Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 2.ª SECÇÃO | ||
Relator: | MARIA DA GRAÇA TRIGO | ||
Descritores: | SIMULAÇÃO DE CONTRATO CONTRATO DE COMPRA E VENDA DOAÇÃO NEGÓCIO FORMAL VALIDADE PRESSUPOSTOS ESCRITURA PÚBLICA NULIDADE DO CONTRATO ANIMUS DONANDI DIREITOS DE TERCEIRO NULIDADE DE ACÓRDÃO OMISSÃO DE PRONÚNCIA | ||
Data do Acordão: | 09/19/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA | ||
Decisão: | NEGADA | ||
Sumário : | I. A orientação da jurisprudência do STJ que directamente se pronunciou sobre a situação de venda simulada de bem imóvel que oculta uma doação dissimulada, afirmando a validade do negócio oculto, assenta no pressuposto de que o regime do art. 241.º CC corporiza as teses defendidas por Manuel de Andrade a respeito dessa problemática. II. Tais teses podem ser assim enunciadas: (i) As hipóteses em que se admite a validade de negócio dissimulado (formal) devem ir para além dos casos em que as partes tenham realizado uma contra-declaração respeitando a forma legal exigida para o negócio dissimulado; (ii) Ainda que o animus donandi não possa deixar de se considerar como sendo um elemento essencial do negócio de doação, aceita-se que o mesmo não conste do acto formal pelo qual o negócio simulado foi celebrado, desde que estejam satisfeitas as razões justificativas da exigência de forma legal; (iii) Essas razões são essencialmente as seguintes (na formulação de Manuel de Andrade): obrigar as partes a uma ponderada reflexão sobre as consequências do respectivo acto; estabelecer prova segura da transferência da propriedade sobre os bens imóveis; (iv) Na generalidade dos casos de doação de imóvel dissimulada por trás de venda simulada celebrada mediante acto formal, tais razões encontram-se reunidas; (v) Diferentemente, no caso de simulação subjectiva por interposição fictícia de pessoas, o negócio dissimulado será nulo por não estar satisfeita a indicada segunda razão justificativa da forma legal. III. No que respeita à tutela dos terceiros interessados, afigura-se ainda que a jurisprudência do STJ assenta no pressuposto de que, em certa medida, essa tutela se alcança mediante a proibição de que a nulidade proveniente da simulação seja arguida pelo simulador contra terceiro de boa fé (cfr. art. 243.º, n.º 1, CC); assim como através da não admissão da prova testemunhal do acordo simulatório e do negócio simulado, quando invocados pelos simuladores (cfr. art. 242.º, n.º 1, CC, a contrario). | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça 1. AA intentou a presente acção declarativa de condenação sob a forma de processo comum contra BB e marido, CC, formulando os seguintes pedidos: a) Que seja declarada nula e sem qualquer efeito a compra e venda celebrada entre autora e ré na escritura de 06/05/2014, lavrada de folhas 140 a folhas 141 do livro 197-M do Licenciado DD, Notário com Cartório Notarial sito na Rua de ..., .... b) Que seja ordenado o cancelamento da inscrição de aquisição efectuado com base na escritura de a). Os réus contestaram pugnando pela improcedência da acção. Deduziram ainda pedido reconvencional, pedindo que: - Seja declarado válido o negócio dissimulado, que as partes real e voluntariamente queriam e quiseram realizar, a doação, com as demais consequências legais; - Subsidiariamente, e para a hipótese de assim não se entender, a título de dação em cumprimento/pagamento, deve o ajuizado imóvel servir para pagar todas as despesas e encargos que os réus já tiveram com a autora e o próprio imóvel, e que se computam em quantia não inferior a € 52.969,00, condenando-se a autora a reconhecer o débito e, assim, consequentemente a propriedade do imóvel a favor dos réus. E ainda, se assim não se entender: - Deve ser julgada provada e procedente a reconvenção condenando-se a autora a pagar aos réus a quantia já líquida de € 52.969,00, a título indemnização e compensação que os réus reclamam na causa de pedir da reconvenção, bem como a pagar a quantia que se vier a liquidar em execução de sentença tendo como causa os factos alegados nos artigos 158.º a 165.º da contestação/reconvenção, quantias a que deverão acrescer os juros legais de mora desde a notificação desta contestação/reconvenção e até efectivo e integral pagamento, seja ao abrigo do instituto da dação em pagamento/cumprimento, seja por via do enriquecimento sem causa. A autora replicou pugnando pela improcedência dos pedidos reconvencionais e, para tanto, impugnou a factualidade invocada pelos réus. Realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida sentença com a seguinte decisão: «Pelo exposto, julga-se a presente ação procedente por provada e consequentemente declara-se nula e sem qualquer efeito a compra e venda celebrada entre autora e ré na escritura de 6/5/2014, lavrada de folhas 140 a folhas 141 do livro 197-M do Licenciado DD, Notário com Cartório Notarial sito na Rua de ... .... Mais se julga o pedido reconvencional procedente por provado, e declarando-se válido o negócio dissimulado, que as partes realmente e voluntariamente quiseram realizar, a doação.». Inconformada com tal decisão, interpôs a autora recurso para o Tribunal da Relação do Porto, vindo a ser proferido acórdão que julgou o recurso improcedente, confirmando a decisão recorrida. 2. Veio a autora interpor recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, por via excepcional, formulando as seguintes conclusões: «1º A autora, em virtude de longo relacionamento de amizade sua e de seu falecido marido com os réus; e, com vista a ter companhia e quem a cuidasse, fez-lhes donativos para a compra de um veículo, para o pagamento de tornas numa partilha em que eram devedores e de lhes ceder a propriedade da sua fração. 2º Após ponderação das partes sobre o tipo de negócio: se de doação; se de compra e venda; fez-se a opção pelo segundo atenta a onerosidade fiscal em termos de Imposto de Selo, dada a taxa de imposto em relação a donatários estranhos à família da doadora. 3º A autora fez a doação aos réus, com a contrapartida de eles tratarem e cuidarem dela enquanto viva fosse. 4º A contrapartida a prestar pelos réus à autora era um elemento essencial no negócio para ela. Se eles não aceitassem essa condição não teria passado o imóvel para a mão deles. 5º Após meses de convivência degradaram-se as relações o que obrigou a autora a deixar a casa. 6º Aquando da celebração da escritura não elaboraram as partes qualquer documento (contradeclaração) para salvaguarda dos seus interesses. 7º A inexistência desse documento reflete-se na apreciação jurídica da validade do negócio oculto de doação, que fizeram sob a capa de um contrato de compra e venda. 8º Negócio esse que é nulo porque não se mostra revestido das formalidades necessárias para o preenchimento do tipo: não há qualquer referência à vontade de doar "animus donandi", nem de quem recebe, a declarar que aceita a doação (aliás, cujos termos e cláusulas se desconhecem). 9º No sentido defendido e para preenchimento do ónus de invocação de Acórdão em sentido contrário ao do Acórdão recorrido o Ac. do STJ, de 25 de Março de 2010 em que foi Relatora a Senhora Conselheira Maria dos Prazeres Beleza. 10º O acórdão recorrido é nulo no segmento da decisão que se não pronuncia sobre a matéria do item 40º da matéria provada. No Acórdão fundamento é referido " Tratando-se de negócio para cuja validade a lei exija forma (cfr. artigo 220º do Código Civil), na falta de contradeclaração constante dessa forma, se ela tiver sido observada quanto ao negócio simulado, essa observância será suficiente se a simulação incidir sobre elementos não essencial" No caso dos autos não existiu qualquer contradeclaração. Tratando-se de negócio aparente que versa sobre doação em que são elementos essenciais a manifestação da vontade de doar e a da aceitação pelos donatários do encargo de cuidar da autora. Não existindo essa manifestação, o negócio é nulo por vicio de forma (artigo 241º, nº 2 do Código Civil)». [excluem-se as conclusões respeitantes à admissibilidade da revista por via excepcional] Termina pedindo que o recurso seja julgado procedente, declarando-se nulo o negócio de doação dissimulado. 3. Os recorridos contra-alegaram, concluindo nos termos seguintes: [excluem-se as conclusões respeitantes à admissibilidade da revista por via excepcional] «3- O douto acórdão recorrido pronunciou-se sobre o facto dado como provado no item 40ª da sentença da 1ª Instância, pelo que não se verifica a alegada nulidade de falta de pronúncia. [excluem-se as conclusões respeitantes à admissibilidade da revista por via excepcional] 5- No presente recurso a Recorrente tece considerações doutrinais e até jurisprudenciais sobre o ínsito no n.º 2 do art. 241º do Cód. Civil, que não podem colher aceitação no caso concreto. 6- O Douto Acórdão recorrido identificou três questões a nele decidir, a saber, as que a Recorrente alegou em sede de apelação: 1.ª Do negócio dissimulado; 2ª da alegada omissão de pronúncia; 3ª da alegada doação com cláusula modal e sua validade. 7- Sobre o negócio dissimulado, cumpre notar e anotar que na sentença da primeira instância esta questão foi tratada e também objecto de clara e objectiva pronúncia. 8- Mas de forma mais pormenorizada e profunda, com alusão a doutrina e à jurisprudência, o douto acórdão recorrido deu também resposta sobre tal matéria, reiterando decisão que se afigura aos Recorridos pacífica e que não merece censura. 9- A Recorrente neste recurso, como na apelação que anteriormente apresentaram, continua a pugnar por decisão diferente. 10- E só o faz por partir de uma premissa tão errada, quanto falsa, a saber, que o negócio dissimulado, a doação, estava dependente de uma contraprestação dos Recorridos. 