Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | 6ª SECÇÃO | ||
Relator: | GRAÇA AMARAL | ||
Descritores: | INSOLVÊNCIA RECURSO DE REVISTA INADMISSIBILIDADE OPOSIÇÃO DE ACÓRDÃOS | ||
Data do Acordão: | 09/17/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | REVISTA (COMÉRCIO) | ||
Decisão: | RECLAMAÇÃO INDEFERIDA | ||
Sumário : | Não ocorre oposição entre acórdãos para efeitos de admissibilidade da revista ao abrigo do disposto no artigo 14.º, do CIRE, se a divergência do sentido das respectivas decisões assentar em distintos pressupostos fácticos. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam em conferência na 6ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça, I – Relatório 1. AA e mulher BB, Recorrentes nos autos, vieram, ao abrigo do disposto nos artigos 652.º, n.º 3, 643.º, n.º 4 e 679.º, do Código de Processo Civil (doravante CPC), reclamar para a conferência da decisão da relatora que por entender que a revista interposta não era admissível, não conheceu do objecto da mesma. Reafirmando o seu entendimento quanto à admissibilidade de recurso de revista por considerar ocorrer uma situação de oposição de acórdãos e invocando nulidade da decisão por omissão de pronúncia, formularam as seguintes conclusões, que se transcrevem: “1. No que se refere à verificação de nulidade invocada, nos termos do artigo 615.º, n.º 1, al. e), do C.P.C., a presente Decisão Singular é manifestamente omissa, configurando nulidade, ao abrigo do disposto no 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, que expressamente se invoca e contrariando os princípios de obrigatória tutela jurisdicional efectiva, constitucionalmente consagrada no art.º 20, da CRP. 2. Compulsada a impugnação da Lista provisória, de fls., apresentada pela Recorrida, não resulta qualquer alegação quanto ao montante do crédito reconhecido, designadamente, a título de juros de mora e cláusula penal, tal como, nada foi impugnado quanto à qualificação de qualquer crédito como subordinado, configurando tal alegação em sede de recurso, questão nova, cfr. Ac. do TRG, de 09/07/2020, P. 1490/19.3T8VRL.G1, Relator: Rosália Cunha, in www.dgsi.pt, e o Ac. do TRL, de 11/01/2022, P. 289/19.1T8VFX-L1-1, Relator:Fátima Reis Silva, in www.dgsi.pt. 3. Quanto à contradição de Acórdãos, consideram os aqui Reclamantes que, a mesma, foi devidamente explicitada, apontando-se a identidade jurídiconormativa das diferentes questões factuais descritas, considerando que as contradições invocadas assumem carácter essencial ou fundamental para a solução do caso, integrando a verdadeira ratio decidendi dos acórdãos em confronto, por forma a que o presente recurso deva ser admitido e apreciado. 4. A interpretação do estatuído no artigo 14.º, n.º 1, do CIRE, 686.º e 687.º, do C.P.C, de forma redutora, contraria o vertido no art.º 20.º da CRP, que expressamente se invoca.”. 2. A Recorrida pronuncia-se no sentido da inexistência de oposição de acórdãos e formula as seguintes conclusões, que se transcrevem: “1. A nulidade invocada pelos Recorrentes não existe, como aliás já foi esclarecido, não tendo o juiz condenado em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido, bem como, o juiz pronunciou-se sobre as questões que devia apreciar, não tendo existido. 2. A Recorrida impugnou a lista provisória impugnando o crédito reconhecido a CC quer quanto ao valor quer quanto à natureza do mesmo. 3. E ao ser alterado o valor e a natureza do crédito reconhecido a CC, forçosamente, essa alteração, refletiu-se na aprovação do PEAP. 4. O crédito reconhecido a CC, de natureza subordinada, foi no valor de 140.000,00€, sendo o total dos créditos reclamados e reconhecidos nos autos principais para efeitos de votos de 419.137,89€, em que o total de votos emitidos foi de 356.703,86€, sendo a favor 177.056,76€ e contra 179.647,10€. 5. Assim, ao existir uma maioria de credores que votou contra a aprovação do PEAP, o mesmo não pode ser aprovado e, por conseguinte, não foi homologado nos termos legais, prescrevendo a este respeito o número 1 do artigo 222 – F º do CIRE que concluindo-se as negociações com a aprovação unânime de acordo de pagamento, em que intervenham todos os seus credores, este deve ser assinado por todos, sendo de imediato remetido ao processo,para homologação ou recusa do mesmo pelo juiz, acompanhado da documentação que comprova a sua aprovação, atestada pelo administrador judicial provisório nomeado, produzindo tal acordo de pagamento, em caso de homologação, de imediato, os seus efeitos. 