Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 1.ª SECÇÃO | ||
Relator: | JORGE ARCANJO | ||
Descritores: | CONTRATO DE SEGURO RESPONSABILIDADE CONTRATUAL APÓLICE DE SEGURO CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL TEORIA DA IMPRESSÃO DO DESTINATÁRIO INTERPRETAÇÃO DO NEGÓCIO JURÍDICO NULIDADE DE ACÓRDÃO OMISSÃO DE PRONÚNCIA INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO CÁLCULO DA INDEMNIZAÇÃO BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO | ||
Data do Acordão: | 06/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | ORDENAR A REMASSA DOS AUTOS AO TRIBUNAL DA RELAÇÃO PARA AMPLIAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO | ||
Sumário : | I.O contrato de seguro em relação ao qual o segurado apenas tem a opção de aceitar ou rejeitar em bloco o conteúdo contratual que lhe é proposto, dentro do tipo contratual desejado pelas partes, exprime a estipulação de contrato de adesão, pelo que devem ser submetidos a controlo judicial não só ao nível do conteúdo das condições gerais do contrato, relevando, para tanto, as normas de ordem pública ( art.280 do CC ) e as cláusulas gerais da boa fé ( arts.227 nº1 e 762 nº2 do CC ), como também ao nível da tutela da vontade do segurado, tomando-se em conta os critérios interpretativos dos arts.236 e 237 do CC, dando-se, no entanto, prevalência a uma justiça individualizadora por o art.10 do Decreto Lei nº446/85 de 25/10 remeter para o “ contexto de cada contrato singular”. II.Na interpretação das cláusulas do contrato de seguro deve apurar-se o sentido normal da declaração, ou seja, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, segundo a teoria da impressão do destinatário (art.236 nº1 do CC). Mas nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art.238 do CC). III. Muito embora o risco seja delimitado pelas partes, a verdade é que pela ambiguidade e amplitude das exclusões não pode chegar-se a um esvaziamento do próprio objecto do contrato de seguro. IV. No contrato de seguro, as condições particulares prevalecem sobre as condições gerais, por se reportarem especificamente a cada contrato em concreto, adaptando-o às particularidades do risco. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça I – RELATÓRIO 1.1.– A Autora - A..., SA. – instaurou acção declarativa, com forma de processo comum, contra a Ré - AGEAS Portugal – Companhia de Seguros, SA. Alegou, em resumo: A Autora celebrou com a Ré um contrato de seguro relativo à responsabilidade civil por todos os riscos de construção que incluía a obra de elaboração do projeto e execução da reabilitação e ampliação da estação de tratamento de águas residuais denominada ETAR do ..., de que era empreiteira. Nesta obra ocorreu um sinistro que consistiu em que no levantamento topográfico que foi realizado antes do início dos trabalhos houve um erro de cotas. O levantamento topográfico foi realizado pela Autora através de um topógrafo que era seu funcionário, sendo o projeto da obra foi elaborado com base nas cotas do levantamento topográfico. Muito embora a obra tivesse sido executada de acordo com o que foi projetado, porque as cotas do levantamento topográfico não estavam corretas constatou-se que ocorria o transbordamento das águas da estação de tratamento de águas residuais. A Autora teve de executar diversos trabalhos de reparação destas anomalias suportando os respetivos custos, pelos quais pretende ser reembolsada. Pediu a condenação da Ré a pagar-lhe a quantia de € 50.246,65 (cinquenta mil duzentos e quarenta e seis euros e sessenta e cinco cêntimos), acrescida do IVA, à taxa legal em vigor, e juros de mora vencidos e vincendos a calcular à taxa legal supletiva. 1.2. – A Ré contestou alegando que os danos reclamados pela Autora estão excluídos da cobertura do contrato de seguro, e impugnou o valor da indemnização. 