Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
84/22.0PFEVR.E1.S1
Nº Convencional: 5.ª SECÇÃO
Relator: JOÃO RATO
Descritores: RECURSO PER SALTUM
DECLARAÇÕES DO ARGUIDO
INTERROGATÓRIO DE ARGUIDO
PROVA PROIBIDA
NULIDADE DE ACÓRDÃO
NULIDADE INSANÁVEL
PROCEDÊNCIA
BAIXA DO PROCESSO AO TRIBUNAL RECORRIDO
Data do Acordão: 07/04/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO EM PARTE
Sumário :

I – Nos termos da jurisprudência fixada no acórdão do STJ n.º 5/2023, a valoração na fundamentação da matéria de facto das declarações prestadas pelo arguido no 1º interrogatório judicial de arguido detido, sem terem sido reproduzidas ou lidas na audiência de julgamento, inquina a sentença/acórdão de vício determinante de prolação pelo tribunal recorrido de nova decisão de que seja expurgada a referência às tais declarações e consequente reconfiguração em conformidade da respetiva matéria de facto e de direito.


II – A confrontação em audiência de julgamento do elemento da PSP aí ouvido como testemunha com o auto de notícia por si levantado e assinado, nos termos do artigo 243º do CPP, não é ilegal ou sequer irregular; nem carece do assentimento e concordância dos sujeitos processuais interessados, por não estar abrangido pelo disposto no artigo 356º, n.º 2, mas antes pelo disposto no seu n.º 1, al. b), assumindo a natureza de documento autêntico com a força probatória que lhe confere o artigo 169º do mesmo diploma legal, conjugado com o artigo 363º, n.º 2, do Código Civil (CC).


III – Nos termos e para os efeitos do artigo 356º, n.ºs 2, al. b), e 5, do CPP, é válida a equiparação efetuada pelo tribunal recorrido das declarações prestadas no inquérito perante OPC com aquelas prestadas perante o Ministério Público, em auto no qual a testemunha reafirma integralmente as primeiras, mesmo não sendo elas neste reescritas, sem com isso se incorrer em qualquer vício impeditivo ou invalidante da sua consideração e valoração, menos ainda na violação dos princípios e normas dos artigos 18º, n.º 2, 20º, n.º 4, e 32º, n.ºs 1, 2 e 5, por nenhuma restrição dos direitos fundamentais de defesa do arguido, designadamente do contraditório, serem postergadas.

Decisão Texto Integral:

Processo n.º. 84/22.0PFEVR.E1.S1


(Recurso per saltum)


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Acordam, em Conferência, na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça


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I. Relatório


1. Por acórdão, de 27.06.2023, do Juízo Central Cível e Criminal de ... (JCCC...) – J ., do Tribunal Judicial da Comarca de Évora, foi o arguido AA, nascido a ... de ... de 1968, com os demais sinais dos autos, condenado, nos termos do seguinte dispositivo, que se transcreve na parte que ora releva:


«(…) IX. DECISÃO


Pelo exposto e em conformidade com as supracitadas normas legais, decidem as Juízas que compõem este Tribunal Colectivo:


A) CONDENAR o arguido AA, pela prática, como autor material e na forma consumada, de UM CRIME DE TRÁFICO DE ESTUPEFACIENTES, PREVISTO E PUNÍVEL PELO ARTIGO 21.º, N.º 1, DO DECRETO-LEI N.º 15/93, DE 22 DE JANEIRO, por referência à tabela I-A e I-B do mesmo diploma legal, NA PENA DE 6 (SEIS) ANOS E 10 (DEZ) MESES DE PRISÃO.


B) ORDENAR a recolha de amostra de ADN ao arguido AA, atenta a pena em que foi condenado.


C) DECLARAR PERDIDO A FAVOR DO ESTADO:


- todo o produto estupefaciente apreendido à ordem dos autos, determinando-se a sua destruição;


- o dinheiro apreendido ao arguido.


D) DECLARAR A INAPLICABILIDADE DA LEI N.º 38-A/2023, DE 2 DE AGOSTO AOS PRESENTES AUTOS.


E) CONDENAR o arguido nas CUSTAS CRIMINAIS as quais se fixam em 3 (três) UC de taxa de justiça e nos demais encargos do processo.


(…)»


2. Inconformado, interpôs o referido arguido, em 11.12.2023, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), apresentando as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição):


«Conclusões





As declarações do arguido prestadas no primeiro interrogatório judicial não foram lidas nem reproduzidas na audiência de julgamento (o TC já julgou inconstitucional, “por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5,conjugado com o artigo 18.º ,n.º 2,ambos da Constituição, a norma extraída dos artigos 355.º, n.ºs 1 e 2, e 356.º, n.º 9, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 357.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual podem valer em julgamento as declarações do arguido a que se refere o artigo 357.º, n.º 1, alínea b), do referido Código, sem que tenha havido lugar à sua reprodução ou leitura em audiência, por decisão documentada em ata” (acórdão TC 770/2020)).





Por outro lado, a testemunha BB foi confrontada com o auto de notícia (processo 57/22.3...) sem o acordo previsto no artigo 356º, nº 2, alínea b), do CPP.





Também as declarações da testemunha CC prestadas perante órgão de polícia criminal foram lidas em audiência sem o acordo previsto no artigo 356º, nº 2, alínea b), do CPP (o artigo 356º, nº 3, do CPP, é inconstitucional quando interpretado no sentido de que a leitura do depoimento testemunhal prestado no inquérito perante o Ministério Público que reproduz depoimento testemunhal prestado perante órgão de polícia criminal é admitida, sem ser necessário o consentimento do arguido, quando aquela leitura se destine a avivar a memória de quem declare na audiência já não se lembrar de certos factos, ou quando existir entre elas e as feitas na audiência discrepâncias ou contradições, por violação do artigo 20º, nº 4, da CRP e do artigo 32º, números 1, 2 e 5, da CRP).





Efetivamente, consideramos estar perante um crime de tráfico de menor gravidade, dado que a situação provada revela uma ilicitude diminuída relativamente às condutas que integram o tipo legal de crime base do crime de tráfico de estupefacientes, porquanto: não resulta da matéria de facto provada a utilização de meios sofisticados para a aquisição do produto estupefaciente e muito menos a utilização de quaisquer meios para os atos de venda; o produto estupefaciente tem reduzida qualidade, 5,086 gramas tinham apenas um grau de pureza de 28,3%, 3,802 gramas tinham apenas um grau de pureza de 24,2%, 0,028 gramas tinham apenas um grau de pureza de 72,5%, 23,810 gramas tinham apenas um grau de pureza de 19,9% e 1,923 gramas tinham apenas um grau de pureza de 49,4%; não resulta da matéria de facto provada qual o lucro que obteria com o produto; a duração e a intensidade da venda de estupefacientes são exíguas e genéricas bem como os consumidores finais.





Caso assim não se entenda, a pena aplicada deve ser reduzida substancialmente por o arguido consumir produtos estupefacientes desde a adolescência e, actualmente, frequentar programa de manutenção opióide, a reduzida qualidade do produto estupefaciente apreendido, primeira vez que o arguido pratica o crime de tráfico de estupefacientes apesar da extensão dos seus antecedentes criminais e a desestruturação do arguido ou ausência de projeto de vida.


Nestes termos e demais de direito deverá o presente recurso obter provimento e em consequência decidir-se em conformidade.


V. EXAS. FARÃO CONTUDO MELHOR JUSTIÇA!


(…)».


3. O recurso foi admitido por despacho da Juíza titular, de 9.01.2024, para subir imediatamente ao Tribunal da Relação de Évora (TRE), nos próprios autos e com efeito suspensivo do processo, no qual se reparou o acórdão recorrido, nos seguintes termos (transcrição parcial):


«(…) Por requerimento de 11.12.2023, veio o arguido AA interpor recurso, para o Tribunal da Relação de Évora, do Acórdão proferido em 23.11.2023, depositado no mesmo dia.


Invoca, além do mais, a nulidade da decisão recorrida.


*


Nos termos e para os efeitos no disposto no artigo 414.º, n.º 4 do Código Processo Penal (aplicável ex vi do artigo 379.º, n.º2, do Código de Processo Penal) sustento a decisão recorrida, com excepção do mencionado na página 8 [na parte respeitante à “Motivação da matéria de facto”], e mais concretamente quando ali se refere que o Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido “… em sede de 1.º interrogatório judicial…”, porquanto se trata de mero lapso que a ora signatária, relatora do Acórdão, se penitencia.


Assim, uma vez que foram valoradas (apenas) as declarações prestadas pelo arguido em audiência de discussão e julgamento e já não as que foram prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial, procedo à REPARAÇÃO DA DECISÃO EM CAUSA, ELIMINANDO DA PÁGINA 8 O SEGUINTE SEGMENTO “E EM SEDE DE 1.º INTERROGATÓRIO JUDICIAL”.


No mais, sustento a decisão recorrida e mantenho-a nos seus precisos termos.


Notifique.(…)»


4. Notificados o arguido e o Ministério Público, nenhum deles reagiu ao transcrito despacho reparador.


5. O Ministério Público junto do JCCC..., respondeu, em 19.02.2024, ao recurso do arguido, apresentando as seguintes concussões (transcrição):


«(…) CONCLUSÕES:


1. O Acórdão recorrido, em sede de fundamentação da matéria de facto, indica que o Tribunal formou a sua convicção com base nas declarações do arguido “… em sede de 1.º interrogatório judicial…”.


2. Compulsado o Acórdão proferido nos autos verifica-se que este, em sede de fundamentação de facto, quando especificamente indica as concretas razões pelas quais considerou os factos provados e não provados não menciona em qualquer ponto as declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial.


3. Alude de forma bastante exaustiva às provas que teve em consideração relativamente a cada facto e em momento algum revela que teve em conta tais declarações.


4. O próprio arguido também não indica relativamente a que facto ou factos julgados provados o Tribunal Colectivo teve em consideração o declarado pelo arguido perante o Exmº. Srº. Juiz de Instrução.


5. Acresce que as declarações então prestadas pelo arguido foram, essencialmente, no sentido da negação dos factos que então lhe foram comunicados, pelo que não se vê como poderiam ter fundado a matéria julgada provada.


6. Tais circunstâncias revelam que a menção realizada no Acórdão às declarações do arguido “… em sede de 1.º interrogatório judicial” consistiu num mero lapso como evidenciado pela Exmª. Srª. Juiz quando admitiu o recurso, pelo que não ocorre o vício invocado pelo arguido.


7. Conforme resulta das declarações prestadas pela testemunha BB aos 08’.30” e segs. este foi confrontado com o auto de notícia a que corresponde o MUIPC nº 57/22.3... a propósito da data em que ocorreu a intercepção do arguido pela testemunha junto à estação da C.P. de ..., tendo a testemunha confirmado que tal ocorreu na data exarada nesse auto.


8. O auto de notícia constitui um documento junto aos autos, indicado na acusação como prova documental, e foi nessa qualidade que foi exibido à testemunha.


9. Tal documento, nomeadamente, no que tange à data da prática dos factos, não constitui um auto de declarações da testemunha, sujeito à disciplina imposta no artº 356º, do C.P.P., mas antes prova documental, que pode ser exibida à testemunha de harmonia com o disposto no artº 345º, nº 3, do C.P.P. “ex vi” artº 348º, nº 7, do meso diploma legal.


10. Ainda que assim não se entenda sempre deverá ter-se em conta que a data da apreensão da cocaína e heroína ao arguido junto da estação da C.P. de ..., resulta do auto de apreensão de fls. 6, do NUIPC nº 57/22.3..., também elaborado pela testemunha BB.


11. A testemunha CC, no dia 14.11.2023, quando prestou declarações, foi confrontado com as declarações prestadas em sede de inquérito, no dia 26.01.2023, perante o Ministério Público –cfr. fls. 160 dos autos.


12. Nessas declarações a testemunha mencionou que “confirma na íntegra o teor do depoimento que prestou perante a P.S.P. em 13.04.2022 e que consta de fls. 94/94vº do processo apenso (Proc. nº 53/21.8...)”.


13. Como a testemunha CC confirmou expressamente perante o Magistrado do Ministério Público as declarações que prestou à P.S.P., estas declarações passaram a ficar sujeitas à disciplina prevista no artº 356º, nº 3, als. a) e b), do C.P.P. que dispensa o consentimento dos demais intervenientes processuais para a reprodução dessas declarações.


14. Neste sentido veja-se, entre outros, o Ac da R.C. de 03.06.2025, proferido no Proc. nº 9/12.1PELRA-G.C1.


15. Os factos provados revelam que o arguido assumiu o tráfico de drogas como fonte certa e habitual de receitas, dão uma imagem global da sua actividade, que se prolongou no tempo por cerca de um ano, sem se descortinar qualquer factor de diminuição de ilicitude da sua conduta, susceptível do enquadramento no tráfico de menor gravidade do artº. 25º.


16. A quantidade de estupefaciente apreendida (cocaína e heroína) possui algum relevo e não pode olvidar-se que exerceu a sua actividade de uma forma regular, ininterrupta, como que no exercício de uma qualquer actividade profissional.


17. Não estamos, por isso, perante actuação episódica, ocasional, desgarrada.


18. Face ao exposto, resulta claro que a conjugação dos vários índices referidos no artº 25º, do Dec. Lei nº 15/93, de 22.01, nomeadamente a quantidade da droga transaccionada, a sua qualidade, a duração da acção delituosa, não conduz a uma imagem global do facto, de pequena gravidade, justificadora de uma considerável diminuição da ilicitude do mesmo, pelo que esse tipo privilegiado não é aplicável ao caso dos autos.


19. Por tudo o exposto, o Acórdão recorrido não merece censura por conforme aos dispositivos legais em vigor.


Nesta conformidade, negando provimento ao recurso e mantendo a decisão recorrida V: Exªs. afirmarão a JUSTIÇA!