6. Tendo o douto tribunal decidido em conformidade com os termos legais, porquanto, mais de 50% dos credores votou contra a não aprovação do acordo para pagamento apresentado pelos Recorrentes, por esse motivo, não foi homologado e não pode produzir os efeitos pretendidos. 7. Quanto à contradição de Acórdãos, a mesma não foi demonstrada, nem poderia, uma vez que, não existe. 8. Não existiu contradição e tendo o douto Acórdão referido que aos presentes autos se aplicava a Autoridade de Caso Julgado relativamente ao crédito reclamado por CC, fundamentando extensamente a sua posição, recorrendo à doutrina e à jurisprudência, alegando, em síntese, que o objeto de uma decisão proferida em ação anterior inscreve-se no objeto de uma ação posterior. 9. Porquanto, existindo já decisão proferida o âmbito de um processo de execução nº34360/16.2... que correu os seus termos no Juízo de Execução de ... – J... em que não é admitido o crédito reclamado por CC, não deverá ser decidido noutro sentido, porquanto, o objeto é o mesmo e não deverá ser apreciado duas vezes. 10. No referido processo de execução, foi proferida sentença a 22/11/2019, a julgar não verificado e não reconhecido o crédito reclamado pelo credor CC sobre os executados no valor de €170.000,00 e que o mesmo não beneficiava do direito de retenção nos termos do disposto no art. 755.º f) do Código Civil, sobre o imóvel penhorado na execução. 11. Da supra referida sentença foi ainda interposto recurso para o Tribunal da Relação do Porto tendo sido proferido Acórdão a 25/02/2021 julgando improcedente o recurso intentado pelo referido credor, mantendo a sentença recorrida. 12. Por tudo o supra exposto, resulta por demais evidente que os Recorrentes têm usado todos os expedientes dilatórios ao seu dispor, beneficiando do artigo 20º da CRP por eles invocado. 13. O Acórdão proferido pelo tribunal a quo não merece censura e, como tal, o Recurso de Revista não deverá ser admitido, mantendo-se o despacho reclamado.” 3. A decisão reclamada, concluindo pela inadmissibilidade da revista, não conheceu do objecto do recurso. II - Apreciando 1. Em causa está recurso tempestivo1 interposto do acórdão que revogou a sentença homologatória proferida em processo especial para pagamento, denominado de forma abreviada PEAP, pelo que a admissibilidade recursória da revista mostra-se condicionada pelo disposto no artigo 14.º, n.º 1, do Código da insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE), como constitui entendimento pacífico neste tribunal2. Assim sendo, a admissibilidade do recurso de revista depende da demonstração, pelo recorrente, de que o acórdão de que pretende recorrer está em oposição com outro, proferido por alguma das relações, ou pelo Supremo Tribunal de Justiça, no domínio da mesma legislação e que haja decidido de forma divergente a mesma questão fundamental de direito e não houver sido fixada pelo Supremo, nos termos dos artigos 686.º e 687.º do CPC, jurisprudência com ele conforme. Nestes casos, como tem sido reiteradamente entendido por este tribunal, a oposição de acórdãos relativamente à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando a mesma disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação. Com efeito, os critérios de verificação da contradição jurisprudencial são os mesmos utilizados para aferição da contradição jurisprudência na revista excepcional e nos recursos de uniformização de jurisprudência (cfr. artigos 672.º, n.º 2, alínea c) e 688.º, n.º 1, ambos do CPC), sendo pacificamente entendido que Em sentido técnico, a oposição de acórdãos quanto à mesma questão fundamental de direito verifica-se quando idêntica disposição legal se mostre, num e noutro, interpretada e/ou aplicada em termos opostos, havendo uma identidade de situação de facto subjacente a essa aplicação. Se os Acórdãos em confronto assentarem a decisão jurídica numa apreciação factual completamente distinta, não se poderá concluir pela existência de uma contradição jurisprudencial.3. 