Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
2072/21.ST8LSB.L1.S1
Nº Convencional: 7.ª SECÇÃO
Relator: FERREIRA LOPES
Descritores: NULIDADE DE ACÓRDÃO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
PODERES DA RELAÇÃO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
APRECIAÇÃO DA PROVA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
Data do Acordão: 11/14/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA E ANULADO O ACÓRDÃO RECORRIDO
Sumário :
I – O acórdão da Relação que rejeita o recurso sobre a matéria de facto, podendo constituir “violação ou errada aplicação da lei de processo” é passível de impugnação perante o STJ (art. 674º/1, b) do CPC);

II – Como a aferição do (in)cumprimento do disposto no art. 640º, nº1, apenas se coloca no âmbito circunscrito do acórdão recorrido, inexiste a sobreposição decisória que caracteriza a dupla conforme;

III – Constitui entendimento consolidado do STJ o de que a análise do cumprimento dos requisitos constantes do art. 640º do CPC obedece aos princípios gerais de proporcionalidade, adequação e razoabilidade;

IV – Não respeita tais princípios a rejeição do recurso de facto sobre três pontos no entender do recorrente incorrectamente julgados provados, tendo indicado três depoimentos em que baseia o recurso, apenas porque não foi preciso e exacto na indicação do segmento da gravação quanto a um dos depoimentos (alínea a) do nº2 do art. 640º), e por a impugnação ter sido feita em bloco quanto aos três factos.

Decisão Texto Integral:

Acordam no Supremo Tribunal de Justiça


AA intentou contra BB e esposa, CC, acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum, pedindo que se declare nulo, por vício de simulação, o negócio de compra e venda representado na escritura transcrita no ponto 35º da petição, e, consequentemente, se ordene o cancelamento da inscrição a que se refere a Ap. 12 de 17.12.2005, incidente sobre o prédio descrito sob o n.º .78, ....

A fundamentar o peticionado, alegou, em síntese:

No dia 29.11.2005, DD, advogada, compareceu perante o notário EE, em representação de FF, mãe da A., e do R., munida de duas procurações, outorgadas por cada um deles, e outorgou escritura, em sua representação, de compra e venda, nos termos da qual a referida FF vendeu ao R. a fração autónoma designada pela letra “O” a que corresponde o 2º andar, letra C, destinada a habitação, do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo .75, pelo preço de €100.000,00, declarado pago, declarando, ainda, constituir a favor da referida FF usufruto vitalício sobre essa mesma fração.

Sucede que o negócio representado nesta escritura foi combinado entre FF e o R., com quem mantinha um relacionamento extraconjugal, com o intuito de prejudicar a A., sua única e universal herdeira, porquanto não se conformava que a fração ficasse para a filha por seu óbito, pois nunca manteve qualquer relação próxima com a filha, tendo-a rejeitado e desprezado desde a sua infância, sendo sua vontade deixar todos os seus bens ao R. e aos seus filhos, com os quais mantinha uma relação próxima.

A referida FF sabia que para assegurar tal vontade não lhe bastaria constituir o R. como seu herdeiro porque sempre teria que assegurar a legítima da sua filha, e por isso procurou informar-se sobre qual a melhor forma para subtrair do seu património o apartamento que se encontrava registado a seu favor, de maneira a assegurar que, após a sua morte, passaria o mesmo a integrar o património do R., ou, caso este falecesse antes de si, que o apartamento integrasse diretamente o património dos seus filhos, sendo o R. conhecedor desta intenção de FF e procurou-a ajudar na sua estratégia.

FF não recebeu qualquer montante do R. a título de preço, e este também nada pagou, ou se pagou foi para “fazer giro do dinheiro”.

O valor de €100.000,00 indicado pela transmissão mostra-se irrisório face ao valor de mercado da fração que, à data, ascendia a, pelo menos, €250.000,00, e sendo, atualmente, o seu valor de mercado de €500.000,00.

O preço foi indicado pela sua procuradora, sem o seu conhecimento e sem qualquer correspondência à realidade.

Nem a R. teve conhecimento do negócio declarado, ou participação no mesmo.

Só agora, após a morte da sua mãe, a A. teve conhecimento que o apartamento em causa está registado a favor dos RR.

Citados, os Réus contestaram, por excepção e por impugnação.

Foi proferida sentença que julgou a acção procedente, tendo declarado “a nulidade da transmissão da fração autónoma designada pela letra “C” do imóvel sito na Rua ..., da freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .78,” com o consequente cancelamento do registo de propriedade a favor do réu”.

Os Réus interpuseram recurso da sentença.

Por acórdão da Relação de Lisboa de 21.05.2024, por unanimidade, foi a apelação julgada improcedente e confirmada a sentença.