(…)»


6. O Ministério Público junto do TRE emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, acompanhando a resposta antes transcrita.


7. No entanto, por despacho de 23.04.2024, o Desembargador relator, excecionou a incompetência material e funcional do TRE para conhecer do recurso interposto pelo arguido, considerando competente o STJ, nos termos do artigo 432º, n.ºs 1, al. c), e 2 do Código de Processo Penal (CPP), para tanto ordenando lhe fossem remetidos os autos.


8 Neste Tribunal, o Ministério Público, em 10.05.2024, emitiu fundamentado parecer, de que se transcrevem os seguintes excertos:


«6 - Parecer (art. 416.º do CPP).


O STJ é competente para conhecer do recurso (art. 432.º, n.ºs 1, al. c), e 2, do CPP).


6.1 - Diz o recorrente que as suas «declarações (…) prestadas no primeiro interrogatório judicial não foram lidas nem reproduzidas na audiência de julgamento» e que «o TC já julgou inconstitucional, “por violação do artigo 32.º, n.ºs 1 e 5, conjugado com o artigo 18.º, n.º 2, ambos da Constituição, a norma extraída dos artigos 355.º, n.ºs 1 e 2, e 356.º, n.º 9, aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 357.º, todos do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual podem valer em julgamento as declarações do arguido a que se refere o artigo 357.º, n.º 1, alínea b), do referido Código, sem que tenha havido lugar à sua reprodução ou leitura em audiência, por decisão documentada em ata” (acórdão TC 770/2020)».


Vejamos.


O arguido detido que não deva ser de imediato julgado é interrogado pelo juiz de instrução, no prazo máximo de quarenta e oito horas após a detenção, logo que lhe for presente com a indicação circunstanciada dos motivos da detenção e das provas que a fundamentam (art. 141.º, n.º 1, do CPP), devendo ser informado, além do mais, de que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova (art. 141.º, n.º 4, al. b) do CPP).


Excetuando as provas contidas em atos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência seja permitida nos termos dos artigos seguintes (art. 355.º, n.º 2, do CPP), não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência [art. 355.º, n.º 1, do CPP].


A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida a sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas, ou quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na al. b) do n.º 4 do art. 141.º (art. 357.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP), devendo a permissão e a sua justificação legal ficar a constar da ata sob pena de nulidade (arts. 356.º, n.º 9, e 357.º, n.º 3, do CPP).


Relativamente a esta questão, o STJ fixou jurisprudência no sentido de que «[a]s declarações feitas pelo arguido no processo perante autoridade judiciária com respeito pelo disposto nos artigos 141.º, n.º 4, al. b), e 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, podem ser valoradas como prova desde que reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento» (acórdão n.º 5/2023, relatado pelo conselheiro António Gama, DR, 1.ª série, n.º 111, de 9 de junho de 2023).


Lê-se na pág. 8 do acórdão recorrido (destaques a sublinhado da nossa autoria):


«O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente, as declarações do arguido em audiência de discussão e julgamento e em sede de 1.º interrogatório judicial (…)


Concretizando.


O arguido prestou declarações negando a factualidade constante do libelo acusatório, tentando convencer o Tribunal que o produto estupefaciente apreendido nos autos era para seu próprio consumo.


Referiu que encontra(va)-se em vários locais de ..., designadamente, nos parques de estacionamento, pois é daí, além dos biscates que faz nas obras, que obtém os seus “proventos”. Mencionou que as pessoas identificadas na acusação são seus familiares ou amigos e iam para a sua residência consumir, negando que tenha retirado quaisquer lucros pois não procedia à venda de droga, apenas cedia para consumirem todos juntos.


Mais referiu que consome cerca de 5 a 7 g de heroína por dia e já tinha marcado uma consulta no CAT para o Natal, para aumentar a dose de metadona.


Que se deslocava para o ... para adquirir produto estupefaciente mas para seu próprio consumo.


Ora, tais declarações não mereceram qualquer credibilidade, porque contraditórias e incoerentes com a demais prova produzida nos autos, resultando antes numa tentativa malograda de criar a convicção do Tribunal que se trata de mero consumidor de produto estupefaciente.»


Não consta dos autos que as declarações que o arguido prestou em sede de primeiro interrogatório judicial tenham sido lidas ou reproduzidas na audiência (v. as atas com as ref.ªs citius ......54, de 31 de outubro de 2023, ......84, de 14 de novembro de 2023, e ......57, de 28 de novembro de 2023).


Nesse cenário, à luz dos citados normativos e do acórdão de fixação de jurisprudência 5/2023, as declarações prestadas pelo arguido no primeiro interrogatório judicial não poderiam ser valoradas para o efeito de formação da convicção do tribunal e, tendo-o sido, acarretariam a nulidade do acórdão nos termos do art. 122.º, n.º 1, do CPP (v. os acórdãos do TRL de 14 de maio de 2019, processo 10/14.0T9SXL.L3-5, relatado pelo, então, desembargador Jorge Gonçalves, e o TRC de 4 de fevereiro de 2015, processo 212/11.1GACLB.C1, relatado pelo, então, desembargador Orlando Gonçalves, www.dgsi.pt. Na doutrina, v. Oliveira Mendes, Código de Processo Penal comentado, António Henri-ques Gaspar e outros, Almedina, 4.ª edição revista, pág. 1099),


Todavia, conforme ficou assinalado (4 supra), a Sr.ª juíza presidente, é certo que em termos algo incoerentes e legalmente menos acertados (para corrigir uma irregularidade do acórdão invoca os arts. 379.º, n.º 2, do CPP, que se reporta às nulidades da sentença, e o art. 414.º, n.º 4, do CPP, que apenas permite reparar decisão que não conheça, a final, do objeto do processo), declarou que a menção de que a convicção do tribunal se formara com base nas declarações que o arguido prestara «… em sede de 1.º interrogatório judicial …» constituía «mero lapso» posto que apenas tinham sido valoradas «as declarações prestadas pelo arguido em audiência de discussão e julgamento e já não as que foram prestadas em sede de primeiro interrogatório judicial» e dessa forma procedeu à «reparação» do acórdão com a eliminação daquele trecho.


Prevê a lei que o tribunal proceda, oficiosamente ou a requerimento, à correção da sentença quando esta contiver erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial (art. 380.º, n.º 1, al. b) do CPP).


A correção pressupõe que a sentença ou, tratando-se de uma decisão colegial, o acórdão (art. 97.º, n.º 2, do CPP), não sofra modificação essencial com as correções, o que significa que «todo o acto que importe intromissão no conteúdo do julgado, ainda que a pretexto de simples correcção da sentença, está vedado ao julgador» (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 05 de julho de 2007, processo 07P1398, relatado pelo conselheiro Pereira Madeira, www.dgsi.pt).


O presidente do tribunal coletivo tem competência para, nomeadamente, elaborar os acórdãos nos julgamentos penais [art. 135.º, n.º 2, al. b), da Lei da Organização do Sistema Judiciário (Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto)] e suprir as deficiências dos acórdãos que elabora, esclarecê-los, reformá-los e sustentá-los nos termos das leis de processo (art. 135.º, n.º 2, al. d), da Lei da Organização do Sistema Judiciário).


No caso em apreço, resulta evidente do transcrito segmento do acórdão que apenas foram ponderadas as declarações que o arguido prestou em sede de julgamento pois só assim se compreende a expressão «negando a factualidade constante do libelo acusatório», sendo certo que, como pertinentemente refere o Sr. procurador da República na sua resposta, a fundamentação probatória da convicção do tribunal «não menciona em qualquer ponto as declarações prestadas pelo arguido em sede de primeiro interrogatório judicial».


Devendo, então, o acórdão considerar-se validamente retificado com a elisão da expressão «e em sede de 1.º interrogatório judicial» do segmento dedicado à indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal, fica prejudicada a discussão desta primeira nulidade suscitada pelo arguido.


6.2 - Diz o arguido que a testemunha «BB foi confrontada com o auto de notícia (processo 57/22.3...) sem o acordo previsto no artigo 356.º, n.º 2, alínea b), do CPP», que o auto «contém declarações da própria testemunha BB» pelo que era necessário o acordo para a leitura do auto na audiência» e que «o artigo 138.º, n.º 4, do CPP não pode ser aplicado com prejuízo dos limites resultantes do princípio da imediação (artigo 356.º do CPP)».


Sem razão.


Sempre que uma autoridade judiciária, um órgão de polícia criminal ou outra entidade policial presenciarem qualquer crime de denúncia obrigatória, levantam ou mandam levantar auto de notícia, onde se mencionem os factos que constituem o crime, o dia, a hora, o local e as circunstâncias em que o crime foi cometido e tudo o que puderem averiguar acerca da identificação dos agentes e dos ofendidos, bem como os meios de prova conhecidos, nomeadamente as testemunhas que puderem depor sobre os factos (art. 243.º, n.º 1, als. a), b), e c), do CPP). O auto de notícia é assinado pela entidade que o levantou e pela que o mandou levantar (art. 243.º, n.º 2, do CPP), é obrigatoriamente remetido ao MP no mais curto prazo, que não pode exceder 10 dias, e vale como denúncia (art. 243.º, n.º 3, do CPP).


Como observa Tiago Caiado Milheiro, «[r]elativamente aos factos materiais presenciados pela entidade com competência para lavrar o auto rege o art. 169.º, considerando-se provados os mesmos, por se tratar de documento autêntico» (Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo III, Almedina, pág. 736).


Na mesma linha, o conselheiro Maia Costa assinala que «[o] auto de notícia constitui um documento autêntico, com o regime dos arts. 363.º, n.º 2, do Código Civil, e 169.º deste Código. Como tal, comprova os factos materiais nele descritos como observados pelo agente de autoridade, enquanto a autenticidade do documento ou a veracidade do seu conteúdo não forem fundadamente postas em causa. Essa comprovação (“fé em juízo”) cinge-se aos factos presenciados pelo agente de autoridade, com exclusão portanto de factos não perceptíveis sensorialmente, ou de factos percebidos por terceiros. E não constitui uma “presunção de culpabilidade”, nem obsta à produção de prova em julgamento sobre os mesmos factos» (Código de Processo Penal comentado, António Henriques Gaspar e outros, Almedina, 4.ª edição revista, págs. 890-891).


Noutra perspetiva, a lei permite também que, sempre que for conveniente, sejam mostradas às testemunhas quaisquer peças do processo, documentos que a ele respeitem, instrumentos com que o crime foi cometido ou quaisquer outros objetos apreendidos (art. 138.º, n.º 4, do CPP), e que às testemunhas inquiridas em julgamento sejam mostrados quaisquer pessoas, documentos ou objetos relacionados com o tema da prova, bem como peças anteriores do processo, sem prejuízo do disposto nos artigos 356.º e 357.º (arts. 345.º, n.º 3, e 348.º, n.º 7, do CPP).


De destacar igualmente que as testemunhas não podem trazer o depoimento escrito, mas podem socorrer-se de documentos ou apontamentos de datas ou de factos para responder às perguntas (arts 461.º, n.º 2, e 516.º, n.º 7, do CPC, aplicáveis por força do art. 4.º do CPP).


Ressalvados os atos processuais levados a cabo nos termos dos arts. 318.º, 319.º e 320.º do CPP e os atos de instrução ou de inquérito que não contenham declarações do arguido, do assistente, das partes civis ou de testemunhas (art. 356.º, n.º 1, als. a) e b), do CPP), a leitura de declarações do assistente, das partes civis e de testemunhas só é permitida tendo sido prestadas perante o juiz se tiverem sido tomadas nos termos dos artigos 271.º e 294.º, se o MP, o arguido e o assistente estiverem de acordo na sua leitura ou se tiverem sido obtidas mediante rogatórias ou precatórias legalmente permitidas (art. 356.º, n.º 2, als. a), b) e c), do CPP). Para além destas hipóteses, permite-se ainda a reprodução ou leitura de declarações anteriormente prestadas perante autoridade judiciária (juiz, juiz de instrução e MP – cf. o art. 1.º, al. b), do CPP), na parte necessária ao avivamento da memória de quem declarar na audiência que já não recorda certos factos ou quando houver, entre elas e as feitas em audiência, contradições ou discrepâncias (art. 356.º, n.º 3, als. a) e b) do CPP). Verificando-se o pressuposto na al. b) do n.º 2, a leitura pode ter lugar mesmo que se trate de declarações prestadas perante o MP ou perante órgãos de polícia criminal (art. 356.º, n.º 5, do CPP).


Regressando ao caso.


O tribunal coletivo formou a sua convicção, designadamente, na seguinte prova documental:


«(…) Auto de notícia por detenção de fls. 4 a 5 (Proc. 57/22.3...); Auto de apreensão de fls. 6 e 6 v.º (Proc. 57/22.3...); Teste rápido de fls. 9 (Proc. 57/22.3...); Teste rápido de fls. 10 (Proc. 57/22.3...) (…)»


O auto de notícia 57/22.3..., lavrado pelo agente da PSP BB, descreve a abordagem do arguido pelo autuante e pelo agente da PSP DD no dia 22 de agosto de 2022, junto à estação ferroviária de ..., e a apreensão ao mesmo de uma embalagem de cocaína e de nove embalagens de heroína (ref.ª citius .....81, de 25 de agosto de 2022)


A testemunha BB prestou depoimento na audiência de julgamento de 31 de outubro de 2023 (ref.ª citius ......54, de 31 de outubro de 2023).


Conforme exarado na ata, no decorrer do seu testemunho foi confrontado com fls. 4 a 6 do inquérito n.º 57/22.3..., (ou seja, foi confrontado com os autos de notícia e de apreensão que lavrou).