2. Os Recorrentes reiteram, nesta sede, o seu posicionamento quanto à verificação, no caso, de oposição de acórdãos, limitando-se a afirmar a sua verificação e a repetir a argumentação já exposta no processo, que foi objecto de apreciação na decisão singular proferida. Nada fazem, pois, acrescer à argumentação em que sustentam a defesa da existência de contradição de julgados. Assim, uma vez que o entendimento em que a decisão singular proferida se sustenta para concluir pela inexistência de oposição de acórdãos não pode deixar de ser reiterado, a ausência de argumentação por parte dos Reclamantes legitima que a fundamentação daquela seja incorporada no presente acórdão, por forma a fazer parte da respectiva fundamentação, pelo que se deixa aqui transcrita na parte em que para o efeito assume relevância: - “Sem terem logrado proceder, de forma clara, à caracterização do núcleo factual do acórdão recorrido e do acórdão fundamento, bem como o quadro jurídico aplicável e, bem assim, a respectiva questão jurídica a decidir4, os Recorrentes, conforme salientámos no despacho que determinou a notificação ao abrigo do artigo 655.º, do CPC, enunciaram, no que nos foi possível interpretar das alegações, quatro questões jurídicas distintas discutidas e decididas no acórdão recorrido, que são objecto da respectiva discordância, tendo indicado quatro acórdãos proferidos pelas Relações (acórdãos-fundamento) que, em seu entender decidiram opostamente. • Da existência de autoridade do caso julgado Relativamente a este respeito os Recorrentes referem que o acórdão recorrido se mostra em oposição com o acórdão do tribunal da Relação do Porto de 02-12-2019 (Processo n.º 100/13.7TBVCD-B.P1), por entenderem que ambos decidiram, de forma contrária, a mesma questão de direito respeitante à definição dos efeitos de uma decisão proferida no âmbito de uma reclamação de créditos em processo executivo. No acórdão recorrido, relativamente ao incidente de impugnação da lista de credores provisória, foi considerado quanto à impugnação do crédito de CC: “tendo a decisão proferida na reclamação de créditos, por apenso ao mencionado processo executivo, julgado improcedente a pretensão formulada pelo credor CC, na parte respeitante à existência de garantia real correspondente a direito de retenção sobre o imóvel em questão, parece-nos por demais evidente que aquela decisão se impõe como prevalecente no presente PEAP, conduzindo a que o crédito que possa aqui ser reconhecido àquele credor não possa ser associado à dita garantia real, ao invés do que consta na relação de credores apresentada pelo Sr. Administrador Judicial, apenas podendo constar como crédito comum. E que dizer quanto à existência do crédito e ao respetivo valor? Pois bem, o que resulta do dito acórdão da RP de 25.02.2021, mercê da nova factualidade que então considerou como provada, é que o promitente comprador, aqui credor CC, entregou aos promitentes compradores, aqui devedores, o montante global de 70.000€ a título de sinal. Considerando que o correspondente contrato promessa não foi cumprido pelos promitentes vendedores, então é seguro que a CC assiste o direito a que lhe seja restituído pelos aqui devedores 70.000€, que havia entregue a título sinal entregue. Mas, como bem se deixou afirmado na decisão recorrida, “considerando a demonstração da resolução do contrato promessa de compra e venda de imóvel, por parte do credor reclamante, assente no facto de estar o bem a ser penhorado em execução intentada contra os devedores e promitentes vendedores e o disposto nos arts. 410.º, 799.º, 804.º, 806.º, 432.º a 436.º e 442.º do C. Civil, tem-se por verificado o incumprimento definitivo do contrato por parte dos devedores, dando lugar ao dever de entrega de sinal em dobro”, ou seja, 140.000€. Aqui chegados, concluímos que o crédito de que é titular CC ante os devedores AA e BB ascende, no que concerne a capital, apenas a 140.000€, e não a 170.000€ como o Senhor Administrador Judicial fez constar na lista provisória que apresentou.”. O acórdão fundamento respeita à decisão proferida no âmbito de apenso de reclamação de créditos a um processo de insolvência, em que foi junta certidão de sentença de verificação de créditos proferida em processo executivo, na qual se reconheceu o crédito daqueles credores e de outros, não tendo sido proferida sentença de graduação de créditos em face da sustação da execução, por efeito da declaração de insolvência dos executados. Concluiu o acórdão fundamento que “os efeitos extraprocessuais da sentença de verificação de créditos em processo de reclamação de crédito apenso a processo de execução, para o caso concreto, conclui-se que a sentença que julgou verificados os créditos dos credores “D… …” e E… (Proc. 1022/11.1TBBCL-C), porque