Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1ª SECÇÃO | ||
Relator: | ANTÓNIO MAGALHÃES | ||
Descritores: | ANULAÇÃO DE TESTAMENTO TESTAMENTO HERDEIRO INCAPACIDADE ACIDENTAL REQUISITOS TESTADOR ÓNUS DA PROVA MATÉRIA DE FACTO BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO | ||
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Data do Acordão: | 10/01/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
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Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | CONCEDIDA PARCIALMENTE A REVISTA; BAIXA DOS AUTOS À 1ª INSTÂNCIA | ||
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Sumário : | I. A exigência da ampliação do objecto do recurso não se mostra necessária nos casos a que se reporta o artigo 665º, ou seja, quando a 1ª instância tenha deixado de apreciar questões por considerá-las prejudicadas; II. Não tendo a questão da anulabilidade do testamento sido apreciada, por ter ficado prejudicada, deve o processo baixar para o conhecimento de tal questão. | ||
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Decisão Texto Integral: | Revista nº 22282/17.9T8LSB.L1.S1 Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça: * AA intentou contra BB e CC, acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo que os RR. sejam condenados a reconhecerem a invalidade do testamento, seja por via do reconhecimento da sua nulidade, seja por via da sua anulação, com a consequente aplicação do regime legal aplicável à ausência de testamento ordenando a partilha em partes iguais pelos 3 herdeiros; caso assim não se entenda, devem os RR. ser condenados a reconhecer a inoficiosidade da deixa testamentária, iniciando-se a redução pelos bens herdados, no caso a propriedade da fração autónoma que o falecido detinha em .... A fundamentar o pedido, alegou, em síntese: A A. é filha de DD, nascido em ....7.1941, e falecido no dia ....5.2017. O falecido era casado com a Ia R. no regime de separação de bens, e o 2o R. é filho de ambos. Encontra-se registado a fls. 80 a 81v do livro 5T, do Cartório Notarial da Dra. EE, sito em ..., um testamento, único imputado ao falecido. Para além de tal testamento ser nulo por falta de requisitos formais (o NIF indicado não é do testador, não é identificado o número do BI, e o "borrão" que será eventual impressão digital não foi feita pelo dedo indicador do testador), o falecido não dispunha à data de discernimento, nem gozava de saúde para o outorgar, pois sofria de doença degenerativa do sistema nervoso central, desde 1994, que levou à reforma por invalidez de 95 %, em 1997, necessitando de cuidados permanentes, prestados por terceira pessoa, para os atos normais da sua vida quotidiana. À data da celebração do pretenso testamento, o testador acabara de sair de um internamento prolongado no Hospital da Luz, sendo que parte significativa do mesmo foi passada na Unidade de Cuidados Intensivos, não falando, mal reconhecia as pessoas por grave défice de visão e audição e apresentava um estado clínico de risco de vida. O pai da A. sofreu de uma doença neuro degenerativa do sistema nervoso central desde 1994, inicialmente com diagnóstico de Esclerose Lateral Amiotrófica ou Esclerose Múltipla, mas, em 1999, o diagnóstico foi fixado em Síndrome de Neuro Behçet, com afeção predominantemente neurológica e, pelo menos a partir de 2008, o testador não entendia o que se lhe perguntava ou o que se lhe dizia, a não ser perguntas simples, que tivessem resposta de sim ou não. Em 2008 já não conseguia ter qualquer expressão verbal ou motora, e o deficit auditivo atingiu um elevado grau tornando-o surdo, circunstâncias que comprometeram definitivamente a sua capacidade de entender e de se fazer entender, pelo que era impensável que o testador construísse em 2011 frases completas, e do ponto de vista cognitivo, era inconcebível que fizesse manifestações e que conseguisse compreender o teor das declarações que constam no testamento, e que ouvisse e compreendesse se lhe fosse lido. Mesmo que se considere o testamento válido, o testamento c parcialmente inválido porquanto a putativa deixa testamentária, constitui uma forma de deserdar a A. e seu irmão, ora 2° R., que fica privada, praticamente, da quota que por lei lhe está reservada, na sua qualidade de herdeira legitimaria. Regularmente citados, contestaram os RR., por impugnação, pugnando pela improcedência da ação, com a sua absolvição dos pedidos. A A. pronunciou-se quanto aos documentos juntos. Foi proferido despacho que dispensou a audiência prévia, saneou o processo, identificou o objeto do litígio, e enumerou os temas da prova. Realizou-se julgamento, e foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, e declarou a