Este confronto, que face à mencionada força probatória do auto de notícia (art. 169.º do CPP), seria desnecessário para comprovar os factos que presenciou, está legalmente amparado nos arts. 138.º, n.º 4, 345.º, n.º 3, e 348, n.º 7, do CPP, e 461.º, n.º 2, e 516.º, n.º 7, do CPC e, ao contrário do que sustenta o arguido, não envolve confronto com quaisquer «declarações» anteriormente prestadas pela testemunha nem, por conseguinte, carecia da anuência daquele nos termos do art. 356.º, n.ºs 2, al. b), e 5, do CPP.


Donde que, também nesta parte, o recurso deve improceder.


6.3 - Diz o arguido que «as declarações da testemunha CC prestadas perante órgão de polícia criminal foram lidas em audiência sem o acordo previsto no artigo 356.º, n.º 2, alínea b), do CPP» e que «o artigo 356.º, n.º 3, do CPP, é inconstitucional quando interpretado no sentido de que a leitura do depoimento testemunhal prestado no inquérito perante o Ministério Público que reproduz depoimento testemunhal prestado perante órgão de polícia criminal é admitida, sem ser necessário o consentimento do arguido, quando aquela leitura se destine a avivar a memória de quem declare na audiência já não se lembrar de certos factos, ou quando existir entre elas e as feitas na audiência discrepâncias ou contradições, por violação do artigo 20.º, n.º 4, da CRP e do artigo 32.º, números 1, 2 e 5, da CRP».


A testemunha CC, foi inquirido na audiência de julgamento de 14 de novembro de 2023 (ref.ª citius ......84, de 14 de novembro de 2023).


Consta da ata que no decurso do depoimento o MP, sem invocar algum dos fundamentos do art. 356.º, n.º 3, do CPP (o que a ter sido feito dispensaria o acordo do arguido), requereu que fossem lidas as declarações prestadas a fls. 160 do inquérito (declarações com a ref.ª citius ......57, de 26 de janeiro de 2023).


O defensor do arguido consentiu na leitura e a Sr.ª juíza presidente deferiu o requerido ao abrigo do art. 356.º, n.ºs 2, al. b), e 5, do CPP.


Nas referidas declarações, prestadas perante o Sr. procurador da República, a testemunha começara por confirmar «na íntegra o teor do depoimento que prestou perante a PSP em 13/04/2022 e que consta de fls. 94/94 v.º do processo apenso (Proc. n.º 53/21.8...)» mas também esclarecera que «após essa data (13/04/2022), ainda chegou a comprar heroína ao arguido AA, também conhecido pela alcunha "Russo", pelo menos uma vez, tendo pago a quantia de 30,00€» e que «[n]unca comprou cocaína ao arguido AA».


Ainda no decorrer do depoimento, o MP requereu que se procedesse à leitura das referidas declarações de fls. 94 e 94 verso do apenso 53/21.8... (declarações com a ref.ª citius .....13, de 13 de abril de 2022).


O defensor do arguido insurgiu-se contra a leitura mas a Sr.ª juíza presidente deferiu o requerido por entender que muito embora as declarações tivessem sido feitas perante a PSP, as mesmas foram reproduzidas no auto de declarações prestadas perante o magistrado do MP, cuja leitura já tinha deferido e determinado.


E com inteira razão.


Na verdade, «as declarações prestadas perante o M.º P.º – quando o declarante, confrontado com anteriores declarações que produzira junto do OPC, dispôs da possibilidade de, livremente, as negar, corrigir, retificar, aumentar ou interpretar, optando por as confirmar – não demanda a necessidade de reproduzir no auto respeitante às declarações prestadas perante o M.º P.º o conteúdo das declarações anteriormente prestadas perante OPC que nele são confirmadas.


Seguindo de perto o entendimento que se conhece deste Tribunal da Relação de Coimbra, espraiado nos acórdão datados de 3.06.2015 e de 20.06.2018, disponíveis in www.dgsi.pt (…) e, também, no mesmo sentido, o entendimento sufragado no acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 2.03.2016, disponível in www.dgsi.pt, também nós consideramos, pois, que, para efeito da permissão de leitura requerida em audiência de discussão e julgamento, prevista no art. 356.º n.º 3 do CPP, nada impede que o tribunal interprete as declarações prestadas pela testemunha perante o M.º P.º, compreendendo por sua vez aquelas que já haviam sido prestadas pela mesma perante OPC que nesse momento confirma, por obedecerem aos princípios do contraditório e da verdade material.


(…)


No caso presente, o MP, ao tomar declarações às testemunhas que haviam anteriormente deposto perante a autoridade policial, ao invés de (…) transcrever literalmente essas declarações após a sua confirmação pelo depoente, optou por referir a sua leitura e posterior confirmação. Se era tão simples ter ‘copiado’ tais declarações, face aos meios técnicos hoje postos à disposição até dos tribunais, por que não o ter feito?! Talvez por desnecessidade.


Por um lado, o facto de apenas poderem ser consideradas para os efeitos do disposto no n.º 3 do referido art.º 356.º as declarações prestadas perante autoridade judiciária, prende-se com a presunção legal de que as declarações prestadas nessas circunstâncias são produzidas num ambiente de diálogo e de liberdade, já que ao depoente é assegurado o direito de relatar, livremente e de modo integral, sem retaliações ou consequências outras que não as que se prendem com o desrespeito pela verdade, aquilo que sabe ou presenciou.


Por outro, o facto de o depoente ter sido confrontado com as suas anteriores declarações, sendo-lhe dada a possibilidade de, livremente, as negar, corrigir, rectificar, aumentar ou interpretar, torna desnecessária a sua reprodução. Tal justifica-se em primeiro lugar por razões de economia: se o depoente as confirma, não vemos que exigências de ordem intelectual, lógica ou de apego à verdade exigem essa reprodução. As novas declarações confirmatórias hão-de abranger as anteriormente prestadas, que se encontram devidamente integradas nos autos, situadas em termos processuais. Assim se respeita a exigência formal do referido art.º 99.º, 3, c), do CPP, já que do modo como se mostra lavrado o auto resulta de forma literal e consonante com a realidade, a «descrição especificada (…) do modo como o foram e das circunstâncias em que o foram» obtidos tais depoimentos. A forma como se mostram redigidos os autos em causa é aquela que melhor retrata a realidade, as circunstâncias e o modo como foram obtidos os depoimentos. Será que se mostraria necessário referir, após o que se deixou dito no auto, que tais declarações «são as que a seguir se transcrevem»? Tal, além de desnecessário, afigura-se-nos ser antieconómico, considerando a economia do processo. Estaríamos a proceder a uma actividade de ‘corta e cola’ referenciada por alguns dos recorridos respondentes» (acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22 de novembro de 2023, processo 1107/20.3T9CTB.C1, relatado pela desembargadora Maria José Guerra, www.dgsi.pt).


Diz o arguido que este entendimento é inconstitucional por violação dos arts. 20.º, n.º 4, e 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição.


Os referidos normativos estabelecem que todos têm direito a que uma causa em que intervenham seja objeto de decisão em prazo razoável e mediante processo equitativo (art. 20.º, n.º 4), que o processo criminal assegura todas as garantias de defesa, incluindo o recurso (art. 32.º, n.º 1), que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação, devendo ser julgado no mais curto prazo compatível com as garantias de defesa (art. 32.º, n.º 2) e que o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório (art. 32.º, n.º 5).


Cabe perguntar: como é que a leitura em julgamento das declarações que a testemunha prestou perante a PSP e que confirmou perante magistrado do MP na fase de inquérito afetou o direito do arguido a um processo equitativo, as suas garantias de defesa, a presunção da inocência ou o princípio do contraditório a que está sujeita a audiência de julgamento?


Em lado algum, nomeadamente, no corpo das motivações, o arguido explica ou desenvolve a sua ideia.


Ora, «[n]ão sendo exigível que os tribunais decidam questões (designadamente questões de constitucionalidade) sem que as partes lhes indiquem as razões por que entendem que elas devem ser decididas num determinado sentido, e não noutro, “impende sobre o recorrente o ónus de equacionar correcta e perceptivelmente a questão, em termos de o tribunal recorrido ficar a saber que tem essa questão, claramente equacionada, a resolver. Ou seja, não lhe basta alegar uma inconstitucionalidade normativa, mesmo que remetida para a norma ou princípio eventualmente ofendido, competindo-lhe justificar minimamente a sua alegação: a suscitação de uma questão de inconstitucionalidade não proporciona, por si só, a abertura da via do recurso de constitucionalidade, implicando que, idónea e adequadamente, a articule com um mínimo de suporte argumentativo” (Acórdão deste Tribunal n.º 273/97)» (acórdão do Tribunal Constitucional n.º 332/2006, relatado pelo conselheiro Paulo Mota Pinto, www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20060332.html).


Seja como for, o Tribunal Constitucional, a propósito da interpretação de que o art. 356.º, n.º 3, als. a) e b), do CPP prescinde do consentimento dos arguidos (hipótese que neste caso não se coloca porquanto, conforme já referido, o MP não fundamentou o pedido de leitura das declarações da testemunha CC em nenhuma das als. do n.º 3 do art. 356.º do CPP), mas com argumentos que são transponíveis para a hipótese em análise, já teve oportunidade de decidir que «a solução legal não impede o arguido de, no exercício do contraditório, confrontar na audiência de julgamento a testemunha com as declarações feitas nesse momento e com eventuais contradições ou discrepâncias resultantes da leitura de declarações proferidas em momento processual anterior perante o Ministério Público, contrainterrogando-a ou oferecendo meios de prova que abalem a sua credibilidade. O princípio do contraditório, não é afastado nem a sua eficácia relativamente à formação da convicção do julgador se mostra diminuída. Por outro lado, mantém-se a salvaguarda estatuída no artigo 356.º, n.º 6, do CPP: proibição da leitura de depoimento prestado em inquérito ou instrução por testemunha que, em audiência, se tenha validamente recusado a depor.


Ou seja, a leitura de autos contendo declarações anteriormente prestadas perante o Ministério Público não é um meio de prova substitutivo da inquirição em audiência, mas releva como importante instrumento auxiliar de valoração da prova testemunhal produzida em audiência: é com base no depoimento da testemunha produzido na audiência e, portanto sujeito a contraditório, seja por parte da acusação, recordando o que anteriormente foi dito pela mesma testemunha; seja por parte da defesa, contrainterrogando ou questionado a credibilidade da testemunha, que o tribunal forma a sua convicção. Por isso, e como bem refere o Ministério Público, inexiste subversão ou ausência de contraditório, mas alargamento e aprofundamento, em vista de maior rigor na descoberta da verdade (cfr. a conclusão 26.ª das contra-alegações).


Deste modo, a solução consagrada no artigo 356.º, n.º 3, do CPP, além de contribuir para a busca da verdade no quadro do processo criminal e para a consequente maior eficácia no combate ao crime e defesa da sociedade, não subtrai ao arguido meios de defesa legítimos nem afeta as condições da sua participação paritária na dialética inerente ao processo na fase da audiência de julgamento – por isso, não viola o direito ao processo equitativo previsto no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição; nem, por outro lado, impede ou dificulta desproporcionadamente a defesa do arguido, já que este pode na audiência de julgamento exercer plenamente o contraditório relativamente às testemunhas cujas declarações tenham sido lidas nessa mesma audiência – daí não ocorrer violação nem das garantias de defesa nem do princípio do contraditório consignados no artigo 32.º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição» (acórdão n.º 24/2016, relatado pelo conselheiro Pedro Machete, www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20160024.html).


6.4 - Diz o arguido que os factos provados configuram «um crime de tráfico de menor gravidade, dado que a situação provada revela uma ilicitude diminuída relativamente às condutas que integram o tipo legal de crime base do crime de tráfico de estupefacientes, porquanto: não resulta da matéria de facto provada a utilização de meios sofisticados para a aquisição do produto estupefaciente e muito menos a utilização de quaisquer meios para os atos de venda; o produto estupefaciente tem reduzida qualidade, 5,086 gramas tinham apenas um grau de pureza de 28,3%, 3,802 gramas tinham apenas um grau de pureza de 24,2%, 0,028 gramas tinham apenas um grau de pureza de 72,5%, 23,810 gramas tinham apenas um grau de pureza de 19,9% e 1,923 gramas tinham apenas um grau de pureza de 49,4%; não resulta da matéria de facto provada qual o lucro que obteria com o produto; a duração e a intensidade da venda de estupefacientes são exíguas e genéricas bem como os consumidores finais.»


Por razões de economia expositiva damos por integralmente reproduzida a factualidade provada em que assenta a condenação.


O DL 15/93, de 22 de janeiro, prevê e une com prisão de 4 a 12 anos quem, sem para tal se encontrar autorizado, cultivar, produzir, fabricar, extrair, preparar, oferecer, puser à venda, vender, distribuir, comprar, ceder ou por qualquer título receber, proporcionar a outrem, transportar, importar, exportar, fizer transitar ou ilicitamente detiver, fora dos casos previstos no artigo 40.º, plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III (art. 21.º, n.º 1).


Se a ilicitude do facto se mostrar consideravelmente diminuída, tendo em conta nomeadamente os meios utilizados, a modalidade ou as circunstâncias da ação, a qualidade ou a quantidade das plantas, substâncias ou preparações e se se tratar de plantas, substâncias ou preparações compreendidas nas tabelas I a III, V e VI, a pena é de prisão de um a cinco anos [art. 25.º, al. a)].