Ainda inconformados, os RR interpuseram recurso de revista excepcional, cujas alegações concluem como segue:

i. O presente recurso é apresentado ao abrigo do art.º 672.º, n.º 1 do CPC, sendo um recurso de revista excecional.

ii. Desde logo, podemos indicar que a matéria a ser sindicada nos presentes autos, é relativa ao instituto da simulação, arguida por terceiro e por se discutir a quem incumbe o ónus da prova da mencionada simulação, e, se o juiz, pode ou não, socorrer-se de deduções judiciais para julgar que determinado negócio é simulado (no fundo, à saciedade de outras provas, o julgador subsitue-se à parte de quem tem o referido ónus) e sobre quais são “esses factos provados” em que se estriba a sentença para concluir naquele sentido, daí entendermos que estamos perante uma questão (a quem pertence o ónus da prova), cuja apreciação, pela sua relevância jurídica é necessária para uma melhor aplicação de direito (art.º 672.º n.1, al. a) do CPC). Isto por um lado.

iii. Sendo que a questão social em apreço, a forma como pode ser provado o negócio, alegadamente, simulado através de escritura pública, se, nomeadamente, “[o] julgador pode/deve socorrer-se dos vários indícios demonstrativos “da síndrome simulatória” para dar como provada a vontade real dos outorgantes do negócio” e saber quais são esses indícios e que arrimo têm com a realidade, pelo que nos parece, s.m.o., os interesses de particular interesse (art.º 672.º n.1, al. b) do CPC), por se tornar essencial à segurança e certeza jurídicas.

iv) Por outro, o acórdão recorrido está em contradição com vários acórdãos, quer do Tribunal daRelação deLisboa (TRL), quer do Supremo Tribunal deJustiça (STJ), em que todos os arestos defendem que a prova a produzir é por quem invoca o direito, ao que acresce que o STJ, mais indica ““A prova dos requisitos, cuja demonstração permite ao julgador concluir que se está perante um negócio simulado, cabe a quem invocar essa patologia contratual, como decorre da regra do art.342º do CC. Por outro lado, quando o negócio alegadamente simulado tiver sido celebrado através de documento autêntico ou equiparado, a simulação não pode ser demonstrada através de qualquer meio de prova, como decorre da interpretação conjugada dos artigos 371º e 394º, n.1 e n.2 do CC.

v. 3.4. Para se concluir que o negócio foi simulado não basta ao julgador a perceção sociológica da aparência de alguns indícios que possam apontar para uma eventual simulação, como, no caso concreto, o facto de o insolvente ser sobrinho da ”.

vi. Indicamos os acórdãos em contradição e em oposição com o recorrido: a. O Acórdão interlocutório n.º 2072/21.5T8LSB-A.L1 proferido nos presentes autos que se junta sob a designação de doc. n.º 1

b. O acórdão proferido pelo Supremo Tribunal da Justiça, âmbito do processo n.º 6590/01, que se junta sob a designação de doc. n.º 2;

c. O acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, âmbito do processo n.º 1967/17.5T8PRD.P2.S1, que se junta sob a designação de doc. n.º 3

d. O Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, âmbito do processo n.º 64/2001.L1-8, a 08-07-2010, que se junta sob a designação de doc. n.º 4

e. Por fim, o acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito do processo n.º 3683/16.6T8CBR.C1.S2 proferido a 31-3-2019, que se junta sob a designação de doc. n.º 5.

vii. Entendem os Recorrentes terem dado cumprimento ao art.º 672.º n.º 1 do CPC, porém, e sempre com o douto suprimento de V. Exas. poderá o recurso ser admitido nos termos do art.º 672.º n.º 5 do CPC, sendo as suas

Conclusões:

1. Impõe-se, por estarem em tempo e terem legitimidade, elencar algumas invalidades, que os Recorrentes entendem como nulidades insanáveis e inconstitucionais como infra procuraremos concluir:

2. Em sede de recurso, alegaram os Recorrentes: “[a]inda que não existisse o documento clínico a comprovar a doença de que padece a R. CC e a sua incapacidade para prestar depoimento (não impugnado pela parte), e o despacho a dispensar tal meio de prova (transitado em julgado), atente-se que do depoimento de parte (ínsito no ficheiro “15:04 - 15:43 - Réu: CC”, prestado a 10-05-2023, consultável na plataforma citius a partir de ..., Canadá, hora portuguesa), resulta claro e à evidência que (…), (estas afirmações duraram 14 minutos até ser tomado o juramento à R.), destacado nossos.

3. Apesar destas afirmações reveladoras, para o homem médio, da doença relatada, foi recebido o depoimento da R. CC e valorado, nomeadamente quanto ao montante de € 7 000,00 para início de raciocínio da 1.ª Instância.