falsidade do testamento público em causa nos autos. Inconformados com a decisão, apelaram os RR, pedindo que se revogasse a sentença e se julgasse a acção improcedente. A A. contra-alegou, pugnando pela improcedência da apelação e pela manutenção da sentença recorrida. O Tribunal da Relação julgou procedente a apelação, embora com fundamentos distintos, revogando a decisão recorrida e substituindo-a por outra a julgar improcedente a acção. Não se conformou a autora que interpôs recurso de revista, a que os RR. responderam. Entretanto, o relator convidou a recorrente a sintetizar as conclusões, nos termos e para os efeitos do nº 3 do art. 639º do CPC. O que esta fez, formulando as seguintes conclusões aperfeiçoadas: “ 1 - A ora recorrente intentou acção declarativa comum com vista à declaração de invalidade do testamento do seu pai, seja por via da sua nulidade, por vícios de forma, ou por via da sua anulação, por incapacidade acidental do testador, que sofria de doença altamente incapacitante e arrastada durante 23 anos. 2 - Tal ação veio a ser julgada provada na primeira instância, declarando-se a falsidade do testamento, o que equivale à sua nulidade, por ter sido considerado que a notária não verificou a identidade da pessoa que compareceu perante si, nos termos do artigo 372.º do Código Civil, por absoluta falta de indicação da forma da identificação da pessoa do testador. 3 - Além disso, a perícia realizada à impressão digital do testador, constante do documento, concluiu pela impossibilidade de prova de que pertencia a este, por o documento não ter valor identificativo, a que acresce o facto de não constar do testamento a referência a qualquer documento válido de identificação, nem a assinatura do testador. 4 - Tendo os RR. apelado para o Tribunal da Relação, de facto e de direito, pugnando pela improcedência da acção, a apelada apresentou contra-alegações, onde defendeu que o testador não falava e não ouvia, o que o tornava surdo-mudo, pelo que deveria o testamento ser anulado, por incapacidade acidental o que foi desconsiderado pelo juiz do julgamento, ao cingir-se a questões formais. 5 - Transcreveu ainda o depoimento da Notária que afirmou que se o testador não tivesse falado não teria feito o testamento, o que inculca no sentido que a primeira instância, que beneficiou da imediação da produção de prova, concluir que o testamento foi feito por outra pessoa, que não a pessoa referida no mesmo. 6 - Veio a Relação a alterar a matéria de facto, no sentido de acrescentar um novo facto, que consiste na transcrição de um Averbamento 2, datado de 29/07/2017 (já existiam outros dois, ambos denominados de N.º 1, datados de 07/06/2017 e 28/08/2011), que rectifica o contribuinte do testador e averbam a morte do mesmo. 7 - Ora, à data deste averbamento, haviam decorrido seis anos sobre a outorga do testamento, e o normal, que resulta da experiência comum, é que a Notária não se lembrasse da identidade do outorgante, uma vez que aquando do julgamento pouco tempo depois referiu não o conhecer, nem se lembrar do acto. 8 - Se não se lembrava da pessoa que compareceu perante si, não poderia rectificar qualquer elemento de identificação e ao ordenar um acrescento de um aditamento, na ausência de indicação no texto de qualquer forma válida de documentação da identidade do testador, o Tribunal a quo caiu na arbitrariedade, e validou mais uma falsificação. 9 - Ao não ter mantido a declaração de falsidade do documento, violou o Acórdão recorrido, o referido artigo 372.º do Código Civil e preencheu a alínea a) do N.º 1 do artigo 674.º do Código Processo Civil, que admite Revista de tal decisão. 10 - Mas a decisão ora posta em crise violou também a lei processual, o que permite o presente recurso, nos termos da alínea b) do N.º 1 do artigo 674.º do Código Processo Civil, uma vez , que o Tribunal da Relação alterou a resposta dada ao anterior Facto não provado, com o N.º 7, no sentido de considerar como não provado que “A impressão aposta no testamento não foi efectuada pelo indicador de DD.” 11 - Entendeu o Tribunal a quo que era obrigação da ora recorrente provar que a impressão digital não tinha sido feita pelo indicador do testador, o que não logrou conseguir, por a marca não ter qualidade identificativa, entendendo a Relação que esse ónus era da A., ora recorrente, e não dos RR, ou seja, beneficia claramente o infrator, que sai beneficiado de uma impossibilidade por si criada. 12 - Ora esta é uma decisão surpresa, pois nenhuma das partes defendeu esta ideia, e não houve oportunidade de exercer anteriormente o contraditório sobre tal matéria, nos termos do N.º 3 do artigo 3.