Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em indeferir a reclamação do despacho que não conheceu do objecto do recurso.

Custas pelos Recorrentes, fixando-se em 2 Uc´s a taxa de justiça.

Lisboa, 12 de Novembro de 2024

Graça Amaral (Relatora)

Maria do Rosário Gonçalves

Luís Correia de Mendonça

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1. A este respeito foi tida em conta a matéria provada nos pontos 57 e 58 do seguinte teor: “57) Por despacho de 19/06/2019, foi declarada a suspensão da instância nos presentes autos de insolvência em virtude de os requeridos terem dado início a processo especial para acordo de pagamento, que correu termos sob o n.º 1641/19.8..., no Juízo do Comércio do ... (J...), do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa. 58) O referido processo especial para acordo de pagamento veio a findar sem a aprovação de um acordo de pagamento, tendo ali sido proferida decisão final que transitou em julgado em 09/12/2022, pelo que foi declarada cessada a suspensão da instância nos presentes autos.”↩︎

2. Opção que assume cabimento na natureza célere que se quis incutir ao processo de revitalização por forma a estabilizar o mais depressa possível as relações litigiosas nesse âmbito.↩︎

3. Cfr. acórdão do STJ de 18-06-2013, Processo n.º 483/08.0TBLNH.L1.S1, a que se poderá aceder através das Bases Documentais do IGFEJ no qual se refere: ““(…) fora do Direito Penal não resulta da Constituição nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de decisões judiciais. Por outro lado, o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, expressamente consagrado no citado artigo 20º da Constituição (que “assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”) não consagra o direito ao recurso para um outro tribunal, sendo também certo que não existe disposição expressa na Constituição que imponha o direito de recurso em processo civil, apesar de em processo e em matéria penal, o artigo 32º estabelecer o duplo grau de jurisdição. Alguns autores têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal. Em relação aos restantes casos (…) tem-se entendido que o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer. Isto porque a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso. Mas considera-se que o legislador ordinário tem ampla margem de conformação do âmbito dos recursos.”.”.↩︎