Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
1334/18.3T8ALM.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
LESADO
CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO
DANO BIOLÓGICO
DANOS NÃO PATRIMONIAIS
PERDA DA CAPACIDADE DE GANHO
DANOS PATRIMONIAIS
DANOS FUTUROS
MORTE
Data do Acordão: 09/19/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA
Sumário :
Se o lesado num acidente de viação falecer por razões alheias a esse facto cinco anos depois da sua ocorrência, a indemnização pelo dano biológico deve ser calculada tendo em consideração o tempo efectivo de vida e não a esperança média vida (ou de vida activa).
Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

AA, falecido no decurso da acção e substituído pelos sucessores habilitados BB, viúva e os filhos CC e DD, instaurou acção declarativa com processo comum contra Seguradoras Unidas, S.A., pedindo a condenação da Ré:

a. a pagar ao autor a quantia de 2 464 726,06 euros, sendo 31 062,48 euros a título de despesas que suportou com tratamentos, 420 000,00 euros a título de tratamentos e cuidados de saúde e do apoio de terceira pessoa que se prolongarão durante, pelo menos, 10 anos, 1 550 194,58 euros a título de indemnização de dano patrimonial futuro decorrente da impossibilidade de continuar a auferir rendimentos do trabalho , 250 000,00 euros a título de indemnização pelo dano biológico e 250 000,00 euros a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, tudo acrescido do pagamento de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.

b. Ser a ré condenada a pagar ao autor a quantia a remeter para liquidação referente a danos futuros e não contemplados no pedido em a).

Para tanto alegou, em síntese, que quando efectuava a travessia da faixa de rodagem, na passadeira de peões, foi atropelado pelo condutor do veículo seguro na ré, que conduzia distraído e sob o efeito de canabinóides, e em consequência sofreu lesões neurológicas irreversíveis e uma incapacidade permanente de 95% , o que determinou os danos cuja ressarcimento reclama.

A Ré contestou, impugnando a factualidade invocada pelo Autor, sustentando ter sido aquele que deu causa ao atropelamento.

Foi deferida a ampliação do pedido inicial em €43.377,59, fundada em despesas de tratamento .

Foi igualmente deferida a ampliação do pedido inicial em €589 341,13, fundada em despesas atinentes a vários tratamentos, medicação, consultas, transporte e a título de necessidade de ajuda permanente de terceira pessoa.


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Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença julgando a acção parcialmente procedente nos seguintes termos :

a. condenar a Ré a pagar por danos emergentes a quantia de €161.068,04, acrescida de juros contabilizados desde a citação, à taxa legal;

b. condenar a Ré a pagar por dano patrimonial futuro na vertente de lucros cessantes a quantia de €288.426,03, acrescida de juros contabilizados desde a citação, à taxa legal.

c. condenar a Ré a pagar por danos não patrimoniais quantia de €210.000,00, acrescida de juros, à taxa legal, contabilizados desde a data da sentença.

d. O que totaliza €659.494,07 que reduzido de 1/3 ascende a 439.662,71€ (quatrocentos e trinta e nove mil seiscentos e sessenta e dois euros e setenta e um cêntimos), absolvendo a Ré do demais peticionado.


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Da sentença apelaram ambas as partes, os Autores visando a subida da indemnização para o valor global de €1.033.590,56 e a Ré pugnando pelo abaixamento dos valores indemnizatórios.

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A Relação de Lisboa julgou os recursos parcialmente procedentes, revogou a sentença em parte, condenando a Ré a pagar aos Autores os seguintes montantes indemnizatórios:

€ 182.913,61 por danos emergentes, acrescida de juros de mora, contabilizados desde a citação, à taxa legal;

€ 250.073,96, a título de dano biológico, incluindo “a vertente patrimonial de perda de capacidade de ganho”, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde a data da sentença;

€210.000,00 a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros de mora, à taxa legal, contabilizados desde a data da sentença, nesta parte confirmado a sentença recorrida.