º do Código Processo Civil o que constitui nulidade processual, susceptível de influir no exame e na boa decisão da causa, o que a torna nula. 13 - Mas tal decisão constitui também uma decisão grosseiramente ilegal, por violação flagrante do disposto no artigo 414.º do Código Processo Civil, que impõe que nos casos de dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita. 14 - Mas as violações das regras do Processo não se ficam por aqui, uma vez que o Tribunal a quo ao considerar válido o testamento nos seus precisos termos, não considerou relevante o único documento de identificação válido existente nos autos, que os RR. juntaram com a sua Contestação como Doc. N.º 3, e não foi impugnado, que é a cópia do bilhete de identidade do testador, emitido em 08/06/2004, tendo a validade vitalícia e tem aposta a assinatura do portador, e que contraria, de forma expressa e inequívoca, o que a senhora notária fez constar do Testamento, quando referiu que o testador não podia assinar, quando não tinha qualquer documento que lho garantisse. 15 - O Tribunal da Relação, além de violar o princípio de aquisição processual, praticou erro na apreciação da prova, por ofensa de uma disposição expressa da lei, que exige certa espécie de prova, para a existência de facto, nos termos do N.º 3 do artigo 674.º do C.P.C. 16 - É gritante e incompreensível, por força das regras da experiência comum, que o Tribunal valorize um testamento, que sofre de erros de forma que o tornam incompreensível, face a um documento de identificação que o contraria e, conjugado com o depoimento de uma Notária que apenas diz que não se lembra, impunha-se a análise do documento de identificação cuja validade foi aceite pelas partes, e daí retirar as devidas conclusões. 17 - Impõe-se assim, perante estas contradições e imprecisões sobre a matéria de facto, que o processo seja remetido de volta ao Tribunal da Relação de Lisboa para ampliação e correção de matéria de facto em conformidade ou seja que a matéria a ampliar são os factos 8.º a 12.º dados como não provados pela primeira instância que devem passar a constar dos factos provados. 18 - Mas os fundamentos da Revista não se ficam pelo exposto, pois o Tribunal recorrido deveria pronunciar-se sobre a questão levantada por ambas as partes, quanto à falta de fundamentação da decisão de primeira instância que se refugiou em estritos aspetos formais, desconsiderando a abundante documentação médica e a prova testemunhal, nomeadamente sobre a incapacidade acidental do testador. 19 - O Tribunal recorrido chega a ir além do que os próprios recorrentes alegam, pois se nas suas conclusões 15.º e 16.º referem que a fls. 48 existe o Doc. N.º 3, a digitalização do bilhete de identidade que foi entregue no Cartório, a decisão ora posta em crise afirma que o que foi próprio original que foi entregue no Cartório, algo que ninguém alegou, nem mesmo os recorrentes, praticando erro que que torna o Acórdão nulo, por conhecer de questões que não podia tornar conhecimento, nos termos da alínea d) do N.º 1 do artigo 615.º do Código Processo Civil. 20 - O Acórdão padece ainda de erro manifesto, pois na última página condena em custas primeiro a “apelante” na fundamentação, e na parte dispositiva condena a “recorrida”, algo que deverá ser classificado como um erro material suscetível de retificação, mas demonstra a falta de espírito crítico que presidiu à decisão. Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. Colendos Conselheiros certamente suprirão, deve o presente Recurso ser admitido e julgado procedente, ordenando a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa para Ampliação e Retificação da matéria de facto, dando os factos 8.º a 12.º que tiveram pela primeira instância a resposta de não provados, devem passar constar do rol dos factos provados e em consequência declare que o testador sofria de incapacidade acidental para proferir de forma legal a complexa disposição testamentária em causa”; caso assim não seja entendido, sempre o testamento deve ser julgado falso, por vício de forma, por não indicar a modalidade em que a notária procedeu à identificação da pessoa que compareceu perante si, e não haver certeza sobre a sua identidade, com as legais consequências (…). Às alegações (antes do aperfeiçoamento das conclusões), tinham os recorridos/réus contra-alegado e oferecido as seguintes conclusões: “1º- A observação da A./recorrente na conclusão 29 "…a falta de espírito crítico que presidiu à presente decisão", com base num mero erro objetivo de redação de apelante vs. recorrida, é pela sua falta de fundamentação e argumentação, um mero comentário sem espírito crítico. 2º- Aliás, este é o tom das conclusões em geral, que não deixam de ser meras conjeturas e opiniões não alicerçadas, apenas de circunstância e, portanto, inconsequentes. 