Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE ARCANJO, POR VENCIMENTO | ||
Descritores: | ACIDENTE DE VIAÇÃO ACIDENTE DE TRABALHO CUMULAÇÃO DE INDEMNIZAÇÕES CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO CRITÉRIO DE QUANTIFICAÇÃO EQUIDADE DANOS NÃO PATRIMONIAIS DANOS PATRIMONIAIS DANO BIOLÓGICO PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO DIREITO À INDEMNIZAÇÃO LESADO SEGURADORA RESPONSABILIDADE CIVIL EMERGENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO | ||
Data do Acordão: | 09/17/2024 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA EM PARTE A REVISTA | ||
Sumário : | Em acidente simultaneamente de viação e de trabalho cada uma das indemnizações assenta em critérios distintos e têm funções e objectivos próprios, pelo que indemnização fixada ao lesado a título de perda da sua capacidade de ganho, em sede laboral, não contempla a indemnização para ressarcir o dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com afectação pessoal, no âmbito da jurisdição civil. | ||
Decisão Texto Integral: | Revista nº 3765/16.4T8VFP.P1.S1 Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I - RELATÓRIO 1.1. - AA instaurou acção declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AXA PORTUGAL COMPANHIA DE SEGUROS, SA., pedindo a condenação da ré pagar-lhe a quantia de € 238.554,40, acrescida de juros à taxa legal desde a citação até efectivo e integral pagamento, assim discriminada: (i) € 43.254,40 pela “incapacidade geral de ganho”, correspondente ao remanescente de 30% não suportado pela seguradora de acidentes de trabalho; (ii) € 170.000 por danos não patrimoniais; (iii) € 25.000,00 por dano estético; (iv) € 270,00 de compensação por cada dia de internamento. Como fundamento, alegou factos tendentes a demonstrar que sofreu danos – que discriminou e quantificou – em consequência de acidente de viação ocorrido por culpa exclusiva do condutor do veículo de matrícula ..-CX-.., encontrando-se a responsabilidade civil emergente de acidente de viação, respeitante a tal veículo, transferida para a ré mediante contrato de seguro. A ré contestou, impugnando a extensão e montante dos danos. 1.2. - Foi proferida sentença que julgou a acção parcialmente procedente e, em consequência, condenou a ré a pagar ao autor: “(i) A quantia de € 30.000,00, referente a 30% da indemnização devida a título de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica; (ii) A quantia de € 25.000,00, referente a danos não patrimoniais (neste estando incluindo o dano estético e o dano pelo período de internamento) (iii) Juros sobre a quantia referida em (i), à taxa legal de 4% desde a citação até efectivo e integral pagamento; (iv) Juros sobre a quantia referida em (ii), à taxa legal de 4% desde a prolação da presente sentença até efectivo e integral pagamento.” 1.3. - O autor e a ré recorreram de apelação e a Relação, por acórdão de 21/10/2021, decidiu: “Pelo exposto, julga-se improcedente a apelação da ré e julga-se procedente a apelação do autor, revogando-se a sentença recorrida e, em consequência: • Condena-se a ré a pagar ao autor: • A quantia de € 100.000,00 (cem mil euros), a título de indemnização pelo dano biológico, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados desde a citação até integral pagamento, à taxa de 4% ao ano; • A quantia de € 40.000,00 (quarenta mil euros), a título de indemnização por danos de natureza não patrimonial, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos desde a data da sentença da 1ª instância até integral pagamento, à taxa de 4% ao ano. Custas em ambas as instâncias pelo autor e pela ré na proporção do decaimento.” 1.4.- Inconformada, a Ré recorreu de revista, com as seguintes conclusões: “1. Na sequência de um acidente de viação (classificado, simultaneamente, como acidente de trabalho) o Autor peticionou a condenação da Ré no pagamento das seguintes quantias: (i) € 43.254,40 pela “incapacidade geral de ganho”; (ii) € 170.000 por danos não patrimoniais; (iii) € 25.000,00 por dano estético; (iv) € 270,00 de compensação por cada dia de internamento – tudo no valor global de € 238.524,40 – sendo que foi o Autor indemnizado pela seguradora de trabalho, nas seguintes quantias: € 13.857,17 de incapacidades (absoluta e relativa) temporárias; € 5.046,36 de pensão anual e vitalícia, referente a IPP de 41,55%, correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho; € 12,00 de deslocações, despesas transporte de assistência clínica. 2. O presente recurso vem interposto do Acórdão proferido a fls. no âmbito do processo supra identificado, o qual julgou procedente o recurso interposto pelo A., revogando a decisão e condenando a aqui Ré a pagar ao A. a quantia de € 100.000,00 (cem mil euros), a título de indemnização pelo dano biológico, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos, calculados desde a citação até integral pagamento, à taxa de 4% ao ano. 3. Em sede de apelação, o A. veio invocar a complementaridade das indemnizações a atribuir em sede laboral e civil, por forma a justificar que o valor indemnizatório fixado não deveria ter sofrido qualquer redução por via do processo de trabalho, 4. A verdade é que foi o próprio Autor que peticionou a condenação da Ré no pagamento da quantia de € 43.254,00, invocando que ficou por indemnizar 30% do devido, em sede laboral. 5. Porém, decidiu o Tribunal a quo fixar a quantia indemnizatória de € 100.000,00, a título de dano biológico devido pelo défice funcional permanente. 6. Entendeu a Relação que, no caso de um acidente que é simultaneamente de viação e de trabalho, como o dos presentes autos, as indemnizações a pagar ao lesado pelo terceiro responsável pelo acidente e pela entidade patronal ou pela sua seguradora não se cumulam, antes se complementam. 7. Ora, considerou, ainda, esta instância, que, no caso, independentemente de se entender que a indemnização arbitrada nos presentes autos, a título de dano biológico, se reporta, ou não, ao mesmo dano que foi ressarcido no processo laboral, não é de proceder ao abatimento naquela dos valores que foram arbitrados no referido processo laboral. 