1.3. – A Autora respondeu, alegando, em síntese: O sinistro em causa e que originou a participação da autora teve origem na existência de um erro no levantamento topográfico (elaborado por um topógrafo, funcionário da Autora) e, não, num erro ou deficiência do projeto. Aquando da participação do sinistro, a empreitada encontrava-se garantida pela apólice contratada, uma vez que se encontrava no período de manutenção ampla, sendo-lhe aplicável a condição especial 10 “Manutenção ampla”, por se tratar de um erro que ocorreu durante a fase de execução da empreitada. Por outro lado, as exclusões referidas pela Ré apenas se reportam a erros de projeto e não a erros no levantamento topográfico. Desta forma, não se aplicam as exclusões que a Ré menciona, pois, como resulta da petição inicial, são reclamados custos com a execução do conjunto de trabalhos necessários a compensar o “afogamento”, ou seja, foram executados trabalhos com vista a rectificar os trabalhos executados com base no erro do levantamento topográfico, sendo que os trabalhos de correção em causa visaram não só a compensação de cotas, mas também, a substituição de equipamentos e isto porque, equipamentos como medidor de caudal, válvula de guilhotina, válvula de cunha, sonda de nível, entre outros, ficaram danificados, “afogados”. Assim, em causa estão danos materiais “súbitos e imprevistos”, uma vez que apenas se verificaram após o uso da ETAR e pelo próprio “afogamento da obra”. 1.4. – Realizada audiência prévia, logo foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu a Ré do pedido. 1.5. – A Autora recorreu de apelação e a Relação decidiu revogar decisão recorrida e condenar a Ré no pagamento à Autora recorrente de uma indemnização no montante de € 50.246,65, acrescida de juros de mora vencidos e vincendos. 1.6. – A Ré recorreu de revista, com as seguintes conclusões: a) Contrariamente ao decidido pela 1ª Instância, considerou a Relação que, apesar de o erro ou deficiência no levantamento topográfico causador de perdas ou danos não caber na Condição Especial 07, o mesmo encontra-se garantido ao abrigo do disposto no Ponto 4. das Condições Particulares. b) O contrato de seguro em discussão tinha contratadas várias coberturas. O capital seguro era de € 500.000,00, sendo aplicável uma franquia – parte da indemnização a cargo do segurado – de 10% do valor dos danos resultantes de lesões. c)A apólice garante, entre as demais garantias, trabalhos de construção civil em estações de tratamento de águas residuais (Ponto 2. I) das Condições Particulares); sendo um dos riscos cobertos os “trabalhos defeituosos devido a imperícia ou negligência do pessoal do segurado” (Artigo 6º das Condições Gerais e Ponto 4. das Condições particulares). Foi contratada a Condição Especial 07 (“Consequências de erros de projeto”). Constam do Artigo 4º das Condições Gerais da apólice as “exclusões gerais”: Constam do Artigo 7º das Condições Gerais da apólice as “exclusões especiais da subsecção – empreitada”, salientando-se: - despesas com a substituição de material defeituoso, retificação ou defeitos de construção ou má execução dos trabalhos (vício próprio de materiais ou mão de obra); esta exclusão aplica-se unicamente à parte ou partes da empreitada diretamente afetadas estando, no entanto, garantidas as consequências de um acidente que tenha origem em qualquer das causas mencionadas neste número – Ponto 6.;- despesas com retificação de erros ou defeitos verificados em plantas, desenhos, cálculos e outras peças desenhadas ou escritas - Ponto 7.. d)Relativamente à Condição Especial 07 (“consequências de erro de projeto”) que foi contratada, estão excluídos: a) os custos de substituição, reparação ou retificação das partes da obra objeto direto do erro ou deficiência de conceção, de projeto, de desenho ou de cálculo; b) todos os custos que teriam sido efetuados que teriam sido efetuados com a substituição, reparação ou retificação das partes da obra objeto direto do erro ou deficiência de conceção, de projeto, de desenho ou de cálculo se o sinistro não tivesse ocorrido; c) as perdas e danos decorrentes de erro ou deficiência de conceção, de projeto, de desenho ou de cálculo, que fossem ou devessem ser do conhecimento do segurado antes da ocorrência de qualquer sinistro.” e) Os prejuízos reclamados pela A. à R. não se encontram garantidos nem pela cobertura geral da “empreitada” (por causa da exclusão prevista no Artigo 7º, Ponto 7 das Condições Gerais da apólice), nem pela Condição Especial 07, uma vez que não estão a ser reclamados danos diretamente decorrentes do erro topográfico, mas apenas custos com a retificação deste mesmo erro. f) O projeto da obra foi elaborado com base nas cotas