4. Pelo que o Tribunal da Relação deveria ter ouvido os primeiros 14 minutos, relativamente aos costumes, para compreender que a R. não estava na plenitude das suas faculdades, ao abrigo do poder/dever ínsito no n.º 2 do art.º 662.º do CPC, nomeadamente quanto ao sentido do depoimento, que o mesmo reconhece “A argumentação constante das conclusões 17/18 e 20/21 poderão, eventualmente, relevar em sede de impugnação da decisão sobre.

5. Os recorrentes afirmaram nas suas motivações que “[no] que respeita à testemunha GG (cujo depoimento de e a matéria de facto. 05-06-2023 e se encontra no ficheiro áudio 09:56 10:33 00:37:02 Testemunha: GG), retira o tribunal a quo a seguinte conclusão: “afirmou ter o preço sido pago em dinheiro no Notário”.

6. Acresce que o depoimento de parte do R. BB foi cindido

7. Apenas consta a assentada a parte confessória, que de resto é irrelevante para o desfecho da presente ação, i.e., confirmou o ponto 2 dos temas da prova: “[a]té à sua morte, FF suportou o imposto municipal sobre imóveis, as taxas de saneamento e as despesas de conservação e encargos do condomínio”.

8. No mais, em que explica como todo o negócio foi celebrado, o tribunal a quo não o valoriza, apenas refere que o Recorrente afirmou ter pagado, para de seguida desconstruir a sua afirmação, quando o faz o seu inverso em relação à sua mulher, que retira factos não constantes da assentada.

9. O facto de se se requerer ao Tribunal de recurso que determinado depoimento seja ouvido na íntegra, não viola, s.m.o., qualquer dever processual, dado que o não fez de forma generalizada, como reconhece o TRL, mas apenas quanto ao recorrente.

10. Se em relação ao depoimento do Recorrente até, sem conceder, podermos admitir que o recurso quanto à reapreciação daquele depoimento e declarações seja rejeitado, já não se pode aceitar em relação à Recorrente CC e Testemunha GG, que são a essência da dedução judicial para concluir pela simulação sejam rejeitadas em bloco.

11. De resto, os Recorrentes foram convidados a aperfeiçoar as suas conclusões, cfr. fls.__ por douto despacho da Ex.ma. Senhora Juiz Desembargadora Relatora, que fez constar que: “[p]or outro lado, no que respeita ao que deve constar das conclusões quando se impugna a decisão sobre a matéria de facto, deve atentar-se ao que, de forma clara e pertinente, se escreveu no Ac. do STJ de 19.2.2015, P. 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes), em www.dgsi.pt, ou seja, “… enquanto que a especificação dos concretos pontos de facto deve constar das conclusões recursórias, já não se afigura que a especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações devam constar da síntese conclusiva, bastando que figurem no corpo das alegações, posto que estas não têm por função delimitar o objeto do recurso nessa parte, constituindo antes elementos de apoio à argumentação probatória” (negrito nosso)”, sublinhado nosso.

12. Aliás, em conformidade com o acórdão do STJ n.º 12/2023, de 14-11: Nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 640.º do Código de Processo Civil, o Recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa.

13. No estrito cumprimento do douto despacho, os Recorrentes apresentaram as suas conclusões, e, tal como determinado pela Ex.ma. Senhora Juiz Desembargadora Relatora não indicaram nas conclusões especificação dos meios de prova nem, muito menos, a indicação das passagens das gravações.

14. No entanto, o Acórdão em crise é referido que: “É que, se em relação ao depoimento das testemunhas GG e HH os apelantes indicam com exatidão as passagens da gravação em que fundam o seu recurso, o mesmo não sucede em relação ao depoimento de parte do R., em que os apelantes se limitam a requerer “a reapreciação do seu depoimento, prestado a 10-05-2023, (em vários ficheiros de áudio, dado que o R. se encontrava a depor no Canadá, ..., na sua residência, com início às 11h 42m portuguesas), em que explica como todo o negócio foi celebrado”, não transcrevendo, sequer, qualquer parte desse depoimento, concretamente as passagens que, eventualmente, ilustrem de forma mais completa e inteligível os motivos da pretendida alteração da decisão sobre a matéria de facto(…)

Nessa conformidade, afigura-se-nos ser de rejeitar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no art. 640º, 2, do CPC”.

15. Na verdade, e, s.m.o., apenas não poderia ser rejeitado o recurso quanto à apreciação do depoimento da Recorrente e das declarações da testemunha GG.

16. Em processo civil existindo o princípio do aproveitamento dos atos, e não se tratando de contaminação de prova proibida por estar envenenada, não alcançamos uma decisão em bloco que rejeite a apreciação das declarações das restantes testemunhas.

17. Até por que, não alcançamos que o pedido da audição de um depoimento de parte não possa ser na sua totalidade, quando até referimos nas alegações que “sobre os temas: “3 Da vontade de FF vender o imóvel. 4 Da vontade do R. BB comprar o imóvel. 5 Se o R. BB pagou o preço de 100 000,00”, que o R. explicou e desenvolveu, (…), em que explica como todo o negócio foi celebrado, o tribunal a quo não o valoriza, apenas refere que o Recorrente afirmou ter pago, para de seguida desconstruir a sua afirmação”.