os créditos não foram objeto de impugnação pelos executados e pelo exequente, não faz caso julgado material. A sua eficácia em sede de caso julgado forma-se apenas quanto à graduação. (…) O caso julgado produz-se, pois, apenas quanto ao reconhecimento do direito real de garantia, ficando por ele reconhecido o crédito reclamado só na estrita medida em que funda a existência actual desse direito real.” Como se evidencia do teor das decisões, quer o quadro factual, quer o enquadramento legal em confronto não são idênticos. O acórdão recorrido versa sobre a impugnação da lista provisória de créditos no âmbito de um PEAP, ao qual são aplicáveis as normas previstas nos artigos 222.º-A e ss. do CIRE. O PEAP, que se destina a permitir ao devedor que, não sendo uma empresa e comprovadamente se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência meramente iminente, estabelecer negociações com os respetivos credores de modo a concluir com estes acordo de pagamento, é um processo especial, com regras próprias, inclusive, para a tramitação e decisão do incidente de impugnação da lista de credores (artigo 222.º-D, do CIRE), sendo-lhe aplicável as demais normas previstas no CIRE, desde que não incompatíveis com a sua natureza. O acórdão fundamento, por seu lado, reporta-se ao âmbito de um apenso de reclamação de créditos no processo de insolvência, que é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, sendo que no apenso de reclamação de créditos da insolvência, presidem os artigos 128.º e ss, do CIRE. Sem prejuízo, e dado que no acórdão recorrido a questão em causa é a da autoridade do caso julgado de uma sentença de verificação e graduação de créditos no âmbito de um incidente de impugnação da lista provisórias de credores, sempre se dirá que inexiste uma identidade factual. Na verdade, no acórdão fundamento, entendeu-se não se verificar a excepção do caso julgado, porquanto a sentença proferida, no âmbito de um incidente de reclamação de créditos, apenso a acção executiva, tão só procedeu à verificação dos créditos, sem proceder à sua graduação, o que foi determinante para concluir pela não verificação do caso julgado. Mais acresce que o instituto jurídico da excepção do caso julgado não apresenta identidade dogmática com o instituto da autoridade do caso julgado, tanto mais que o primeiro determina a absolvição da instância e o segundo a absolvição do pedido - cfr. arts. 278.º, n.º 1, al. e), 576.º, n.ºs 2 e 3, do CPC5. Verifica-se, pois, em termos factuais, o seguinte: - no caso dos autos, está-se perante um processo especial para acordo de pagamento, no âmbito de um incidente de impugnação da lista provisória de credores, em que foi decidida a imposição da autoridade do caso julgado de uma sentença que verificou e graduou os créditos, em processo executivo; - no acórdão fundamento, perante um apenso de reclamação de créditos, no âmbito de um processo de insolvência, em que foi decidido que não se verificava qualquer excepção de caso julgado por força de sentença de verificação de créditos prolatada em processo executivo, que não graduou os créditos pela sua natureza. Inexiste, assim, semelhança relevante entre os quadros factuais de cada um destes arestos, sido proferidos no domínio do mesmo instituto, sendo que a questão fundamental que cada um decidiu também não é idêntica, pelo que a circunstância de terem sido alcançadas decisões diferentes é perfeitamente plausível. Não, ocorre, por isso, oposição frontal entre o acórdão recorrido e o acórdão fundamento indicado. • Da exigibilidade dos juros de mora peticionados Alegam os Recorrentes que o acórdão recorrido se mostra em oposição com o decidido no acórdão do tribunal da Relação do Porto de 04-11-2019, proferido no Processo n.º 7402/16.9YIPRT.P1, relativamente à questão dos juros de mora devidos sobre o capital do credor CC. Carecem de razão. No acórdão recorrido foi decidido que, de acordo com os factos provados, tão só o devedor DD foi interpelado pelo credor CC, em 16-02-2018, a declarar resolvido a contrato-promessa e a pedir a devolução das quantias pagas a título de sinal, pelo que (p)retendendo o credor fazer valer a totalidade do seu direito de crédito de capital ante ambos os devedores, apenas a interpelação de ambos poderia justificar a mora de ambos, o que não sucede no caso. Nestas circunstâncias, julgamos não haver justificação bastante para fazer incluir no crédito de CC