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Ainda inconformada, a Ré Generali Seguros SA, interpôs recurso de revista, tendo concluído as suas alegações do seguinte modo:

1. As questões objecto do presente recurso são os valores indemnizatórios

arbitrados em sede de dano biológico na vertente não patrimonial e de dano não patrimonial que, no entender da Recorrente, atenta a matéria de facto dada como provada e os critérios legais que presidente à respectiva fixação, se afiguram excessivos.

2. Salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo podia e devia ter ponderado e levado em linha de conta o decesso do Autor na pendência dos autos na determinação do valor indemnizatório devido para compensação do dano biológico na vertente não patrimonial.

3. O sinistro ocorreu em ........2017 – 2.1.1 da matéria de facto provada - o Autor faleceu em ........2022 – 2.1.68 da matéria de facto provada – pelo que entre estas duas datas decorreram cerca de 5 anos.

4. Deve ser apenas em relação a este período temporal e não a qualquer outro que,

por mera estimativa, entenda considerar-se, que deve ser calculada a indemnização devida.

5. Para estimar o impacto das lesões sofridas nas diversas dimensões do desenvolvimento humano, não é indiferente considerar a idade à data do acidente e estimar uma esperança de vida potencial, ou saber e estar provado, como é o caso dos presente autos, que o Autor apenas sobreviveu 5 anos ao acidente sofrido.

6. Necessário seria que o Tribunal a quo, à semelhança do que fez para os lucros cessantes, tivesse levado em conta o decesso do Autor na determinação da indemnização pelo dano biológico na vertente não patrimonial, o que não fez.

7. Ao contrário do que resulta das disposições conjugadas do disposto nos artigos 494.º e 499.º do Código Civil, na fixação do montante indemnizatório para o dano biológico na vertente não patrimonial, o Tribunal a quo não ponderou o grau de culpabilidade do agente.

8. A ora Recorrente entende que o valor indemnizatório do dano biológico na vertente não patrimonial mais justo, equilibrado e conforme, quer aos factos provados, quer às normas legais aplicáveis na respectiva determinação é de € 100.000,00 (cem mil euros).

9. O douto acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por douto acórdão que, no tocante ao valor indemnizatório do dano biológico na vertente não patrimonial, reduza a indemnização fixada ao montante de € 100.000,00 (cem mil euros), com as legais consequências.

10. Também no tocante à fixação dos danos não patrimoniais, o Tribunal a quo olvidou não só o facto de o Autor ter vindo a falecer na pendência do processo, como o estado de “consciência mínima” em que o mesmo, infelizmente, ficou na sequência do acidente, não tendo sido, sequer, possível apurar se tinha noção da situação em que se encontrava.

11. Ainda que trágicas e muito graves, com grande impacto, também, na pessoa dos familiares e amigos, estas duas circunstâncias reduzem, necessariamente, a intensidade dos danos de natureza não patrimonial do próprio Autor, o que podia e devia ter sido ponderado pelo Tribunal a quo.

12. O douto acórdão recorrido deve ser revogado e substituído por douto acórdão

que, no tocante ao valor indemnizatório dos danos não patrimoniais, reduza a indemnização fixada ao montante de € 100.000,00 (cem mil euros), o que se requer, com as legais consequências.

13. A douta decisão recorrida viola, entre outras normas e princípios de direito, o disposto nos artigos 494.º, 496.º, n.ºs 1 e 3, 499.º e 566.º, todos do Código Civil.

Contra alegou a Autora BB no sentido da improcedência do recurso e a confirmação do acórdão recorrido.


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Objecto do recurso:

Saber se o quantum indemnizatório fixado a título de dano biológico, na vertente não patrimonial, e o valor da indemnização por danos não patrimoniais se mostram equitativamente fixados à luz do facto superveniente da morte do primitivo autor/sinistrado, cindo anos após o acidente.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.


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Fundamentação.

1. No dia ... de ... de 2017, cerca das 19h25m, na Avenida ..., na União das freguesias ...concelho de ..., em frente à superfície comercial denominada "G... ....", ocorreu um acidente de viação em que foram intervenientes o veículo automóvel ligeiro de marca Renault, modelo "Mégane", do ano de 2013, com a matrícula ..-SF-.. e o autor enquanto peão.