18. Que mais não fosse, deveria o Tribunal da Relação a quo lançar mão do n.º 2 do art.º 662.º do CPC, nomeadamente quanto ao sentido do depoimento, que o mesmo reconhece “A argumentação constante das conclusões 17/18 e 20/21 poderão, eventualmente, relevar em sede de impugnação da decisão sobre a matéria de facto”, pois dispõe de mecanismos legais para evitar uma decisão drástica e tão penalizadora, violando a justa composição do litígio como compete nos termos do art.º 7.º n.º 1 do CPC.

19. Face ao exposto: a rejeição da reapreciação de toda a prova testemunhal requerida, mesmo quando o recorrente cumpre todos os ónus processuais relativamente a determinados depoimentos/declarações, é uma aplicação, em nosso entender por interpretação e consequente aplicação inconstitucional do art.º 640º, nº 2, do CPC´, por clara violação do art.º 2.º e art.º 20.º n.º 4 da Constituição da República Portuguesa (CRP), por atentarem contra os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

20. Inconstitucionalidade que se alega e invoca para todos os efeitos.

21. Com bem referido pelo STJ, no acórdão proferido a 31-3-2019, em que se pode ler no sumário: “[n]a verificação do cumprimento dos ónus de impugnação previstos no citadoartigo 640º, os aspetosdeordem formal devem ser modelados em função dos princípios da proporcionalidade e da razoabilidade (…)”, sublinhado e destacado nossos.

22. Nem se pode alegar que os recorridos viram o seu direito ao contraditório prejudicado, pois bem se nota pelas suas contra-alegações terem entendido muito bem a referências às passagens elencadas.

23. Pelo que não deveria o recurso quanto à reapreciação de prova improceder, mas antes ser reapreciada, pelo menos aquela sobre a qual os recorrentes cumpriram o ónus daprovaereapreciadaoficiosamenteaqueles depoimentos(ao abrigo do art.º 662.º n.º 12 do CPC), relativas as conclusões que o próprio TRL entendeu como importantes para efeitos de prova.

24. No presente caso, o julgador “não” pode/deve socorrer-se dos vários indícios demonstrativos “da síndrome simulatória” para dar como provada a vontade real dos outorgantes do negócio.

25. O raciocínio que o tribunal da primeira instância faz para chegar à existência da simulação é a seguinte:

- O afastamento da decujuse da filha, querendo o tribunal indiciar que a primeira quis prejudicar a filha, daí a simulação;

- A proximidade entre a de cujus e os recorrentes e por isso os quis beneficiar.

- Mais estriba o seu raciocínio nas declarações (verdadeiramente cindidas e mal valoradas) da testemunha GG: sido transmitido por esta que o apartamento de ... seria para os réus e que tinha ‘’deserdado a filha, genro e neto18’’

a. “(…) não se colheu da prova testemunhal produzida que a vontade expressa na escritura pública correspondesse a uma vontade real de transmissão onerosa da fracção autónoma propriedade da mãe da autora (…)”

b. Relativamente aos pontos 3 e 4, não se colheu da prova testemunhal produzida que a vontade expressa na escritura pública correspondesse a uma vontade real de transmissão onerosa da fracção autónoma propriedade da mãe da autora (….)”,

c. No tocante ao ponto 5 nenhuma evidência emergiu da prova produzida que o réu tenha entregue o preço indicado na escritura. (….)

27. Resumidamente:

a. Não se colheu prova testemunhal quanto às vontades reais, ónus dos recorridos.

b. Nenhuma evidência emergiu da prova produzida que o réu tenha entregado o preço indicado na escritura, ónus dos recorridos

c. Não há indícios suficientes, muito menos demonstrativos, para o julgador declarar o negócio como simulado, ónus dos recorridos.

28. Os recorrentes afirmam que os recorridos não lograram provar que o negócio foi simulado.

Nestes termos e nos demais de Direito, deve o recurso apresentado ser recebido, proceder por provado e revogado o douto acórdão proferido pelo tribunal a quo TRL, pugnando-se:

1) O ónus da produção de prova no caso concreto pertence exclusivamente à Recorrida/autora, o que não ocorreu;

2) A rejeição do recurso, em bloco, no que respeita à reapreciação da prova e correspondente impugnação da factualidade provada, quando o impugnante cumpre na íntegra, relativamente a determinada prova testemunhal, os ónus exigidos pelo art.º 640.º do CPC deverá ser considerada a interpretação do art.º 640º, nº 2, do CPC inconstitucional, por clara violação do art.º 2.º e art.º 20.º n.º 4 da Constituição da RepúblicaPortuguesa (CRP), por atentarem contra os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade.