8. Mais considerou que a esta solução não se opõe o facto de o Autor, em sede de petição inicial, ter pedido, apenas, 30% do valor da indemnização a arbitrar, a título de dano futuro (seja de dano biológico ou dano pela perda da capacidade de ganho), uma vez que, como se tem entendido, não há condenação ultra petitum quando o valor global da condenação seja inferior ao valor global que foi peticionado. Ou seja, não há condenação em valor superior ao peticionado, uma vez que o valor de € 100.000,00 é inferior ao valor da acção (€ 238.524,40). 9. No entendimento da Recorrente, não podem ser cumuladas a indemnização atribuída ao A., com base no acidente considerado como de viação, e a que já lhe foi atribuída em sede de processo de trabalho pela respetiva incapacidade, pois tal implicaria uma cumulação de indemnizações pelo mesmo dano, determinante de um locupletamento injusto à custa do património da recorrente e da entidade patronal, mesmo que a responsabilidade desta última haja sido transferida para a Seguradora. 10. Ao contrário, as duas indemnizações apenas se poderão complementar até ressarcimento integral do dano causado, podendo, embora, o lesado, optar pela que entender mais favorável para ele, deduzida dos montantes que já tenha recebido da outra entidade obrigada ao pagamento 11. Não poderá ser admissível uma cumulação de indemnizações – o que, na realidade é. 12. Por outro lado, no âmbito do direito civil, e face ao princípio da reparação integral do dano nele vigente, deve-se valorar percentualmente a incapacidade permanente em geral, isto é, a incapacidade para os atos e gestos correntes do dia-a-dia, assinalando depois e suplementarmente o seu reflexo em termos da atividade profissional específica do examinando. 13. Resulta claro que não pode o Autor cumular indemnizações pelo mesmo dano, motivo pelo qual no cálculo da indemnização devida pelo acidente de viação, deve ser descontado o valor já recebido em sede de acidente de trabalho. 14. Pretende-se, desta forma, evitar o enriquecimento injustificado do lesado, mediante a acumulação do próprio capital e os respectivos rendimentos. 15. Na verdade, não sendo as indemnizações cumuláveis o lesado não poderá receber as duas indemnizações integral e autonomamente, dado que, se tal sucedesse, isso equivaleria a reparar duas vezes o mesmo dano, com o consequente enriquecimento ilegítimo. 16. Apenas por manifesta má-fé poderia o Autor aceitar o pagamento da quantia que lhe foi atribuída pela douta decisão recorrida, sem a aplicação de qualquer redução/ajuste, bem sabendo que já recebeu os montantes a título de indemnização por via da seguradora de acidentes de trabalho. 17. As indemnizações não são cumuláveis, mas sim complementares, o que significa que, por via da complementaridade das prestações, sempre deveriam ser deduzidos ao valor fixado nesta sede, os valores já pagos pela Congénere no âmbito do acidente de trabalho, a título de capital de remissão referente à IPP. 18. Decisão diferente traduzir-se-ia num enriquecimento ilegítimo do Autor que, dessa forma, se veria duplamente ressarcido pelos mesmos danos (perda da capacidade de ganho), no foro laboral e no foro civil. 19. Nesta medida, e ressalvando o devido respeito, a douta decisão recorrida extrapolaria o âmbito de aplicação das normas constantes dos artigos 562.º, 564.º e 566.º do Código Civil, na medida em que aplicaria as referidas normas indiscriminadamente, olvidando a quantia indemnizatória recebida pelo Autor, e violando, concomitantemente, o entendimento da Jurisprudência quanto a este assunto. 20. No caso em apreço nos autos, está-se precisamente perante uma situação de concurso de responsabilidades, uma vez que o acidente de viação consubstanciou simultaneamente acidente de trabalho, havendo deste modo uma assumpção de responsabilidades antecipada por parte da congénere, seguradora de acidentes de trabalho. 21. O montante de capital de remissão entregue ao Recorrido, referente à sua incapacidade para o desempenho de funções laborais, se destinava a ressarci-lo integralmente da perda de capacidade de ganho com base na IPP determinada e avaliada com base na Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais. 22. A desvalorização atribuída a um sinistrado em direito civil contempla, dentro do dano de natureza geral, o dano laboral. 23. Tanto assim é que a decisão ora recorrida para cálculo e arbitramento da indemnização referente à perda de capacidade de ganho baseou-se na IPP fixada ao Recorrido bem como nos esforços acrescidos no prosseguimento da sua actividade profissional, admitindo que a IPP fixada contempla o dano laboral. 24. Assim, a IPP fixada ao recorrido teve em linha de conta, também, o reflexo em termos da actividade profissional específica daquele. 25. Com efeito, no dano de natureza geral inclui-se o dano laboral e é aqui que a recorrente se insurge, porquanto na indemnização arbitrada há uma duplicação de indemnização atribuída ao Recorrido. 26. Ora, para calcular a indemnização correspondente, o tribunal a quo não tomou deliberadamente em conta o capital de remissão referente à IPP entregue ao recorrido, embora se reporte ao mesmo dano (perda de capacidade de ganho). Apenas considerou que uma é complemento da outra, desconsiderando, em toda a linha, o montante já arbitrado em sede laboral. 27. Sob pena de ser duplamente indemnizado e vir a enriquecer à custa da recorrente, o recorrido não pode receber duas indemnizações pelo mesmo dano patrimonial, independentes e cujos valores se desconsideram autónoma e mutuamente, devendo, no cálculo da indemnização devida pelo acidente de viação, ser descontado o valor já recebido em sede de acidente de trabalho ou, pelo menos, ser tido em linha de conta e ajustado em conformidade. 