Como é de jurisprudência, o art. 21.º contém «a descrição fundamental – o tipo essencial – relativa à previsão e ao tratamento penal das actividades de tráfico de estupefacientes». O art. 25.º prevê «um tipo privilegiado e pressupõe, por referência ao tipo fundamental, que a ilicitude do facto se mostre “consideravelmente diminuída” em razão de circunstâncias específicas, mas objectivas e factuais, verificadas na acção concreta, nomeadamente os meios utilizados pelo agente, a modalidade ou as circunstâncias da acção, (…) a qualidade ou a quantidade dos produtos» (acórdão do STJ de 23 de feverei-ro de 2005, processo 05P130, relatado pelo conselheiro Henriques Gaspar, www.dgsi.pt). Neste aspe-to, a «natureza da droga – leve ou dura, respectivamente – a intenção lucrativa, a personalidade do arguido – consumidor ou não consumidor, conforme o caso, a quantidade envolvida no delito, são elementos relevantes para o enquadramento legal» (acórdão do STJ de 1 de março de 2001, processo 4128, relatado pelo conselheiro Pereira Madeira, www.colectaneadejurisprudencia.com).


In casu o arguido dedicou-se à compra, venda, distribuição e cedência de heroína e de cocaína desde, pelo menos, novembro de 2021 até à data da sua detenção, em 14 de dezembro de 2022 (facto provado 1).


Cobrava 10 Euros e 30 Euros por cada dose das referidas substâncias (facto provado 3).


Vendeu heroína a EE (pelo menos em oito ocasiões, entre novembro de 2021 e abril de 2022) e a CC (quase diariamente, desde data não concretamente apurada até 13 de abril de 2022), cedeu heroína e cocaína a FF (entre março e dezembro de 2022) e cedeu e vendeu heroína a GG (desde data não concretamente apurada até 3 de março de 2022) e a HH (cerca de quatro vezes por mês entre novembro de 2021 e 4 de janeiro de 2022) (facto provado 3).


Além de outros locais, transacionou a droga no Centro de Toxicodependência ... (facto provado 2).


Ao longo dessa atividade ilícita foram-lhe apreendidos:


- Em 4 de janeiro de 2022, catorze pacotes de plástico com 5,086 gramas de heroína com um grau de pureza de 28,3% e dois pacotes de plástico com 0,424 gramas de cocaína (facto provado 4);


- Em 22 de agosto de 2022, uma embalagem em plástico com 3,802 gramas de heroína com um grau de pureza de 24,2% e uma embalagem de plástico com 0,028 gramas de cocaína com um grau de pureza de 72,5% (facto provado 5);


- No dia 14 de dezembro de 2022, uma embalagem de plástico com 23,810 gramas de heroína com um grau de pureza de 19,9% e duas embalagens de plástico com 1,923 gramas de cocaína com um grau de pureza de 49,4% (facto provado 6).


Ainda de acordo com a factualidade provada o arguido consome estupefacientes desde a adolescência (facto provado 18) e frequenta um programa de tratamento com metadona (facto provado 20).


Diante deste quadro, considerando a duração temporal da atividade ilícita (superior a um ano), a variedade e nocividade dos estupefacientes traficados (heroína e a cocaína, drogas que figuram entre as que possuem maior potencialidade danosa para a saúde dos consumidores), a prática de atos típicos num local – Centro de Toxicodependência ... – que, só por si, indicia uma maior gravidade do ilícito (v. o art. 24.º, al. h), do DL 15/93, de 22 de janeiro) e a motivação do arguido (obtenção de rendimentos económicos), mesmo tendo em conta os seus comportamentos aditivos e o rudimentar modus operandi do tráfico, não é possível formular um juízo de considerável, ou seja, notável, importante, significativa, diminuição da ilicitude exigido pelo tipo do art. 25.º do DL 15/93, de 22 de janeiro.


Se é verdade que o recorrente é um traficante de rua e que «o tráfico de pequena gravidade vive, por regra, da actividade do dealer de rua, nem por isso o dealer de rua terá que ver a sua responsabilidade, sempre, enquadrada, no dito art.º 25.º» (acórdão do STJ de 27 de novembro de 2008, processo 08P2964, relatado pelo conselheiro Souto Moura, www.dgsi.pt). Para que o tráfico possa integrar o tipo do art. 25.º do DL 15/93, de 22 de janeiro, reitera-se, «[n]ão basta que o desvalor da conduta se situe ao nível inferior do barómetro da ilicitude do crime de tráfico (fundamental) (…), exige-se uma “degradação” bem mais acentuada, é indispensável que a ilicitude se apresente com uma diminuição de tal ordem que possa, na expressão da lei, ter-se por consideravelmente diminuída. Se assim não se apresentar, o grau mais baixo da ilicitude do tráfico influirá na determinação da medida da pena, naturalmente dentro da moldura penal do crime de tráfico do art.º 21.º, mas não permite subsumi-lo ao tráfico de menor gravidade» (acórdão do STJ de 6 de janeiro de 2021, processo 2/19.3PBPTM.S1, relatado pelo conselheiro Nuno Gonçalves, www.dgsi.pt).


Também quanto a esta questão o acórdão recorrido não é, por isso, merecedor de censura.


6.5 - Diz, por fim, o arguido que «a pena aplicada deve ser reduzida substancialmente por (…) consumir produtos estupefacientes desde a adolescência e, actualmente, frequentar programa de manutenção opióide», pela «reduzida qualidade do produto estupefaciente apreendido», por ser a «primeira vez que (…) pratica o crime de tráfico de estupefacientes apesar da extensão dos seus antecedentes criminais» e face à sua «desestruturação (…) ou ausência de projeto de vida».


Ponderou-se a este propósito no acórdão:


«(…) dispõe o artigo 40.º, do Código Penal, que a aplicação de penas, visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.


Assim, a finalidade primária da pena deverá ser prevenção geral positiva através do restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime dir-se-á que a pena serve de interpelação social que chama à atenção para a relevância do bem jurídico que é atingido pela prática do crime, servindo de instrumento para a reposição da confiança, na comunidade jurídica, na validade da norma jurídica que foi violada e no próprio sistema jurídico-penal que foi atingido. A pena deve ainda favorecer a reinserção social do agente do crime e deverá ser concebida como apelo e convite à “reconciliação” entre esse agente e a comunidade ofendida com a prática do crime – prevenção geral negativa.


Na medida concreta da pena, ter-se-á em conta o disposto no artigo 71.º, do Código Penal, estabelecendo que a mesma é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.


No processo de escolha da medida da reacção criminal a culpa assume, a dignidade de pressuposto incontornável de toda e qualquer punição. A pena deve ser adequada à culpa, não querendo isto significar que a mesma seja fundamento da pena, mas antes limite e pressuposto da pena.


Cumpre, portanto, fixar a medida concreta da pena, tomando-se nesta senda necessariamente, como já referimos, a culpa do agente – limite inultrapassável da pena – e as exigências de prevenção – artigo 71.º, n.º1 e 40.º, do Código Penal.


(…)


O crime de tráfico previsto no artigo 21.º, n.º 1, do citado Decreto Lei n.º 15/93, é punido com pena de 4 a 12 anos.


Da escolha da natureza da pena


Foi o legislador que, atendendo aos ponderosos interesses em causa, afastou a regra da preferência pela pena não detentiva nos crimes de tráfico de estupefacientes, nos termos da disposição legal supra mencionadas, impondo a pena de prisão como pena única aplicável.


Da determinação da medida concreta


Num segundo momento, cumpre ao Tribunal determinar a medida da pena que, nos termos do artigo 71.º, do Código Penal, tem como critérios a culpa do agente (entendida como o juízo de censura ético-jurídico dirigido ao agente por não ter agido de modo diverso, conforme o direito, pressupondo a liberdade e “poder agir de outra maneira”) e as exigências de prevenção, com as funções inerentes definidas na chamada moldura de prevenção ou de defesa do ordenamento jurídico. Nos termos do n.º 2 daquele normativo, o Tribunal deve, para determinação da medida concreta da pena, atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra o agente.


Temos, pois de apreciar, nomeadamente:


- As exigências de prevenção geral, bastante elevadas atendendo às consequências consabidamente nefastas do consumo deste tipo de substâncias, não só porque crimes desta natureza perturba gravemente a ordem e tranquilidade públicas, mas também porque se tem em vista combater a proliferação de todas essas substâncias e plantas que destroem física e psiquicamente quem as ingere. Tratar-se-ão assim de todas as substâncias que, quando introduzidas num organismo vivo, pode modificar uma ou mais funções e que no limite poderão levar à destruição total do mesmo e que, utilizadas abusivamente podem criar dependência física e/ou psíquica, com o inerente aumento da criminalidade.


- O grau de ilicitude do facto, modo de execução e gravidade das consequências, que é medianamente acentuada, tendo em conta, designadamente:


 As quantidades de estupefacientes que detinha consigo e que por conta dos consumidores que foram possíveis identificar, deslocações diárias ou várias vezes por semana, pagando um dos consumidores diários a quantia de € 30,00;


 O período de tempo em que desenvolveu a actividade de tráfico, que se prolongou por mais de um ano;


 A natureza dos produtos objecto dessa actividade – cocaína e heroína, substâncias altamente tóxicas, tratando-se de drogas que mais rápida habituação produzem, causando fortíssima dependência psicológica e também, no caso da heroína, física, sendo as consequências do seu consumo altamente perniciosas, tanto para o consumidor como para a sociedade, estando incluídas no grupo das chamadas "drogas duras”.


 o local onde o arguido oculta o produto estupefaciente e o facto de entregar o produto para transporte, a uma consumidora.


 O modo de execução que é banal neste tipo de actividade, sem particular sofisticação;


- A intensidade do dolo, na forma mais grave, dolo directo, o qual, sendo intenso, corresponde à forma normal de actuar nestes casos/adequado à dinâmica delitiva.


- Conduta anterior e posterior ao facto: em claro desfavor do arguido, o arguido adoptou uma atitude de indiferença, revelando não ter interiorizado o desvalor da sua conduta, negando todos os factos e tentando incutir a ideia de que se trata de mero consumidor, com vista à sua desresponsabilização.


- As necessidades de prevenção especial, que se revelam: muito elevadas, pois o arguido tem um vasto percurso de delitos criminais, mormente, desde 1987, designadamente crimes de furto (inclusive qualificado), ofensas à integridade física, introdução em lugar vedado ao público, condução sem habilitação legal, ameaça agravada, injúria agravada, roubo, tendo mesmo sido condenado em pena de prisão efetivas.


O arguido revela uma parca inserção social, familiar e económica, igualmente padecendo de problemas aditivos com estupefacientes.


Encontra-se, desde 16.12.2022 (data da sua reclusão) até à presente data, em tratamento de opióide com metadona.


Assim, atenta a moldura penal abstracta supra referida, a culpa do arguido e consideradas todas as circunstâncias já descritas, considera-se ser adequada a condenação ao arguido na pena de 6 anos e 10 meses de prisão.»


Deste trecho sobressaem duas ideias.


Em primeiro lugar, que o tribunal coletivo do Juízo Central Criminal ... ponderou devidamente todas as circunstâncias pertinentes para a concretização da pena.


Em segundo lugar, que a pena de 6 anos e 10 meses de prisão, à vista das apontadas circunstâncias e da moldura abstrata aplicável, de modo algum se pode considerar excessiva ou desproporcionada.


Como as operações de determinação da medida concreta da pena apenas são passíveis de correção pela via de recurso quando sejam ponderados «factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis», «falta de indicação de factores relevantes», «desconhecimento (…) ou (…) errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção», ou «desproporção da quantificação efectuada» (do acórdão do STJ de 29 de setembro de 2021, processo 98/20.5PCLRA.C1.S1, relatado pelo conselheiro Paulo Ferreira da Cunha, www.dgsi.pt, com exaustivo apontamento de jurisprudência), a pena fixada no acórdão recorrido deve ser confirmada.


Aqui chegados, acompanhando em tudo o mais as considerações vertidas na resposta do Sr. procurador da República, emite-se parecer no sentido da improcedência do recurso (…)».


9. Observado o contraditório, o arguido não respondeu ao parecer do Ministério Público.


10. Colhidos os vistos e realizada a Conferência, cumpre apreciar e decidir.


II. Objeto do recurso


1. Considerando a motivação e conclusões do recurso, as quais, como é pacífico, delimitam o respetivo objeto1, as questões nele colocadas cingem-se:


a) à nulidade do acórdão recorrido por produção e valoração proibida de prova [conclusões 1ª, 2ª e 3ª];


b) à inconstitucionalidade da interpretação aplicativa da norma do artigo 356º, n.º 3, do CPP, por violação dos artigos 20º, nº 4, e 32º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP) [conclusão 3ª];


c) à qualificação jurídica dos factos provados – tráfico base versus tráfico de menor gravidade [conclusão 4ª];


d) à medida da pena de prisão aplicada [conclusão 5ª].


III. Fundamentação


1. Na parte que aqui releva, é do seguinte teor o acórdão recorrido (transcrição, sem notas de rodapé):


«(…) III. FUNDAMENTAÇÃO


A) FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO


FACTOS PROVADOS


Uma vez instruída e discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com relevo para a decisão:


1. Desde data não concretamente apurada, mas pelo menos contemporânea com o mês de Novembro de 2021 e até à data da sua detenção em 14 de Dezembro de 2022, o arguido AA dedicou-se à compra, venda, distribuição e cedência de produtos estupefacientes a consumidores que, para esse efeito, o procuraram, designadamente, heroína e cocaína, substâncias que previamente obteve em quantidades significativas e em circunstâncias e a indivíduos cuja identidade não foi possível apurar.


2. No âmbito dessa actividade o arguido privilegiou o contacto pessoal com os consumidores, combinando, pessoal e telefonicamente, os encontros destinados à transacção desses produtos que, em regra, tiveram lugar à porta e no interior da sua residência, nas suas imediações e em outros locais da cidade de ..., designadamente, no ... e no Centro de Toxicodependência ....