3) A dedução lógica da primeira instância e secundada pelo TRL é infundada, ou se se preferir os indícios são inexistentes para se concluir pela simulação.

4) Não colhendo e sem conceder, deverá determinada a reapreciação da prova requerida seguindo-se os ulteriores termos.


///


A Recorrida contra alegou, tendo formulado as seguintes conclusões:

1.ª - Os recorrentes, o acórdão recorrido e a jurisprudência aplicável ao caso concreto seguem o mesmo entendimento relativamente a quem incumbe o ónus da prova da simulação, pelo que, não se verifica uma situação de especial complexidade, nem de discórdia na doutrina ou jurisprudência portuguesas, nem, aliás, uma questão que mereça a intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, - vd. Ac. TR de Lisboa, de 03.11.2022, proc. n.º 2637/19.5T8LRS-A.L1-8

2.ª - Os recorrentes pretendem a revogação do acórdão recorrido e não a apreciação de uma questão essencial para uma melhor aplicação do direito, sendo que,aquelesnãoindicamasrazõespelasquaisaapreciaçãodaquestãoéclaramente necessária para uma melhor aplicação do direito - vd. al. a), n.º 1 e n.º 2, art.º 672.º CPC.

3.ª - Os interesses de particular relevância social respeitam a aspetos fundamentais da vida em comunidade, suscetíveis de gerar sentimentos coletivos de inquietação, angústia, insegurança, intranquilidade, alarme, injustiça ou indignação e os recorrentes não indicam na sua alegação as razões pelas quais os interesses eventualmente em causa são de particular relevância social - vd. Ac. STJ, de 29.03.2023, proc. n.º 1400/13.1TTPRT.P1.S2 - vd. al. b), n.º 1 e n.º 2, art.º 672.º CPC

4.ª - Os acórdãos-fundamento invocados pelos recorrentes seguem a mesma linha argumentativa e decisória do acórdão recorrido, pelo que, não se verifica qualquer contradição do acórdão recorrido com esses acórdãos-fundamento, no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito - vd. al. c), n.º 1, art.º 672.º CPC.

5.ª - Os recorrentes não indicam na sua alegação os aspetos de identidade que determinam a alegada contradição de decisões - vd. c), n.º 2, art.º 672.º CPC.

6.ª - Pelas razões expostas, a revista excecional interposta pelos recorrentes é legalmente inadmissível, devendo ser rejeitada.

7.ª - Os recorrentes não concretizam que “nulidades insupríveis” se verificam in casu, não determinam a sua respetiva previsão legal, nem peticionam a verificação ou a declaração de qualquer eventual nulidade cometida nos autos, pelo que, essas “nulidades insupríveis” não poderão ser atendidas, sob pena de tal configurar uma decisão "ultra petitum" ou "extra petita partium", o que acarretaria a nulidade do acórdão a proferir - vd. n.º 1, art.º 609.º; al. e), n.º 1, art.º 615.º CPC, ex vi 666.º e 685.º CPC

8.ª - As nulidades previstas nos artigos 186.º e seguintes do CPC respeitam ao cumprimento de formalidades legalmente exigíveis para a correta tramitação do processo e não se confundem com os atos ou omissões praticadas pelo tribunal, que a lei considera e classifica como nulidades do julgamento, da sentença ou do acórdão - vd. art.º 615.º e art.º 666.º CPC.

9.ª - Os recorrentes foram sempre representados por mandatário nos autos, pelo que, a invocação de eventuais “nulidades insupríveis”, em sede de revista excecional, configura ato que a lei não admite e manifestamente extemporâneo - vd. n.º 1, art.º 199.º CPC.

10.ª- Osrecorrentesnão autonomizam quaisquernulidades, não fundamentam essas alegadas nulidades, não peticionam a verificação dessas alegadas nulidades e pretendem apenas manifestar a sua discordância com o douto acórdão recorrido, o que não é legalmente admissível - vd. Ac. STJ, de 29.03.2022, proc. n.º 19655/15.5T8PRT.P3.S1

11.ª - Com a interposição da revista excecional a que ora se responde, pretendem os recorrentes a reapreciação da prova produzida nos autos sujeita à livre apreciação do juiz, nomeadamente, a prova testemunhal - vd. art.º 396.º CC

12.ª - O erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não pode serobjeto de recurso de revista, salvo havendo ofensa de norma legal que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, o que não se verifica in casu - vd. n.º 3, art.º 674.º CPC

13.ª - O Supremo Tribunal de Justiça não tem competências para sindicar o modo como o Tribunal da Relação reapreciou os meios de prova sujeitos a livre apreciação - vd. Ac. STJ, de 17.03.2022, proc. n.º 6947/19.3T8LSB.L1.S1.