28. Como é consabido, não pode o Autor cumular indemnizações pelo mesmo dano, motivo pelo qual à quantia apurada na acção como correspondente aos danos patrimoniais sofridos pelo Recorrido, nomeadamente por perda da capacidade de ganho (dano futuro), deverá ser deduzida a referida quantia já entregue ao Autor (questão da qual o próprio recorrido tem noção, uma vez que peticiona uma percentagem, descontando-se já o fixado em sede laboral). 29. Com efeito, tal situação é manifestamente inadmissível, uma vez que consubstancia uma duplicação flagrante de pagamentos ao lesado, com o seu consequente enriquecimento sem causa. 30. Assim, no cálculo da indemnização devida pelo acidente de viação, deve ser descontado o valor já recebido em sede de acidente de trabalho. 31. Na douta decisão recorrida, ao entender-se que sendo o acidente simultaneamente de viação e trabalho, o sinistrado recebe duas indemnizações distintas, que apenas se complementam, fica este, então, titular de dois direitos distintos de indemnizar, não se contemporizando, ao nível da indemnização do dano civil, aquilo que recebeu no âmbito da indemnização do dano laboral. 32. Por assim dizer: não há um dano do acidente de viação e outro dano do acidente de trabalho, mas apenas um dano com origem na viação, que em parte pode (deve) ser quantificado pelos prejuízos resultantes da lesão da prestação do trabalho (com a afectação correlativa da contraprestação retributiva) 33. As indemnizações por acidente que seja simultaneamente de viação e de trabalho não são cumuláveis, mas sim complementares até ao ressarcimento total do prejuízo sofrido. 34. O que significa que, por via da complementaridade das prestações, deve ser deduzida ao valor fixado pelo douto Tribunal a quo o valor já pago pela Congénere Acidentes de Trabalho a título de capital de remissão referente à IPP. 35. Não sendo as indemnizações cumuláveis, o lesado não poderá receber as duas indemnizações integral e autonomamente, dado que, se tal sucedesse, isso equivaleria a reparar duas vezes o mesmo dano, com o consequente enriquecimento ilegítimo. 36. E com a presente decisão é atribuída ao Recorrido uma indemnização de € 100.000,00 em virtude da sua incapacidade permanente geral, pelo que, no que diz respeito ao dano laboral, há uma cumulação de indemnizações. 37. Assim, a manter-se a decisão recorrida, consubstancia ou traduz um enriquecimento ilegítimo do Recorrido, que dessa forma se vê ressarcido, duplamente, pelos mesmos danos (perda da capacidade de ganho), no foro laboral e no foro civil. 38. Pelas razões expostas, não pode a ora Recorrente conformar-se com o valor de € 100.000,00 arbitrado na douta decisão recorrida, relativamente ao montante devido ao lesado, uma vez que o Recorrido já recebeu da seguradora de trabalho as seguintes quantias:€13.857,17 de incapacidades(absoluta e relativa)temporárias;€ 5.046,36 de pensão anual e vitalícia, referente a IPP de 41,55%, correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho; € 12,00 de deslocações, despesas transporte de assistência clínica. 39. Assim, de modo a salvaguardar os direitos e interesses de todas as partes envolvidas, deverá o valor arbitrado na douta decisão recorrida ser corrigido, de modo que não haja duplicação de indemnizações. 40. Nesta medida, e ressalvando novamente o devido respeito, a douta decisão recorrida extrapola o âmbito de aplicação das normas constantes dos artigos 562.º 564.º e 566.º do Código Civil, na medida em que aplica as referidas normas, indiscriminadamente, olvidando a quantia indemnizatória já recebida pelo Recorrido. 41. Assim, e por toda a ordem de razões já expostas, deverá o douto acórdão ser revogado no que concerne ao total do montante a que a Recorrente foi condenada a título de dano patrimonial futuro, devendo ser descontado o montante recebido pelo Recorrido no âmbito do direito laboral. 42. Também não se conforma a Recorrente com o montante arbitrado de € 100.000,00, porquanto considera o mesmo desajustado e excessivo – face aos danos sofridos pelo Autor e aos valores atualmente aceites pela jurisprudência maioritária. 43. Pelo que é profunda e séria a convicção da recorrente de que a decisão em apreço nos autos configura uma imprecisa/incorrecta interpretação das normas legais constantes dos artigos 483.º, n.º 1, 494.º, 496.º e 566.º todos do Código Civil 44. Entendeu a Relação fixar ao A., a título de dano biológico/ défice funcional permanente de integridade físico-psíquica, o montante de € 100.000,00. 45. O Tribunal a quo extravasou claramente aqueles que são os fatores a ter em conta para fixar o montante indemnizatório a título de dano biológico. 46. Assim, podemos verificar que, para além de exacerbado o valor fixado, o douto Tribunal a quo utiliza os mesmos critérios para a fixação do montante indemnizatório a título de dano biológico e de dano não patrimonial, não fazendo a devida distinção entre os mesmos, o que nos leva para uma duplicação de indemnizações sobre o mesmo dano. 47. Facto este que, deveria influenciar a extensão dos danos não patrimoniais sofridos pelo Autor ou vice-versa. 48. A Recorrente não põe em causa que o Autor tenha sofrido danos patrimoniais e não patrimoniais que, atenta a sua gravidade, são merecedores da tutela do Direito, por todos os fatores que relevam para o cômputo da indemnização e que deverão ser tidos em conta, em conjugação com o “o grau de culpabilidade do agente, a situação económica deste e do lesado e as demais circunstâncias do caso o justifiquem”, temperadas por um juízo de equidade (artigos 494.º e 496.º/3 do CC). 49.O que a ora Recorrente não pode (de todo) aceitar é o valor de € 100.000,00 atribuído pelo Tribunal a quo a título de dano biológico, que se reputa de manifestamente excessivo face aos danos concretamente sofridos pelo Autor e que não têm sustentação na prova que o Tribunal considerou para proferir tal decisão. 50. Sem prejuízo dos progressos efetuados, por contributo doutrinário e aperfeiçoamento jurisprudencial, ainda hoje a principal dificuldade associada ao dano não patrimonial reconduz-se à sua reparação, porquanto apenas valorando o que, em si intrinsecamente considerado, seria insuscetível de quantificação monetária, pode o lesado almejar a composição, ainda que imperfeita e tendencialmente aquém do status quo ante, dos direitos e/ou interesses objeto de violação. 