11- A Recorrente pretendeu doar o imóvel sem qualquer contraprestação, como de resto já havia sido formalizada esta sua intenção no testamento que se encontra junto como doc. nº 4 à p. inicial, do qual resulta que o legado não ficou dependente de qualquer contraprestação, de qualquer cláusula modal. 12- Na fundamentação da decisão o Tribunal da Relação do Porto confirmou que, atentos os factos provados nos autos, por detrás da compra e venda nula, por simulação, existe uma doação, válida à luz do preceituado no art. 241.º do C. Civil.” 13- Concluindo, bem, pela inexistência dessa invocada nulidade. 14- Quer o tribunal da 1ª Instância quer o da 2ª Instância pronunciaram-se e tomaram posição sobre o facto do item 40º dos factos provados da sentença, donde não se verificar o alegado fundamento de omissão de pronúncia. 15- A sentença recorrida não violou qualquer disposição legal, nomeadamente as invocadas pela Recorrente. 16- Falecem, pois, toda a argumentação e fundamentos invocados e alegados pela Recorrente. 17- Pelo que o recurso não deve nem pode merecer provimento.». 4. O recurso foi admitido por acórdão da Formação prevista no art. 672.º, n.º 3, do CPC 5. Vem provado o seguinte: 1. A autora foi casada sob o regime de comunhão de adquiridos com EE de quem se mantém viúva. 2. O marido, EE, faleceu no dia ... de ... de 2011, deixando como única e universal herdeira a autora. 3. A autora não tem ascendentes vivos, nem descendentes. 4. Tem um irmão e um sobrinho, filho de uma irmã já falecida. 5. O irmão mora no concelho de ... e o sobrinho na Cidade .... 6. O dissolvido casal, à data da morte do marido, tinha duas habitações, uma na praia, na Rua ..., ..., freguesia de ..., concelho de ... e outra na Rua ..., junto ao ... de ..., na freguesia de ..., concelho de .... 7. O marido adoeceu e viveu os seus últimos dias, na casa da praia. 8. A autora continuou a viver na casa da praia, após o decesso do marido. 9. Após a morte do marido, a autora foi assaltada, na casa da praia. 10. A ocorrência causou-lhe medo. 11. Deixou de viver na casa da praia. 12. Vendeu a casa da praia, por escritura de ... de agosto de 2016. 13. Mudou-se para a casa de .... 14. Os réus são pessoas da amizade e estima do dissolvido casal da autora, desde há mais de 40 anos. 15. São pessoas de condição humilde. 16. O réu CC trabalhou para a empresa “N..., Lda, em .... 17. Trabalhou para a empresa “D..., Lda, na ..., tendo sido despedido, por extinção do posto de trabalho. 18. A ré trabalhou como funcionária no Posto de ..., em ..., do que auferia um vencimento modesto. 19. Viviam na Rua dos ..., em ..., ... em regime de arrendamento. 20. Em razão da amizade de mais de quatro décadas do dissolvido casal com os réus, a autora, por sua iniciativa, decidiu ajudar os réus. 21. A autora, no dia ... de ... de 2012, outorgou testamento no Cartório da ..., sito na Rua Dr. ..., ..., pelo qual legou a fração “A” correspondente a um estabelecimento comercial, com entrada pelo número 396 do prédio, em regime de propriedade horizontal sito na Rua do ..., da freguesia de ..., ..., descrito sob o número Novecentos e Vinte e Três da freguesia de ..., e inscrito na matriz sob o artigo ..49, a seu sobrinho FF, e à ré, BB, legou a fração B do mesmo prédio, constituída por uma habitação no andar, com garagem e anexos no logradouro e logradouro, com entrada pelo número 400. 22. A autora, AA, na escritura de ........2014, lavrada de folhas 140 a folhas 141 do livro 197-M do Licenciado DD, Notário com Cartório Notarial sito na Rua de ..., ..., declarou que pelo preço já recebido de quarenta mil euros vende à ré BB, a fração designada pela letra B correspondente a uma habitação no andar com tudo o que a compõe, e entrada pelo número 400 do prédio em regime de propriedade sito na Rua do ... da freguesia de ..., concelho de ..., inscrito na matriz sob o artigo ..49, descrito na Conservatória do Registo Predial de ... sob o número novecentos e vinte e três da freguesia de ..., mas não recebeu o preço declarado na escritura, nem quis vender a fração à ré. 23. A ré, BB, declarou na escritura de ........2014, referida no artigo anterior, que aceita a venda nos termos exarados e que o imóvel adquirido se destina exclusivamente a sua habitação própria e permanente, mas não quis comprar a fração, não pagou o preço declarado na escritura, nem o imóvel se destinava a sua habitação própria e permanente. 24. A autora pagou o IMT e IS pela transmissão, a escritura e o registo a favor da ré. 25. Levantou dinheiro da sua conta, entregou-o aos réus, e foi com esse dinheiro que os réus pagaram os impostos da transmissão, os emolumentos ao Notário, e o registo da fração em nome da ré. 26. O valor declarado na escritura é de €40.000,00 e o valor patrimonial para efeitos fiscais é de €56.270,00, desde ........2012. 27. A autora queria deixar o legado da casa à ré. 28. Autora e ré com as declarações prestadas na escritura de compra e venda de ........2014 quiseram enganar os familiares da autora, dando-lhes a imagem de uma compra e venda expressa na escritura, para os fazer crer que a autora lhes vendeu a fração. 29. A autora incentivou o réu a adquirir um veículo novo em substituição do seu velho SEAT. 30. Levou-o à C........ em ..., onde era cliente, para escolher um Mercedes. 31. No dia ... de ... de 2015, pagou a quantia de €17.500,00 à C........, através de cheque bancário, pelo automóvel marca Mercedes de matrícula ...-OV-... que o réu comprou. 32. Em ... de 2015, a autora deu aos réus a quantia de €15.000,00 para pagarem ao irmão da ré as tornas devidas pela adjudicação de um prédio urbano em ..., por escritura de ... de ... de 2015 do Cartório Notarial do Notário ..., com Cartório no .... 33. Após a adjudicação da casa de ..., a autora deu aos réus mais de €20.000,00 para restauro do imóvel que adjudicaram. 34. A autora fez, a suas expensas, melhoramentos da casa de .... 35. A autora pagou o aquecimento e o seguro da casa. 36. As relações pessoais entre a autora e os réus deterioraram-se. 37. O mandatário da autora, por carta registada com aviso de receção com data de ... .04.2021, propôs à ré a revogação da escritura e solicitou-lhe informação sobre a entrega do imóvel, sugerindo-lhe o prazo de seis meses como razoável. 38. A ré recebeu a carta no dia ... .05.2021, mas até à presente data, não respondeu ao mandatário da autora. 39. Desde 1975 e até que se mudaram para a habitação que agora é propriedade dos réus, estes viviam em casa arrendada, na Rua de ..., em ..., pela qual pagavam a renda de €74,12. 40. Os réus assumiram perante a autora a obrigação de a tratar e cuidar desta até à sua morte. Ao abrigo do disposto no art. 607.º, n.º 4, aplicável por via da sucessiva remissão dos arts. 663.º, n.º 2 e 679.º, todos do CPC, importa considerar que a sentença (cfr. págs. 10-11), ainda que não o incluindo formalmente na factualidade dada como provada, deu como provado o seguinte facto: - Ao celebrar o contrato descrito nos factos 22 e 23 autora e ré quiseram celebrar um contrato de doação do bem imóvel aí identificado. Não foram dados como provados os seguintes factos: 1. A autora sentiu-se constrangida em confraternizar com os seus familiares, irmão e sobrinho e com os dos réus, na situação que tinha criado, com a adoção de uma nova família, sem laços de sangue, e sem tomar o seu aconselhamento dos parentes. 2. A autora sempre teve amor de sangue aos familiares e sempre quis com eles conviver. 3. A autora deixou de dar dinheiro aos réus, como antes, porque os réus já tinham o que achava necessário. 4. Em face do aperto da bolsa e com o passar do tempo as relações pessoais entre a autora e os réus foram-se esfriando. 5. Os réus manifestavam desagrado sempre que a autora passava fins-de-semana com a família ou com amigos, sem os levar com ela. 6. Recebiam com maus modos as pessoas que levavam a autora a casa. 7. Zangaram-se com algumas delas. 8. Descuidavam o arranjo do quarto da autora. 9. À medida que o tempo passava, réus e autora, cada vez falavam menos uns com os outros. 10. Autora e réus passaram a tomar as refeições em separado dentro da casa. 11. A autora confinou-se a viver no quarto de dormir. 12. Teve de refugiar-se dentro do quarto para evitar confrontos desagradáveis com os réus relativos a maldizeres dos amigos com quem convivia. 13. Nos finais de 2020, o réu passou a ofender a autora. 14. Dizia-lhe na cara: - Não vales nada. - És uma merda. - és uma ladra. 15. Nos princípios de Setembro de 2020 a autora comunicou a um amigo comum, o GG, pelo telemóvel, que o réu a estava a tratar mal, e o GG chegou a ouvi-lo, no momento, repreendeu-o, dizendo-lhe que não devia ser grosseiro para a AA, que devia respeitar a sua idade, e o que ela fez por ele e pela esposa. 16. Continuou a dizer, agora, ao GG, que a AA não prestava, que não valia nada e que era uma merda. 17. De nada valeu o GG tentar sensibilizá-lo para não tratar mal a autora, naquela e outras ocasiões. 18. O réu continuou a tratar mal a autora. 19. A autora convenceu-se de que não consegue viver em comum com os réus. 20. A partir do momento em que os réus, depois de fazerem várias obras e limpezas no ajuizado imóvel, passaram a viver no mesmo juntamente com a autora, esta passou a beneficiar, como havia sido acordado, da alimentação diária (todas as refeições incluídas) confecionada, fornecida e paga totalmente pelos réus. 21. A autora deixou de pagar água e eletricidade, cujos valores ascendem a uma média mensal de €25,00, e de €110,00 22. Em outras despesas da casa e bens de consumo e higiene pessoal, conforme acordado entre as partes, os réus suportaram despesas da autora pela quantia mínima de €2.000,00. 23. Os réus pagaram todos os IMI do ajuizado imóvel, desde o ano de 2014 até ao ano de 2021 em curso, no valor global de cerca de €1.864,00. 