2. Nesse local a artéria é constituída por duas vias, uma para cada sentido de trânsito, sem separador central.

3. O veículo automóvel era conduzido por EE, circulando no Sentido Norte-Sul, direcção A...-S..., (alínea C) dos factos provados) 2.1.4.

4. A velocidade máxima permitida no local era de 50Km/hora.

5. O autor foi colhido pelo veículo automóvel e ficou gravemente ferido, tendo comparecido no local quatro elementos da corporação de bombeiros de ..., dois elementos dos Bombeiros Voluntários de ..., um médico e um enfermeiro do Hospital ....

6. Estes dois últimos prestaram os primeiros socorros ao autor, que foi transportado de urgência para o Hospital .... (alínea F) dos factos provados)

7. No local compareceu, ainda, a Polícia de Segurança Pública de ..., que lavrou a participação do sinistro.

8. Ao teste de detecção de substâncias psicotrópicas efectuado no local, o condutor do veículo ligeiro acusou a presença de canabinóides, na quantidade de 2,7 ng/ml.

9. A responsabilidade civil inerente à circulação do veículo automóvel com a matrícula ..-SF-.. encontrava-se, à data do sinistro, transferida para a ré através de seguro titulado pela apólice n° .......87.

10. O autor nasceu no dia ... de ... de 1969 e é casado com BB.

11. O autor efectuava a travessia de peões da faixa de rodagem referida na alínea A), no local sinalizado para o efeito.

12. O mesmo não viu o autor e foi colher este, na passadeira.

13. O embate deu-se entre a frente do automóvel, lado direito do veículo (atento o sentido deste) e o corpo do autor, tendo este sido projectado contra o pára-brisas e, de seguida, para o solo, onde embateu com a cabeça.

14. No momento desse embate o tempo apresentava-se bom e o local tem boa visibilidade.

15. Esses semáforos dispõem de uma botoneira destinada a ser accionada pelos peões que pretendam atravessar a via.

16. O autor foi colhido, do lado esquerdo do seu corpo, na zona da perna, braço e cabeça, pela dianteira direita do automóvel.

17. O autor ficou de imediato internado no Hospital ..., tendo dado entrada nessa instituição, para a sala de reanimação, com um nível de consciência de 7 (sete) na escala de Glasgow.

18. O mesmo apresentava traumatismo crânio-encefálico, fractura do membro superior esquerdo e fractura do membro inferior esquerdo, vomitando abundantemente.

19. Apresentava pupilas iso/iso, sem resposta verbal ou motora, tendo sido sedado.

20. Foi encaminhado para o bloco operatório, tendo efectuado no próprio dia, uma intervenção cirúrgica - craniotomia descompressiva esquerda com drenagem de

hematoma subdural agudo - e sido imobilizados os membros fracturados.

21. Sofreu novas intervenções cirúrgicas nos dias 1 de Março, 18 de Março, 25 de Março e 7 de Abril de 2017.

22. Em 23 de Maio de 2017 mantinha-se internado no Hospital ..., a aguardar colocação na rede de cuidados continuados e com quadro clínico do ponto de vista neurológico sem recuperação.

23. Nunca mais voltou a falar ou a mover-se, estando actualmente (à data da instauração da acção) internado na Clínica ....

24. Em 30 de Junho de 2017 a Junta Médica do Ministério da Saúde atribui-lhe uma incapacidade de 95% (noventa e cinco por cento).

25. O autor encontra-se a efectuar, na clínica mencionada no art° 23°, um programa intensivo de reabilitação com o custo mensal de Euros 6.375,00 (seis mil trezentos e setenta e cinco euros), tendo já despendido, de Outubro de 2017 a Fevereiro de 2018, a importância de 12.580.50 €.

26. O autor continua em estado mínimo de consciência possível, mostrando-se aconselhável a reabilitação neurológica.

27. Em virtude do seu estado clínico, o autor necessitará para sempre de medicação, fraldas, cuidados permanentes de saúde e de 3a pessoa, nomeadamente de fisioterapia, psicomotricidade, terapia ocupacional, terapia da fala, neuropsicologia e de internamento em instituição para prestação de cuidados de saúde permanentes, o que demanda um valor mensal não inferior a 3.500,00 € (três mil e quinhentos euros).