14.ª - Ao Supremo Tribunal de Justiça, em regra, está apenas cometida a reapreciação de questões de direito, carecendo de competência para modificar a decisão sobre a matéria de facto - vd. n.º 1, art.º 674.º e n.º 1, art.º 682.º CPC.

15.ª - A intervenção do Supremo Tribunal de Justiça, quanto à matéria de facto, está limitada aos casos previstos no n.º 3 dos artº.s 674º e 682.º do CPC, o que exclui a possibilidade de o mesmo interferir no juízo do Tribunal da Relação, sustentado na reapreciação de meios de prova sujeitos ao princípio da livre apreciação, como depoimentos de testemunhas, documentos sem força probatória plena ou o uso de presunções judiciais (Acórdãos do. STJ de 07.07.2016, proc. n.º 487/14.4TTPRT.P1.S1 e de. STJ, de 09.03.2022, proc. n.º 4345/12.9TCLRS-A.L1.S1)

16.ª - Tal é precisamente a intenção dos recorrentes com a interposição do recurso de revista excecional a que ora se responde.

17.ª - Nas suas alegações de recurso, os recorrentes não demonstram se ou de que modo o uso de presunções judiciais pelo Tribunal da Relação ofende qualquer norma legal, se padece de ilogicidade ou se parte de factos não provados

18.ª-Aargumentaçãodosrecorrentesémeramentegenérica e abstracta, desprovida de qualquer de qualquer dedução lógica, alicerçada na eventual violação de qualquer norma legal.

19.ª - O acórdão recorrido não fez operar qualquer inversão do ónus da prova, antes se tendo socorrido de consolidados indícios retratados na matéria de facto provada para sustentar a vontade real da mãe da recorrida e do recorrente BB ao outorgarem o contrato de compra e venda objeto dos autos e, por tal efeito, a simulação desse negócio - vd. art.ºs 240.º, 286.º e 289.º CC.

20.ª - A matéria de facto dada como definitivamente provada pelo Tribunal da Relação de Lisboa fundamenta a interpretação e aplicação das normas legais em causa, pelo que, o acórdão recorrido não viola a lei ou a Constituição da República Portuguesa.


///


Factos provados.

Vem provada a seguinte matéria de facto:

1. - A A. nasceu em ...-...-1959 (doc. de fls. 11 verso).

2. - A A. é filha de FF (doc. de fls. 11 verso).

3. - Na década de 70, FF foi viver para o Canadá.

4. - FF comprou a fração autónoma designada pela letra “C” do imóvel sito na Rua ..., da freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o n.º .78, ficando a aquisição registada pela apresentação 1 de 17-9-1984 (doc. de fls. 12 verso a 13.

5. - Por escritura pública datada de 29-11-2005, FF declarou vender e o R. BB declarou comprar a referida fração “C”, pelo preço de € 100 000, 00, estando ambos representados por DD (doc. de fls. 13 a 15).

6. - Pela mesma escritura, ficou declarado que o direito de usufruto ficou reservado para FF.

7. - Em 9-10-2014, FF outorgou testamento em que legou a II todos os bens móveis e imóveis que viesse a possuir em território português, aquando do seu falecimento.

8. - FF faleceu em ...-...-2020, no estado civil de solteira (doc. de fls. 12).

9. - A A. foi habilitada como única herdeira legitimária de FF, conforme doc. de fls. 45 e 45.

10. - Com a declaração de compra e venda de 29-11-2005, os respetivos outorgantes pretenderam evitar que o imóvel viesse a integrar o acervo hereditário de FF, assegurando que ficaria na esfera patrimonial do réu, na sequência da relação de amizade que com ele família mantinha.

11. - Até à sua morte, FF suportou o imposto municipal sobre imóveis, as taxas de saneamento e as despesas de conservação e encargos do condomínio.

12 - A mãe da autora e o réu não negociaram qualquer condição do negócio declarado nem nele tiveram qualquer vontade de intervir.

13. A mãe da autora não recebeu qualquer montante do réu a título de preço.


///


Admissibilidade da revista excepcional.

Os Recorrentes interpuseram o presente recurso como revista excepcional, ao abrigo do disposto nas alíneas a) e c) do art. 672º do CPCivil, dizendo estar em causa uma questão com relevância jurídica e com fundamento em contradição jurisprudencial (alíneas a) e c)), tendo indicado vários acórdãos alegadamente em oposição com o acórdão recorrido.

Foram notificados para indicarem um único acórdão para valer como acórdão fundamento, o que cumpriram, tendo indicado o acórdão do STJ de 10.11.2020, proferido no P. nº 1967/17.T8PRD.P2.S1.

Na revista está ainda em causa a decisão do acórdão recorrido que decidiu rejeitar a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto apresentada pelos Recorrentes, por alegado incumprimento da exigência estabelecida na alínea b) do nº1 do art. 640º do CPCivil.