5. Tendo em conta o disposto no n.º 4 do art. 635.º do Código de Processo Civil, o objecto do recurso delimita-se pelas respectivas conclusões, sem prejuízo da apreciação das eventuais questões de conhecimento oficioso. Deste modo, o presente recurso tem como objecto as seguintes questões: • Nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia; • Erro de direito do acórdão recorrido ao declarar a validade do contrato dissimulado (doação sem encargos). 6. Alega a recorrente que «[o] acórdão recorrido é nulo no segmento da decisão que se não pronuncia sobre a matéria do item 40º da matéria provada». Exprime-se a recorrente em termos pouco claros e rigorosos. Ainda assim, procuremos apreciar a invocada nulidade por omissão de pronúncia, a qual, nos termos previstos no art. 615.º, n.º 1, alínea d) ocorre quando «[o] juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (...)». Em sede de recurso de apelação, formulou a autora, ora recorrente, as seguintes conclusões: «1º A existência e a validade de um contrato de doação dissimulado de compra e venda não ocorre de forma necessária com a invalidade da venda. 2º Constando da matéria assente, por acordo das partes, que os réus/recorridos aceitaram e assumiram a permanência da Autora na fração e com a obrigação de alimentação e limpeza por parte dos Réus, o negócio entre eles celebrado não era de compra e venda. 3º Como não era de doação pura, assim qualificado pelo tribunal recorrido porquanto as partes, de comum acordo aceitaram a permanência da Autora na casa após a escritura, e passaram a lhe proporcionar alimentação, limpeza da roupa e da casa e lhe faziam companhia (vivendo como família de sangue). 4º O tribunal não considerou esta matéria que deve considerar-se assente por acordo e não fez a consequente subsunção destes factos ao direito, verificando-se nulidade neste segmento da sentença, por omissão de pronúncia. 5º A doutrina mais consentânea com o caso dos autos afigura-se ser a que considera que a validade de negócio oculto, disfarçado de compra e venda quando o mesmo seja acompanhado de um documento ou contra-declaração (Manuel de Andrade; Beleza dos Santos). 6º Não existindo a contra-declaração, resultando da matéria de facto encargo de beneficiário para com a beneficiente, transmuda-se o figurino de doação pura, suposto na decisão recorrida, por doação com cláusula modal. 7º Assim, aplicável ao caso a doutrina de que: “Se é nulo anulável ou impugnável, posto de lado o acto aparente que o encobre, aparecerá tal qual é, aplicando-se-lhe a sanção que a lei estabelece para o efeito que juridicamente o viciar” (Beleza dos Santos, ibidem). 8º Donde decorre que a imprecisão e ausência de factos não escritos no contrato, sobre quais os encargos e/ou ónus ou condições da hipotética doação não possa ser considerado juridicamente como de doação pura, como configurada na sentença. 9º Pelo que não pode subsistir na ordem jurídica, um contrato de doação, com indefinição dos seus termos e condições. 10º Situação prevista no artigo 280º do CC: “É nulo o negócio jurídico cujo objeto seja física, ou legalmente impossível, contrário à lei ou indeterminável”. 11º Inexistindo cláusulas do contrato que o impedem de ser configurado de doação pura pela primeira instância o mesmo é indeterminável, porque não previstas quaisquer cláusulas a que se vincularam os supostos donatários. “As obrigações sem objecto determinado ou determinável são nulas” (RLJ 100º, 329). 12º Sendo assim nulos os negócios de compra e venda por simulação; e, o de doação, por vício de forma.». Lidas atentamente estas conclusões, a partir das quais se delimita o objecto do recurso de apelação (cfr. art. 635.º, n.º 4, do CPC), constata-se que nelas não se enuncia de forma directa qualquer questão relativa ao ponto 40 da matéria de facto dada como provada. Ainda assim – e atendendo a que o ponto 40 da factualidade dada como provada tem o seguinte teor: «Os réus assumiram perante a autora a obrigação de a tratar e cuidar desta até à sua morte» – admite-se que a ora recorrente se refira ao alegado na transcrita conclusão 6ª da apelação («resultando da matéria de facto encargo de beneficiário para com a beneficiente, transmuda-se o figurino de doação pura, suposto na decisão recorrida, por doação com cláusula modal»). Ora, a questão da qualificação do contrato dissimulado como sendo uma doação com cláusula modal foi expressa e desenvolvidamente apreciada, a páginas 15 a 20 do acórdão recorrido, sob o título «3.ª questão – Da alegada doação com cláusula modal e sua validade.». Conclui-se, assim, pela não verificação da invocada nulidade por omissão de pronúncia. 7. Antes de se passar a apreciar a questão nuclear do presente recurso, que consiste em apurar se o acórdão recorrido padece de erro de direito na interpretação do art. 241.º do Código Civil ao declarar a validade do contrato dissimulado (doação sem encargos), saliente-se que, ao longo do processado, vem a autora assumindo posições não inteiramente coerentes. Com efeito, em sede de petição inicial, invocou a simulação absoluta do contrato de compra e venda celebrado entre as partes, alegando que o mesmo foi celebrado para evitar problemas de relacionamento com a sua própria família. Porém, tendo os réus contestado, alegando factos tendentes a demonstrar a existência de um contrato de doação dissimulada, e vindo tais factos a ser dados como provados, em sede de recurso de apelação passou a autora a invocar que a doação dissimulada seria uma doação com encargos e não uma doação pura; mais arguindo a nulidade da dita doação por falta de forma. Mantendo a ambivalência da posição assumida, nas presentes alegações de revista vem a autora afirmar que, «[a]pós ponderação das partes sobre o tipo de negócio: se de doação; se de compra e venda; fez-se a opção pelo segundo atenta a onerosidade fiscal em termos de Imposto de Selo, dada a taxa de imposto em relação a donatários estranhos à família da doadora». Significa, pois, que, ao longo do processado, a autora reconheceu que, independentemente da natureza do negócio oculto, as partes tiveram a intenção de transferir para os réus a propriedade sobre o bem imóvel em causa. De todo o modo, sendo a nulidade de conhecimento oficioso, sempre a questão da eventual nulidade formal da doação dissimulada teria de ser apreciada, como o foi, pelo Tribunal de Relação. Questão que importa agora reapreciar. Está em causa a interpretação do art. 241.º do Código Civil, o qual, sob a epígrafe Simulação relativa, dispõe o seguinte: «1. Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado. 2. Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei.». A este respeito, pode ler-se na fundamentação do acórdão recorrido: «Levado a efeito este labor interpretativo do negócio jurídico querido por autora e ré BB e dissimulado na escritura de compra e venda em apreço nos autos e apreendido atento o complexo fático provado, desde logo podemos concluir que nesse contrato verifica-se expressamente o concurso da vontade da autora que dispôs de uma fração a favor da ré BB, ou em benefício da ré, sem se ter estipulado qualquer contrapartida económica ou de outra qualquer natureza por tal ato, e à custa da diminuição da substância efetiva do seu património, numa atuação de pura generosidade ou espontaneidade, e da vontade da ré que aceitou essa entrega do imóvel por parte da autora e naqueles termos. Pelo que, está inequivocamente, demonstrada nos autos a existência de um contrato de doação, dissimulado num contrato de compra e venda, nulo, por simulação, cfr. art.º 940.º do C. Civil. Ora, no que concerne à vontade real e negocial das partes à ocasião da outorga do documento particular autenticado de 6.05.2014 - sem olvidar que se a declaração de doar não consta da escritura, tal é compreensível, pois o negócio é justamente dissimulado para a não revelar, isto é, não se exterioriza no negócio simulado, pelo que o art.º 241.º n.º 2 do C. Civil implique a dispensa de que figure declaração de vontade relativa ao negócio dissimulado no instrumento que titula o negócio simulado - está provado nos autos, que: - em razão da amizade de mais de quatro décadas do dissolvido casal com os réus, a autora, por sua iniciativa, decidiu ajudar os réus. - a autora não recebeu o preço declarado na escritura, nem quis vender a fração à ré. - a ré também não quis comprar a fração, não pagou o preço declarado na escritura, nem o imóvel se destinava a sua habitação própria e permanente. - a autora queria deixar o legado da casa à ré. - autora e ré com as declarações prestadas na escritura de compra e venda de 6.05.2014 quiseram enganar os familiares da autora, dando-lhes a imagem de uma compra e venda expressa na escritura, para os fazer crer que a autora lhes vendeu a fração.». [negrito nosso] Concluindo, a final, pela validade do negócio de doação dissimulado. Insurge-se a recorrente contra esta decisão, invocando ser esse negócio «nulo porque não se mostra revestido das formalidades necessárias para o preenchimento do tipo: não há qualquer referência à vontade de doar "animus donandi", nem de quem recebe, a declarar que aceita a doação». Quid iuris? 