3º- Acresce que a A./recorrente não cumpre os dois ónus prescritos no n.º1 do artigo 639º do C.P.C, que é, por um lado a alegação, com a exposição circunstanciada das razões de facto e de direito, na qual analisa e critica a decisão recorrida, e por outro, a conclusão que consiste no resumo dos fundamentos pelos quais pretende que o tribunal ad quem modifique ou revogue a decisão proferida pelo tribunal a quo. 4º- De facto, a A./recorrente nas suas conclusões limita-se a reproduzir “ipsis verbis” o corpo das alegações, através da função do processador de texto “copiar-colar”, o que conduz à inexistência de conclusões, não sendo de admitir despacho de aperfeiçoamento. 5º- Deve ser rejeitado, por falta de conclusões o presente recurso interposto pela A./recorrente, não sendo de admitir despacho de aperfeiçoamento. 6º- Não assiste razão à A./recorrente na remessa dos autos para o Tribunal da Relação, já que não é suficiente manifestar a sua discordância, com a decisão da matéria de facto apurada pelo Tribunal a quo, porquanto a mesma tem o ónus de provar os pontos discordantes e os respetivos meios de prova constantes nos autos, que possam conduzir a uma decisão diversa daquela que foi seguida na sentença recorrida, quanto à matéria dos factos dada como não provada sob os n.ºs 8 a 12. nos termos prescritos no artigo 636º do CPC. 7º- Por outro lado, também, não demonstrou a incapacidade do testador no momento a feitura do testamento, isto é, que se encontrava numa situação de incapacidade natural de entender e de querer o sentido da declaração testamentária. 8º- Assim, não estão reunidos os requisitos/pressupostos para a remessa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa, para ampliação e retificação da matéria de facto, dos factos dados como não provados os n.ºs 8 a 12. 9º- No tocante aos aspetos formais do testamento, focados no documento de identificação/bilhete de identidade e impressão digital, de igual modo a A./recorrente não tem qualquer razão. 10º- A perícia realizada à impressão digital, apenas atesta que não foi possível identificar a impressão digital, mas não conclui que a mesma não pertence ao testador, o que a A./recorrente não logrou provar. 11º Além disso, também nesta questão não requereu a ampliação do âmbito do recurso, com impugnação da decisão sobre a matéria de facto. 12º- Contudo, suscitou eventual decisão surpresa por considerar não ser sua obrigação de provar que a impressão digital não pertence ao testador, apesar de ter sido por si alegada. 13º-Todavia, não concretiza a necessidade do contraditório, isto é, não materializa as questões processuais ou de mérito, de facto ou de direito, não suscitadas pelas partes, isto é, em que medida, as partes não configuraram a questão na via adotada pelo Juiz e não tinham obrigação de prever. 14º-Certo é que, os RR./recorridos, como se deixou acima referido desde sempre pugnaram por integrar o ponto 7. dos factos dados como não provados, discordando de tal a A./recorrente. 15º- A decisão tomada pelo Tribunal é emanação dos factos alegados e debatidos pelas partes, tendo o Tribunal se cingido a esses factos, sem recursos a novos não alegados. 16º-A Sra. Notária na questão do documento de identificação/bilhete de identidade, de forma coerente, escorreita e espontânea afirmou perentoriamente que os documentos para instruir o testamento foram entregues no Cartório onde foi redigido, acrescentando a mesma, que no mesmo dia da feitura do testamento aquando da elaboração da ficha para os registos centrais, que necessita da data de nascimento do testador, foi recolhida do referido documento de identificação/ bilhete de identidade. 17º- O Tribunal da Relação veio a concluir sem reservas que o testamento apenas padece “…de irregularidade formal que não acarreta a sua nulidade”. “E de tal irregularidade, também, não se pode concluir pela sua falsidade…. afigurando-se-nos ser insuficiente …. para concluir que a Sra. Notária não praticou o facto que atesta ter praticado (a verificação da identidade do testador por documento de identificação/bilhete de identidade”). 18º.