3. Nomeadamente,


a) No período compreendido entre Novembro de 2021 e Abril de 2022, o arguido AA foi contactado pessoal e telefonicamente pelo consumidor EE, a quem vendeu, nos locais acima indicados e previamente combinados, pelo menos em oito ocasiões separadas no tempo, quantidades não concretamente determinadas de heroína, pelo preço de €10,00 cada dose individual, o que aconteceu nomeadamente em 16 de Dezembro de 2021, pelas 10:00 horas, no ..., em ...;


b) Desde data não concretamente apurada e, pelo menos, até 13 de Abril de 2022, o arguido AA foi contactado pessoal e telefonicamente pelo consumidor CC, a quem vendeu, nos locais acima indicados e previamente combinados, com periodicidade praticamente diária, quantidades não concretamente determinadas de heroína, pelo preço de € 30,00 cada dose individual, o que aconteceu nomeadamente em 10 de Fevereiro de 2022, pelas 12:35 horas e em 02 de Março de 2022, pelas 09:45 horas, no parque de estacionamento do Hospital 1, em ...;


c) Desde Março de 2022 e até 14 de Dezembro de 2022, o arguido AA foi contactado pessoal e telefonicamente pelo consumidor FF, a quem cedeu, nos locais acima indicados e previamente combinados, quantidades não concretamente determinadas de heroína e cocaína;


d) Desde data não concretamente apurada e, pelo menos, até 03 de Março de 2022, o arguido AA foi contactado pessoal e telefonicamente pela consumidora GG, a quem cedeu e vendeu, nos locais acima indicados e previamente combinados, quantidades não concretamente determinadas de heroína, pelo preço de € 10,00 cada dose individual, o que aconteceu designadamente em 03 de Março de 2022, pelas 13:50 horas, no ..., em ...;


e) Desde Novembro de 2021 e, pelo menos, até 04 de Janeiro de 2022, o arguido AA foi contactado pessoal e telefonicamente pela consumidora HH, a quem cedeu e vendeu, nos locais acima indicados e previamente combinados, com uma periodicidade de quatro ocasiões mensais, quantidades não concretamente determinadas de heroína, pelo preço de € 10,00 cada dose individual.


4. No dia 04 de Janeiro de 2022, pelas 22:45 horas, na ..., em ..., o arguido AA seguia no interior de uma viatura táxi, acompanhado por HH, a quem entregou, a fim de transportar em nome deste, acomodado na manga do casaco que trajava, 14 pacotes de plástico que continham no seu interior heroína com o peso líquido de 5,086 gramas, com o grau de pureza de 28,3%, que permitia preparar 14 doses diárias, bem como, dois pacotes de plástico, contendo no seu interior cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 0,424 gramas.


5. No dia 22 de Agosto de 2022, pelas 21:00 horas, no Terminal Ferroviário ..., sito na ..., concelho de ..., o arguido AA trazia consigo no bolso das calças que trajava, uma embalagem plástica, contendo no seu interior heroína com o peso líquido de 3,802 gramas, com o grau de pureza de 24,2%, que permitia preparar 9 doses diárias, bem como, fazia transportar dentro da máscara cirúrgica que trazia fixada ao queixo, uma embalagem plástica contendo no seu interior cocaína (éster metílico) com o peso líquido de 0,028 gramas, com o grau de pureza de 72,5%, que permitia preparar 1 dose diária.


6. No dia 14 de Dezembro de 2022, pelas 17:45 horas, na ..., junto à R...... ........ ... ......, no concelho de ..., o arguido AA seguia no interior do veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca Opel, com a matrícula ..-LT-.., sentando no banco dianteiro, lugar do passageiro, transportando consigo, dentro de um maço de tabaco, localizado no bolso da camisa que trajava, uma embalagem plástica contendo produto estupefaciente, designadamente, heroína com o peso líquido de 23,810 gramas, com o grau de pureza de 19,9%, que permitia preparar 47 doses diárias, bem como, duas embalagens plásticas contendo cocaína com o peso líquido de 1,923 gramas, com o grau de pureza de 49,4%, que permitia preparar 32 doses diárias.


7. O arguido destinava aqueles produtos à cedência e venda a terceiros, mediante contrapartida em dinheiro previamente acordada.


8. O arguido actuou nos termos acima referidos conhecedor da natureza, composição, quantidade e características dos produtos que detinha, cedia e transaccionava, bem sabendo ser proibida a sua detenção fora de autorização legal, e, não obstante, quis deter, transportar fazer transitar tais substâncias com a finalidade de as ceder, vender e proporcionar a terceiros, bem sabendo que não estava legalmente autorizado a fazê-lo.


9. O arguido actuou, ainda, sabendo que as quantidades de droga cedida e vendida nas circunstâncias acima descritas se destinava a ser difundida por um número significativo de pessoas e, apesar disso, manteve-se insensível aos danos que originava na saúde de consumidores finais, apesar de estar ciente que com isso prejudicava de forma precoce e irreversível a saúde física e psicológica de tais consumidores, o que representou e concretizou.


10. Com a sua actuação o arguido visou angariar quantias avultadas de dinheiro através da venda e transacção do produto estupefaciente a consumidores, por um preço superior ao da sua aquisição, como já tinha anteriormente vendido, assegurando os seus gastos diários com os proventos decorrentes da referida actividade.


11. O arguido actuou em todos os momentos de modo livre, voluntário e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era ilícita e punida por lei penal.


MAIS SE PROVOU QUE:


12. O arguido é servente da construção civil, fazendo alguns biscates naquela área, daí retirando uma quantia diária de cerca de € 10,00 a 15,00.


13. Reside com a sua mãe numa casa cedida pela Câmara Municipal ....


14. Tem o 2.ª ano de escolaridade, tendo este sido concluído, em fase adulta, em meio prisional.


15. É o quinto por ordem de nascimento de uma fratria de 6 irmãos, encontrando-se 4 autonomizados e organizados familiarmente, com quem não mantém relacionamento próximo, não possuindo apoio familiar no exterior.


16. O progenitor faleceu há cerca de 20 anos de doença oncológica.


17. Os pais dedicavam-se à venda ambulante de artigos para o lar/vestuário e deambulavam sistematicamente em feiras e mercados do distrito, o que terá condicionando a aquisição de competências escolares dos filhos.


18. O arguido evidencia desde a adolescência, problemas comportamentais aliados ao início do consumo de estupefacientes.


19. Em meio prisional encontra-se medicado com ansiolíticos, refere-se abstinente de drogas e álcool e mantém comportamento adequado às regras e normas institucionais sem registos transgressivos e possui ocupação estruturada, fazendo faxina num dos pátios.


20. Desde 16.12.2022 até à presente data, o arguido tem frequentado a equipa de tratamento de programa de manutenção opióide, com prescrição de 30 mg diários de Cloridrato de metadona.


21. O arguido tem registadas as seguintes condenações:


- no âmbito do processo n.º 92/89, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., na ... secção, ... juízo, por sentença proferida em 22.03.1989, pela prática em Março de 1987, de um crime de furto, previsto e punido pelo artigo 296.º, do Código Penal, numa pena de 45 dias de prisão, e que foi extinta por amnistia;


- no âmbito do processo n.º 178/89, perante Tribunal Colectivo, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., na ... secção, ... juízo, por decisão proferida em 20.09.1989, pela prática em 21.01.1988, de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 5.º e 297.º, n.º2, alíneas c), d) e h), ambos do Código Penal, numa pena de 3 anos de prisão.


- no âmbito do processo n.º 90/90, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., na ... secção, ... juízo, por decisão proferida em 09.07.1990, pela prática em 06.10.1986, de um crime de furto, previsto e punido pelos artigos 306.º, n.º1 e 307.º, ambos do Código Penal, numa pena de 45 dias de prisão substituídos por 45 dias de multa.


- no âmbito do processo n.º 282/90, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., na ... secção, ... juízo, por sentença datada de 17.01.1991, pela prática em 11.08.1987, de um crime de ofensas corporais com dolo de perigo, previsto e punido pelo artigo 144.º, n.º2, do Código Penal, numa pena de 1 ano de prisão que foi declarada perdoada.


- no âmbito do processo n.º 759/91, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., perante Tribunal Colectivo, no ... juízo criminal, por acórdão datado de 20.06.1994, pela prática em 08.04.1991, de um crime de furto qualificado e de um crime de introdução em casa alheia, previstos e punidos pelos artigos 296.º e 297.º, n.º1, alínea i) e n.º2 alínea d), 176.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, numa pena única de 3 anos de prisão, a qual foi declarada perdoada sob condição resolutiva.


- no âmbito do processo n.º 124/95, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., perante Tribunal Colectivo, no ... juízo criminal, por acórdão datado de 02.05.1995, pela prática em 13.10.1994, de um crime de furto qualificado e de um crime de introdução em casa alheia, previstos e punidos pelos artigos 296.º e 297.º, n.º1, alínea i) e n.º2 alínea d), 176.º, n.ºs 1 e 2, todos do Código Penal, numa pena única de 2 anos de prisão.


- no âmbito do processo n.º 24/97, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., perante Tribunal Colectivo, por acórdão datado de 03.07.1997, pela prática, em 15.01.1997, de 2 crimes de furto, previstos e punidos pelos artigos 203.º, n.º1 e 204.º, n.º1, alínea a) e n.º2, alínea e), ambos do Código Penal, numa pena única de 7 anos de prisão.


- no âmbito do processo n.º 856/98, que correu termos no Tribunal Judicial de ..., perante Tribunal Colectivo, ... Juízo Criminal, por acórdão datado de 19.10.1998, pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punido pelos artigos 203.º e 204.º, alíneas a) e e), ambos do Código Penal, numa pena única (que engloba pena aplicada no processo n.º 24/97), de 8 anos de prisão, tendo sido extinta em 27.11.2007.


- no âmbito do processo n.º 186/04.5..., que correu termos no Tribunal Judicial de ..., ... Juízo Criminal, por acórdão datado de 06.12.2004, pela prática, entre 07.05.2003 e 15.11.2003, de 2 crimes de furto qualificado, previstos e punidos pelos artigos 204.º, n.º2, alínea e), 75.º e 76.º, todos do Código Penal, em 07/05/2003, de um crime de introdução em lugar vedado ao público, previsto e punido pelos artigos 191.º, 75.º e 76.º, todos do Código Penal, e em 24/10/2003 de um crime de furto qualificado na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 204.º, n.º2, alínea e), 22.º, 23.º, 75.º e 76.º, todos do Código Penal, numa pena única de 8 anos de prisão.


- no âmbito do processo sumário, perante tribunal singular, com o n.º 37/13.0..., que correu termos no ...Juízo Criminal do Tribunal Judicial de ..., por sentença proferida em 20.03.2013, transitada em julgado em 29.04.2013, pela prática, em 11.03.2013, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º1, do Código Penal, e de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 03 de Janeiro, numa pena única de 95 dias de multa e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos a motor pelo período de 5 meses, declaradas extintas em 15.07.2014 e 30.09.2013, respectivamente.


- no âmbito do processo comum, perante tribunal colectivo, com o n.º 828/13.1..., que correu termos no Juízo Central Cível e Criminal de ... – Juiz ..., por Acórdão proferido em 08.07.2014, transitado em julgado em 23.09.2014, pela prática entre 31.07.2013 e 14.02.2014, de 2 crimes de injúria agravada, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º1, 184.º e 132.º, n.º2, do Código Penal, de 2 crimes de ameaça agravada, previstos e punidos pelos artigos 153.º e 155.º, n.º1, ambos do Código Penal, e de 1 crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º1, do Código Penal, um crime de roubo, previsto e punido pelo artigo 210.º, n.º1, do Código Penal, e um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º1, do Código Penal, numa pena única de 6 anos de prisão.


- no âmbito do processo comum, perante tribunal singular, com o n.º 673/13.4..., que correu termos no Juízo Local Criminal de ... – Juiz ..., por sentença proferida em 16.12.2014, transitada em julgado em 28.01.2015, pela prática, em 14.08.2013, de um crime de furto simples, previsto e punido pelo artigo 203.º, n.º1, do Código Penal, na pena de 5 meses de prisão.


- no âmbito do processo de cúmulo jurídico, perante tribunal colectivo, com o n.º 352/16.0..., que correu termos no Juízo Central Cível e Criminal de ... – Juiz ..., por Acórdão proferido em 02.06.2016, transitado em julgado em 04.07.2016 (que englobou as penas aplicadas nos processos n.º 673/13.4... e 828/13.1...), na pena única de 6 anos e 3 meses de prisão.


*


FACTOS NÃO PROVADOS


Nada mais se provou com relevância para a decisão e designadamente que:


a) O arguido fornecia produto estupefaciente duas a três vezes por mês a FF.


b) O arguido cedia produto estupefaciente a GG com periodicidade praticamente diária.