7.1. Entre nós, remonta a Beleza dos Santos (A Simulação em Direito Civil, Vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 1921, págs. 360 a 364) a análise circunstanciada da questão em causa, assim enunciada: «[S]erá válida a doação dissimulada sendo suficiente quanto à sua forma a escritura pública de compra e venda? A questão é importantíssima porque é extremamente frequente este processo de simulação em actos desta natureza.». Após convocar as diferentes posições assumidas na doutrina italiana, afirma o mesmo autor: «A questão é extremamente duvidosa, mas em face do nosso direito parece-me mais defensável a primeira opinião exposta [a da nulidade do contrato dissimulado]. Desde que se trata de um acto formal, as declarações de vontade que o constituem devem manifestar-se com as formalidades exigidas por lei. Não basta evidentemente que só parte dessas declarações tenham revestido a forma legal, é necessário que naquilo que é essencial para a formação do acto elas se façam integralmente pela forma que a lei exige para as considerar relevantes. (...) Por isso, quando a doação é formal é preciso que a declaração de vontade de doar se faça com as formalidades legais não bastando a simples declaração de vontade de transmitir que, ‘de per si’, não é suficiente para caracterizar a doação, porque se pode transmitir por muitas outras causas, sem ser pela causa donandi. No caso em questão, para reconstituir a doação, seria necessário ir buscar elementos fora do documento do acto aparente, elementos que não foram revestidos da forma legal, o que a lei em absoluto proíbe (...). Daqui deve concluir-se que (...) a compra e venda é nula por ser aparente e a doação é nula por falta de forma.». [negritos nossos] Considera-se comumente que esta orientação doutrinal veio a ser adoptada no Assento de 23/07/1952, pelo qual se determinou que: «Anulados os contratos de compra e venda de bens imóveis e de cessão onerosa de créditos hipotecários, que dissimulavam doações, não podem estas considerar-se válidas.». Em sentido crítico da posição propugnada por Beleza dos Santos, manifestou-se Manuel de Andrade (Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. II – Facto jurídico, em especial negócio jurídico, Almedina, Coimbra, reimpressão de 1964, págs. 192 e seg.): «A solução lógica parece ser a nulidade do negócio dissimulado. As formalidades que lhe correspondem foram cumpridas, sim, mas só no negócio aparente. O negócio real não chega a satisfazer, portanto, ao formalismo que lhe é próprio. Este foi observado nas declarações que integram o negócio aparente e não nas que integram o negócio real. Só se estas mesmas constam de documento (contradeclarações) com a forma legalmente requerida para tal negócio. Suponha-se, por exemplo, que se fingiu uma venda de prédio em lugar duma doação, tendo-se feito a respectiva escritura; ou vice-versa. No 1.º caso constará da escritura a venda mas não a doação. O elemento animus donandi (...) característico da doação, não está declarado na escritura. (...). De toda a maneira, portanto, o negócio dissimulado será nulo, uma vez que os respectivos elementos essenciais não constam todos da escritura requerida para a validade do mesmo negócio. Tal a solução lógica, preconizada entre nós pelo Prof. Beleza dos Santos. E parece realmente que teria de ser acolhida, em princípio. Mas com uma restrição: deixando-se fora dela os casos em que as razões do formalismo do negócio dissimulado já estivessem satisfeitas com a observância das solenidades próprias do negócio simulado. Restrição importante, que talvez pudesse levar praticamente à quase completa eliminação do princípio. Supomos que ela teria lugar nas (...) hipóteses figuradas. O formalismo da venda e da doação inspira-se, com efeito, em duas razões capitais: obrigar as partes (...) a uma ponderada reflexão sobre as consequências do respectivo acto; estabelecer prova segura da transferência dos bens vendidos ou doados. Ora essas razões já obtêm plena satisfação quando haja escritura da venda (...). Mas parece que teria de resolver-se diferentemente no caso da interposição fictícia de pessoas, enquanto não estiver formalizada a transmissão (simulada) do interposto para o adquirente; porque então ainda não estará satisfeita a 2.ª das razões apontadas. (...)». [negritos nossos] Esta posição veio a ser acolhida no Anteprojecto de Rui de Alarcão (Simulação – Anteprojecto para o Novo Código Civil, in Boletim do Ministério da Justiça n.º 84, 1959, pág. 308), com a seguinte proposta de articulado: «Quando sob o negócio simulado se oculta um outro negócio, que as partes realmente quiseram celebrar, será aplicável a este último o tratamento jurídico que lhe corresponderia se tivesse sido concluído sem dissimulação. Sendo o negócio dissimulado de natureza formal, a sua validade supõe, na falta de uma contradeclaração com a forma legalmente requerida, que as razões de tal formalismo se mostrem satisfeitas com a observância das formalidades revestidas pelo negócio simulado.». Como resulta da respectiva justificação (ob. cit., págs. 309 a 312), tal proposta assentou expressamente na rejeição da posição de Beleza do Santos e na aceitação da posição de Manuel de Andrade. 7.2. Os elementos recolhidos mostram-se especialmente relevantes atendendo a que, após as Revisões Ministeriais, e como assinala Ana Filipa Morais Antunes (Comentário ao Código Civil – Parte Geral, 2ª ed., Universidade Católica Editora, Lisboa, 2023, págs. 673 a 677): No artigo 241.º do Código Civil de 1966 «[c]onsagrou-se uma solução muito próxima da defendida no «Anteprojeto» de Rui de Alarcão, que fazia referência à «observância das formalidades revestidas pelo negócio simulado» (cf. então artigo 1.º, n.º 2). O legislador afastou-se da orientação plasmada no Assento do STJ de 23.07.1952 (054687), no sentido da invalidade do negócio dissimulado de natureza gratuita (...)» (ob. cit., pág. 673). A controvérsia manteve-se, contudo, na vigência do Código Civil de 1966. Socorremo-nos, a este propósito, da síntese apresentada pela mesma autora (ob. cit., págs. 673 a 675): «De acordo com a solução vigente, a aplicação do regime correspondente ao negócio dissimulado pressupõe o preenchimento dos parâmetros em matéria de exteriorização da vontade negocial concretamente aplicáveis. Não se impõe, no entanto, a observância da forma legalmente exigida para a celebração do negócio dissimulado, pelo que não se exige uma simetria absoluta. Para a validade do negócio dissimulado de natureza formal, cabe indagar acerca do possível aproveitamento da forma observada na celebração do negócio simulado. Cabe, para tal, indagar, na situação individual, acerca do sentido da exigência de forma, isto é, esclarecer que elementos do negócio se devem considerar abrangidos pela forma legal. Assim, se se concluir que as razões que justificam o formalismo do negócio dissimulado estão satisfeitas com as solenidades que acompanharam a conclusão do negócio simulado, a validade do negócio dissimulado não fica prejudicada. A solução exposta beneficia do apelo ao artigo 221.º, que rege em matéria de âmbito da forma legal, e se refere, no que respeita às estipulações acessórias, à “razão determinante da forma” (cfr. n.º 1) e às “razões da exigência especial da lei” (cfr. n.º 2). Em termos complementares, releva o disposto no artigo 238.º, sobre a interpretação de negócios formais, que, no seu n.º 2, alude às “razões determinantes da forma do negócio”. A adequada interpretação da diretriz legal cristalizada no n.º 2 do artigo 241.º pressupõe, assim, o esclarecimento das razões determinantes da forma legal e, em concreto, da extensão daquela exigência: numa palavra, impõe-se precisar se a forma legal deve abranger todas as estipulações negociais ou, diversamente, apenas os elementos identitários do negócio que se pretendia celebrar. Significa isto que cabe ao intérprete e julgador esclarecer, em relação a cada elemento do negócio dissimulado, se procede a razão de ser da exigência legal de forma. A interpretação sustentada tem apoio no artigo 1.º do Anteprojeto de Rui de Alarcão, que impunha, como condição da validade do negócio dissimulado de natureza formal, na falta de uma contradeclaração com a forma legalmente requerida para tal negócio, «que as razões do seu formalismo se mostrem satisfeitas com a observância das formalidades revestidas pelo negócio simulado» (Simulação. Anteprojeto, cit., p. 305). São fundamentalmente quatro as razões subjacentes à exigência legal de forma, a saber: i) proporcionar às partes uma reflexão e uma ponderação suficientes acerca do alcance e consequências do negócio jurídico a celebrar; ii) permitir uma prova segura do negócio celebrado; iii) assegurar um controlo da legalidade da transação negocial; iv) assegurar a publicidade do negócio, com a consequente suscetibilidade de tutela da posição jurídica de terceiros suscetíveis de serem afetados pela sua conclusão. Nesta medida, para que o negócio dissimulado seja válido, os elementos essenciais ou identitários do negócio devem estar abrangidos pela forma observada na celebração negócio simulado. (...). A interpretação da norma é controversa e tem justificado vários entendimentos, na eventualidade de estar em causa uma simulação que incida sobre a natureza jurídica do negócio. O problema pode ser ilustrado nos seguintes termos: - Na hipótese de doação de bem imóvel dissimulada por uma compra e venda simulada, sustenta-se: a) A invalidade da doação, com fundamento no vício de forma (cfr. artigo 220.º), atenta a insuscetibilidade de aproveitar a escritura pública de compra e venda, pela circunstância de nela não estar exarada a intenção de doar (o animus donandi ou espírito de liberalidade), que constitui elemento essencial do contrato de doação (cfr. artigo 940.º, n.