28. O autor tem dois filhos de 24 e 21 anos de idade, ainda estudantes e a sua esposa é doméstica.

29. Vivem todos na mesma residência, salvo o requerente que trabalhava no estrangeiro.

30. O autor era o único elemento do agregado familiar a exercer uma actividade remunerada.

31. O autor era trabalhador dependente da empresa "B...... ......" com a categoria profissional de ..., do que auferia, mensalmente a retribuição de 751,47 Kwanzas (equivalente de acordo com os recibos de vencimento a 1.014,67 USD).

32. Após o acidente o autor nunca mais auferiu qualquer rendimento do trabalho.

33. O mesmo encontra-se em incapacidade total e absoluta desde o sinistro, estando afectado de uma incapacidade parcial permanente de 95% (noventa e cinco por cento).

34. O autor apresenta cicatrizes nos membros inferiores.

35. Como intercorrências do internamento o autor sofreu pneumonia pseudomonas aeruginosa.

36. O mesmo está completamente dependente de terceiros para todos os actos da vida diária.

37. Antes do sinistro o autor tinha com uma vida estável e muita estima pelos filhos.

38. Entre Fevereiro e Julho de 2018, o autor manteve-se internado na Clínica ..., a título dos 5 programas de tratamentos de recuperação e consultas de naturopatia/homeopatia, tendo despendido €26.694,48.

39. A mulher do autor procurou outro tipo de tratamentos para o autor, tendo este sido consultado em consulta de acupunctura na clínica de a..., Lda., e uma consulta de serviços especiais de neurofisiologia na Clínica ... ..., de tratamentos quando este ainda estava internado na clínica do ..., nas quais o autor despendeu a quantia de €490,52.

40. Em Julho de 2018, o autor apresentava sequelas de traumatismo craniano severo, estado de consciência mínimo, com respostas na sua maioria espontâneas, mas com carácter reflexivo repetido, completa ausência de funções nervosas superiores, dupla hemiparesia espática com tono muscular aumentando nas extremidades e no pescoço, que mantém numa postura hipertónica permanente, sem resposta verbal, responde a ordens simples com movimento de abrir e fechar os olhos, apresenta momentos de maior reactividade dando a entender estar com compreensão activa respondendo assertivamente sim ou não a perguntas simples, piscando os olhos uma vez para não e duas vezes para sim.

41. Mantendo nessa data dificuldade de seguimento ocular de estímulos e ausência de resposta emotiva primária perante estímulos de referência emocional.

42. Verificaram-se alterações relacionadas com a saúde intra-oral, ao nível da mucosa das gengivas, língua, palato duro e bochechas, por défices de hidratação e aumento da reactividade resultando em contracção da musculatura oro-facial.

43. O autor apresenta ainda aumento significativo do tono ao nível da musculatura dos lábios, língua, mentoniano, perioral, bucinator e zigomáticos e não tem capacidade de realização de praxias bucofaxiais activas.

44. As contracções involuntárias são frequentes, o que dificulta a normalização do tono oro-facial, não realiza praxias activas da mandíbula, lábios e língua.

45. As contracções involuntárias são frequentes, o que dificulta a normalização do tono oro-facial, não realiza praxias activas da mandíbula, lábios e língua.

46. O varrimento ocular e o estabelecimento e manutenção do contacto ocular directo é inexistente.

47. Apesar de estar muito reactivo a estímulos externos por aumento do tono, é possível posicionar os membros inferiores de forma correcta, embora por períodos curtos.

48. Os membros superiores mobilizam-se com alguma dificuldade, mas têm uma resposta muito positiva quando se aplica acupunctura, diminuindo de imediato o tono e permitindo uma mobilização mais facilitada.

49. Ao nível da cervical verifica-se muita tensão com rotação para a direita, mostrando igualmente forte diminuição quando se aplicou acupunctura.

50. O autor apresenta uma escara de grau I na zona do cóccix.

51. O autor necessita de continuar com a reabilitação neurológica, estimulação neurosensorial e cognitiva para promoção do nível de consciência.