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MOTIVAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO


O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente, as declarações do arguido em audiência de discussão e julgamento e em sede de 1.º interrogatório judicial2 (negrito, itálico e sublinhado aditados), os relatórios de exames periciais, os depoimentos das testemunhas e a restante prova documental junta aos autos, designadamente: Auto de apreensão de fls. 49 e 49v;Teste rápido de fls. 56; Teste rápido de fls. 57; Documento de fls. 58; Auto de notícia por detenção de fls. 4 a 5 (Proc. 53/21.8...); Auto de apreensão de fls. 8 8vº (Proc. 53/21.8...);Teste rápido de fls. 10 (Proc. 53/21.8...); Auto de notícia de fls. 21 e 21vº (Proc. 53/21.8...); Auto de notícia de fls. 35 e 35vº (Proc. 53/21.8...);Auto de apreensão de fls. 36 (Proc. 53/21.8...); Auto de notícia de fls. 39 e 39vº (Proc. 53/21.8...); Teste rápido de fls. 40 (Proc. 53/21.8...); Auto de apreensão de fls. 41 e 41vº (Proc. 53/21.8...); Relatório de vigilância de fls. 50 a 51 (Proc. 53/21.8...); Relatório de vigilância de fls. 52 a 53 (Proc. 53/21.8...); Relatório de vigilância de fls. 57 e 57vº (Proc. 53/21.8...); Auto de notícia por detenção de fls. 62 a 63 (Proc. 53/21.8...); Auto de apreensão de fls. 64 e 64vª (Proc. 53/21.8...); Teste rápido de fls. 71 (Proc. 53/21.8...); Teste rápido de fls. 71A (Proc. 53/21.8...); Relatório de vigilância de fls. 82-B e 82-C (Proc. 53/21.8...); Auto de notícia por detenção de fls. 4 a 5 (Proc. 57/22.3...); Auto de apreensão de fls. 6 e 6vº (Proc. 57/22.3...); Teste rápido de fls. 9 (Proc. 57/22.3...); Teste rápido de fls. 10 (Proc. 57/22.3...) e o certificado de registo criminal junto em 12.10.2023 [Ref.ª: 3776995], prova esta que que se fez tendo por fundamento, ademais, o princípio da livre apreciação da prova, nos termos do previsto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.


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Concretizando.


O arguido prestou declarações negando a factualidade constante do libelo acusatório, tentando convencer o Tribunal que o produto estupefaciente apreendido nos autos era para seu próprio consumo.


Referiu que encontra(va)-se em vários locais de ..., designadamente, nos parques de estacionamento, pois é daí, além dos biscates que faz nas obras, que obtém os seus “proventos”. Mencionou que as pessoas identificadas na acusação são seus familiares ou amigos e iam para a sua residência consumir, negando que tenha retirado quaisquer lucros pois não procedia à venda de droga, apenas cedia para consumirem todos juntos.


Mais referiu que consome cerca de 5 a 7g de heroína por dia e já tinha marcado uma consulta no CAT para o Natal, para aumentar a dose de metadona.


Que se deslocava para o ... para adquirir produto estupefaciente mas para seu próprio consumo.


Ora, tais declarações não mereceram qualquer credibilidade, porque contraditórias e incoerentes com a demais prova produzida nos autos, resultando antes numa tentativa malograda de criar a convicção do Tribunal que se trata de mero consumidor de produto estupefaciente.


Foram inquiridos os agentes da Polícia de Segurança Pública que investigaram o ilícito em causa nos presentes autos e descreveram as situações em que tiveram intervenção directa, tendo ainda declarado já conhecer o arguido de outras situações anteriores e o mesmo já ser referenciado por outros ilícitos pelos Órgãos de Polícia Criminal.


Foram ainda inquiridos alguns consumidores que testemunharam os contactos estabelecidos com o arguido.


Assim, a factualidade aposta nos pontos 1 a 3 resultou provada dos depoimentos das testemunhas EE, CC, FF, GG, BB, II, DD e JJ e que foram conjugados com os documentos juntos aos autos e que infra se discriminarão.


Inquirido EE [amigo do arguido há cerca de um ano], pelo mesmo foi referido que é consumidor de heroína e foi cerca de oito vezes à residência do arguido para consumir. Que por vezes deixava uma nota de € 5,00 ou € 10,00 ao arguido, porque este dizia que não tinha “comida”.


Esclareceu que no dia 16.12.2021, tinha 3 pacotes consigo, tenho previamente adquirido ao arguido aquele produto estupefaciente na residência deste, pelo qual pagou € 20,00, sendo € 10,00 o pacote. Mais disse que se deslocava a casa do arguido porque “ia de ressaca”.


Foi ainda inquirida a testemunha JJ [agente da Polícia de Segurança Pública, que prestou depoimento isento, objectivo e sem contradições e por isso mereceu credibilidade para o Tribunal], que referiu que se encontrava em patrulha quando se apercebeu que (a testemunha) EE contactou com o arguido e visualizou uma transacção que não foi perceptível apurar no momento, pelo que seguiram a testemunha. Abordado o mesmo procedeu à entrega de três embalagens de produto estupefaciente que se veio a apurar ser heroína. Tal depoimento foi ainda corroborado por II [agente da Polícia de Segurança Pública, que pela forma isenta e objectiva como prestou depoimento mereceu credibilidade].


No que diz respeito ao depoimento da testemunha EE, refira-se apenas que relativamente aos motivos pela qual “deixava” o dinheiro ao arguido, os mesmos não se revelaram credíveis porque contraditórios com as regras da experiência comum e da lógica quanto a este tipo de ilícitos, tanto mais que, se existisse de facto necessidades alimentares por parte do arguido, não se compreende por que motivo a testemunha não tenha diligenciado pelo “pagamento” com quaisquer géneros alimentares, ao que acresce o facto de nenhuma das restantes testemunhas, designadamente, consumidores, ter relatado qualquer carência alimentar do arguido.


Somos assim a crer que tais valores correspondiam, de facto, à contrapartida da cedência do produto estupefaciente pelo arguido.


Os depoimentos das testemunhas foram ainda conjugados com o aditamento n.º 5 a fls. 17, auto de apreensão de fls. 18, teste rápido de fls. 19, auto de notícia de fls. 21 (Proc. 53/21.8...), pelo que não suscitaram quaisquer dúvidas ao tribunal em dar a factualidade aposta no ponto 3, alínea a), como provada.


O Tribunal formou ainda a sua convicção quanto ao ponto 3, alínea b), no depoimento da testemunha CC, que referiu conhecer o arguido há cerca de 1 ano e encontrar-se com este no parque de estacionamento, tentando daí retirar alguns “proventos” como arrumadores de carros. Referiu ser consumidor de heroína e cocaína e consumir com o arguido, na casa deste. Que se deslocou algumas vezes com o arguido ao ..., para aquisição da droga, por ser mais barato. Mais disse que consumia cerca de 2 pacotes por dia (que custavam em média € 20,00) e deslocava-se ao ... duas vezes por mês para comprar dois pacotes, pois o “resto das vezes comprava” [em ...].


Confrontado com o teor do depoimento prestado em 26.01.2023 [e 13.04.2022, na medida em que se tratava de reprodução do depoimento que prestou nessa data] - auto de inquirição de fls. 160 e 94 - confirmou o seu teor, resultando do mesmo que comprava a heroína ao arguido, uma vez por dia, pelo valor de € 30,00, o que fazia com os valores angariados a arrumar veículos, sendo que, após 13.04.2022, comprou uma vez, heroína ao arguido, pela quantia de € 30,00.


Pese embora tenha sido notória a renitência com que a testemunha referiu que comprou heroína ao arguido, a verdade é que acabou por admitir o teor do seu depoimento em 26.01.2023 de forma serena e tranquila, tendo sido consentâneo, com o facto por si relatado na audiência de discussão e julgamento, isto é, que ia duas vezes ao ... e o resto das vezes comprava (ao arguido), o que levou ao Tribunal a dar o seu depoimento como credível e sincero.


Tal depoimento foi ainda conjugado com o relatório de vigilâncias de fls.52 a 53, 57 e 57v, e o depoimento dos agentes da Polícia de Segurança Pública, designadamente, BB e DD, que referiram que o mesmo já era vigiado há algum tempo e havia suspeitas que o mesmo ia ao ... para adquirir o produto estupefaciente.


Já no que respeita à factualidade aposta nos pontos 3, alínea c) e 6 da rubrica dos “factos provados”, a mesma resulta do depoimento da testemunha FF [que referiu conhecer o arguido por ser primo da sua mãe], que admitiu ser toxicodependente e ter tido uma recaída. Que nessa altura terá contactado o arguido e o mesmo mencionou não ter produto estupefaciente mas sabia onde adquirir. Por esse motivo, acordaram deslocar-se ao ... para o arguido adquirir o produto e, no regresso, consumir na casa deste. Que durante o percurso ... nada consumiram e foram abordados pela Polícia de Segurança Pública.


Esclareceu ainda que nunca pagou qualquer contrapartida ao arguido pela cedência do produto estupefaciente.


Ora, a testemunha prestou depoimento credível atenta a forma como o fez, mormente, coerente e sem contradições, respondendo espontaneamente a todas as questões que lhe foram colocadas, exceptuando quanto à ausência de contrapartida que não mereceu credibilidade para o Tribunal. Na verdade, a determinando momento do seu depoimento a testemunha referiu “não entreguei dinheiro nenhum porque não tinha dinheiro comigo”, o que formou a convicção do Tribunal em considerar que a falta de pagamento se referiu aquele momento em concreto em que se deslocaram ao ..., pois que, o normal proceder neste tipo de ilícitos é que os consumidores procedam de alguma forma ao pagamento do produto, inexistindo quaisquer razões para que o arguido cedesse, de forma gratuita, o produto estupefaciente à testemunha.


Inquirida a testemunha BB [agente da Polícia de Segurança Pública], pelo mesmo foi dito recorda-se do dia 14.12.2022 [por ser o dia do jantar de Natal da sua Esquadra] tendo-se apercebido que o arguido circulava num veículo – pois já era do conhecimento da PSP que o arguido desconfiava que a polícia andava atrás de si e, nessa medida, tinha alterado a sua forma de adquirir o produto estupefaciente - abordou o mesmo e fez uma revista à testemunha FF e ao arguido, tendo encontrado no bolso da camisa deste um maço de tabaco com todo o produto estupefaciente que o mesmo adquiriu.


Tal depoimento foi corroborado pelas testemunhas II e DD, agentes da Polícia de Segurança Pública, que acompanharam o colega BB naquele dia.


Os depoimentos das testemunhas que se revelaram credíveis, pois com razão de ciência sobre a factualidade em causa, foi ainda conjugado com o teor do auto de notícia de fls. 43, auto de apreensão de fls. 49 – na qual resulta que foi apreendida, além do mais, a quantia de 24,63 gramas de heroína e 2,26 g de cocaína, teste rápido de fls. 56 a 58.


Pelo arguido foi referido que deslocou-se com o seu primo FF para o ..., para adquirirem produto estupefaciente que seria dividido pelos dois e para consumo dos próprios.


As declarações não mereceram minimamente credibilidade para o Tribunal, pois que contraditórias e inconsistentes, demonstrando uma clara tentativa de desresponsabilização relativamente ao produto apreendido. Na verdade, pelo arguido foi referido que tratou de toda a aquisição do produto estupefaciente mas “ali não dava jeito para dividir” e que, durante o percurso, consumiram algum produto. Ora, tais declarações revelam-se contraditórias com o referido pela testemunha FF que referiu especificamente o “acordo” firmado com o arguido e não saiu do veículo quando o arguido adquiriu o produto estupefaciente. Na verdade, somos a crer que, de facto, a testemunha apenas procurou o arguido porque teve uma recaída [o que acontecia de 3 em 3 meses], e que a aquisição do produto estupefaciente foi integralmente adquirido por este, não se vislumbrando em que medida poderia a testemunha deter “metade” de um produto que nem sequer viu a ser adquirido (quer quanto à sua natureza quer quantidade) quando teve oportunidade de o fazer ou mesmo porque é consabido que os consumidores saibam exactamente a quantidade que é adquirida e que cabe a cada um, o que não se revela consentâneo com o mencionado pelo arguido.


O Tribunal formou ainda a sua convicção quanto ao ponto 3, alínea d), do depoimento da testemunha GG, que referiu conhecer o arguido há cerca de um ano, por ser consumidora de cocaína e heroína e ter comprado a este heroína pois “ele precisava de dinheiro e eu precisava de um pacote por € 10,00”. Mais referiu que, umas vezes comprava o produto estupefaciente e outras vezes este cedia, ficando a consumir juntos. Que geralmente o arguido tinha dinheiro.


Ora, a testemunha que se apresentou em audiência de julgamento depois da emissão de mandados de detenção, apresentou um depoimento marcado por alguma confusão pois se por um lado refere que o arguido precisava de dinheiro por outro referiu que este geralmente tinha dinheiro, tendo, ainda deixado a convicção que pretendia minimizar a sua participação e a do arguido na actividade ilícita praticada por este.


Confrontada com o depoimento prestado a fls. 181, a testemunha confirmou o seu teor, designadamente, ter-se encontrado com o arguido que seguia de bicicleta, no largo das portas de ..., tendo este cedido um pacote de heroína pelo valor de € 10,00, através da janela do veículo onde seguia a testemunha.


Tal depoimento foi conjugada com o relatório de vigilância de fls. 82-B.


Conjugada assim a prova, não suscitaram dúvidas ao Tribunal em dar a factualidade aposta no ponto 3, alínea c), como provada.


A factualidade inserta no ponto 3, alínea e) e 4, resultou demonstrada dos depoimentos das testemunhas HH, II e DD conjugada com a demais prova documental junta aos autos.


Ouvida a testemunha HH [que conhece o arguido há cerca de 20 anos, pelo facto de ambos serem consumidores], pela mesma foi referido que foi ao ... com o arguido onde adquiriram produto estupefaciente. No regresso, o arguido solicitou a HH que guardasse o produto estupefaciente deste pois que a polícia andava “muito em cima dele e era abordado”, tendo a testemunha acedido ao solicitado e colocada o produto na sua manga. Trazia assim uma bolsa com 11 pacotes de cocaína/heroína.


Mais referiu que chegou a ir a casa do arguido, pelo menos uma vez por semana e várias vezes, onde comprava cerca de 1 pacote (cerca de ¼) pela quantia de € 10,00.


A testemunha prestou depoimento de forma coerente, objectiva e sem contradições tendo, por isso, merecido credibilidade, para o Tribunal.


Inquiridos os agentes da Polícia de Segurança Pública II e DD, os mesmos revelaram ter tido intervenção no dia 04.01.2022, onde verificaram que o arguido e HH se dirigiram de “forma apressada” para o táxi quando decidiram abordar os mesmos. Nesse momento, verificaram que o arguido encontrava-se tranquilo, pois não trazia nada consigo.