- Dúvidas não restam que não assiste à A./recorrente em qualquer dos argumentos aventados razão para pôr em causa a decisão recorrida, que deverá ser mantida nos seus precisos termos. Pelo exposto, e principalmente pelo que será suprido pelo Sábio Tribunal, deve negar-se provimento ao recurso, como é de inteira JUSTIÇA” Cumpre decidir. O tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos: “1. Conforme certidão de fls. 13 verso-14 verso, encontra-se registado a fls. 80 a 81 verso do livro 5T, do cartório notarial da Dr.a EE, "TESTAMENTO", lavrado em cartório notarial, com o seguinte teor: "No dia vinte e nove de agosto de dois mil e onze, na Rua ..., nono andar direito, em ..., perante mim, Lic. EE, com cartório na Rua ..., em ..., pelas dezasseis horas, compareceu: DD, natural da freguesia de ..., concelho de ..., casado com BB, sob o regime de separação de bens, nascido a ... de julho de mil novecentos e quarenta e oito, filho de FF e de GG, residente na Rua ..., 9o direito, em .... NIF:...64. Verifiquei a identidade do outorgante pelo documento de identificação acima referido. DECLAROU: Que não tem ascendentes, que tem dois descendentes, sendo o primeiro testamento que fez. Que institui herdeira da quota disponível de todos os bens de que puder dispor à hora da sua morte, sua mulher BB, natural da freguesia de ..., concelho de ..., consigo residente, que deverá ser preenchida em primeiro lugar com a fração autónoma P, que corresponde ao terceiro andar C - destinado a habitação, do prédio urbano denominado lote 1/88, sito no cruzamento da ... com a ..., freguesia de ..., concelho de .... Que lega ao seu cônjuge BB o usufruto do nono andar D, do prédio sito na Rua ..., 9o D, em ..., sua residência. Foram testemunhas: (...) Este testamento foi lido ao outorgante e feita a explicação do seu conteúdo, na presença de todos os intervenientes, não assinando por não o poder fazer." 2. Foi lavrado "Av. n° 1. O testador nasceu em ... de julho de 1941, conforme Bilhete de Identidade, abaixo exibido. ..., 29 de agosto de 2011. A Notária." E "Av. n° 1 - O testador faleceu em ... de maio de 2017 (...)". 3. A fls. 15, encontra-se certidão emitida pela Conservatória dos Registos Centrais, em 2.6.2017, com o seguinte teor: "Certifico que, segundo os elementos existentes no ficheiro geral desta conservatória e a partir de um de janeiro de mil novecentos e quarenta, data de entrada em funcionamento destes serviços, consta que DD (...)" outorgou um testamento público em 29.8.2011. 4. O NIF indicado no testamento não pertence a DD, conforme resulta da impressão do cadastro público da Administração Tributária de fls. 15 verso. 5. O NIF do falecido é ...40, conforme resulta da impressão do cadastro público da Administração Tributária de fls. 16. 6. A fls. 41, encontra-se certidão de escritura de habilitação de herdeiros, em que a outorgante declarou que são herdeiros de DD: a declarante, ora Ia ré, cônjuge, e os filhos, ora autora e 2o réu.” E deu como não provados os seguintes factos: 7. A impressão digital aposta no testamento não foi efetuada pelo indicador de DD ( alterado pela Relação). 8. O testador não falava, mal reconhecia as pessoas por grave défice de visão e audição e apresentava um estado clínico de risco de vida, nomeadamente, por colonização e repetidas infeções. 9. O testador não ouvia o que se dizia, apesar das tentativas da Ia ré em adquirir prótese auditiva, que o doente não usou por intolerância ou incapacidade do doente em se adaptar. 10. A 1a ré terá obtido a celebração do testamento, por estar convencida de que o testador faleceria em breve. 11. À data do pretenso testamento, o testador não dispunha de um quadro clínico que o tornasse capaz de entender e manifestar vontade livre e esclarecida, nem de entender o sentido da declaração que alguém em seu nome formulou à sr3 notária e ficou a constar do testamento. 12. Era impossível que o testador tivesse de forma esclarecida formulado a vontade descrita no testamento, tal como era impossível perceber o alcance do mesmo, se lhe fosse transmitido, porquanto a sua liberdade de determinação e a sua sanidade mental não lhe permitiam elaborar raciocínios tao elaborados, como o que consta do testamento.” O Direito. Na presente acção, a A. pediu a condenação dos RR. a reconhecerem "a invalidade do testamento, seja por via do reconhecimento da sua nulidade, seja por via da sua anulação, com a consequente aplicação do regime legal aplicável à ausência de testamento". A fundamentar o peticionado, alegou ser o testamento nulo por o NIF nele indicado não ser o do testador, e dele não constar a identificação do bilhete de identidade, ser falso, por não estar assinado (e o borrão/suposta impressão digital dele constante não ter sido feita pela mão do testador), e anulável, por estar o testador, à data, numa situação de incapacidade acidental. O tribunal de 1ª instância concluiu pela falsidade do testamento, pelo facto de a notária não ter verificado a identidade do testador, não conhecendo da questão da suposta impressão digital dele constante não ter sido feita pela mão do testador, nem da causa de anulabilidade, fundada no facto de o testador estar alegadamente, à data, numa situação de incapacidade acidental. Porém, a Relação, conhecendo do recurso de apelação dos réus e com apelo ao Código do Notariado vigente à data em que foi outorgado