52. Necessitando de um programa de reabilitação constituído por consulta de Neuropsicologia. E actos médicos de reabilitação: fisioterapia; hidroterapia; terapia da fala; terapia ocupacional; massagem e acupunctura. E actos de enfermagem e nutrição.

53. Estando o autor a suportar desde ...de 2018, por estes tratamentos, a quantia mensal de €12.000,00.

54. E em transporte da sua residência na ... para a Fundação A... em A...-A..., entre 21 de Agosto de 2018 e 12 de Setembro de 2018, o autor despendeu a quantia de €1.260,00.

55. E com serviço de ambulância, no transporte e auxílio a subir e descer as escadas de acesso ao domicílio e quando os familiares não o podem fazer, despendeu 268,40€.

56. Em medicação o autor, desde a propositura da acção até 4 de Setembro de 2018, autor despendeu 1.641,59€.

57. Dormindo o autor na sua casa, necessitou de uma cama eléctrica e um colchão, que adquiriu em 22 de Julho de 2018, pelo preço de €1.121,00.

58. O autor tem suportado, a título de medicação, a quantia de 2.448,14€ .

59. Com aquisição de diversos objectos de adaptação à condição do A. (paralisia total), como sejam elevadores, pensos próprios, fraldas, órtotese, esponjas, toalhas, toalhitas, papel, cremes, cinto, cadeira de rodas, cadeira, apoio de cabeça, resguardos, colete de tronco, veículo automóvel próprio com entrada e lugar adaptado da marca Ford modelo Trouneo Connect Titanium 1.5 Tdci, plataforma de mobilidade da marca Stannah Curve, e cadeira especial com verticalização eléctrica até à presente data o A. despendeu a quantia de 49.760,71 €.

60. Com deslocações em táxi aos mais variados tipos de tratamentos e consultas, designadamente na Clínica T.... ......., consequentes das lesões sofridas no acidente, até à presente data o autor despendeu a quantia de 11.821.50€.

61. Com consultas, exames, serviços de acessibilidade e de transporte, tratamentos de fisioterapia, acupunctura, consequentes do acidente, até à presente data, o autor despendeu a quantia de 4.713,28€.

62. Na Clínica T.... ....... ........... o autor completou os 6 meses de tratamentos prescritos, despendendo para o efeito, por 5 tratamentos ainda não reclamados, a quantia de 60.000,00€.

63. Após aquele programa de tratamentos o autor iniciou ainda naquela clínica um outro programa consistente em neuropsicologia, fisioterapia, hidroterapia, terapia da fala, terapia ocupacional, medicina tradicional chinesa e fitoterapia, pelo qual despendeu a quantia de 1.000,00€.

64. O autor necessita também de uma cadeira especial com verticalização eléctrica e para melhor mobilidade no valor de 3.222,40€ .

65. O autor está totalmente dependente de terceiros para todas as actividades da vida diária, com necessidade de uso de fralda por incontinência urinária e fecal.

66. Esse acompanhamento é necessário 24 horas por dia até ao resto da vida do autor, que tem sido levado a cabo por familiares, muito embora dado a naturalmente sua vida e não podem estar sempre com aquele.

67. Actualmente o autor está a fazer fisioterapia 3 vezes por semana no domicílio com o fisioterapeuta FF.

68. O autor faleceu no dia ... de ... de 2022.


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O direito.

Na revista, não se coloca a questão da definição da culpa no produção do acidente que vitimou o primitivo Autor, estando definitivamente decidido não ser possível atribuir a culpa ao condutor do veículo ou ao peão em face da matéria de facto provada, devendo a questão ser analisada sob o prisma da responsabilidade pelo risco (art. 503º, nº1, do Código Civil). Com a diferença de a 1ª instância ter repartido a responsabilidade pelo Autor/sinistrado e pelo condutor do veículo, na proporção de 1/3 e 2/3 respectivamente, e o acórdão recorrido, alterando a sentença nesta parte, ter considerado que o risco deve correr integralmente pelo condutor do veículo segurado na Ré.