qualquer montante a título de juros de mora. Com efeito, também quanto a esta matéria, não se verifica qualquer oposição frontal com o acórdão fundamento, uma vez que o que determinou a decisão do acórdão recorrido foi a circunstância de um dos devedores não ter sido interpelado. Cabia decidir o momento da contabilização dos juros de mora numa situação de resolução do contrato-promessa e restituição das quantias pagas a título de sinal e foi determinante para o sentido da decisão o facto de apenas um dos devedores ter sido interpelado. Por sua vez, no acórdão fundamento, foi apreciada uma situação de falta de pagamento do “preço” de um contrato de prestação de serviços e o momento a partir do qual eram devidos juros de mora, por não ter sido acordado um prazo para o pagamento, tendo sido concluído que, independentemente da interpelação extrajudicial e de não ter sido acordado um prazo para o pagamento, eram sempre devidos juros desde a citação. Pretendem os Recorrentes que o entendimento explanado no acórdão fundamento seja transposto para os presentes autos, mas uma vez que inexiste qualquer semelhança entre os quadros factuais de cada um dos acórdãos, mostram-se devidamente justificadas as diferentes soluções jurídicas alcançadas nos arestos em confronto. • Da qualificação do crédito (comum) Alegam os Recorrentes que o acórdão recorrido está em oposição com o acórdão do tribunal da Relação de Lisboa de 11-01-2022, proferido no âmbito do Processo n.º 289/19.1T8VFX-L1-1, defendendo que o mesmo contraria a jurisprudência maioritária plasmada no acórdão fundamento. Referem nesse sentido que não podendo o Tribunal de 1.ª Instância, pronunciar-se quanto à qualificação dos créditos, e por maioria de razão, também não poderia o Tribunal “a quo” fazê-lo, pelo que deveria manter-se a natureza e qualificação, constante da Lista Provisória de credores, uma vez que (…) a finalidade primacial da reclamação no PEAP (tal como no PER) não é decidir sobre a existência, natureza ou amplitude dos créditos dos credores reclamantes, mas antes definir o universo dos créditos e respectivos titulares para determinar quem pode participar nas negociações e no procedimento de aprovação do acordo recuperatório e na eventual oposição ao mesmo. Contrariamente ao entendimento defendido pelos Recorrentes, o acórdão recorrido não alterou a qualificação do crédito para comum, tendo antes procedido à alteração do crédito do credor CC de garantido por direito de retenção para subordinado. Não se vislumbra, assim, em que termos pretendem os Recorrentes demonstrar a oposição entre o acórdão recorrido e este acórdão fundamento quanto a esta questão. Ainda assim, analisando o acórdão fundamento, verifica-se que este acórdão se mostra proferido em matéria de um processo PER, em que, previamente à decisão de homologação do plano, o juiz de 1.ª instância suscitou a questão de uma eventual relação de domínio ou de grupo entre a devedora e um dado credor para efeito de determinar a qualificação de um crédito como subordinado e, consequentemente, em face da votação, o plano não foi homologado. O acórdão fundamento declarou a nulidade daquela decisão sustentando que a única ocasião em que, em processo especial de revitalização, o tribunal se pode pronunciar sobre a natureza de um crédito reclamado para efeitos de determinação do quórum deliberativo, é na decisão da específica impugnação que tenha sido apresentada por legitimado, ou na apreciação sumária, para os efeitos do art. 17º-F nº5, da mesma impugnação. A alteração da natureza de um crédito reconhecido e não impugnado não é de conhecimento oficioso, nem na fase da impugnação de créditos, nem em fase posterior. Verifica-se, pois, que mais uma vez a falta de identidade do quadro factual entre o acórdão fundamento e o acórdão recorrido: no caso dos autos, para além de se estar no âmbito de um PEAP, a questão da natureza do crédito do credor CC foi, desde logo, suscitada pelo credor Hefesto na impugnação da lista provisória de credores, tendo a agora Recorrida apelado daquela decisão em conjunto com a decisão de homologação do plano. No acórdão fundamento, ao invés do que ocorreu no caso dos autos (em que foi suscitada a impugnação do crédito do credor CC), não se verificou qualquer impugnação da natureza do crédito, tendo o juiz procedido à alteração da natureza do crédito após ter, oficiosamente e depois do prazo da impugnação da lista, suscitado tal questão. E é esta inexistência de identidade entre os quadros factuais dos arestos alegadamente em oposição6 que justifica que cada um dos acórdãos tenha alcançado uma solução jurídica distinta. Não se verifica, assim, a alegada oposição entre o acórdão recorrido e o citado acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa de 11-01-2022, nos termos e para os efeitos do artigo 14.