o testamento, ou seja, o Código do Notariado na versão anterior à introduzida pelo DL nº 125/2013 de 30.8, considerou que a falta de menção no testamento do documento de identificação não era, à data, causa de nulidade do testamento, nem de falsidade do mesmo, uma vez que não se podia concluir que a Sra. Notária não tinha praticado o facto que atestou ter praticado, ou seja, a verificação da identidade do testador por documento de identificação, considerando, ainda, que tinha de improceder, também, a invocada falsidade do testamento com fundamento no facto de a impressão digital não ter sido feita pela mão do testador (uma vez que a A. não tinha logrado fazer prova da referida factualidade). Assinalou, ainda, que, tendo concluído pela falsidade do testamento, a sentença não se pronunciou sobre o pedido de anulabilidade do mesmo, sendo que, não tendo a apelada/A. logrado fazer prova da invocada situação da incapacidade acidente, sempre a acção teria de improceder nessa parte ( dela não conhecendo, portanto, uma vez que, segundo referiu, em nota, a A. também não ampliou o âmbito do recurso). Em conclusão, julgou procedente a apelação e improcedente a acção. Decisão-surpresa: Os apelantes réus pediram que se desse como provado o facto não provado 7, na seguinte redacção: “ a impressão aposta no testamento foi efectuada pelo indicador “[ do testador DD",]. Porém, a Relação não apenas denegou essa pretensão como alterou o facto dado como não provado para o seguinte: “ a impressão aposta no testamento não foi efectuada pelo indicador de DD". Com o fundamento de que era esse o facto relevante que importava dar como provado ou não provado, pois era obrigação da recorrente/autora provar que a impressão digital não tinha sido feita pelo indicador do testador. Assim, em decorrência deste entendimento, de que era sobre a autora que recaía o ónus de provar que a impressão digital não tinha sido feita pelo indicador do testador ( e que os réus não tinham de provar que, ao contrário, a impressão pertencia ao testador) o tribunal foi mais longe e, com recurso à prova indicada pelos apelantes, deu como não provado o referido facto de que a “impressão aposta no testamento não foi efectuada pelo indicador de DD". Entende a recorrente que esta é uma decisão-surpresa (pois nenhuma das partes defendeu esta ideia), o que a torna nula (por nulidade processual). Nos termos do art. 3º, nº 3 do CPC do CPC “o juiz deve observar e fazer cumprir, ao longo de todo o processo, o princípio do contraditório, não lhe sendo lícito, salvo caso de manifesta desnecessidade, decidir questões de direito ou de facto, mesmo que de conhecimento oficioso, sem que as partes tenham tido a possibilidade de sobre elas se pronunciarem”. Ora, revertendo ao caso sub judice, verifica-se que o tribunal decidiu uma questão de facto (da prova sobre um facto alegado pela autora, sobre o qual não tinha recaído decisão em 1ª instância) sem que as partes tivessem tido a possibilidade de sobre ela se pronunciarem, assim prolatando, quanto a tal aspecto, uma verdadeira decisão-surpresa. Sucede, porém, que a violação do princípio do contraditório do art. 3º, nº 3 do CPC dá origem não a uma nulidade processual nos termos do art. 195º do CPC (como vem requerido) que origina a anulação do acórdão, mas a uma nulidade do próprio acórdão, por excesso de pronúncia, nos termos arts. 615º, nº 1, al. d), 666º, nº 1, e 685º do mesmo diploma”, nulidade que não foi invocada (cfr. Ac. STJ de 3.10.2020, proc. 392/14.4.T8CHV-A.G1.S1). Como assim, não procede a arguida nulidade processual. Violação do art. 414º do CPC: Ponderou o Tribunal da Relação que não houve prova concludente de que a impressão digital aposta no testamento não tivesse sido efectuada pelo indicador do testador. E por isso deu como não provado tal facto. Alega a recorrente que essa decisão viola o art. 414º do CPC, que impõe que a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova se resolve contra a parte a quem o facto aproveita. Para a recorrente/autora, era aos réus que competia, pois, fazer a prova de que a impressão digital era do testador. Porém, a Relação não manifestou qualquer dúvida no entendimento de que aos réus não competia fazer a prova de que a impressão digital era do testador. O que assinalou foi a dúvida não sobre a repartição do ónus da prova mas sobre a realidade de um facto, que competiria à autora provar (o de que a que a impressão digital aposta no testamento não tinha sido efetuada pelo indicador do testador). Não ocorre, pois, violação do disposto no art. 414º do CPC. Violação do princípio de aquisição processual e erro na apreciação da prova. Alega a recorrente que o tribunal não considerou relevante o único documento de