A Recorrente não impugna este segmento decisório, pelo que não há que conhecer do mesmo, sendo, pois, questão decidida.

Em causa estão apenas valores indemnizatórios fixados no acórdão recorrido a título de dano biológico, na vertente não patrimonial, e pelos danos não patrimoniais, sustentando a Recorrente que os mesmos não reflectem a circunstância do sinistrado ter falecido cinco anos após o acidente, pelo que devem ser objecto de redução, nos dois casos, para a quantia de €100.000,00.

Vejamos.

É consensual na jurisprudência do STJ que o chamado dano biológico, que emerge da incapacidade geral permanente, de natureza patrimonial, reclama a indemnização por danos patrimoniais futuros, independentemente de o mesmo se repercutir no rendimento salarial, consubstanciando um “dano de esforço”, na medida em que o lesado para desempenhar as mesmas tarefas e obter o mesmo rendimento, necessitará de maior actividade e esforço suplementar. (Neste sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 10/10/2012, (p. nº 632/2001.G1.S1), de 19/02/2015 (p. nº 99/12), de 14/12/2016 (p. nº 37/13), de 21.01.2021 (p. 6705/14), de 21/04/2022 (p. nº 96/18), disponíveis em www.dgsi.pt).

A afectação do lesado no plano funcional, no que vem sendo qualificado como dano biológico, com repercussão negativa a nível da sua actividade geral e na sua profissão habitual, justifica a indemnização no dano patrimonial, para além da valoração que se imponha a título de dano não patrimonial, conforme jurisprudência prevalecente. (cf. acórdão do STJ de 09.05.2023, P. 7509/19).

Para a determinação equitativa do dano patrimonial futuro do lesado (art. 566º, nº3 do CCivil), utilizam-se habitualmente os seguintes critérios orientadores: a esperança média de vida, e não a idade da reforma por ser um dano na saúde que se prolonga para além da vida activa, a previsível evolução profissional e os reflexos a nível remuneratório, o défice funcional permanente de integridade físico-psíquico, os esforços acrescidos que este terá de desenvolver para exercer a sua actividade profissional e ainda todas as limitações que irá sentir quer na realização de actividades de lazer quer no dia a dia.

O caso presente.

O acidente que vitimou o Autor ocorreu no dia .../.../2017.

O Autor tinha à data do acidente 49 anos.

Sofreu as gravíssimas lesões que a matéria de facto evidencia, tendo sido sujeito a quatro intervenções cirúrgicas entre o dia do acidente e ... de Abril do mesmo ano, e ficou afectado de uma IPP de 95%, não mais falou ou se moveu, vindo a falecer no dia .../.../2022.

O acórdão recorrido, ao valorar o dano patrimonial futuro, concretamente a indemnização a atribuir pela perda de capacidade de ganho ponderou a circunstância do falecimento do Autor motivo por que não considerou a esperança de vida de 28,8 anos, mas a “correspondente à realidade”, e fixou a indemnização de €50.0773,96, para “compensação da vertente patrimonial do dano biológico”.

Considerou ainda dever indemnizar com a quantia €200.000,00 “o dano biológico na vertente que não é reconduzível ao lucro cessante correspondente à perda da capacidade de ganho decorrente da incapacidade para o trabalho que adveio ao Autor”, tendo ponderado para o efeito:

Ora tendo em conta a indesmentível gravidade do dano biológico, a idade do Autor - 49 anos - quando sofreu essas lesões , a decorrente impossibilidade do mesmo em consequência destas fruir das dimensões intelectual, afectiva, sexual, de parentalidade e interacção social, e de actividades lúdicas e de desenvolvimento pessoa, realizando em pleno o seu potencial enquanto ser humano, afigura-se adequado fixar para o efeito a quantia de 200 000,00 euros, totalizando assim a indemnização pelo dano biológico o valor global de 250 073,96 euros.”

Contra este entendimento insurge-se a Recorrente e com razão segundo nos parece.

No cálculo da indemnização por dano biológico um dos factores a ter em conta é a esperança média de vida do lesado.