º 1, do CC), e de constar, diversamente, a vontade de vender – neste sentido, v. CASTRO MENDES, 1995: 231; CARVALHO FERNANDES, 2010: 323; GALVÃO TELLES, 2002: 180; MOTA PINTO, 2005: 474-475; HÖRSTER/MOREIRA DA SILVA, 2019: 607. A invalidade só procede, esclareça-se, no pressuposto de não haver (como sucede, em regra) uma contradeclaração com a forma legalmente exigida. b) A validade da doação, por via do aproveitamento do documento da escritura pública, donde constam os elementos típicos da doação e comuns à compra e venda, a saber, os sujeitos e o objeto do negócio. A cláusula relativa ao preço fictício deve ter-se por não escrita, reduzindo-se, nos termos gerais. Sustenta-se, ainda, que a circunstância de o texto da escritura pública não conter a referência à intenção de doar (portanto, à causa da transmissão gratuita) não deve ser, por si só, impeditiva do aproveitamento da escritura pública, pelo facto de o animus donandi não poder, na prática, ser cristalizado no texto da escritura pública – neste sentido, v. OLIVEIRA ASCENSÃO, 2003: 226 – que não exige que conste do ato formalizado o tipo negocial; MENEZES CORDEIRO, 2021: 906-907 – que apela ao artigo 238.º do C.C., e sustenta que “a exigência de forma especial para a doação de bens imóveis não é motivada por qualquer animus mas pela natureza do objeto transmitido: bem imóvel” (ob. cit., p. 907). V., ainda, PIRES DE LIMA/ /ANTUNES VARELA, 1987: anotação n.º 1, 228. (...) A posição defendida depende, em última análise, da importância reconhecida à causa do negócio jurídico e, em concreto, à função negocial caraterística da doação, assente no animus donandi. Não sendo possível individualizar a razão de ser justificativa do negócio translativo do domínio, a validade da doação fica comprometida. Sobre o conceito de causa do negócio jurídico, v. MORAIS ANTUNES, 2016 – com a defesa da sua autonomia concetual e do princípio da necessidade de causa do negócio jurídico (ob. cit: 88-ss.). Para FERREIRA DE ALMEIDA, 2020: 111 – “o contrato será válido se a função de liberalidade se deduzir do texto do contrato simulado com forma solene. A validade do contrato dissimulado depende afinal de, com a expurgação da referência a preço, a doação passar a ser o único título de transmissão da propriedade compatível com o texto do documento externo”.». [negritos nossos] 7.3. Na jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça relativa à interpretação e aplicação do n.º 2 do art. 241.º do CC, justifica-se considerar, em particular, as decisões que incidem sobre: (i) a questão da validade do negócio dissimulado quando, sob um negócio simulado de compra e venda de imóvel, as partes pretenderam realizar uma doação; (ii) a questão da validade do negócio dissimulado em caso de simulação subjectiva, por interposição fictícia de pessoas, isto é, quando o negócio simulado foi celebrado com a intervenção de sujeitos diversos daqueles que celebraram o negócio dissimulado. 7.3.1. No segundo grupo de decisões do Supremo Tribunal de Justiça relativas à situação – que não está em causa no presente recurso – de simulação subjectiva por interposição fictícia de pessoas, encontra-se consolidado o entendimento de que negócio dissimulado é nulo. Neste sentido, ver os acórdãos de 27/05/2004 (proc. n.º 04A1442), de 25/10/2010 (proc. n.º 983/06.7TBBGR.G1.S1), de 23/11/2011 (proc. n.º 783/09.2TBLMG.P1.S1) e de 21/02/2019 (proc. n.º 693/17.0T8FAR.E1.S1), consultáveis em www.dgsi.pt. Especial interesse reveste a fundamentação do acórdão de 25/10/2010 que transcrevemos na parte mais incisiva: «Estando em causa (...) uma simulação de pessoas, não interessa tomar partido sobre que elementos objectivos (comuns ao negócio dissimulado) têm de constar da forma adoptada para o negócio simulado: se todos os que são essenciais à configuração do correspondente tipo negocial, se apenas aqueles que são determinantes para a exigência de forma, em aplicação do critério do artigo 221º do Código Civil, se os suficientes para a existência de “um mínimo de correspondência”, seguindo a razão de ser do artigo 238º do Código Civil. Em qualquer caso, e pensando exclusivamente nos negócios translativos, porque é o que agora interessa, tem de constar da forma legalmente exigida o encontro de vontades que é a causa da transmissão pretendida. Como se sabe, costumam apontar-se fundamentalmente três ordens de razões justificativas do abandono do princípio da liberdade da forma (artigo 219º do Código Civil) e da exigência de maior ou menor formalismo como condição de validade de uma declaração negocial tem em vista (reconhecidamente sintetizadas de forma elucidativa no conhecido relatório do Decreto-Lei nº 32.032, de 25 de Maio de 1942): – assegurar uma correcta ponderação dos outorgantes quanto aos efeitos que do negócio resultam para a sua esfera jurídica; – permitir aos interessados, sobretudo se a forma se reveste de publicidade (documento autêntico, por exemplo), tomar conhecimento dos efeitos que de algum modo os possam afectar. – provar o acto realizado; como se sabe, há regras estritas quanto à possibilidade de prova de um acto solene (cfr. nºs 1 e 2 do artigo 364º do Código Civil). Ora, se parece evidente que o primeiro objectivo estará alcançado ainda que não conste de escritura pública o conjunto das duas declarações de vontade dos verdadeiros contraentes (é claro que, se as partes realizam um negócio simulado para encobrir um outro, em princípio terão ponderado devidamente os efeitos deste, e terá sido provavelmente por isso que os quiseram esconder perante terceiros), já os dois últimos impedem que, no caso, se possa considerar suficiente para se ter como respeitada a forma de escritura pública para o negócio dissimulado o conjunto das escrituras de 4 de Junho de 2002 (na qual figura a declaração da massa falida de querer vender, mas a DD) e de 1 de Agosto seguinte (da qual consta a declaração de EE de querer comprar, mas a DD). Considerar suficientes as duas escrituras, ainda que completadas com a decisão judicial de reconhecimento da simulação relativa e da configuração do negócio dissimulado, equivaleria a tratar como interposição real uma interposição comprovadamente fictícia; e seria contrário ao disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 241º do Código Civil. A transmissão da massa falida para EE não consta de escritura pública; o negócio dissimulado é nulo por falta de forma, nos termos conjugados do disposto nos artigos 875º, 241º, nº 2 e 220º do Código Civil.». [negritos nossos] Esclareça-se, porém, que, diversamente do invocado pela recorrente, não ocorre contradição de julgados entre este acórdão e o acórdão recorrido, uma vez que um e outro se reportam a distintas situações fáctico-jurídicas. Como se viu, o acórdão de 25/10/2010 respeita a um caso de simulação subjectiva por interposição fictícia de pessoas, enquanto o acórdão recorrido incide, como se sabe, sobre uma situação de doação dissimulada por trás de venda simulada. Assim, reconhecendo-se embora que, nas decisões em confronto, existem divergências de entendimento quanto à interpretação do n.º 2 do art. 241.º do CC, tais divergências situam-se num plano teórico que não se mostra essencial para o desfecho de uma e outra decisão. 7.3.2. Quanto ao grupo de acórdãos deste Supremo Tribunal, nos quais se apreciou a questão, objecto do presente recurso, da validade do negócio dissimulado quando, sob um negócio simulado de compra e venda de imóvel, as partes pretenderam realizar uma doação, a pesquisa realizada permite concluir que a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça se orienta, de forma consolidada, no sentido da validade formal do contrato de doação dissimulado. Refiram-se, ainda que brevemente, cada um dos acórdãos identificados: - Acórdão de 17/06/2003 (proc. n.º 03A1565), disponível em www.dgsi.pt, com a seguinte fundamentação: «A simulação, que é o vício a vontade que aqui interessa analisar, é absoluta ou relativa. Na simulação absoluta as partes não quiseram realizar nenhum negócio. Tratando-se, porém, de simulação relativa, manda-se aplicar ao negócio dissimulado, que está em harmonia com a vontade das partes, «o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado» - Artigo 241 n.º 1 do Código Civil -. Mas se «o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei» (art. 241. °, n.º 2). Pretendem os recorrentes que o Artigo 241 do Código Civil consagrou a doutrina do Prof. Beleza dos Santos e que o Assento de 23 de Julho de 1952 seguiu. A doutrina deste Assento relativa às doações, firmou a jurisprudência no sentido de que «anulados os contratos de compra e venda de bens imóveis e de cessão onerosa de créditos hipotecários, que dissimulavam doações, não podem estas considerar-se válidas» foi afastada pela n.º 2 do Artigo 241 do Código Civil na esteira do que defendeu Manuel de Andrade. Beleza dos Santos, Simulação Em Direito Civil nota 1 pág. 358, sustentou que: Pode (...) estabelecer-se o princípio geral de que no caso de dissimulação de actos formais se só existe a forma devida no acto aparente e dele não constam os elementos essenciais do acto dissimulado, nos termos em que para eles se exige essa forma, esse acto é nulo. Daqui resulta que só poderá ser suficiente a forma do acto aparente para a validade de um acto formal dissimulado quando a simulação incidir apenas sobre um elemento acessório ou qualquer estipulação ou declaração que possa suprimir-se sem comprometer fundamentalmente a estrutura do acto verdadeiro, porque, eliminado o elemento ou cláusula aparente, fica o bastante para que o acto se reconstitua». Com base nesta doutrina que deu origem ao referido Assento, entendia-se que caso se haja fingido a venda de um imóvel em lugar de uma doação, ou o contrário, tendo o negócio simulado sido feito por escritura pública, o acto real deverá ser nulo, uma vez que da escritura da venda não consta o animus donandi, ou na escritura da doação não figura o elemento preço - em qualquer dos casos não constam da escritura exigida para a validade do negócio dissimulado todos os elementos essenciais desse negócio. É este o entendimento defendido no recurso. Não existindo no contrato simulado o «animus donandi» o contrato dissimulado seria também nulo por falta desse elemento. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica 1953 criticou essa doutrina afirmando que não há motivo para propugnar a invalidade formal do negócio dissimulado quando as razões do seu formalismo se achem satisfeitas com a observância das solenidades do negócio simulado. Neste mesmo caminho surgem os Prof. Vaz Serra RLJ 113/64 Pires de Lima Antunes Varela in Código Civil Anotado, anotação ao Artigo 241 pág. 228 e Hörster, A Parte Geral do Código Civil pág. 544. Oliveira Ascensão, Direito Civil Teoria Geral, 1999, V. II pág. 198 e Seg. sustenta a validade do negócio dissimulado desde que os elementos essenciais objectivos se encontrem em instrumento revestido de forma exigida, ou seja, que contenham o mesmo tipo de elementos relativos ao negócio simulado. Acrescenta ainda se se pretende fazer uma doação e se simula uma compra e venda, a doação é válida, pois o preço fictício ter-se-á por não escrito e os elementos objectivos essenciais da doação se encontram em instrumento revestido de forma exigida. A declaração de doar não pode porém, por natureza constar desse instrumento Temos pois que o Artigo 241 n.º 2 implica a dispensa de que figure declaração de vontade relativa ao negócio dissimulado. - Ob. e local citado pág. 200. -. Interpretar o Artigo no sentido de que é necessário que o negócio dissimulado conste de um acto solene, seria absurdo, uma vez que, se o negócio é dissimulado não pode estar exteriorizado no negócio simulado. Teremos que concluir que não é necessária a contra declaração do «animus donandi» para se ter por válido o negócio dissimulado, pois como se deixou dito não deixaria de ser absurdo que por detrás de um negócio aparente se admitissem todos aqueles que se bastassem com a sua forma, o que seria igualmente absurdo se se pretendesse que no acto solene se fizesse constar o negócio dissimulado, o que seria igual a dizer que inexistia qualquer negócio simulado.». [negrito nosso] - Acórdão de 09/10/2003 (proc. n.º 2536/03), consultável em www.dgsi.pt, em cuja fundamentação se pode ler o seguinte: «12. Foi (...) estabelecido por Assento deste Tribunal de 23/7/52 (BMJ 32/258) que, feita venda de imóvel para ocultar doação, e consequentemente declarada a nulidade desse contrato de compra e venda, o tribunal não poderia considerar válida a doação. Esta, segundo então entendido, não poderia subsistir por falta de forma, e tal assim porquanto, não manifestada por forma autêntica a vontade de doar e de aceitar a doação, - antes, pelo contrário, solenemente manifestada a vontade de celebrar negócio oneroso -, não podia o contrato valer como gratuito. Nula a compra e venda por falta do mútuo consenso sobre os elementos essenciais desse contrato, sem o qual não pode considerar-se concluído, a doação era, por sua vez, de julgar nula por falta da forma legal, dado, em vista do falsamente declarado na escritura, não constarem desta as declarações de vontade correspondentes, dela, de todo em todo, não transparecendo a gratuitidade, que específica e essencialmente caracteriza um tal contrato, ou seja, o espírito de liberalidade (animus donandi) que constitui a sua causa. Seguiu-se, desse modo, a doutrina de Beleza dos Santos, em "A Simulação em Direito Civil" (1921), 360 a 364, mais tarde contrariada por Manuel de Andrade, na sua "Teoria Geral do Direito Civil", II (1960), 192, cuja lição Rui de Alarcão, nos trabalhos preparatórios do C.Civ. vigente ("Simulação - Anteprojecto para o novo C.Civ.", BMJ 84/310 e 311), considerou preferível. Entendem, nessa orientação, alguns mestres de Direito ter sido o ensino de Manuel de Andrade que o novo C.Civ. adoptou, com repúdio da doutrina do Assento de 1952 (25); ao invés, consideram outros ter sido a doutrina de Beleza dos Santos e desse Assento que aquela lei veio consagrar (26). 13. Considerando aquela primeira orientação, mais maleável, que, desde que não haja atropelo de interesses gerais, a lei deve tutelar a vontade das partes (27), abona-se igualmente em que, esses os fins principais da exigência de forma, a existência de escritura pública não só assegura a necessária ponderação sobre as consequências do acto, como estabelece prova segura da transmissão dos bens. Para a segunda, mais rigorosa (mais estritamente formal), o formalismo indispensável à validade do acto dissimulado não respeita apenas ao documento que o deva titular (cfr. artº. 947º, nº. 1), mas também à própria natureza ou estrutura substancial desse acto (28). Recordando o disposto no artº. 221º, relativo ao âmbito da forma legal, e o artº. 232º, relativo à conclusão do negócio jurídico, este outro entendimento considera que a forma legal abrange a causa negotii, e tem, bem assim, por aplicável a esta questão o preceituado no artº. 238º, por analogia. Importará não esquecer, ainda, que "o negócio simulado é indesejável e condenado pela ordem jurídica" (29). 14. Reconhecida a natureza estruturalmente argumentativa do raciocínio jurídico, e notado que se trata de uma forma específica ou particular de argumentação prática, permanece exacto que, produzindo ponderações sobre valores, o raciocínio jurídico é quase sempre controverso, não podendo as conclusões que alcança ser de forma alguma constringentes, no sentido de deverem impor-se por coerência e necessidade lógicas. "Ao raciocínio jurídico respeita uma forma de conhecimento que aspira, muito simplesmente, aderir ao que é crível, plausível e razoável" (30). Busca-se, enfim, uma medida de razoabilidade que, pela sua conformação ao direito, dê garantias de segurança jurídica e, por referência a um sentido social de justiça, favoreça, o mais possível, a paz judiciária (31). A "critérios de apodictidade de uma lógica inferencial" sobrepõe-se, como "horizonte teleológico da aplicação do Direito" um "ideal de medida, equitativo e justo", exigindo-se "que mereça a designação tão arcaica quanto nova de ars aequi et boni" (32). Na aplicação do direito, a procura de soluções razoáveis sobreleva à procura de uma verdade apodíctica (33); e a noção de razoável tem sobretudo que ver com critérios sociológicos (34). Bem assim notado que o entendimento contrário deixa o nº. 2 do artº. 241º praticamente sem aplicação, não surpreenderá, deste modo, que, entendida como mais razoável e justa, a solução dominante tenha vindo do a ser a primeira das atrás referidas, defendida por Manuel de Andrade (35).». [negrito nosso] - Acórdão de 22/02/2005 (proc. n.º 10/05), não publicado, onde se afirma o seguinte: «O Artigo 241 do Código Civil consagrou a doutrina do Prof. Beleza dos Santos e que o Assento de 23 de Julho de 1952 seguiu. A doutrina desse Assento relativa às doações, firmou a jurisprudência no sentido de que «anulados os contratos de compra e venda de bens imóveis e de cessão onerosa de créditos hipotecários, que dissimulavam doações, não podem estas considerar-se válidas», foi afastada pel[o] n.º do Artigo 241 do Código Civil na esteira do que defendeu Manuel de Andrade. Beleza dos Santos, Simulação Em Direito Civil nota 1 pág. 358, sustentou que: Pode (...) estabelecer-se o princípio geral de que no caso de dissimulação de actos formais se só existe a forma devida no acto aparente e dele não constam os elementos essenciais do acto dissimulado, nos termos em que para eles se exige essa forma, esse acto é nulo. Daqui resulta que só poderá ser suficiente a forma do acto aparente para a validade de um acto formal dissimulado quando a simulação incidir apenas sobre um elemento acessório ou qualquer estipulação ou declaração que possa suprimir-se sem comprometer a estrutura do acto verdadeiro, porque, eliminado o elemento ou cláusula aparente, fica o bastante para que o acto se reconstitua». Com base nesta doutrina que deu origem ao referido Assento, entendia-se que caso se haja fingido a venda de um imóvel em lugar de uma doação, ou o contrário, tendo o negócio simulado sido feito por escritura pública, o acto real deverá ser nulo, uma vez que da escritura da venda não consta o animus donandi, ou na escritura da doação não figura o elemento preço – em qualquer dos caso não constam da escritura exigida para a validade do negócio dissimulado todos os elementos essenciais desse negócio. É este o entendimento defendido no recurso. Não existindo no contrato simulado o «animus donandi» o contrato dissimulado seria também nulo por falta desse elemento. Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica 1953 criticou essa doutrina afirmando que não há motivo para propugnar a invalidade formal do negócio dissimulado quando as razões do seu formalismo se achem satisfeitas com a observância das solenidades do negócio simulado. (...) Oliveira Ascensão, Direito Civil Teoria Geral, 1999, V. II pág. 198 e Seg. sustenta a validade do negócio dissimulado desde que os elementos essenciais objectivos se encontrem em instrumento revestido de forma exigida, ou seja, que contenham o mesmo tipo de elementos relativos ao negócio simulado. Acrescenta ainda [que] se se pretende fazer uma doação e se simula uma compra e venda, a doação é válida, pois o preço fictício ter-se-á por não escrito e os elementos objectivos essenciais da doação se encontram em instrumento revestido de forma exigida. A declaração de doar não pode porém, por natureza constar desse instrumento. Temos pois que o Artigo 241 n.º 2 implica a dispensa de que figure declaração de vontade relativa ao negócio dissimulado. – Ob. e local citado pág. 200. A interpretar o Artigo no sentido de que é necessário que o negócio dissimulado conste de um acto solene, seria absurdo, uma vez que, se o negócio é dissimulado não pode estar exteriorizado no negócio simulado. Teremos que concluir que não é necessária a contra declaração do «animus donandi» para se ter por válido o negócio dissimulado, pois como se deixou dito não deixaria de ser absurdo que por detrás de um negócio aparente se admitissem todos aqueles que se bastassem com a sua forma, o que seria igualmente absurdo se se pretendesse que no acto solene se fizesse constar o negócio dissimulado, o que seria igual a dizer que inexistia qualquer negócio simulado.». [negritos nossos] - Acórdão de 10/09/2009 (proc. n.