Conforme entendimento constante do STJ, que não obstante ser residual a intervenção do Supremo no tocante à decisão sobre a matéria de facto e de o nº4 do art. 662º do CPC ser peremptório a determinar a irrecorribilidade das decisões da Relação na reapreciação da matéria de facto, é admissível julgar o modo de exercício desses poderes, dado que tal constitui “lei de processo” para os efeitos do art. 674º, nº1, b) do CPC.

Como a aferição do (in)cumprimento do disposto no art. 640º, nº1, apenas se coloca no âmbito circunscrito do acórdão recorrido, inexiste no caso, por sua própria natureza, qualquer pronúncia da 1ª instância sobre a matéria, não ocorre a sobreposição decisória que caracteriza a dupla conforme.

Tal significa, por um lado, que o recurso para o STJ escapa ao crivo enunciado no art. 671º, nº3 do CPC (dupla conforme); por outro, que a decisão do Tribunal da Relação é neste ponto passível de impugnação perante o Supremo Tribunal de Justiça, enquanto instância imediatamente superior, a quem cabe sindicar o modo de exercício dos seus poderes de reapreciação da matéria de facto ao abrigo do disposto no art. 662º do CPC. (cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ de 06.05.2021, P. 618/18, e de 14.05.2024, P.1408/17).

Pelo que o presente recurso de revista normal é, neste âmbito, admissível e exclui – relativamente à discussão sobre o incumprimento dos deveres consignados no nº1 do art. 640º do CPC – o conhecimento da revista excepcional.


///


Se a Relação incumpriu o seu dever de reapreciação da matéria de facto.

Nas conclusões 2ª a 4ª, os Recorrentes sustentam que o depoimento de parte da Ré “não deveria ter sido recebido e valorado”, por ter ficado evidente das suas declarações, designadamente os minutos iniciais, que a Ré CC sofre da “doença relatada, doença mental degenerativa, provável doença de Alzheimer.”

O depoimento de parte da Ré não teve natureza confessória (art. 352º do CCivil), e nessa medida está sujeito à livre apreciação do julgador (art. 466º, nº3, do Cód. Civil).

Como é consabido, e resulta expressamente do nº3 do art. 674º do CPC, é vedado ao STJ, como tribunal de revista, tomar posição sobre pretensos erros cometidos na apreciação da prova sujeita à livre apreciação, não lhe competindo avaliar a decisão do Tribunal da Relação que não viu qualquer óbice à valoração das declarações da parte.


///


A rejeição do recurso sobre a matéria de facto.

No recurso de apelação, os Recorrentes impugnaram os pontos 10, 12 e 13 da matéria de facto da sentença onde se consignou o seguinte:

10. Com a declaração de compra e venda de 29-11-2005, os respetivos outorgantes pretenderam evitar que o imóvel viesse a integrar o acervo hereditário de FF, assegurando que ficaria na esfera patrimonial do réu, na sequência da relação de amizade que com ele família mantinha.

12. A mãe da autora e o réu não negociaram qualquer condição do negócio declarado nem nele tiveram qualquer vontade de intervir.

13. A mãe da autora não recebeu qualquer montante do réu a título de preço.

Defenderam os Recorrentes que aqueles factos devem ser removidos do elenco dos factos provados, devendo, pelo contrário, dar-se como provado que: a. FF quis vender o imóvel; b. O R. BB quis comprar o imóvel; c. O R. BB pagou o preço de € 100 000,00.

O acórdão recorrido rejeitou a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no art. 640º, nº 2, do CPC, decisão assim justificada:

“(…) entendemos que os apelantes deram suficiente cumprimento ao disposto no art. 640º, nº 1, al. b), do CPC.

Mais duvidoso é que os apelantes tenham dado integral cumprimento ao disposto no nº 2 da referida disposição legal, que dispõe (…).

É que, se em relação ao depoimento das testemunhas GG e HH os apelantes indicam com exatidão as passagens da gravação em que fundam o seu recurso, já o mesmo não sucede em relação ao depoimento de parte do R., em que os apelantes se limitam a requerer “a reapreciação do seu depoimento, prestado a 10-05-2023, (em vários ficheiros de áudio, dado que o R. se encontrava a depor no Canadá, ..., na sua residência, com início às 11h 42m portuguesas), em que explica como todo o negócio foi celebrado”, não transcrevendo, sequer, qualquer parte desse depoimento, concretamente as passagens que, eventualmente, ilustrem de forma mais completa e inteligível os motivos da pretendida alteração da decisão sobre a matéria de facto.

Se os ónus mencionados não forem respeitados na íntegra, é possível rejeitar o recurso apenas quanto à parte que se mostra afetada (neste sentido ver Abrantes Geraldes, na ob. cit., pág. 208).