identificação válido existente nos autos, que os réus juntaram com a sua contestação como doc. nº 3, e não foi impugnado, que é a cópia do bilhete de identidade do testador, emitido em 08/06/2004, que tem a validade vitalícia e tem aposta a assinatura do portador, o que contraria, de forma expressa e inequívoca, o que a senhora notária fez constar do testamento, quando referiu que o testador não podia assinar, quando é certo que não tinha qualquer documento que lho garantisse. Considera que o Tribunal da Relação, além de violar o princípio de aquisição processual, praticou erro na apreciação da prova, por ofensa de uma disposição expressa da lei, que exige certa espécie de prova, para a existência de facto, nos termos do nº 3 do artigo 674º do CPC. Da Relação consta o seguinte: “Pretendem, ainda, [os apelantes] que à factualidade provada seja aditado o seguinte facto: "A fls. 48 (doc. 3 da contestação) encontra-se fotocópia do bilhete de identidade do testador n° ...88 de 08.06.2004 SIC ...". Fundamentam a sua pretensão nos seguintes termos: (…) -a fls. 48 - doc. 3 da contestação encontra-se a digitalização do bilhete de identidade do testador, que não foi impugnado, e que esclarece a existência do mesmo, que foi entregue no Cartório Notarial, para preparação do testamento, conforme depoimento da Sra. Notária e que foi o documento fulcral na identificação do testador; -o NIF é um número, não é um documento, não tem quaisquer dados de identificação pessoal, nomeadamente fotografia, e não pode ser considerado como tal. Vejamos, começando por referir que os documentos são meios de prova, e não "factos" a ter como assentes. (…) Assim, não há que dar como provado que "A fls. 41 e ss. encontra-se a certidão da escritura de habilitação de herdeiros, registada a fls. 92 a 93 do livro 155, do cartório notarial da Dra. EE, da qual faz parte integrante o referido testamento", mas atentar no mencionado documento, analisar em que termos a sua força probatória foi, ou não, posta em causa pela parte contrária, e, nessa conformidade, dele retirar (ou não) a factualidade (alegada) que se deve ter por provada (como, aliás, se fará para apreciar se deve ser aditada à factualidade provada a pretendia relativamente ao Av. 2). Nesta sequência, também não há que dar como provado que "A fls. 48 (doc. 3 da contestação) encontra-se fotocópia do bilhete de identidade do testador n° ...88 de 08.06.2004 SIC ...". E quanto a esta matéria, o que relevaria seria a alegação de que foi o original do referido documento que foi entregue à Sra. Notária para elaboração do testamento e que foi através dele que a mesma identificou o testador, o que os apelantes, apenas agora, afirmam, não o tendo feito na contestação. Não procede, pois, a pretensão dos apelantes nesta parte.” (desataque nosso). Segundo o princípio da aquisição processual no julgamento da matéria de facto o tribunal deve tomar em consideração todas as provas produzidas, independentemente da parte que alegou o facto ou da que apresentou o meio de prova (Abrantes Geraldes e outros, Código de Processo Anotado, volume I, 2018, pág. 486). Ora, o tribunal não desconsiderou o meio de prova. O que o tribunal afirmou é que o meio de prova não se podia confundir com facto. E que o que relevaria seria a alegação [do facto, substantivamente relevante] de que foi o original do referido documento [bilhete de identidade] que foi entregue à Sra. Notária para elaboração do testamento e que foi através dele que a mesma identificou o testador. Não ocorre, assim, qualquer violação do princípio da aquisição processual. Argumenta a recorrente que a Senhora Notária devia ter exigido ao testador um documento válido que contivesse a indicação de que não sabia ou não podia assinar. Porém, não indica que documento, em concreto, devia ter sido exigido para essa prova, pelo que não demonstra a imputada violação do nº 3 do artigo 674º do CPC. Aditamento de facto: Alega a recorrente que, uma vez que tinha decorrido mais de seis anos sobre a outorga do testamento e uma vez que a notária não se lembrava da identidade do testador, não podia esta rectificar qualquer elemento de identificação, pelo que, na ausência de indicação no testamento de qualquer forma válida de documentação da identidade do testador e ao ordenar o aditamento à matéria de facto - que consistiu na transcrição, no facto 6-A, do averbamento 2, datado de 29/07/2017, que rectifica o contribuinte do testador - o tribunal caiu na arbitrariedade e validou mais uma falsificação, em violação do disposto no art. 372º do CC. Porém, não se pode afirmar que, com a transcrição do averbamento, a Relação tenha incorrido em qualquer violação processual. Ou que com o averbamento a notária tenha praticado qualquer