do levantamento topográfico. g) A distinção entre o “projeto” e o “levantamento topográfico” é artificial, pois o levantamento topográfico é um trabalho prévio ao projeto da obra sem o qual este não pode ser elaborado. Uma vez que o levantamento topográfico foi elaborado pela A. através de um topógrafo que era seu funcionário, não há dúvidas de que se trata de um trabalho que se inclui no projeto e que apenas formalmente pode ser considerado um trabalho autónomo ou distinto. h)Apesar de acordada a condição especial de consequências de erro de projeto (Condição Especial 07), esta condição especial exclui expressamente os custos de substituição, reparação ou retificação das partes da obra objeto direto do erro ou deficiência de conceção, projeto, desenho ou cálculo (Ponto 2. da Condição Especial 07), sendo objetivamente estes os danos que a A. reclamou da R., ou seja, o pagamento do custo dos trabalhos que teve de executar para a reparação das anomalias que foram detetadas. i)Sem prescindir, dos riscos cobertos relativos a trabalhos defeituosos devido a imperícia ou negligência dos funcionários da A. (Ponto 4. das Condições Particulares e Artigo 6º das Condições Gerais), sempre estariam excluídas as despesas com a retificação de erros ou defeitos verificados em plantas, desenhos, cálculos e outras peças desenhadas ou escritas (Ponto 6. e Ponto 7. do Artigo 7º das Condições Gerais). j) O Ponto 4. das Condições Particulares e o Artigo 6º das Condições Gerais salvaguardam expressamente as exclusões gerais e especiais da apólice, onde se inclui o Artigo 7º das Condições Gerais. l)Sem prescindir, consta também como “exclusão” da Condição Especial 10 (“manutenção ampla”), no Ponto 2. Alínea c), as perdas e danos devidos a “erro ou deficiência de conceção, de projeto, de desenho ou de cálculo”. m)Ainda sem prescindir, nunca a Relação de Guimarães poderia ter decidido pela condenação da R. no pagamento à A. de indemnização no valor de € 50.246,65, pois tal valor de prejuízos foi alegado pela A. nos arts. 16º e 48º da Petição Inicial, expressamente impugnados no art. 26º da Contestação. n) Do facto provado 14. consta apenas que “A autora teve de executar diversos trabalhos de reparação destas anomalias, suportando os respetivos custos, pelos quais pretende ser reembolsada pela R.”. o) Consta do facto provado 3. Que “O capital seguro era de € 500.000,00, com uma franquia de 10% do valor dos danos, no valor mínimo de € 250,00”, portanto, sempre haveria que aplicar a franquia contratual de 10% dos danos que viessem a ser apurados, o que não foi considerado. p) Verifica-se a nulidade prevista nos arts. 674º, nº 1, al. c) e 615º, nº 1, al. d) do CPC, que se invoca. q) Ao decidir como decidiu, o Tribunal da Relação de Guimarães violou o disposto nas condições particulares (Ponto 4.), nas condições gerais (Artigos. 4º, 5º, 6º e 7º) e nas condições especial (Ponto 2. da Condição especial 07), nos arts. 341º, 342º, 346º, 405º e 406º do Código Civil e nos arts. 410º, 596º, 609º do CPC. 1.7. – A Autora contra-alegou no sentido da improcedência do recurso, dizendo, em síntese: Conforme resulta do Acórdão recorrido, os danos sofridos pela Autora sempre estarão cobertos pela condição particular n.º 4, estando, pois, garantidos os trabalhos defeituosos devido a imperícia ou negligência pessoal do segurado. Na verdade, contrariamente ao que refere a Ré, nunca estes riscos estariam excluídos pelo ponto 7. do artigo 7º das condições gerais, uma vez que o montante peticionado pela Autora nada tem que ver com despesas com a retificação do levantamento topográfico, mas tão somente, com os custos que suportou na substituição de materiais e de trabalhos com vista a entregar ao dono de obra uma obra sem vícios. Ou seja, a Autora não peticiona da Ré o pagamento de despesas com a correção do levantamento topográfico, mas apenas a execução dos trabalhos em obra que resultaram da imperícia ou negligência dos seus funcionários. E como tal, tais despesas não se encontram excluídas do contrato de seguro celebrado, de acordo com a letra da cláusula em questão. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. – O objecto do recurso As questões essenciais submetidas a revista são as seguintes: Se o sinistro está coberto pelo contrato de seguro; Se a Relação estava legitimada a condenar a Ré no valor da indemnização peticionada. 