51. Ciente da dificuldade na fixação de valores indemnizatórios a título de danos não patrimoniais, constata-se ainda assim, pela análise jurisprudencial, o dever de, na aplicação dos referidos critérios, obedecer a uma lógica própria, pré-estabelecida, segundo a qual o juízo de equidade deve servir um propósito de equilíbrio, vedando ao julgador a fixação, por recurso aos demais critérios legais enunciados e/ou atendíveis em função das circunstâncias do caso, de um montante desrazoável, seja por defeito (ficando aquém do dano sofrido), seja por excesso (extravasando a função ressarcitória enunciada no artigo 562.º do Código Civil). 52. Julgar segundo a equidade significa que o Tribunal deve atender à necessidade de adequada compensação da vítima sem, com isso, violar o princípio constitucional e legalmente acolhido da proporcionalidade, à luz do qual a restrição, indemnização ou sanção operada deve ser a estritamente necessária (e apenas essa) à salvaguarda dos direitos e/ou interesses ofendidos. 53. Ora, no caso dos autos, como facilmente se constata, o montante fixado pelo tribunal a quo não se coaduna com os critérios que devem ser tidos em consideração aquando da fixação do montante indemnizatório. 54. Por outro lado, tendo sido o acidente dos presentes autos simultaneamente de viação e de trabalho, o Autor já se viu indemnizado a este título no âmbito do processo de acidentes de trabalho, conforme resulta dos factos provados na douta decisão ora recorrida. 55. Com o devido respeito e salvo melhor entendimento, o valor de € 100.000,00 arbitrado pelo Tribunal a quo a este título afigura-se manifestamente excessivo. 56. Concluindo, sempre se dirá que, no caso dos presentes autos, tendo em conta a idade do Autor (50 anos); a esperança de vida laboral ativa do mesmo (de, aproximadamente, 15 anos); e os critérios que a jurisprudência dos Tribunais Superiores vêm acolhendo ao longo dos anos no cálculo da indemnização do dano futuro, no que concerne à perda da capacidade aquisitiva, afigura-se-nos equitativa a indemnização no valor de € 55.000,00 e não mais. 57.Sendo que este valor sempre deveria ser reduzido em 70% por via dos recebidos a título laboral, i.e., a este título, deveria ter sido fixada uma indemnização no valor de € 16.500,00, e não mais, sob pena de violação do âmbito de aplicação das normas constantes dos artigos 473.º, 483.º, n.º 1, 494.º, 496.º, 562.º, 564.º e 566.º, todos do Código Civil. Nesta medida, e por qualquer dos identificados fundamentos, deverá ser dado provimento ao presente recurso de revista, e, consequentemente, ser alterado o valor indemnizatório atribuído ao A., a título de dano biológico, passando a fixar-se € 16.500,00 referentes a 30% da indemnização devida a título de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica. Caso assim não se entenda, sempre deverá ser atribuído ao A. um valor máximo de € 55.000,00 a título de dano biológico, atendendo às lesões de que o mesmo ficou efectivamente a padecer, só assim, se fazendo JUSTIÇA!” 1.5.- Respondeu o autor, no sentido da improcedência do recurso. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. – O objecto do recurso As questões submetidas a revista são as seguintes: A indemnização pelo dano biológico, na vertente do dano patrimonial futuro – se é equitativo o valor de € 100.000,00 arbitrado na Relação; A duplicação de dano - Se deve ser deduzido o valor atribuído no foro laboral. 2.2. – Os factos provados “1. No dia ....04.11 ocorreu um embate entre o veículo matrícula ..-..-RZ e o veículo automóvel de matrícula ..-CX.., e respectivo atrelado, de matrícula SE- .... 2.Por contrato de seguro titulado pela apólice n.º ...35, a ré assumiu a responsabilidade por danos próprios e a terceiros, emergentes da circulação do veículo automóvel, matrícula ..-CX.., e atrelado, matrícula SE-.... 3.O autor, à data do sinistro referido em 1), era o condutor do veículo automóvel, pesado de mercadorias, matrícula ..-..-RZ, ao serviço como motorista, por conta e sob as ordens, direcção e fiscalização da sua Entidade Patronal, a firma I..., Lda., com sede no Lugar de ..., freguesia de ..., concelho de .... 4.Nas circunstâncias referidas em 1) e 3), o veículo RZ circulava na EN ...4, no sentido V.../O..., designadamente ao Km ...89, na freguesia de ..., concelho de ..., dentro do limite de velocidade permitida para o local. 5.Quando se deparou inesperadamente com o veículo automóvel, de matrícula ..-CX.., e respectivo atrelado, de matrícula SE-..., completamente imobilizados e a ocuparem a faixa de rodagem por onde seguia o veículo conduzido pelo autor e ainda a outra faixa de rodagem, sem qualquer pré-sinalização. 6.Quando se deparou inesperadamente com o veículo automóvel, de matrícula ..-CX.., e respectivo atrelado, de matrícula SE-..., completamente imobilizados e a ocuparem a faixa de rodagem por onde seguia o veículo conduzido pelo autor e ainda a outra faixa de rodagem, sem qualquer pré-sinalização. 7.O autor impulsionou o mecanismo de travagem do veículo por si conduzido, mas não conseguiu evitar o embate nesse veículo/atrelado, assim, imobilizados. 8.No local do sinistro, a estrada tem duas faixas de rodagem, com a largura de quatro metros. 9.O embate deu-se na metade direita da faixa de rodagem, considerando o sentido de margem do veículo conduzido pelo autor. 10.O autor ficou com a sua faixa de rodagem completamente obstruída, sem qualquer espaço por onde pudesse passar e evitar dessa forma o embate. 11.A ré declarou perante o autor, a culpa total e única do seu segurado na produção do acidente e a sua exclusiva responsabilidade na reparação dos danos derivados do sinistro. 12.Em 24.04.14, o autor, requereu a notificação judicial avulsa da ré, a ser efectuada através de solicitador de execução, para efeitos de interrupção da prescrição, tendo a ré assinado a respectiva certidão de notificação. 