º 08B4017), disponível em www.dgsi.pt, com a seguinte fundamentação: «Por baixo de um negócio nulo, por simulado – art.240º, nºs1 e 2 do CCivil - há um negócio dissimulado, perfeitamente sustentado na forma utilizada para o negócio simulado, e que as partes podiam perfeitamente realizar – uma doação. E quando assim é, quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação – nº1 do art.241º. Temos então que, declarando nula a dação em pagamento (e o antecedente reconhecimento da dívida) afirmada na escritura pública referida em 3 da fundamentação fáctica, haveremos de declarar a válida a doação escondida por debaixo da simulada dação em pagamento. Que doação, porém? Claramente a chamada doação remuneratória desenhada no art. 941º do CCivil – é considerada doação a liberalidade remuneratória de serviços recebidos pelo doador, que não tenham a natureza de dívida exigível. Doação remuneratória porque – como se provou – teve em vista compensar a ré EE pelo trabalho por ela prestado em benefício dos réus CC e mulher DD ao longo dos anos. E como doação remuneratória há-de ser, na oportunidade da(s) partilha(s), encarado e construído o seu regime jurídico, tendo designadamente em conta o disposto nos arts.2113º, nº3, 2114º, nº1, 2115º a 2117º e 2168º a 2174º, todos do CCivil. Como doação remuneratória, portanto, há-de ser declarada válida.». [negrito nosso] - Acórdão de 26/11/2009 (proc. n.º 336/1999.91), não publicado, em cuja fundamentação se pode ler o seguinte: «A situação apresenta-se (...) como de simulação relativa (simultaneamente subjectiva e objectiva)1 tal como foi configurada no acórdão recorrido, considerando, repete-se, ter-se fingido a venda dos imóveis que, na verdade, se quiseram doar. E, consoante entendido pela Relação, não há motivo para defender a invalidade formal do negócio dissimulado quando as razões do seu formalismo se acham satisfeitas com a observância das solenidades do negócio simulado. Se se pretende fazer uma doação e se simula uma compra e venda, a doação é válida pois o preço ter-se-á por não escrito e os elementos objectivos essenciais da doação encontram-se na escritura pública que é o instrumento revestido da forma legalmente exigida (neste sentido se expressa a doutrina dominante). Por isso, e face às simulações relativas verificadas, declarou-se no acórdão recorrido validamente celebradas nas escrituras referidas, doações tendo por objecto os imóveis aí identificados. (...) Se a declaração de doar não consta das escrituras é compreensível uma vez que o negócio é justamente dissimulado para a não revelar, isto é, não se exterioriza no negócio simulado. Daí que o art. 241º, nº 2 do Cód. Civ. implique a dispensa de que figure declaração de vontade relativa ao negócio dissimulado no instrumento que titula o negócio simulado.». [negritos nossos] - Acórdão de 09/02/2012 (proc. n.º 425/07.0TBOLH.E1.S1), não publicado, em cuja fundamentação se afirma o seguinte: «O recorrente não consegue (...) demonstrar que a celebração da compra e venda, em lugar da doação, alegada vontade real das partes, afectou a consistência jurídica ou prática da sua condição de arrendatário, da fracção objecto do negócio jurídico. Aliás, a realização da compra e venda só podia favorecer a consistência da sua condição de arrendatário, pois lhe deu uma oportunidade de preferir na compra, possibilidade que não ocorreria no caso de doação. Mesmo que, por mera hipótese, se viesse a provar a invocada simulação relativa, anular-se-ia a compra e venda, mas subsistiria a doação (art.º 241º do CC), o que faria com que a compradora continuasse a ser proprietária da fracção que lhe está arrendada.». [negrito nosso] - Acórdão de 28/05/2013 (proc. n.º 866/05.8TCGMR.G1.S1), consultável em www.dgsi.pt, de cuja fundamentação consta o seguinte: A dicotomia simulação absoluta/ simulação relativa «emerge do preceituado no art. 241º, nº1, do CC, nos termos do qual “Quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realizar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado”. Como, a propósito expende o Prof. Pedro Pais de Vasconcelos [nota 6: Teoria Geral do Direito Civil, 7ª Ed.], “Na configuração da simulação há que distinguir, por um lado, a aparência criada e, por outro, a realidade negocial”. Correspondendo àquela o negócio simulado e a esta o negócio dissimulado. Porém, o nº2 do mesmo art. adverte-nos para uma restrição. É que “Se, porém, o negócio dissimulado for de natureza formal, só é válido se tiver sido observada a forma exigida por lei”. Aqui, e a propósito, tendo surgido grande divisão doutrinal. Mas demos a “palavra” ao Prof. Pedro Pais de Vasconcelos (“Ob. citada”, pags. 590 a 593), dada a brilhante síntese por si efectuada sobre tão complexa temática: “São duas as soluções extremas que podem ser adoptadas nesta questão e que merecem ser confrontadas: uma é a de fazer sobrevaler a publicidade emergente da forma à validade e outra, a contrária, de fazer prevalecer a validade (favor negotii) sobre a publicidade. A primeira é adoptada pela doutrina alemã e, em Portugal, pelo Assento de 1952, por BELEZA DOS SANTOS e por HORSTER; a segunda é seguida por ANTUNES VARELA, no CC Anotado e maioritariamente pelos tribunais portugueses (…) A opção pela invalidade parece, à primeira vista, assegurar melhor a publicidade e, com ela, os interesses dos terceiros. Todavia, em concreto, tal não sucede necessariamente. Assim, no caso, por ex., de uma simulação para enganar e prejudicar preferentes, em que se manifesta uma doação para ocultar uma compra e venda, a solução da nulidade obsta ao exercício da preferência e acaba por beneficiar os simuladores e prejudicar os preferentes. Mais justo parece ser admitir a validade formal e proteger os terceiros através da responsabilidade civil, nos moldes gerais: a simulação é ilícita e os danos causados a terceiros pela falta de publicidade ou pela falsa publicidade emergente intencionalmente da simulação seriam ressarcíveis de acordo com as regras da responsabilidade civil” (arts. 227º e 483º) “(…) É conatural da simulação o intuito de enganar terceiros, de lhes ocultar algo de relevante no negócio através da criação duma falsa aparência que pode incidir sobre a identidade das partes, sobre o preço, sobre o tipo, sobre o conteúdo, ou sobre um outro elemento do negócio. A forma adoptada no negócio, tal como os simuladores lhe dão aparência, nunca pode revelar a totalidade do negócio real dissimulado. Essa revelação seria incompatível com a simulação e só poderia ser conseguida sem ela. Não pode, pois, haver simulação relativa sem que algo do negócio dissimulado falte ou seja diferente no negócio simulado. Assim sendo, a exigência de que a forma adoptada cubra a totalidade do negócio conduzirá necessariamente à nulidade. É este o fundamento da opção da doutrina alemã, da doutrina de BELEZA DOS SANTOS e do Assento de 1952. (…) A opção do actual CC, no art. 241º, nº2, é mais favorável à validade formal. Permite que o negócio dissimulado beneficie da forma adoptada no negócio simulado; isto é, permite que o negócio real oculto (negócio dissimulado) beneficie da forma adoptada na criação da aparência. Este preceito não deve ser interpretado no sentido de exigir que a parte oculta do negócio revista a forma legalmente exigida. Tal constituiria um contra-senso, porque só poderia suceder sem a simulação. (…) Uma solução intermédia, adoptada por parte importante da Doutrina portuguesa, segue o caminho de apreciar a relevância da falta de forma em relação à parte oculta do negócio. O problema da validade formal do negócio dissimulado suscita-se com grande delicadeza quando a lei exige a forma solene da escritura pública para o negócio e essa forma foi observada no negócio tal como aparente (negócio simulado), mas não revestiu a parte oculta do negócio. A Doutrina tem abordado a questão numa perspectiva análoga à da forma dos pactos acessórios, tal como regida no art. 221º: para a validade formal do negócio dissimulado seria necessário demonstrar que a parte oculta do negócio não estava abrangida pela «razão determinante da forma». Nesta linha, se a forma legalmente exigida fosse a da escritura pública, o negócio dissimulado só poderia ser formalmente válido se a parte oculta do negócio, em si mesma considerada, não fosse abrangida pela razão de ser da exigência legal de forma. Esta é, com naturais cambiantes e particularidades, a posição de CASTRO MENDES, de OLIVEIRA ASCENSÃO e de CARVALHO FERNANDES. MENEZES CORDEIRO prefere a referência analógica ao art. 238º do CC. (…) Todavia, este modo de encarar a questão é ainda muito restritivo da validade formal do negócio dissimulado, que acaba por resultar quase sempre inválido, salvo quando a parte oculta do negócio tenha uma importância meramente secundária. E, no entanto, a lei é francamente menos exigente no que concerne à validade formal dos negócios tácitos. O respeito pela exigência legal de forma não impede que o Cod., no art. 217º, nº2, a propósito dos negócios tácitos, admita a validade formal «desde que a forma tenha sido observada quanto aos factos de que a declaração se deduz». Neste caso também a publicidade fica prejudicada, sacrificada à subsistência do negócio, sem que a lei distinga quanto à razão de ser da forma. (…) Parece ser preferível a solução de considerar formalmente válido o negócio real (dissimulado), desde que a forma que a lei exige para a sua validade tenha sido observada no negócio aparente (simulado) independentemente da