Assim se decidiu no acórdão do STJ de 10.11.2022, P. 4961/16, www.dgsi.pt, “a indemnização por dano biológico deve ser calculada tendo em consideração o tempo efectivo de vida e não a esperança média de vida, ou de vida activa”.

No mesmo sentido, o Acórdão do STJ de 05.07.2007, P.07 A1818 (Nuno Cameira), assim sumariado:

Se o lesado num acidente de viação falecer por razões alheias a esse facto cinco anos depois da sua ocorrência, a indemnização por danos patrimoniais futuros decorrentes da incapacidade parcial de 30% de que ficou afectado não deve ser calculada tendo em consideração a esperança média vida (ou de vida activa).

Haverá que necessariamente atender, em tal caso, ao facto da morte entretanto sobrevinda, quer por força do art. 663º, nºs 1 e 2 do CPC (…), quer em função do disposto no art. 564º, nº2 do Código Civil, que apenas consente a reparação dos danos futuros previsíveis.”

Escreveu-se na fundamentação do aresto:

“(…) o factor de maior contingência a tomar em consideração no cálculo a efectuar – a esperança média de vida – deixou de o ser a partir a partir do momento em que, por razões alheias ao acidente ajuizado, faleceu cinco anos mais tarde. Perante este dado, torna-se óbvio que os danos futuros decorrentes da IPP de 30% de ficou a padecer por virtude do acidente não devem ser quantificados com referência ao que poderia ter sido, mas na realidade não foi, o seu tempo de vida física. Há que computá-los considerando tão somente o período de cinco anos incompletos. Se não se proceder dessa forma (…) dar-se-á cobertura a uma situação de verdadeiro enriquecimento sem causa com origem na atribuição de uma indemnização por danos cuja previsibilidade, exigida pelo art. 564º, nº2, o falecimento do lesado tornou impossível ou, se se quiser, de todo anulou.”

Pois bem.

A circunstância do Autor ter vivido apenas cinco anos após o acidente, que o acórdão recorrido considerou relevante para a valoração da indemnização pela “compensação da vertente patrimonial do dano biológico” vale igualmente para a indemnização pelo dano biológico, enquanto afectação do sinistrado com consequências negativas da sua actividade geral. Na dificílima tarefa de encontrar um valor justo, equitativo e proporcional designadamente em face dos valores indemnizatórios que se colhem na jurisprudência mais recente do STJ em casos com alguma semelhança, e não há muitos atenta a extrema gravidade da situação em que ficou o Autor, afigura-se-nos equilibrado o valor de €100.000,00 sugerido pela Recorrente.

A Recorrente pretende ainda e com o mesmo fundamento, a redução da indemnização pelos danos não patrimoniais para a quantia de €100.000,00.

A decisão que fixou a indemnização a título de dano não patrimonial não é passível de revista por se verificar nesta parte uma situação de dupla conforme (art. 671º, nº3 do CPC): a sentença atribuiu a este título a indemnização de €210.000,00, valor que o acórdão recorrido confirmou.

Ora conforme jurisprudência uniformizada pelo AUJ nº 7/2022 (DR, 1ª série, de 18.10.2022), “em acção de responsabilidade civil extracontratual fundada em facto ilícito, a conformidade decisória que caracteriza a dupla conforme impeditiva da revista, nos termos do art. 671º, nº3, do Código de Processo Civil, avaliada em função do benefício que o apelante retirou do acórdão da Relação é apreciada separadamente, para cada segmente decisório e cindível em que a pretensão indemnizatória global se encontra decomposta.”

Termos em que procede em parte a revista.

Decisão.

Pelo exposto, na parcial procedência da revista, revoga-se o acórdão recorrido na parte em que condenou a Ré a pagar aos Autores a quantia de €250.073,96 a título de indemnização por dano biológico/perda de capacidade de ganho, fixando-se a indemnização a este título na quantia de €150.073,96 (cento e cinquenta mil setenta e três euros e noventa e seis cêntimos), mantendo-se o acórdão recorrido quanto ao mais.

Custas por Recorrente e Recorridos na medida do decaimento.

Lisboa, 19.09.2024

Ferreira Lopes (relator)

Maria de Deus Correia

Nuno Manuel Pinto Oliveira