Repare-se que o arguido referiu desconhecer o que HH trazia consigo, o que não se revela minimamente credível, pois não só não contraditório com o depoimento prestado por aquela [e, como já referido, mereceu credibilidade para o Tribunal], mas também porque revelou um discurso confuso e incoerente, referindo mesmo que consumiu todo o produto estupefaciente durante o percurso até ... e não conseguiu explicar em que medida necessitava de apanhar o táxi e ir com HH. Por outro lado tais declarações também se revelam incoerentes com o comportamento por si adoptado e percepcionado pelos agentes da Polícia de Segurança Pública, na medida em que terá saído em passo acelerado da estação ferroviária para apanhar o táxi, revelando na verdade a sua preocupação em sair do local porque tinha produto estupefaciente consigo e o deu a HH, revelando-se, pois, coerente a sua entrega a esta, que justificou o motivo pela qual aquele o fez.


Para prova daqueles pontos o Tribunal teve ainda em consideração os documentos juntos aos autos, mormente, o auto de notícia de fls.62 a 63, auto de apreensão de fls.64 (Proc. 53/21.8...); Teste rápido de fls. 71 (Proc. 53/21.8...); Teste rápido de fls. 71A , 72 e 73 (Proc. 53/21.8...).


Já no que concerne aos factos apostos no ponto 5 da rubrica dos factos provados resultaram demonstrados do depoimento da testemunha BB que esclareceu que viu o arguido a sair “de forma apressada” do comboio e, abordado, procedeu à entrega voluntária do produto estupefaciente que se encontrava no bolso das calças. Posteriormente, pelos Senhores Agentes, foi verificado que o arguido trazia uma máscara no queixo que trazia no seu interior a maior parte de produto estupefaciente apreendida. Tal depoimento foi conjugado com o auto de notícia de fls.4 e auto de apreensão de fls. 6, onde se pode atestar a quantidade e natureza do produto estupefaciente que o arguido trazia consigo e foi apreendida.


O depoimento daquela testemunha foi ainda corroborado pelo depoimento da testemunha DD, que participou na abordagem realizada ao arguido.


Pese embora o arguido tivesse negado destinar o produto estupefaciente que lhe foi aprendido para venda, mas antes para o seu consumo individual e cedência gratuita aos seus “amigos” [testemunhas ouvidas nestes autos], tal versão não mereceu a mínima credibilidade, não só, porque as testemunhas (à excepção de HH) referiram que conhecem o arguido há cerca de um ano e por todas elas, foi confessado entregar quantias ao arguido (à excepção de FF, cujo depoimento a essa parte não se revelou credível] – repare-se a esse propósito o referido por CC que procurava o arguido com uma frequência quase diária e pagava pelo produto estupefaciente cerca de € 30,00. Por outro lado, a quantidade significativa das substâncias que detinha: no dia 04.01.2022 – 14 pacotes 14 pacotes de plástico que continham no seu interior heroína com o peso líquido de 5,086 gramas, com o grau de pureza de 28,3%, que permitia preparar 14 doses diárias, bem como, dois pacotes de plástico, contendo no seu interior cocaína (cloridrato), com o peso líquido de 0,424 gramas (que como já referimos, não se suscitam dúvidas que eram do arguido); no dia 22.08.2022, uma embalagem plástica, contendo no seu interior heroína com o peso líquido de 3,802 gramas, com o grau de pureza de 24,2%, que permitia preparar 9 doses diárias, e uma embalagem plástica contendo no seu interior cocaína (éster metílico) com o peso líquido de 0,028 gramas, com o grau de pureza de 72,5%, que permitia preparar 1 dose diária; no dia 14.12.2022, uma embalagem plástica contendo produto estupefaciente, designadamente, heroína com o peso líquido de 23,810 gramas, com o grau de pureza de 19,9%, que permitia preparar 47 doses diárias, bem como, duas embalagens plásticas contendo cocaína com o peso líquido de 1,923 gramas, com o grau de pureza de 49,4%, que permitia preparar 32 doses diárias – substâncias e quantidades essas confirmadas pelos relatórios periciais de fls.119, 129 (processo 53/21.8...), 167 e 215 - circunstâncias reveladoras de que o arguido destinava tais substâncias também à cedência a terceiros, actividade, aliás, que o arguido admitiu.


De salientar a forma dissimulada onde o arguido colocou o produto estupefaciente em diferentes partes do corpo com vista a ocultá-lo da polícia.


Concluindo, da conjugação crítica e conjugada de todos os elementos de prova não temos quaisquer dúvidas em como o arguido adquiria o produto estupefaciente por valores monetários mais baratos, não só para o seu consumo, resultando que as quantidades adquiridas visava pelo menos parte a terceiros, mediante o recebimento de montantes monetários superiores àqueles que eram praticados quando o adquiria (valores esses que ficaram claramente demonstrados com os depoimentos de HH e KK).


Das declarações do arguido resultou ainda que tinha conhecimento das características do produto estupefaciente que trazia consigo e que a sua detenção naquelas condições era proibida e punida por lei, tanto é que as suas declarações foram no sentido de minorar a gravidade da sua conduta.


Assim, no que concerne aos factos atinentes ao dolo do arguido em todas as descritas situações, a sua prova fez-se a partir da análise do conjunto da prova produzida e em confronto com as regras da experiência comum e da normalidade da vida, em face da actuação desenvolvida pelo arguido e das circunstâncias em que agiu (veja-se a forma dissimulada como o arguido tentou ocultar o produto estupefaciente).


Com efeito, sendo o dolo um elemento de índole subjectiva, que pertence ao foro íntimo do sujeito, o seu apuramento ter-se-á de apreender do contexto da acção desenvolvida, cabendo ao julgador – socorrendo-se, nomeadamente, das regras da experiência comum da vida, daquilo que constitui o princípio da normalidade – retirar desse contexto a intenção por ele revelada e a si subjacente. Foi esta a operação que o tribunal realizou e por isso deu como plenamente demonstrados os pontos 7 a 11.


Relativamente aos factos atinentes às condições de vida – pontos 12 a 19 -, resultou das declarações do arguido e do teor do relatório social junto aos autos.


Já o ponto 20 resulta provado do documento de fls. 361, junto pelo arguido em sede de audiência de discussão e julgamento.


Finalmente, os antecedentes criminais do arguido resultaram da análise do seu certificado de registo criminal junto aos autos a 25.09.2023 [Ref.ª: 3758643], fls. 332 a 356- ponto 21 da rubrica dos “factos provados”.


*


A matéria dada como não provada - alíneas a) e b) ,o Tribunal formou a sua convicção na ausência ou insuficiência de prova, pois que não corroborada por qualquer outro meio de prova.


(…)».


2. Tratando-se de recurso interposto de acórdão condenatório em pena de prisão superior a cinco anos, proferido por tribunal coletivo e restrito à matéria de direito, é inquestionável a competência do STJ para o respetivo conhecimento, nos termos dos artigos 434º e 432º, n.ºs 1, al. c) e 2, do CPP, conforme acertadamente entendeu o arguido e decidiu o Desembargador relator no TRE, ao endereçar e mandar remeter-lhe o processo.


Avancemos, pois, para a apreciação das questões antes enunciadas e que delimitam o objeto do recurso.


2. 1. Nulidade do acórdão recorrido por produção e valoração de prova proibida e inconstitucionalidades normativas [conclusões 1ª, 2ª e 3ª]


Nas enunciadas conclusões, o recorrente suscita a questão da violação dos artigos 355.º, n.ºs 1 e 2, 356.º, n.ºs 2, al. b), 3 e 9, e 357.º, n.º 1, alínea b), aplicável ex vi do disposto no n.º 3 do artigo 357.º, todos do CPP, por valoração julgamento e no acórdão recorrido das declarações que prestou no primeiro interrogatório de arguido detido perante o juiz de instrução, sem as mesmas terem sido lidas ou reproduzidas em audiência, do confronto da testemunha BB, agente da PSP, com o teor do auto de notícia do processo 57/22.3..., sem o seu acordo, e da leitura do depoimento da testemunha CC prestado perante órgão de polícia criminal, também sem a prévia obtenção do seu acordo.


À parte as inconstitucionalidades que convoca relativamente à interpretação aplicativa daquelas normas que considera efetuada no acórdão recorrido, nomeadamente por violação dos artigos 18º, n.º 2, 20º, n.º 4, e 32º, n.ºs 1, 2 e 5, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e à luz do decidido a propósito pelo Tribunal Constitucional (TC) no acórdão TC 770/2020, que serão infra apreciadas concomitantemente com cada uma das questões específicas analisadas, não explicita se e em que medida aquela valoração, confronto e leitura integram algum vício da decisão e/ou do procedimento e qual a sua repercussão na respetiva validade, pelo que se afigura apropriado proceder à sua apreciação individualizada, como segue:


2. 1. 1. A valoração das declarações prestadas perante o Juiz de instrução sem reprodução ou leitura em audiência.


Diz-se no 1º parágrafo da motivação da matéria de facto do acórdão recorrido: “O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente, as declarações do arguido (negrito no original) em audiência de discussão e julgamento e em sede de 1.º interrogatório judicial (…)”.


Conforme resulta do auto correspondente, com a referência 32463181, o recorrente foi apresentado detido e sujeito a 1º interrogatório judicial, assistido pelo defensor oficioso subscritor do presente recurso, no âmbito do inquérito n.º 84/22.0..., no dia 15.12.2022.


Dele resulta também que o interrogatório ficou registado em gravação áudio, nos termos dos artigos 141.º, n.º 9, e 101.º do CPP, incluindo as declarações que quis prestar, o cumprimento pelo juiz das obrigações informativas e das advertências previstas no artigo 141º, n.ºs 3 e 4, do mesmo Código, nomeadamente de que, não exercendo o direito ao silêncio, as declarações que prestasse poderiam ser utilizadas no processo, mesmo que fosse julgado na ausência, ou não prestasse declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova.


A juíza presidente do tribunal coletivo que proferiu o acórdão recorrido, perante o recurso do arguido, entendeu a questão em apreço como arguição de uma nulidade dessa decisão e, numa peculiar e não consensual interpretação da aplicação conjugada dos artigos 379º, n.º 2, e 414º, n.º 4, do CPP, sustentou a decisão, mas reparou-a parcialmente, determinando a eliminação do segmento acima transcrito em que incluía as declarações por ele prestadas no 1º interrogatório judicial como fonte da sua motivação quanto à matéria de facto, por, como ali afirma, o não terem sido, despacho que foi notificado aos sujeitos processuais, sem qualquer reação dos mesmos.


Por isso, o Ministério Público, no parecer emitido neste Tribunal, não questionando a competência da juíza presidente, à luz do artigo 135º da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26.08,, mas sem deixar de sublinhar aquela incongruência, uma vez que, o que verdadeiramente foi reconhecido naquele despacho foi um erro ou lapso de escrita, consignando o que não havia sido valorado nem considerado, cuja correção, por conseguinte, caberia na previsão do artigo 380º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPP, concluiu no sentido de estar prejudicada a questão, conclusão a que não repugnaria aderir sem mais considerações, não fosse efetivamente a incerteza que permanece sobre o acerto da opção do tribunal recorrido e sobre o vício decorrente daquele segmento textual do acórdão recorrido e as respetivas consequências invalidantes, mais ainda tendo em conta a jurisprudência fixada pelo acórdão do STJ n.º 5/2023, de 4.05.2023, publicado no DR n.º 111/2023, I Série, de 9.06,2023, em linha com a jurisprudência do TC convocada pelo recorrente e a maioria da jurisprudência e da doutrina nele resenhada, no sentido de que “As declarações feitas pelo arguido no processo perante autoridade judiciária com respeito pelo disposto nos artigos 141.º, n.º 4, al. b), e 357.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, podem ser valoradas como prova desde que reproduzidas ou lidas em audiência de julgamento”, o que, aliás, a verificar-se, como também se reconhece naquele parecer, inquinaria o acórdão “de vício que determina a prolação de nova decisão com extirpação da respetiva anomia, vício que parte da jurisprudência qualifica de nulidade”, como escreve Oliveira Mendes, expressamente citado naquele AFJ, em anotação ao artigo 357º do CPP, no acima referenciado “Código de Processo Penal Comentadoº, de Henriques Gaspar e outros.


Resolvida assim a querela jurisprudencial surgida na sequência das alterações introduzidas ao artigo 357º do CPP pela Lei n.º 20/2013, de 21.02, que permitiram o alargamento das situações em que as declarações do arguido nas fases preliminares do processo podem ser valoradas em julgamento, acompanhadas do reforço das suas garantias de defesa, incluindo o contraditório, e do processo justo e equitativo, nos termos dos artigos 18º, n.º 2, 29º, n.º 4, e 32º, n.ºs 1, 2 e 5, da CRP, por via da alteração simultânea dos artigos 61º. 141º e 355º do CPP, resta a questão de saber qual o vício e respetivas consequências quando essa valoração, real ou erradamente consignada no texto da decisão, ocorrer sem observância dos requisitos legais, nomeadamente da não reprodução e/ou leitura das declarações na audiência de julgamento.


Nesta sede, independentemente da leitura mais ou menos condescendente que se faça da referida “constelação normativa”, impõe-se o entendimento sufragado no AFJ n.º 5/2013, tendencialmente vinculante para os tribunais, nos termos do artigo 445º, n.º 3, do CPP.


E da sua fundamentação não restam dúvidas quanto à proibição de valoração em julgamento, nomeadamente para o efeito da formação da convicção do tribunal, das declarações prestadas pelo arguido durante o inquérito nos interrogatórios perante o juiz de instrução ou perante o Ministério Público, nos termos dos artigos 141º e 143º, salvo se, observadas os requisitos aí previstos, forem reproduzidas ou lidas em audiência.