º, n.º 1, do CIRE. • Da qualificação do crédito como subordinado Por fim, invocam os Recorrentes que o acórdão recorrido também se encontra em contradição com o acórdão proferido pelo tribunal da Relação de Guimarães, em 09-07-2020, no Processo n.º 1490/19.3T8VRL.G1, proferido no âmbito de um PEAP. Naqueles autos não houve impugnação da lista de créditos e a mesma foi considerada definitiva, não tendo o plano sido aprovado porque a votação favorável correspondia a créditos subordinados. Em sede de apelação, veio o devedor invocar, além do mais, que lista provisória de credores padecia de erro, que deveria ser corrigido oficiosamente pelo tribunal de recurso, o que não foi considerado procedente. A ratio decidendi do acórdão fundamento residiu no facto de ter sido considerado que o momento próprio para reagir relativamente a qualquer incorreção referente aos créditos é a fase da impugnação da lista provisória, pelo que, a falta de qualquer impugnação, determina que a lista se converta em definitiva, inviabilizando que a mesma possa ser objecto de correcção com fundamento em erro, questão que não é de conhecimento oficioso e, em sede de recurso, consubstancia questão nova. Por sua vez, no caso, conforme se evidencia dos autos (quer do requerimento de impugnação da lista de créditos datado de 17-02-2023, quer da sentença de impugnação da lista de créditos), o credor Hefesto impugnou o montante e a natureza do crédito do credor CC indicado na lista provisória de credores como sendo um crédito garantido, por direito de retenção. A sentença de impugnação de créditos manteve a natureza e o montante do crédito reclamado pelo credor CC, tendo o credor Hefesto apresentado recurso de apelação da decisão que conheceu da impugnação de créditos e da decisão de homologação do plano. Em sede de apelação, foi decidido alterar o montante e a natureza do crédito deste credor para subordinado, pelo facto de ser irmão da devedora. Do exposto resulta evidenciada a ausência de identidade do quadro factual, porquanto: - no acórdão fundamento não foi apresentada qualquer impugnação à lista provisória de credores, sendo a questão relativamente à alteração de um crédito subordinado para comum suscitada apenas em sede de apelação, tendo sido considerada questão nova e de conhecimento não oficioso; como tal, subtraída ao conhecimento daquele tribunal; - nos presentes autos, as questões referentes ao montante e à natureza do crédito do credor CC foram objecto de impugnação pelo credor Hefesto, pelo que, porque invocadas e não tendo a decisão transitada em julgado, foi apreciada no acórdão recorrido nos termos já explanados, não se tratando, deste modo, de qualquer questão nova. Em face de todo o exposto, há que concluir pela inverificação da alegada oposição de acórdãos, desde logo por dissemelhança dos factos em apreciação, o que justifica que tenha sido alcançada uma diferente solução jurídica em cada um dos acórdãos. Assim sendo, ao invés do pugnado pelos Recorrentes, não se mostra preenchido o requisito de admissibilidade do recurso de revista exigido pelo artigo 14.º do CIRE: oposição de acórdãos. 3. Defendem ainda os Recorrentes que a interpretação do artigo 14.º, do CIRE, no sentido determinado ao concluir pela inexistência de oposição de acórdãos mostra-se inconstitucional por violar o princípio do acesso ao direito consignado no artigo 20.º, da Constituição da República Portuguesa. Como referido na decisão singular, tal posicionamento parte de um equívoco porquanto não tem em conta que ocorre uma diversidade fáctica essencial não reportada a qualquer aspecto lateral, antes integrando a identidade substancial determinante do sentido de cada decisão. Acresce que a interpretação do artigo 14.º, do CIRE, no sentido atribuído na decisão – condicionando a admissibilidade da revista às situações de oposição de acórdãos -, de modo algum se mostra desconforme com a Constituição, designadamente com o princípio ínsito no artigo 20.