2.2. – Os factos provados 1. A autora dedica-se à construção civil e obras públicas; 2. No dia 6 de Julho de 2012, a autora celebrou junto da ré o seguro de proteção de pessoas e bens titulado pela Apólice nº...93 - Responsabilidade civil por todos os riscos de construção - com as condições gerais e especiais que constam de fls. 18 a 44 verso e que aqui se dão por integralmente reproduzidas; 3. O capital de seguro era de € 500.000,00, com uma franquia de 10,00% do valor dos danos, no valor mínimo de € 250,00; 4. Ficou acordado que estavam incluídos na cobertura do seguro os trabalhos defeituosos devido a imperícia ou negligência dos funcionários da autora; 5. Ficou acordado que estavam excluídas da cobertura do seguro as despesas com a retificação de erros ou defeitos verificados em plantas, desenhos, cálculos e outras peças desenhadas ou escritas; 6. Foi acordada a condição especial de consequências de erro de projeto nos seguintes termos: 1. Âmbito de cobertura – nos termos desta condição especial, fica expressamente convencionado que, em complemento às disposições da apólice, ficam abrangidas por esta extensão de cobertura as perdas e danos sofridos pelos bens seguros em consequência de sinistros ocorridos durante o período de construção fixado nas condições particulares devidos a erro ou deficiência de conceção, projeto, desenho ou cálculo. 2. Exclusões - ficam excluídos desta cobertura: a. Os custos de substituição, reparação ou retificação das partes da obra objeto direto do erro ou deficiência de conceção, projeto, desenho ou cálculo. (…) 7. No dia 5 de Março de 2014, a autora acordou com a sociedade comercial S..., SA. na realização da obra de elaboração do projeto e execução da reabilitação e ampliação da estação de tratamento de águas residuais denominada ETAR do ...; 8. Esta obra estava incluída no seguro que foi celebrado pela autora junto da ré; 9. No decurso da execução dos trabalhos pela autora constatou-se que existiam anomalias que provocavam o transbordamento das águas da estação de tratamento de águas residuais; 10. O transbordamento das águas resultou de um erro de cotas no levantamento topográfico que foi realizado antes do início dos trabalhos; 11. O levantamento topográfico foi realizado pela autora através de um topógrafo que era seu funcionário; 12. O projeto da obra foi elaborado com base nas cotas que constavam do levantamento topográfico; 13. Assim, pese embora a obra tivesse sido executada de acordo com o que foi projetado, porque as cotas do levantamento topográfico não estavam corretas constatou-se que ocorria o transbordamento das águas da estação de tratamento de águas residuais; 14. A autora teve de executar diversos trabalhos de reparação destas anomalias suportando os respetivos custos, pelos quais pretende ser reembolsada pela ré; 15. No dia 11 de Março de 2016, a autora participou o sinistro à ré no âmbito do seguro que havia celebrado. 2.3. – Se o sinistro está coberto pelo contrato de seguro O acórdão recorrido descreveu a situação do sinistro da seguinte forma: “Conforme resulta dos factos apurados e da sentença em crise, o sinistro descrito pela autora consistiu em que no levantamento topográfico que foi realizado pela autora através de um topografo, seu funcionário, antes do início dos trabalhos ocorreu um erro de cotas. O projeto da obra foi elaborado com base nas cotas do levantamento topográfico. Ora, pese embora a obra tivesse sido executada de acordo com o que foi projetado, porque as cotas do levantamento topográfico não estavam corretas constatou-se que ocorria um transbordamento das águas da estação de tratamento de águas residuais. Em consequência, a autora teve de executar diversos trabalhos de reparação destas anomalias suportando os respetivos custos, pelos quais pretende ser reembolsada”. Após proceder a análise do contrato de seguro, e distinguir justificadamente entre levantamento topográfico e projecto de obra, o acórdão recorrido considerou que os danos reclamados estão cobertos pela condição particular nº4 (“Assim sendo, e tendo em atenção a cláusula 4ª atrás referida, entendemos que os danos sofridos pela ora recorrente, em razão de imperícia