13.O autor foi assistido pelos serviços da Companhia ..., SA., contra a qual correu termos na 3ª Secção de Trabalho - J..., da Instância Central de ..., do Tribunal da Comarca de ..., o Processo de Acidente de Trabalho (fase conciliatória), com o n.º 261/12.2..., no qual foi proferida sentença. 14. No processo referido em 13) foi fixada a IPP do autor em 41,55%, qualificado o sinistro de acidente de trabalho e nesse âmbito atribuídas ao autor as seguintes quantias: € 13.857,17€ de incapacidades (absoluta e relativa) temporárias; € 5.046,36 de pensão anual e vitalícia, referente a IPP de 41,55%, correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho; € 12,00 de deslocações, despesas transporte de assistência clínica. 15. Do sinistro, resultou para o autor fractura- luxação do astragalo esquerdo; foi assistido no CHEDV onde foi operado nesse mesmo dia, tendo feito redução aberta e osteossíntese com parafusos; teve alta em 02.05.11, referenciado para a consulta externa de ortopedia (C...) e para a seguradora de acidente de trabalho. 16.Em16.17.05.11, realizou, no Hospital de ..., TAC do tornozelo esquerdo que mostrou fractura explosiva do colo do astragalo com algum desvio em valgo da cabeça e fractura afundamento da superfície anterior do calcâneo; em 14-10-2011 estava efectuando tratamentos de fisioterapia, mas com muitas queixas, pelo que realizou cintilograma em 21.11.11, que revelou algidistrofia, com envolvimento da subastragalina e da tibiotársica, mas sem sinais de necrose do astrágalo; passou a ser seguido no Hospital da ... (Dr. BB), a partir de 06.03.12, tendo efectuado extracção de 2 parafusos, em 19.03.12; em 27.03.12 voltou à consulta e passou a efectuar penso e, em 17.04.12, apresentava deiscência da cicatriz postero-interna. 17.Em 18.05.12, o autor realizou RM do pé esquerdo que revelava alterações estruturais marcadas do astrágalo, em relação com os antecedentes cirúrgicos, derrame articular de pequeno volume, com espessamento difuso da sinovial, manifestações sequelares de entorse nos planos tecidulares perimaleolares e espessamento e heterogeneidade de sinal do tendão de Aquiles, com características de tendinite e de peritendinite. 18.Esteve internado no Hospital da ... de 04 a 05.06.12 para excisão de cicatriz e do trajecto fistuloso de cicatriz pós-operatória submaleolar interna do pé esquerdo, após injecção de azul de metileno. 19.Em 22.06.12, realizou TAC do pé esquerdo que documentava marcada osteopenia difusa, pseudartrose do colo do astrágalo embora sem sinais de necrose avascular, alterações degenerativas na articulação da subastragalina e do társo médio, manifestações residuais de entorse dos complexos ligamentares perimaleolares (principalmente nos planos internos) e manifestação residual de tendinite/peritendinite do segmento distai do tendão de Aquiles. 20.Em 04.07.13, foi submetido a artrodese do tornozelo esquerdo (artrodese subastragaliana), no Hospital de ..., tendo permanecido internado até 05.07.13. 21.O autor apresenta as seguintes sequelas em virtude e por causa do sinistro: ■ Crânio: cicatriz não dolorosa e não aderente aos planos subjacentes, localizada na região frontal direita, orientada horizontalmente, medindo com 2 cm de comprimento; ■ Membro inferior esquerdo: cicatrizes irregulares, não dolorosas e não aderentes à palpação, uma - orientada verticalmente, localizada no terço distai da face anterior da perna, medindo 9 cm por 2 cm de maiores dimensões; outra cicatriz distrófica, curvilínea de concavidade anterior, passando pela região maleolar, na face externa do tornozelo medindo 12 cm de comprimento; outras três cicatrizes verticais, localizadas no terço distai da face interna da perna e tornozelo com 10 cm por 2 cm de maiores dimensões, respectivamente da superior para a inferior; extensas alterações tróficas cutâneas em redor de todo o terço distai da perna e tornozelo, sugestivas da presença de insuficiência venosa local; calosidade extensa ocupando o bordo externo da planta do pé, medindo 8 cm por 6 cm de maiores dimensões, sugestiva de deformidade no apoio plantar do pé. Apresenta amiotrofia da perna de 1,5 cm, medidos a 22 cm da interlinha articular do joelho e imobilidade da articulação do tornozelo (anquilose) sugestiva de artrodese local; reflexos preservados e sem alterações de sensibilidade; ■ Alterações nas funções neuro-músculo-esqueléticas, com limitação de movimentos do pé esquerdo (artrodese) interferindo com a marcha acima de 500 metros, limitado para se colocar de cócoras, limitado também para realizar marcha apressada ou correr, limitado para fazer pressão com o pé, empurrando objectos, sobretudo de forma repetitiva; ■ Dor ao nível do pé esquerdo, que surge quando se encontra em bipedestação acima de 30 minutos ou limitando a marcha acima de 500 metros, agravado em pisos irregulares ou para ultrapassar desníveis arquitectónicos (rampas ou escadas); ■ Ligeiras dificuldades na realização das actividades de autocuidados no pé esquerdo, lavar e calçar, bem como, em entrar/sair da banheira, resultante da existência de um quadro doloroso e edema no pé esquerdo que o limitam tenuemente nas referidas acções. 22.O autor apresenta labilidade emocional e sinais de ansiedade e angústia,sente-se desgostoso e diminuído fisicamente. 23.Quando apresenta dores, o autor tem dificuldades em dormir. 24.A consolidação médico-legal das lesões ocorreu em 20.09.12, tendo o autor sofrido défice funcional temporário total de 10 dias, défice funcional temporário parcial num período de 535 dias, com repercussão temporária na actividade profissional total de 545 dias. 25.Com os tratamentos e intervenções médicas, o autor sofreu dores, com quantum doloris fixável no grau 5/7. 26.Em virtude do sinistro, o autor ficou a padecer de défice funcional permanente da integridade físico-psíquica fixável em 21 pontos, dano estético permanente fixável no grau 4/7, com repercussão permanente nas actividades desportivas e de lazer fixável no grau 3/7. 