Sucede que, na situação em apreço, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto é feita conjuntamente quanto aos 3 factos provados impugnados, indicando os apelantes como meios probatórios em que fundam a sua pretensão, quanto a todos esses factos, precisamente os depoimentos das mencionadas duas testemunhas e depoimento de parte do R., para o qual os apelantes remetem na totalidade, em manifesta violação do mencionado preceito legal.

Nessa conformidade, afigura-se-nos ser de rejeitar a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, nos termos do disposto no art. 640º, nº 2, do CPC.”

Vejamos.

O art. 640º do CPCivil, enuncia os ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, estatuindo o seguinte:

1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que imponham decisão diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b), do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso nessa parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) (…).

O Supremo Tribunal de Justiça tem reiteradamente afirmado que a análise quanto à exigência do cumprimento dos requisitos constantes do art. 640º do CPC obedece desde logo aos princípios gerais de proporcionalidade, adequação e razoabilidade, com o primado da substância sobre a forma, em termos de afastar a solução de imediata rejeição da impugnação de facto no caso de as deficiências, estritamente formais, no cumprimento dos requisitos estabelecidos no art. 640º do CPC permitirem, não obstante, compreender e alcançar o seu exacto sentido, sendo assim perfeitamente possível ao julgador, sem especiais dificuldades ou acrescidos esforços, aquilatar em toda a sua amplitude e com toda a segurança do respectivo mérito, o que está em consonância com os princípios gerais consagrados nos art.s 18º, nºs 2 e 3 e 20º, nº4, da Constituição da República Portuguesa que preveem a garantia da tutela da jurisdição efectiva e do direito fundamental a um processo judicial equitativo e justo (cfr., neste sentido, e por todos, o acórdão do STJ de 14.05.2024, P. 1408/17.)

Não significa isto que se deva prescindir de um critério de rigor na verificação do cumprimento das exigências enunciadas no art. 640º, como decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo, como refere com toda a pertinência Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, p. 169.

Posto isto.

Não há qualquer dúvida e assim foi reconhecido pela Relação, que o Recorrente cumpriu os ónus das alínea a), b) e c) do nº1 do art. 640º, a saber: especificar os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; os meios de prova em que se baseia - os depoimentos das testemunhas GG e HH e o depoimento de parte do Réu - e a decisão que no seu entender deve ser proferida.

Quanto à exigência da alínea a) do nº2 do art. 640º, considerou o acórdão recorrido que foi cumprida relativamente às testemunhas GG e HH, mas que não o foi em relação ao depoimento de parte e por a impugnação ter sido feita em bloco, decidiu rejeitar o recurso sobre a matéria de facto.

Com o devido respeito, não podemos acompanhar tal decisão.

O Recorrente requereu a reapreciação do seu depoimento, prestado a 10-05-2023, “(em vários ficheiros de áudio, dado que o R. se encontrava a depor no Canadá, ..., na sua residência, com início às 11h 42m portuguesas), em que explica como todo o negócio foi celebrado.”

Á Relação era pedido apenas a reapreciação de três depoimentos, e relativamente a três factos, e só quanto a um deles se pode dizer que o Recorrente poderia ter sido mais preciso na indicação das “passagens da gravação” em que funda o seu recurso.

Os termos em que foi feita a impugnação da decisão de facto permite, sem especiais dificuldades ou acrescidos esforços do julgador, aquilatar em toda a sua amplitude e com segurança do mérito da mesma, assim se assegurando a garantia do duplo grau de jurisdição em matéria de facto.

Nem o facto de a impugnação ter sido feita conjuntamente quanto aos três factos impugnados, sem se particularizar quanto a cada um deles o concreto meio de prova que impõe decisão diversa, justificava, tendo em conta os factos impugnados, a rejeição do recurso.

Como decidiu o acórdão deste STJ e secção de 13.04.2023, P.2054/21 “nada obsta a que a impugnação da matéria de facto seja efectuada “por blocos de factos”, quando os pontos integrantes de cada um desses blocos apresentam entre si evidente conexão revelando-se alguns deles incindíveis e o conteúdo da impugnação seja perfeitamente compreensível pela parte contrária e pelo tribunal, não exigindo a sua análise esforço anómalo, superior ao normalmente suposto.”

A rejeição in totum da impugnação da decisão sobre a matéria de facto, quando o recorrente indicou os pontos de facto concretamente impugnados, a decisão alternativa, os depoimentos que sustentam o recurso, e em que em relação a dois deles cumpriu a exigência da alínea a) do nº2 do art. 640º, e imperfeitamente quanto ao terceiro, não respeita os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, motivo por que não pode manter-se.

Decisão.

Termos em que se decide anular o acórdão recorrido e determinar a baixa do processo à Relação a fim de ser apreciado o recurso interposto da decisão sobre a matéria de facto.

Custas pelo Recorrido.

Lisboa, 14.11.2024

Ferreira Lopes (relator)

Nuno Ataíde das Neves

Maria de Deus Correia