de um dos seus trabalhadores, ao realizar o levantamento topográfico, ali se encontram cobertos”). A Ré recorrente sustenta que os danos reclamados não estão cobertos pelo contrato de seguro, por estarem excluídos pelo ponto 2 da condição especial 07, pelo Ponto 6. e Ponto 7. do Artigo 7º das Condições Gerais) e pela Condição Especial 10 (“manutenção ampla”), no Ponto 2. Alínea c), as perdas e danos devidos a “erro ou deficiência de conceção, de projeto, de desenho ou de cálculo”. O contrato de seguro deve ser reduzido a escrito, num documento designado por apólice, que titula o contrato celebrado entre o tomador do seguro e a seguradora, de onde constam as respectivas condições gerais, especiais, se as houver, e particulares acordadas (arts.32 e segs. do Decreto-Lei nº 72/2008 de 16/4). O contrato de seguro em relação ao qual o segurado apenas tem a opção de aceitar ou rejeitar em bloco o conteúdo contratual que lhe é proposto, dentro do tipo contratual desejado pelas partes, exprime a estipulação de contrato de adesão, pelo que devem ser submetidos a controlo judicial não só ao nível do conteúdo das condições gerais do contrato, relevando, para tanto, as normas de ordem pública ( art.280 do CC ) e as cláusulas gerais da boa fé ( arts.227 nº1 e 762 nº2 do CC ), como também ao nível da tutela da vontade do segurado, tomando-se em conta os critérios interpretativos dos arts.236 e 237 do CC. E se o risco pode ser delimitado pelas partes, a verdade é que pela ambiguidade e amplitude das exclusões não pode chegar-se a um esvaziamento do próprio objecto do contrato de seguro, por contrariar o princípio da boa-fé. O Decreto Lei nº446/85 de 25/10 ( com as alterações legais posteriormente introduzidas) estabelece, como princípio geral, que “as cláusulas gerais são interpretadas de harmonia com as regras relativas à interpretação e integração dos negócios jurídicos, mas sempre dentro do contexto de cada contrato singular, em que se incluam” (art.10º) e, nesta medida, adoptando-se uma metodologia semelhante à do Código Civil (art.236 e segs.), dá-se, no entanto, prevalência a uma justiça individualizadora, ao remeter-se para o contexto de cada contrato singular. Assim, na interpretação das cláusulas do contrato de seguro deve apurar-se o sentido normal da declaração, ou seja, o sentido que um declaratário normal, colocado na posição do real declaratário, possa deduzir do comportamento do declarante, segundo a teoria da impressão do destinatário (art.236 nº1 do CC). Mas nos negócios formais não pode a declaração valer com um sentido que não tenha um mínimo de correspondência no texto do respectivo documento, ainda que imperfeitamente expresso (art.238 do CC). Isto significa que a letra do negócio (o texto do documento) surge como limite à validade de sentido com que o negócio deve valer, nos termos gerais da interpretação. Porém, constituindo um claro afloramento do princípio geral da justiça contratual, o art.11 nº1 determina que “as cláusulas contratuais gerais ambíguas têm o sentido que lhes daria o contraente indeterminado normal que se limitasse a subscrevê-las ou aceitá-las, quando colocado na posição de aderente real”, prevalecendo, na dúvida, o sentido mais favorável ao aderente (nº2). No contrato de seguro, as condições particulares prevalecem sobre as condições gerais, por se reportarem especificamente a cada contrato em concreto, adaptando-o às particularidades do risco (cf., por ex., Ac STJ de 4/12/2014 ( proc nº 919/13), em www dgsi.pt ). Entre a Autora (tomadora) e a Ré (seguradora) foi celebrado, em 6 de Julho de 2012, um contrato de seguro titulado pela Apólice nº...93, sendo capital de seguro de € 500.000,00, com uma franquia de 10,00% do valor dos danos, no valor mínimo de € 250,00; O que se discute é a questão de saber se os danos alegados estão cobertos pelo seguro, o que postula um problema de interpretação do contrato. Na verdade, a Autora reclama o pagamento dos custos com a execução dos trabalhos necessários a compensar o “afogamento” causado pelos trabalhos de execução levados a cabo por erro do levantamento topográfico, efectuado por um seu funcionário, custos que abrangem a compensação das cotas e a substituição dos equipamentos danificados (cf arts.16, 17 e 18 da petição