27.O autor, à data do sinistro, era motorista de ligeiros de mercadorias na sociedade I..., Lda., cumprindo as seguintes tarefas: informar-se do destino das mercadorias; recepcionar e verificar as guias de transporte que iriam acompanhar as mercadorias; determinar o percurso a efectuar; abastecer o veículo de combustível; executar as operações de carga, arrumação e descarga das mercadorias; efectuar manobras e sinais luminosos necessários à circulação, atendendo ao estado da via e do veículo, às condições meteorológicas e de trânsito, à carga transportada e às regras de sinais de trânsito; descarregar as mercadorias e efectuar a entrega da documentação no respectivo local de destino e receber o comprovativo da mesma; providenciar pelo bom estado de funcionamento do veículo, zelando pela sua manutenção e limpeza. 28.À data do sinistro, o autor auferia um salário base de € 1.161,70, acrescido da quantia de € 98,78 de subsídio de alimentação. 29.O autor continua a exercer as funções de motorista; as sequelas são compatíveis com o exercício da actividade profissional, com limitações e esforços suplementares, designadamente nas operações de carga, arrumação e descargas das mercadorias. 30.Em virtude das sequelas sinistro, encontra-se privado de poder ascender na sua carreira profissional ou de auferir rendimento mais elevado. 31.O autor nasceu em ....10.60, tendo a idade de 50 anos à data da ocorrência do sinistro. 32.O autor mantém a prática de columbofilia, tendo deixado de praticar da mesma forma as actividades de pesca desportiva, caminhadas, tratar do pomar e do jardim. 33.O autor, atentas as sequelas sofridas em virtude e por causa do sinistro, carece da realização de tratamentos periódicos de medicina física e de reabilitação (programa psicoterapêutico), para melhoria das funções neuro-musculo-esqueléticas, incluindo a redução das queixas álgicas, da força muscular e da funcionalidade.” 2.3. – Os factos não provados O autor tem dificuldades em conduzir qualquer tipo de veículos automóveis; O autor carece de canadianas para caminhar; O autor tem necessidade de terceira pessoa para os cuidados básicos da vida diária, no que se refere à higiene pessoal, alimentação e locomoção. 2.4. - A indemnização pelo dano biológico A 1ª instância considerou que o dano biológico abrangia também a redução da capacidade de ganho. Tanto assim que, considerando que o autor estava a receber € 5.046,36 de pensão anual e vitalícia, fixada no processo por acidente de trabalho, correspondente a 70% da redução sofrida na sua capacidade de ganho, a quantia a ser fixada ao autor devia, atento o pedido, corresponder a 30% da de € 100.000, ou seja, € 30.000,006. Porém, a Relação fixou ao autor a indemnização de € 100.000 pelo dano biológico, entendendo que a essa indemnização não se devia proceder ao abatimento dos valores que foram arbitrados no processo laboral. A categoria do chamado “dano biológico” foi-se sedimentando na jurisprudência, e no Ac STJ de 11/1/2024 (proc nº 25713/15), em www dgsi pt, faz-se o seguinte resumo: “A categoria do “dano biológico” (também chamado “dano da saúde”, “dano corporal”) e a categoria, mais abrangente ainda, do “dano existencial” vêm sendo usadas por alguma doutrina com a intenção de superar a dificuldade na identificação dos danos susceptíveis de resultar da ofensa de direitos de personalidade e na distinção entre os vários tipos. Tendo em conta a unidade da pessoa, importando, em qualquer caso, manifestar a percepção crescente dos “multifacetados níveis de protecção que a personalidade humana reclama”, trata-se de um conceito tentativamente englobalizador ou (re)unificador. Segundo os adeptos destas categorias, pondo em causa a rigidez da distinção entre danos patrimoniais e não patrimoniais, a categoria do “dano biológico” visaria conduzir à ampliação do número e do tipo de consequências que o julgador deve ter em consideração no momento de calcular o montante da indemnização e propiciaria as condições para o cálculo de uma indemnização mais justa, uma vez que permitiria compreender que o facto lesivo origina um conjunto de consequências que não são absolutamente autónomas ou dissociáveis e em que se incluem as consequências conhecidas como de natureza não patrimonial bem como de natureza patrimonial futura, não se esgotando, contudo, nestas. Embora tenha tido origem no Direito italiano, esta nova orientação foi bem recebida em Portugal, sendo aplicada, actualmente, por parte da jurisprudência, em particular, quando estão em causa danos decorrentes de acidentes de viação. De acordo com esta jurisprudência, na avaliação destes danos, o julgador deve ponderar os factores mais variados, quais sejam as restrições que o lesado tem de suportar na qualidade da sua vida em virtude das lesões biológicas, a criação ou indução de dependências que afectam o exercício da sua liberdade pessoal, os prejuízos nas suas aptidões familiares ou afectivas, as necessidades especiais dos lesados que sejam pessoas débeis, como os idosos ou as crianças, e quaisquer outros que possam assumir relevância consoante as circunstâncias do caso concreto” Segundo a orientação jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça, a afectação da pessoa do ponto de vista funcional, no que vem sendo qualificado como “dano biológico,” determinante de consequências negativas a nível da sua actividade geral, justifica a indemnização no âmbito do dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial. O dano biológico que emerge da incapacidade geral permanente, de natureza patrimonial, reclama a indemnização por danos patrimoniais futuros, independentemente de o mesmo se repercutir no respectivo rendimento salarial, consubstancia um “dano de esforço,” na medida em que o lesado para desempenhar as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento, necessitará de uma maior actividade e esforço suplementar. (Neste sentido, no plano jurisprudencial, por exemplo, Ac STJ de 16/6/2016 (proc. nº 1364/06), Ac STJ de 5/12/2017 (proc. nº 505/15), Ac STJ de 22/2/2022 (proc nº 1082/19), Ac STJ de 21/4/2022 (proc. nº 96/18), disponíveis em www dgsi.pt). Muito embora as regras gerais