º, da CRP, porquanto representa uma opção legítima do legislador ordinário7 incluída nos poderes que detém de definir as circunstâncias e os termos da admissibilidade dos recursos em matéria cível. O Tribunal Constitucional vem decidindo de forma consistente que a Constituição pressupõe, em matéria cível, que a lei ordinária proceda ao estabelecimento de um sistema de recursos, não garantindo, porém, um direito irrestrito ao recurso, nem mesmo a um terceiro grau de jurisdição. Nesse sentido tem vindo a ser considerado neste Tribunal “(…) fora do Direito Penal não resulta da Constituição nenhuma garantia genérica de direito ao recurso de decisões judiciais. Por outro lado, o princípio constitucional do acesso ao direito e à justiça, expressamente consagrado no citado artigo 20º da Constituição (que “assegura a todos o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, não podendo a justiça ser denegada por insuficiência de meios económicos”) não consagra o direito ao recurso para um outro tribunal, sendo também certo que não existe disposição expressa na Constituição que imponha o direito de recurso em processo civil, apesar de em processo e em matéria penal, o artigo 32º estabelecer o duplo grau de jurisdição. Alguns autores têm considerado como constitucionalmente incluído no princípio do Estado de direito democrático o direito ao recurso de decisões que afectem direitos, liberdades e garantias constitucionalmente garantidos, mesmo fora do âmbito penal. Em relação aos restantes casos (…) tem-se entendido que o legislador apenas não poderá suprimir ou inviabilizar globalmente a faculdade de recorrer. Isto porque a Lei Fundamental prevê expressamente os tribunais de recurso. Mas considera-se que o legislador ordinário tem ampla margem de conformação do âmbito dos recursos.”8. Consequentemente, a interpretação do regime recursório estabelecido no artigo 14.º, do CIRE, nos termos decididos não viola qualquer imperativo constitucional. 4. Importa, por fim, sublinhar que, ao invés do que defendem os Reclamantes, a decisão objecto de reclamação não se encontra ferida de nulidade por omissão de pronúncia quanto à questão da nulidade do acórdão da Relação suscitada pelos Recorrentes no recurso, uma vez que a revista não foi admitida. Improcede, pois, na sua totalidade, a reclamação apresentada. III- DECISÃO Nestes termos, acordam os juízes neste Supremo Tribunal de Justiça em julgar improcedente a presente reclamação, não admitindo o recurso de revista interposto pela Recorrente. Custas pelos Recorrentes, fixando-se em 2 Uc´s a taxa de justiça. Lisboa, 17 de Setembro de 2024
Graça Amaral (Relatora) Maria Olinda Garcia Luís Espírito Santos _____________________________________________ 1. Encontra-se justificado no despacho o nosso entendimento quanto à tempestividade da revista pois, ao invés do que defende a Recorrida nas contra-alegações, o recurso mostra-se interposto no último dia do prazo em causa (15 dias).↩︎ 2. Cfr. entre outros acórdão do STJ de 10-04-2024, Processo n.º 6036/23.6T8VNF.G1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎ 3. Cfr. entre outros, acórdão de 28-09-2023, Processo n.º 3141/22.0T8GMR.G1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎ 4. Na caracterização da oposição de julgados enquanto requisito específico da admissibilidade da revista ao abrigo do artigo 14.º, do CIRE, impende sobre o recorrente o ónus de demonstrar que a diversidade de julgados a que respeitam os acórdãos em confronto é consequência de uma interpretação divergente da mesma questão fundamental de direito na vigência da mesma legislação, conduzindo a que uma mesma incidência fáctico-jurídica tenha sido decidida em termos contrário- acórdão do STJ de 08-02-2022, Processo n.º 17412/20.6T8LSB-B.L1.S1, acessível através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎ 5. Cfr. e entre outros o acórdão do STJ de 10-05-2023, Processo n.º 7473/21.6T8PRT.P1.S2, a que se pode aceder através das Bases Documentais do ITIJ.↩︎ 6. De sublinhar que para este juízo prévio de admissibilidade do recurso não se impõe apreciar o mérito do acórdão recorrido, mas tão só aferir se ocorre ou não contradição jurisprudencial.↩︎ 7. Opção que assume cabimento na natureza célere que se quis incutir ao processo de revitalização por forma a estabilizar o mais depressa possível as relações litigiosas nesse âmbito.↩︎ 8. Acórdão de 18-06-2013, Processo n.º 483/080TBLNH.L1.S1, a que se poderá aceder através das Bases Documentais do IGFEJ.↩︎ |