inicial). A recorrente, socorrendo-se da interpretação feita na sentença, alega que a distinção entre levantamento topográfico e o projecto é meramente artificial. No entanto, são coisas distintas, como se demonstra cabalmente no acórdão recorrido, cuja fundamentação se acolhe. A cláusula de exclusão do art.7 -7 das condições gerais (“despesas com rectificação de erros ou defeitos verificados em plantas, desenhos, cálculos e outras peças desenhadas ou escritas) e a cláusula 7 -2 c) das condições especiais (“as perdas e danos resultantes de erro ou deficiência de concepção, de projecto, de desenho ou de cálculo, que fossem ou devessem ser do conhecimento do Segurado antes da ocorrência de qualquer sinistro”) não se aplicam ao caso em apreço. Na verdade, considerando o critério de orientação já definido, a interpretação do art.7-7, tendo em conta o elemento literal e a sua conjugação com o âmbito da cobertura expresso na cláusula 6-1 i), é no sentido de que a exclusão se reporta às “despesas com a rectificação” dos erros ou defeitos em plantas, desenhos, “neles verificados”, e não às perdas e danos resultantes dos erros, às suas consequências na execução. Já na cláusula de exclusão 7-2 c) condições especiais se prevê as perdas e danos resultantes do erro ou deficiência de concepção, de projecto, de desenho ou de cálculo, mas que “fossem ou devessem ser do conhecimento do Segurado antes da ocorrência de qualquer sinistro”. Ora, o levantamento topográfico se pode reduzir a tal, e mesmo assim sempre se imporia que o erro ou deficiência devesse ser conhecido do Segurado. Também não se aplica aqui, contrariamente ao alegado pela recorrente, a cláusula de exclusão do art.7-6 das condições gerais (“despesas com a substituição de material defeituoso, rectificação de defeitos de construção ou má execução dos trabalhos (vício próprio de materiais ou mão-de-obra))”. Tanto a interpretação literal, como a sistemática, apontam no sentido da exclusão abranger as despesas com a execução da obra em si mesma, vícios do material e da mão de obra na execução, o que não é o caso. A condição especial 10-2 c) ao excluir da cobertura “o erro ou deficiência de concepção de projecto, de desenho ou de cálculo” não pode ser interpretada como abarcando o procedimento de levantamento topográfico, porque o que se postula é o erro ou deficiência de “concepção de projecto” em si mesmo, ou seja, da sua criação. E sendo assim, parece reportar-se ao projecto de arquitectura e projecto de engenharia. Por isso, adere-se à fundamentação plasmada no acórdão no sentido de que a cobertura dos alegados danos está garantida nas condições especiais 1, 2 e 4 (“Trabalhos defeituosos devido a imperícia ou negligência do pessoal do segurado”), argumentando, a dado passo: “Ou seja, apesar de, como atrás se referiu, o erro ou deficiência no levantamento topográfico causador de perdas ou danos não caber no âmbito da condição especial 07 – que sob a epígrafe “Consequências de erros de projeto”, refere abranger “(…)as perdas e danos sofridos pelos bens seguros em consequência de sinistros, ocorridos durante o período de construção fixado nas Condições Particulares, devido a erro ou deficiência de conceção, de projeto, de desenho ou de cálculo”, a verdade é que, o contrato, na condição particular atrás referida, garante ao segurado, até ao limite do valor estabelecido nas Condições Particulares, a indemnização por quaisquer perdas e danos materiais, súbitos e imprevistos, verificados nos bens objeto deste seguro, seja qual for a causa, designadamente, trabalhos defeituosos devido a imperícia ou negligência do pessoal do segurado. Como refere a recorrente em sede de conclusões, o contrato de seguro é redigido pelas Seguradoras de forma unilateral, sujeitando-se o segurado às cláusulas contratadas e à sua redação. Ora, em caso de dúvida na interpretação destas cláusulas deverá, sempre, prevalecer o sentido e alcance que lhe daria um declaratário normal, nos termos do disposto no artº 236º do Código Civil, desde que, nos termos do artº 238º do mesmo diploma legal e porque estamos perante um negócio formal, tenha um mínimo de correspondência com o texto do respetivo documento. Assim sendo, e tendo em atenção a cláusula 4ª atrás referida, entendemos que os danos sofridos pela ora recorrente, em razão de imperícia de um dos seus trabalhadores, ao realizar o levantamento topográfico, ali se encontram cobertos.” 