do processo indemnizatório, designadamente a “teoria da diferença” se ajustem mais facilmente, à diminuição da capacidade de ganho, o certo é que a incapacidade funcional ou “dano biológico”, numa perspectiva sistémica da teoria geral da indemnização, implica a ressarcibilidade, enquanto dano patrimonial futuro. Para a quantificação deste dano serão convocadas as normas dos arts.564 e 563 nº3 do CC, onde se extrai a legitimação do recurso à equidade (art.4 do CC). Nesta medida, o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística, emergindo, porém, do “facto concreto”, como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um direito de resultado, em que releva a força criativa da jurisprudência, com o imprescindível recurso ao “pensamento tópico” que irá presidir à solução dos concretos problemas da vida. Como é sabido, têm sido vários os critérios utilizados para a quantificação do dano, mas quaisquer tabelas financeiras para o cálculo indemnizatório não são vinculativas, apenas servindo como critério geral de orientação para a determinação equitativa (art.566 nº3 CC), sendo, por isso, de repudiar a utilização pura e simples de critérios mais positivistas, como determinadas fórmulas matemáticas. Neste contexto, para a determinação equitativa do dano patrimonial futuro do lesado, relevam, designadamente, os seguintes tópicos: a) A esperança média de vida. Na verdade, finda a vida activa do lesado por incapacidade permanente não é razoável ficcionar que a vida física desaparece nesse momento ou com elas todas as necessidades, é que atingida a idade da reforma, isso não significa que a pessoa não continue a trabalhar ou simplesmente a viver ainda por muitos anos, como, aliás, é das regras da experiência comum. Por conseguinte, mantendo-se este dano na saúde para além da vida activa, é razoável que, no juízo de equidade sobre o dano patrimonial futuro, se apele à esperança média de vida. Considerando que o Autor nasceu em .../10/1960, tinha 50 anos de idade, à data do acidente, e 31 anos à data da alta (20/9/2012) e tomando-se por referência a esperança média de vida de 80 anos, significa que a esperança média de vida para o Autor, desde a alta, é de pelo menos 29 anos. b) A remuneração auferida pelo Autor, motorista, com um salário base de € 1.161,70, acrescido da quantia de € 98,78 de subsídio de alimentação. c) A taxa média de inflação e a taxa de rentabilidade do capital, baseadas num juízo de previsibilidade. d) A gravidade das lesões, sendo que o Autor ficou com Défice Funcional Permanente da Integridade Físico-Psíquica de 21 pontos a partir da data de consolidação. e) As situações análogas já decididas, como por exemplo, no Ac. STJ de 10/12/2019 (proc. 497/15), no qual para uma lesada de 17 anos que tinha défice permanente da integridade físico-psíquica, não concretamente determinado, mas não inferior a 14,5 pontos nem superior a 21,6 pontos, atribuiu-se a indemnização de € 70 000,00 a título de danos patrimoniais futuros, e no Ac de 1/10/2019 ( proc nº 89/14), em que também para uma incapacidade de 21 pontos, tendo o lesado 42 anos, atribuiu-se uma indemnização de €75.000,00. Neste contexto, valorando todos estes elementos, em juízo de equidade, estimam o dano em € 80.000,00, montante actualizado nesta data. A duplicação de dano - Se deve ser deduzido o valor atribuído no foro laboral: Entende a recorrente que não podem ser cumuladas a indemnização atribuída ao autor, com base no acidente de viação, e a que já lhe foi atribuída em sede de processo de trabalho pela respectiva incapacidade, pois tal implicaria uma cumulação de indemnizações pelo mesmo dano, determinante de um locupletamento injusto à custa do património da recorrente e da entidade patronal, mesmo que a responsabilidade desta última haja sido transferida para a Seguradora, devendo, assim, no seu entender, as duas indemnizações serem complementadas até ao ressarcimento integral do dano causado, motivo pelo qual, sustenta, no cálculo da indemnização devida pelo acidente de viação deve ser descontado o valor já recebido em sede de acidente de trabalho. Ou seja: tendo em conta que a pensão paga ao recorrido se destinava a ressarci-lo integralmente da perda de capacidade de ganho com base na IPP determinada e avaliada com base na Tabela Nacional de Incapacidades por Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais e a desvalorização atribuída a um sinistrado em direito civil contempla, dentro do dano de natureza geral, o dano laboral, entende a recorrente que no cálculo da indemnização devida pelo acidente de viação deve ser descontado o valor já recebido em sede de acidente de trabalho: €13.857,17 de incapacidades (absoluta e relativa) temporárias; € 5.046,36 de pensão anual e vitalícia, referente a IPP de 41,55%, correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho; € 12,00 de deslocações, despesas transporte de assistência clínica. Coloca-se, por isso, a questão de saber se devem ser deduzidos imediatamente ao montante indemnizatório os valores pagos ao lesado pelo acidente laboral. Quando o acidente é simultaneamente de viação e de trabalho, embora o principal responsável seja o lesante, o lesado pode exigir de qualquer dos responsáveis a reparação do dano, mas é ponto assente que as duas indemnizações se completam, sem sobreposição, de molde a ressarci-lo do total dos prejuízos, tendo a faculdade de optar pela maior delas. Em acidente simultaneamente de viação e de trabalho cada uma das indemnizações assenta em critérios distintos e têm funções e objectivos próprios, e por isso se apresentam como complementares, a jurisprudência vem entendendo que “A indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso do autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente” ( cf., Ac STJ de 11/12/2012 ( proc nº 40/08), Ac STJ de 12/7/2018 ( proc nº 1842/15), Ac STJ 5/5/2020 ( proc nº 30/11), Ac STJ de 30/4/2020 ( proc nº 6918/16), Ac STJ de 17/11/2021 ( proc nº 3496/16), Ac STJ de 7/5/2024 ( proc nº 807/18 ), disponíveis em www dgsi.pt). Por