parte do negócio que tenha sido oculta e do regime formal que, em si mesma, justificaria e da razão de ser da exigência legal de forma. Os elementos do contrato real (dissimulado) que não estejam cobertos pela forma do negócio aparente (simulado) ficam inevitavelmente expressos, e tornam-se assim aparentes e cognoscíveis, na sentença que declara a simulação, cuja forma é mais solene que a da escritura pública, e cuja certidão serve de base ao registo do acto real (dissimulado). A forma soleníssima da sentença satisfaz a exigência de publicidade, a qual só fica prejudicada em relação ao tempo que medeia entre a ocorrência da simulação e a prolação da sentença e o seu registo. Esta solução é conforme com o princípio do favor negotii. (…) É verdade que da falsa publicidade emergente da simulação anterior à sua declaração judicial e registo podem resultar danos para terceiros, mas esses danos, uma vez provados, podem ser indemnizados. A simulação é um acto ilícito que dá lugar à obrigação de indemnizar os danos causados à contraparte, nos termos gerais do art. 227º do CC, e os danos causados a terceiros, nos termos gerais do art. 483º do CC. Os interesses de terceiros que tenham sido prejudicados com a omissão da publicidade que da simulação resulta podem ser acautelados com o regime da responsabilidade civil”. Esta longa e, porventura, fastidiosa transcrição – de que entendemos dever penitenciar-nos – evidencia que, no caso dos autos (seguindo, aliás, a posição maioritária da jurisprudência deste Supremo – Cfr., designadamente, os Acs. de 07.02.02 , de que foi relator o saudoso Cons. Neves Ribeiro - –COL/STJ – 1º/77, de 17.06.03, de que foi relator o Cons. Ribeiro de Almeida – COL/STJ- 2º/112 e de 09.10.03, muito exaustivo e de que foi relator o Cons. Oliveira Barros – COL/STJ – 3º93), tem de haver-se por inteiramente válido o dissimulado negócio de doação, porquanto – remetendo para o que se deixou transcrito – o mesmo foi formalizado por escritura pública, forma adoptada para a celebração do simulado negócio jurídico de compra e venda, tendo, pois, sido observada a forma legalmente exigida para o negócio dissimulado de doação (Cfr. arts. 875º e 947º, nº1, ambos do CC).[7]». [negritos nossos] - Acórdão de 19/01/2023 (proc. n.º 33/21.3T8PNH.C1.S1), consultável em www.dgsi.pt, no qual se afirma o seguinte: A jurisprudência do STJ «tem seguido a doutrina segundo a qual a validade do negócio dissimulado depende do preenchimento, pela forma adoptada no negócio simulado, das razões justificativas da forma para o negócio dissimulado – consoante Manuel de Andrade, Teoria Geral, II, 1983, pg.189, Rui de Alarcão, Simulação, Anteprojecto para o Novo Código Civil, Bol.84/305 ou Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, art.º 241.º; na jurisprudência do S.T.J., veja-se, por todos, o Ac. de 7/2/2002 Col. I/77, rel. Neves Ribeiro. Decisivo é o entendimento da analogia entre a vontade dos simuladores no negócio dissimulado e a declaração que se entende valer nos negócios formais – se corresponder à vontade real das partes e as razões determinantes da forma do negócio se lhe não opuserem (art.º 238.º n.º2 do CCiv); quer a compra e venda de imóveis, tanto como a doação de imóveis devem ser celebradas por escritura pública – art.ºs 875.º e 947.º do CCiv. Por outro lado, se é certo que as declarações de doar não constam de qualquer dos negócios impugnados, também não seria expectável que isso alguma vez pudesse acontecer, posto que o negócio apenas é “dissimulado” por não revelar as verdadeiras declarações de doar (assim, Oliveira Ascensão, Teoria Geral, II, 1983, pg. 226) – não pode existir, por definição, escritura de compra e venda que declare ser o negócio gratuito. O que está em causa é apenas a formalização escrita e autêntica da vontade de doar, a ponderação das partes sobre o alcance do conteúdo negocial e a prova deste, nos termos dos art.ºs 219.º e 220.º do CCiv. Como se exprime, de forma veemente, o Ac. S.T.J. citado: “Não nos parece que em nome de uma lógica formal seja consciencioso fechar os olhos à realidade que o processo revela, nem a evidência pode ser negada, só porque um exercício de lógica normativa conduz ao sacrifício da substância, em homenagem à cegueira da forma, numa situação concreta em que a justificação legal da sua exigência está perfeitamente alcançada”. Não vemos razão para divergir da jurisprudência maioritária.». [negritos nossos] 7.4. Realizado este percurso pela jurisprudência deste Supremo Tribunal, e, não obstante, se reconhecer a natureza controvertida da questão em causa, considera-se – designadamente, à luz do princípio da interpretação e aplicação uniforme do direito, ínsito no n.º 3 do art. 8.º do Código Civil – ser de manter a orientação da jurisprudência deste Supremo Tribunal que directamente se tem pronunciado sobre a situação de venda simulada de imóvel que oculta uma doação dissimulada, afirmando a validade do negócio oculto. Salientando-se que tal orientação assenta no pressuposto de que o regime do art. 241.º do Código Civil corporiza as teses de Manuel de Andrade supra apresentadas (cfr. supra, ponto 7.1. do presente acórdão). Tais teses, que encontram tradução na formulação do articulado proposto no Anteprojecto de Rui de Alarcão («Quando sob o negócio simulado se oculta um outro negócio, que as partes realmente quiseram celebrar, será aplicável a este último o tratamento jurídico que lhe corresponderia se tivesse sido concluído sem dissimulação. Sendo o negócio dissimulado de natureza formal, a sua validade supõe, na falta de uma contradeclaração com a forma legalmente requerida, que as razões de tal formalismo se mostrem satisfeitas com a observância das formalidades revestidas pelo negócio simulado.») que veio a dar origem às normas dos n.ºs 1 e 2 do art. 241.º do actual Código Civil, podem ser assim enunciadas: - As hipóteses de admissão da validade de negócio dissimulado (formal) devem ir para além daqueles casos em que as partes tenham realizado uma contra-declaração respeitando a forma legal exigida para o negócio dissimulado; - Ainda que o animus donandi não possa deixar de se considerar como sendo elemento essencial do negócio de doação, aceita-se que o mesmo não conste do acto formal pelo qual o negócio simulado foi celebrado, desde que estejam satisfeitas as razões justificativas da exigência de forma legal; - Essas razões são essencialmente as seguintes, na formulação de Manuel de Andrade: obrigar as partes a uma ponderada reflexão sobre as consequências do respectivo acto; estabelecer prova segura da transferência da propriedade sobre os bens imóveis; - Na generalidade dos casos de doação de imóvel dissimulada por trás de venda simulada celebrada mediante acto formal, tais razões encontram-se reunidas; - Diferentemente, no caso de simulação subjectiva por interposição fictícia de pessoas, o negócio dissimulado será nulo por não estar satisfeita a indicada segunda razão justificativa da forma legal: permitir fazer prova segura da transferência da propriedade sobre os bens imóveis. Ora, no caso dos autos, dúvidas não subsistem de que a forma negocial adoptada (escritura pública) permitiu às partes a devida ponderação das consequências do negócio celebrado, assim como permite fazer prova segura da transferência para os réus da propriedade sobre o imóvel. Recorde-se que, como se assinalou acima (ponto 7. do presente acórdão), tanto em sede de apelação como em sede de revista, a autora reconheceu que, independentemente da qualificação do negócio oculto, as partes tiveram a intenção de transferir para os réus a propriedade sobre o bem imóvel em causa. No que respeita à tutela dos terceiros interessados, afigura-se ainda que a jurisprudência deste Supremo Tribunal assenta no pressuposto de que, em certa medida, essa tutela se alcança mediante a proibição de que a nulidade proveniente da simulação seja arguida pelo simulador contra terceiro de boa fé (cfr. art. 243.º, n.º 1, do Código Civil). Assim como mediante a não admissão da prova testemunhal do acordo simulatório e do negócio simulado, quando invocados pelos simuladores (cfr. art. 242.º, n.º 1, do CC, a contrario). A título exemplificativo, cfr. o acórdão deste Supremo Tribunal de 07/02/2002 (proc. n.º 01B4168), supra referido, e assim sumariado: «Tendo os contraentes celebrado entre si, por escritura pública, negócio jurídico que intitularam de "doação" de bem imóvel, quando o que realmente quiseram foi celebrar entre si um negócio "jurídico de compra e venda", assim tendo agido com o intuito de frustrarem a exercitação de um direito de preferência por parte do arrendatário desse imóvel, deve considerar-se um tal negócio como nulo entre os mesmos contraentes como doação (art. 289, n. 1 do C.Civil), mas, todavia, válido como efectiva "compra e venda" em relação ao preferente.». Deste modo - reitere-se -, considera-se que, no presente caso de contrato de doação dissimulado, oculto pela celebração formal de um contrato de compra e venda simulado, tanto o respeito pelo princípio da interpretação e aplicação uniforme do direito, como a verificação do respeito pelas funções nucleares da exigência legal de forma, levam a manter a orientação jurisprudencial adoptada por este Supremo Tribunal em todos os casos similares identificados, concluindo-se, assim, pela improcedência da pretensão da recorrente. 8. Pelo exposto, julga-se o recurso improcedente, confirmando-se a decisão do acórdão recorrido. Custas pela recorrente Lisboa, 19 de Setembro de 2024 Maria da Graça Trigo (relatora) Ana Paula Lobo Isabel Salgado ________
1. Assinale-se que, apesar de, neste caso, a simulação ser tanto objectiva como subjectiva, o acórdão não considerou nem apreciou especificamente a dimensão subjectiva da simulação. |