2.4. – Se Relação estava legitimada a condenar a Ré no pagamento da quantia de € 50.246,65 – o valor da indemnização Afirmada a validade e a cobertura do seguro, vejamos agora, sendo esta a segunda questão submetida a revista, se a Relação estava legitimada a condenar a Ré no pagamento da quantia de € 50.246,65. Alega a recorrente que o valor dos danos foi impugnado, pelo que ao condenar em tal montante o acórdão é nulo, nos termos do art.615 nº1 d) CPC, por estar dependente da produção de prova. Não caracterizou suficientemente a imputada nulidade, porventura querendo referir-se à omissão de pronúncia, por se haver omitido a produção de prova, como de resto foi interpretado pela Relação no acórdão posterior. Mas a nulidade do acórdão por omissão de pronúncia constitui um erro de actividade ou de construção da própria decisão, em que o tribunal não conheceu de questão submetida à sua apreciação, o que não é o caso, pois o que está em causa é o alegado erro de julgamento. A Autora alegou na petição inicial o seguinte: “44. De resto, decorre do contrato – e bem assim da prática – que, havendo participação do sinistro, o Segurador, no caso a Ré, deverá proceder às averiguações e perícias necessárias ao reconhecimento do sinistro e avaliação dos danos – cfr. artigo 22.º das Condições Gerais. 45. Sucede que, como supra explanado, a Ré, ainda que tenha efetuado a peritagem e identificado a causa do sinistro, não mais se se pronunciou quanto ao reconhecimento do mesmo. 46. Assim, incumprindo com a obrigação de reconhecimento do sinistro e de avaliação dos danos, deverá o Segurador responder pelas perdas e danos reclamados no sinistro. 47. Deste modo, tendo em conta que na presente está em causa uma perda parcial, isto é, contratualmente fixada como destruição de parte ou partes dos trabalhos efetivamente realizados até à data da ocorrência do sinistro, deverá haver lugar a indemnização por parte do Segurador correspondente ao custo das reparações – cfr. artigo 72.º das Condições Gerais. 48. Aqui chegados, e uma vez que a Autora apresentou proposta de reparações e efetuou as reparações pelo montante de € 50.246,65 (cinquenta mil duzentos e quarenta e seis euros e sessenta e cinco cêntimos) acrescido de IVA à taxa legal em vigor – cfr. documentos n.º 9 e 10 já juntos - deverá ser indemnizada nesse montante pela Ré, o que desde já se requer. A Ré impugnou na contestação o valor peticionado, alegando o seguinte: “28º Quanto ao valor peticionado na presente ação, a R. impugna, pois em sede de peritagem apenas foram reclamados € 33.046,65 mais IVA, valor aceite pelos peritos como sendo o necessário para a reparação, independentemente das conclusões quanto ao não enquadramento na apólice.” Contrariamente ao alegado pela Autora, a circunstância da Ré Seguradora não se pronunciar após a participação não tem como consequência a aceitação do valor reclamado, pois tal não resulta do contrato, nem da lei. Não resulta dos arts.22, 72 e 79 das condições gerais do contrato de seguro, nem da Lei do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei nº 72/2008 de 16/4 (arts. 100 e 10). Sendo assim, dado que o valor da indemnização constitui facto controvertido, porque expressamente impugnando, não estava a Relação legitimada a condenar a Ré pelo valor alegado, porque o estado do processo não o permitia (art.595 nº1 b) CPC). Verifica-se, portanto, o vício da insuficiência, sendo indispensável a ampliação de facto para a decisão de direito, a implicar o reenvio do processo à Relação, nos termos do art.682 nº3 CPC, apenas com vista ao apuramento do valor da indemnização. III – DECISÃO Pelo exposto, decidem: 1) Determinar a remessa do processo ao Tribunal da Relação para que nele (ou, por sua determinação, na 1.ª instância, sendo necessário) se aprecie o facto alegado pela Autora, mas impugnado pela Ré, relativo ao valor da indemnização. 2) Condenar a Ré/recorrente e a Autora/recorrida nas custas do recurso, na proporção de metade para cada.
Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 18 de Junho de 2024. Jorge Arcanjo (Relator) Jorge Leal Nelson Borges Carneiro |