isso, “São de considerar como danos diferentes o que decorre da perda de rendimentos salariais, associado ao grau de incapacidade laboral fixado no processo de acidente de trabalho e compensado pela atribuição de certo capital de remição, e o dano biológico decorrente das sequelas incapacitantes do lesado que – embora não determinem perda de rendimento laboral - envolvem restrições acentuadas à capacidade do sinistrado, implicando esforços acrescidos, quer para a realização das tarefas profissionais, quer para as actividades da vida pessoal e corrente” ( Ac STJ de 11/12/2012) e “A indemnização devida ao lesado/sinistrado a título de perda da sua capacidade de ganho, mesmo no caso do autor ter optado pela indemnização arbitrada em sede de acidente de trabalho, não contempla a compensação do dano biológico, consubstanciado na diminuição somático-psíquica e funcional do lesado, com substancial e notória repercussão na sua vida pessoal e profissional, porquanto estamos perante dois danos de natureza diferente” ( Ac STJ de 12/7/2018 ). Procede parcialmente a revista, fixando-se a indemnização pelo dano biológico, na vertente patrimonial futura, no valor de € 80.000,00, actualizado nesta data, sem a dedução das importâncias atribuídas no foro laboral. 2.5. – Síntese conclusiva Em acidente simultaneamente de viação e de trabalho cada uma das indemnizações assenta em critérios distintos e têm funções e objectivos próprios, pelo que a indemnização ao lesado pela perda da capacidade de ganho fixada em sede laboral não abrange a indemnização atribuída pelo dano biológico consubstanciado num “dano de esforço,” com repercussão na vida pessoal, inexistindo, por isso, duplicação de danos. III – DECISÃO Pelo exposto, decidem: 1) Julgar parcialmente procedente a revista e revogando o acórdão, na parte impugnada, condenam a Ré a pagar ao Autor, a título do dano biológico, na vertente patrimonial, a indemnização no valor de € 80.000,00, actualizado nesta data, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data do presente acórdão. 2) Condenar Autor e Réu na proporção do decaimento. Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 17 de Setembro de 2024. Jorge Arcanjo (Relator por vencimento) António Magalhães (vencido) Manuel Aguiar Pereira Voto de Vencido O autor pediu a condenação da ré no pagamento, entre outras, da quantia de € 43.254,40, invocando que ficou por indemnizar 30% da redução sofrida pela incapacidade geral de ganho, em sede laboral, que apenas atendeu a 70% da retribuição (cfr. art. 44 da petição). Com efeito, o autor foi indemnizado pela seguradora de trabalho, para além de € 13.857,17 de incapacidades (absoluta e relativa) temporárias e € 12,00 de despesas de transporte, mediante o pagamento de € 5.046,36 de pensão anual e vitalícia, referente a IPP de 41,55%, correspondente a 70% da redução sofrida na capacidade geral de ganho. Não se questiona que a ré não tem o direito de se desvincular unilateralmente do pagamento dessas quantias. A resposta deste Supremo a esta questão tem sido negativa, sem prejuízo de entender que as indemnizações consequentes ao acidente de viação e ao sinistro laboral não são cumuláveis, em relação ao mesmo dano (patrimonial) concreto, mas antes complementares. Na realidade, o Supremo tem entendido que o responsável principal é o responsável civil e que a entidade patronal ou a respectiva seguradora apenas são responsáveis transitórios, não assistindo, por isso, ao responsável do acidente de viação o direito de se desvincular unilateralmente de uma parcela da indemnização que tenha sido assegurada transitoriamente pelos responsáveis laborais (cfr., v.g., Ac. STJ de 11.12.2012, proc. 40/08.1TBMMV.C1.S1). Sucede, porém, que, no caso concreto, o autor reclama apenas “o remanescente dos 30% da redução sofrida pela incapacidade geral de ganho e não suportado pela Companhia ..., SA., no valor total de € 43,254,40 … (calculado segundo a seguinte fórmula: retribuição anual ilíquida à data do acidente de € 17.350,40€ x 30% x incapacidade permanente parcial de 41,55% x 20 anos (correspondente a 14 meses por cada ano)” (art. 44 da petição). Isto é: pede uma indemnização adicional à emergente do acidente de trabalho correspondente a 30% da retribuição que não foi considerada no processo de acidente de trabalho para o cálculo da pensão e das indemnizações temporárias. Ora, se é assim, “por força do princípio do dispositivo- que implica a congruência entre a petição e a sentença” não terá sentido atribuir ao lesado uma indemnização global que compreenda ou abranja os danos já ressarcidos no processo de acidente de trabalho (cfr. o citado Acórdão de 11.12.2012). É certo que a indemnização pelo dano biológico visa compensar o lesado pelas limitações funcionais que se reflectem na maior penosidade e esforço no exercício da actividade diária e na privação de futuras oportunidades profissionais. Mas visa compensar, também, a perda de capacidade de ganho (cfr. Ac. STJ de 17.11.2021, proc. 1456/15.2T8FNC.L1.S1 e de 6.12.2017, proc. 1509/13.1TVLSB.L1.S1). Ora, se a indemnização por incapacidade temporária se destina a “compensar o sinistrado pela perda ou redução da capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho” e a pensão por incapacidade permanente se destina, também, a ”compensar o sinistrado pela perda ou redução permanente da sua capacidade de trabalho ou de ganho resultante de acidente de trabalho” (art. 48º, nºs 1 e 2 da Lei nº 98/2009, de 9.9), então as indemnizações não se podem cumular relativamente ao dano patrimonial concreto (redução da capacidade de ganho) e ir-se além do que foi pedido. Como assim, à indemnização de € 80.000 teria abatido o recebido pelo autor a título de indemnizações por incapacidades temporárias de €13,857,17 e ainda o que recebeu a título de pensão anual e vitalícia até à data da petição e/ou o que recebeu a título de capital de remição (art. 75º da Lei nº 98/2009). Concederia, pois, parcialmente, a revista, também nesta vertente. * Lisboa, 17 de Setembro de 2024 António Magalhães |