falsidade, pois o facto em que a recorrente se baseia- o de que a notária não se lembrava da identidade do outorgante- não está sequer provado. Factos 8º a 12º: Alega a recorrente que os factos 8º a 12º dados como não provados devem a passar a constar dos provados. Todavia, não tendo fundamentado essa pretensão, não pode a mesma ser atendida. Nulidade: Argumenta, ainda, a recorrente que, tendo a decisão da Relação afirmado que foi o próprio original do bilhete de identidade que foi entregue no notário, incorreu a mesma em nulidade por conhecer de questão de que não devia ter tomado conhecimento. Todavia, a Relação não afirmou que foi o “próprio original que foi entregue no notário” . Apenas referiu que “o que relevaria seria a alegação de que foi o original do referido documento que foi entregue à Sra. Notária para elaboração do testamento e que foi através dele que a mesma identificou o testador, o que os apelantes, apenas agora, afirmam, não o tendo feito na contestação.” Não se verifica, assim, qualquer nulidade, nos termos da al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC. Falta de fundamentação: Alega, ainda, a recorrente que, tendo suscitado nas alegações da Relação a questão da falta de fundamentação da decisão da 1ª instância sobre a incapacidade acidental, a Relação não se pronunciou sobre os factos com esta relacionados (a que aludiu nas conclusões 1ª, 4ª, 5ª, 30ª, 31ª, 32ª e 33ª das suas contra-alegações do recurso da apelação), com o pretexto de que a recorrida não impugnou a matéria de facto, o que não corresponderá à verdade. No entanto, não se observa nas conclusões indicadas das contra-alegações da apelação a suscitação de qualquer questão de falta de fundamentação da decisão da 1ª instância em relação à incapacidade acidental. Improcede, assim, a questão, nos formulados termos. Sucede, no entanto, que, depois de ter referido que o tribunal recorrido não se pronunciou sobre a invocada anulabilidade, fundamentada em alegada incapacidade acidental do testador (por ter julgado o testamento falso) e de ter assinalado que a apelada/ A. não ampliou o âmbito do recurso de apelação, a Relação não apenas revogar a decisão recorrida como concluiu pela improcedência da acção. Porém, “ a exigência da ampliação do objeto do recurso não se mostra necessária nos casos a que se reporta o artigo 665º, ou seja, quando a 1ª instância tenha deixado de apreciar questões por considerá-las prejudicadas, ressurgindo o interesse nessa apreciação com o acórdão da Relação. nestes casos, se a Relação estiver na posse de todos os elementos para apreciar as questões prejudicadas ,deve fazê-lo; na situação inversa deve remeter o processo para a 1ª instância independentemente de qualquer iniciativa da parte interessada e, por isso, sem necessidade de prévia ampliação do objecto do recurso como se refere na fundamentação do AUJ nº 11/15. “ ( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, em Código de Processo Civil anotado, volume I, 2018, , pág. 763). Assim, e revertendo ao caso sub judice, não tendo a questão da anulabilidade do testamento sido apreciada em 1ª instância, por ter ficado prejudicada, deve o processo ser remetido à 1ª instância, para o conhecimento de tal questão. Custas na Relação: Alega a recorrente que enquanto na fundamentação do acórdão da Relação consta que as custas são a cargo da apelante, da parte dispositiva do mesmo consta que as custas ficam a cargo da recorrida (ou seja, da apelada), o que constitui erro material susceptível de rectificação. A requerimento das partes ou oficiosamente a correcção pode ser feita pelo tribunal superior, nos termos do art. 614º do CPC (cfr. Lebre de Freitas, Código de Processo Civil anotado, volume II, 3ª edição, pág. 732). Decorre, porém, da decisão deste Tribunal, que agora se profere, que as custas da 2ª instância devem ficar a cargo dos apelantes/RR. na proporção de ¼ e cargo da apelada/A./ora recorrente na proporção de ¾ . Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em: a) negar a revista na parte em que a Relação revoga a decisão recorrida da 1ª instância; b) conceder, parcialmente, a revista, na parte em que a Relação julga improcedente a acção; c) determinar a baixa dos autos à 1ª instância para aí ser apreciada e decidida a questão da anulação do testamento com base na incapacidade acidental do testador: d) alterar as custas do recurso de apelação, que ficam a cargo dos apelantes/RR. na proporção de ¼ e a cargo da apelada/A./ora recorrente na proporção de ¾. As custas deste recurso ficam a cargo da recorrente/A., na proporção de ¾ e a cargo dos recorridos/RR, na proporção de ¼ . * Lisboa, 1 de Outubro de 2024 António Magalhães (Relator) Jorge Arcanjo Manuel Aguiar Pereira |