Proibição que, ainda de acordo com o mesmo AFJ, acarreta sem dúvida a invalidade, nulidade insanável, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 355º, n.ºs 1 e 2, a contrario, 357º, n.º 1, b), 118º, 119º, 122º, 125º e 126º do CPP, do ato em que tiverem sido valoradas aquelas declarações e dos que dela dependerem e aquelas puderem afetar.


Ora, no caso, o despacho judicial pretensamente reparador do vício assumidamente verificado no acórdão recorrido e confirmado pelo teor das atas de audiência de discussão e julgamento, em que ficou consignada a reprodução e leitura das questionadas declarações, para além de não ter respaldo nas disposições conjugadas dos artigo 379º, n.º 2, 414º, n.º 4, e 379º, n.º 2, do CPP e 135º da LOSJ, atenta a origem e natureza do vício, como observa o Ministério Público no seu parecer, também não pode integrar-se no seu artigo 380º, n.º 1, al. b), por não resultar inequívoco do processo tratar-se de um “erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial”, e, em consequência, caber a correção do acórdão nos termos em que o foi, mesmo ao abrigo desta última norma, nos poderes de direção e gestão processual da presidente do coletivo, ao abrigo daquele artigo 135º.


É que, ao contrário do que se afirma nesse despacho e parece conceder o Ministério Público, no JCCC... e neste STJ, o acórdão afirmou no proémio da fundamentação da matéria de facto provada ter valorado as declarações do arguido em audiência e no 1º interrogatório judicial de arguido detido, sem que estas tenham sido reproduzidas ou lidas em audiência, como atestam as atas das diferentes sessões de julgamento, e, de facto, ao longo dessa fundamentação resulta claro ter o tribunal formado a sua convicção também através da valoração das declarações do arguido, positiva e negativamente, referindo-se-lhe indistintamente e, necessariamente, por referência àquelas cuja valoração ampla afirmou no proémio.


Efetivamente, valorou-as por confronto com os depoimentos das testemunhas, não lhes reconhecendo virtualidade suficiente para contrariar a versão destas, ou por si mesmas, como evidenciam as passagens em que menciona as declarações do arguido, sem explicitar se na audiência ou perante o juiz de instrução, nomeadamente nas reproduzidas a pp. 40, 42, 43 e 44 do presente acórdão, no confronto com as testemunhas FF e HH quanto à aquisição partilhada e transporte do produto estupefaciente e sua destinação para venda ou consumo, bem como para as relevar quanto ao elemento subjetivo, designadamente sobre o conhecimento da sua natureza e caraterísticas e proibição e criminalização da respetiva detenção.


Por outro lado, algumas das testemunhas indicadas na acusação submetida a julgamento, deduzida em 11.05.2023, foram também indicadas na promoção do 1º interrogatório judicial de arguido detido, de 15.12.2022, sendo sintomático que o Ministério Público tenha indicado como prova na acusação as declarações do arguido no 1º interrogatório judicial, requerendo aí também a sua reprodução em audiência, a qual, como visto, não se mostra consignada nas correspondentes atas, sem com isso afastar terem sido efetivamente valoradas como se consignou no próprio acórdão, o que inviabiliza dar como assente que efetivamente o não tenham sido.


Em face do exposto, só resta uma solução para a “extirpação da referida anomia”, qual seja a da prolação pelo tribunal da 1ª instância de novo acórdão de que seja expurgada a referência às declarações do arguido no 1º interrogatório judicial e fixação da matéria de facto sem a consideração dessas declarações. Isto porque, tendo-se verificado o vício na fase da deliberação, ele apenas afeta este ato e os subsequentes, mas não a fase anterior, a do julgamento propriamente dito.


Termos em que procede esta primeira questão.


*


Sendo certo que a procedência da anterior questão prejudica a apreciação das duas últimas questões suscitadas nas conclusões 4ª e 5ª do presente recurso e acima enunciadas, ela não impede, antes recomenda que se apreciem, desde já, as outras duas situações convocadas pelo recorrente também passíveis de gerar a nulidade do acórdão, por razões de economia e celeridade processual, às quais passaremos de imediato.


2. 1. 2. O confronto da testemunha BB, agente da PSP, com o teor do auto de notícia do processo 57/22.3..., sem o seu acordo.


O recorrente discute também, sem qualificar o vício correspondente, a legalidade do confronto em audiência da testemunha BB, agente da PSP, com o auto de notícia que deu origem ao processo 57/22.3..., sem o acordo previsto no artigo 356º, nº 2, alínea b), do CPP.


Como refere o Ministério Público, na resposta apresentada ao recurso e no parecer emitido no STJ, não lhe assiste razão.


Antes de mais, importa relembrar, como refere o citado AFJ e a doutrina e a jurisprudência nele referenciada e resulta inequívoco da letra da lei, que a proibição e limitação de leitura e/ou reprodução da prova a que se referem as disposições conjugadas dos artigos 355º, 356º e 357º do CPP, se dirige essencialmente à sua valoração para efeitos de formação da convicção do tribunal e abrange apenas os meios de prova de natureza declarativa e pessoal produzidos antes da audiência de julgamento, numa perspetiva substantiva e não meramente formal, ou seja em função do seu conteúdo declarativo e não da nomenclatura legal ou atribuída pelas autoridades aos autos em que fiquem registados.


Nessa perspetiva, importa saber qual o verdadeiro conteúdo e natureza do auto de notícia com que foi confrontada a identificada testemunha, considerando o disposto no artigo 243º do CPP, que define a sua finalidade e conteúdo, em vista do cumprimento da obrigação de denúncia obrigatória ao Ministério Público de crimes presenciados por qualquer autoridade judiciária, órgão de polícia criminal ou outra entidade policial, nos termos dos artigos 241º e 242º do mesmo diploma legal.


Conforme resulta do auto de notícia a que se reporta o recorrente, que deu origem ao inquérito n.º 57/22.3..., correspondente ao NPP .........22, apensado aos presentes autos, o mesmo foi levantado pela testemunha em causa, BB, elemento da PSP, com a Matrícula n.º ....32, no dia 22 de agosto de 2022, por no local, hora e circunstâncias neles descritas, o mesmo ter intercetado, revistado e detido o arguido e recorrente, na posse de produtos estupefacientes, que foram apreendidos, nele consignando tudo o mais previsto nas alíneas do n.º 1 do artigo 243º, sem qualquer outro elemento passível de configuração como narração declarativa e interpretativa sua, do arguido ou das testemunhas nele identificadas.


Por conseguinte, correspondendo sem desvios ao conteúdo legalmente estipulado, o questionado auto de notícia não está abrangido pelo disposto no artigo 356º, n.º 2, mas antes pelo disposto no seu n.º 1, al. b), assumindo a natureza de documento autêntico com a força probatória que lhe confere o artigo 169º do mesmo diploma legal, conjugado com o artigo 363º, n.º 2, do Código Civil (CC)3.


Por outro lado, como também se refere no parecer do Ministério Público, atenta essa natureza, nada impede que com ele sejam confrontados em audiência de julgamento o respetivo autuante e as demais testemunhas nele identificadas, em conformidade com o disposto no artigo 138º, n.º 4, do CPP, quando o tribunal o entender conveniente, como o foi o primeiro na sessão de julgamento realizada no dia 31.10.2023, nos termos consignados na respetiva ata com a referência ......54, sem qualquer oposição do arguido e do seu defensor oficioso, que nela estiveram presentes e intervieram segundo a estratégia que livremente definiram e entenderam adequada aos interesses da defesa, como a mesma também retrata.


Por conseguinte, nenhuma ilegalidade ou sequer irregularidade decorre da questionada confrontação da testemunha BB com o auto de notícia por si levantado e assinado, que não carecia do assentimento e concordância dos sujeitos processuais interessados.


Termos em que improcede esta questão


2. 1. 3. A leitura do depoimento da testemunha CC prestado perante órgão de polícia criminal, também sem a prévia obtenção do seu acordo.


Por fim, o recorrente questiona a legalidade da leitura em audiência do depoimento da testemunha CC prestado durante o inquérito perante órgão de polícia criminal, sem a prévia obtenção do seu acordo.


Acrescenta que essa leitura, se admitida ao abrigo das disposições conjugadas dos n.ºs 2, al. b), 3 e 5 do artigo 356º do CPP, traduz uma interpretação aplicativa inconstitucional dessas normas, por violação, além delas, das dos artigos 20º, n.º 4, e 32º, n.ºs 1, 2 e 5, da CRP.


Vejamos.


Tanto quanto resulta da motivação e da correspondente conclusão 3ª, o recorrente considera que a sua não oposição ou acordo de leitura em audiência do depoimento prestado pela identificada testemunha durante o inquérito perante o procurador da República titular do inquérito, no qual foi confrontado com o depoimento antes prestado perante órgão de polícia criminal, que foi dado como reproduzido, não pode considerar-se extensiva a este último, pelo que a respetiva leitura em audiência decorreu à sua revelia e, como tal, é ilegal.


Conforme resulta do respetivo auto, com a referência ......57, no âmbito do inquérito n.º 84/22.0..., perante o procurador da República titular, no dia 26.01.2023, procedeu-se à inquirição de CC, o qual, além do mais nele consignado, declarou que “Confirma na integra o teor do depoimento que prestou perante a PSP em 13/04/2022 e que consta de fls. 94/94vº do processo apenso (Proc. n.º 53/21.8...)”.


Por outro lado, resulta da ata de audiência de discussão e julgamento relativa à sessão do dia 14.11.2023, com a referência ......84, na qual estiveram presentes e intervieram o arguido recorrente e o seu defensor, que a testemunha CC, no decurso do respetivo depoimento foi, a requerimento do Ministério Público, confrontado com as declarações que havia prestado na fase de inquérito, perante o procurador da República a que se reporta o auto antes referenciado, e perante a PSP no âmbito do inquérito apenso referido e integralmente confirmado nesse mesmo auto, sem qualquer oposição daqueles quanto às primeiras e com a sua oposição expressa quanto às segundas, conforme melhor se alcança do seguinte excerto da ata:


«(…) No decorrer do depoimento, pelo Ministério Público foi requerida a leitura das declarações prestadas pela testemunha em sede de inquérito (fls. 160 dos presentes autos).


Concedida a palavra ao Ilustre Defensor do arguido pelo mesmo foi dito nada ter a opor.


Após a Mm. ª Juíza Presidente proferiu o seguinte:


DESPACHO


“Não havendo oposição por parte da defesa e considerando que as declarações em causa foram prestadas perante Magistrado do Ministério Público, ao abrigo do artigo 356.º n.º 2, alínea a) e n.º5, do Código de Processo Penal, defere-se o requerido.


Notifique.”.


Logo, todos os presentes foram devidamente notificados do despacho que antecede.


*


Após foram lidas as declarações prestadas pela testemunha CC, tendo sido retomado seu depoimento, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.


*


Ainda no decorrer do depoimento, pelo Ministério Público foi requerida a leitura das declarações prestadas pela testemunha em sede de inquérito (fls. 94 e 94 verso do inquérito n.º 53/21.8... apensado aos presentes autos).


Concedida a palavra ao Ilustre Defensor do arguido pelo mesmo foi dito opor-se ao ora requerido.


Após deliberação, a Mm. ª Juíza Presidente proferiu o seguinte:


DESPACHO


"Pese embora a leitura das declarações da testemunha tenham sido feitas perante por Órgão de Polícia Criminal, a verdade é que as mesmas são reproduzidas no auto de declarações prestado no dia 26.01.2023 perante o Digno Magistrado do Ministério Público, cuja leitura já foi deferida e determinada. Assim, considerando que a leitura das declarações perante Orgão de Polícia Criminal se cinge à mera reprodução das declarações para aqueles efeitos, e o que está em causa são as declarações perante Ministério Público nos termos já deferidos, determina-se a sua leitura."


Logo, todos os presentes foram devidamente notificados do despacho que antecede.


*


Após foram lidas as declarações prestadas pela testemunha CC, tendo sido retomado seu depoimento, tendo o mesmo sido gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal.


No final do depoimento foi a testemunha CC restituído à liberdade.


(…)».


Mais resulta dessa ata que a audiência prosseguiu com a inquirição das demais testemunhas arroladas, alegações orais do Ministério Público e do defensor, antecedidas pela declaração de “(…)todos os intervenientes processuais (…) considerarem analisada toda a prova documental constante dos autos” e seguidas pela concessão ao próprio arguido da oportunidade de dizer o que entendesse útil para sua defesa e de despacho a designar o dia 28.11.2023 para leitura do acórdão a proferir, em concertação de agenda com o seu defensor.


*


Atento o antes exposto, torna-se evidente que, apesar da oposição oportunamente manifestada pelo defensor do arguido quanto à leitura das declarações prestadas pela testemunha CC à PSP durante o inquérito, o tribunal sustentado no entendimento de que as mesmas, tendo sido integralmente confirmadas em auto de inquirição posterior perante o Ministério Público, se consideravam neste reproduzidas, decidiu que era válida e relevante a não oposição por aquele já manifestada quanto à leitura das registadas neste último auto e determinou a respetiva leitura.


Como inequívoco se mostra que, apesar de terem visto contrariada a sua (o)posição, nem o arguido nem o seu defensor, estando presentes e podendo fazê-lo, porque dela logo expressa e pessoalmente notificados, reagiram a essa decisão no momento ou até ao final dessa sessão da audiência de discussão e julgamento, designadamente arguindo a respetiva nulidade e insuscetibilidade de valoração das questionadas declarações, o que, apenas fizeram no recurso interposto apenas em 11.12.2023.


Ora, como se refere no parecer do Ministério Público, a jurisprudência nele citada, nomeadamente dos Tribunais da Relação de Coimbra e do Porto, acolhe como boa a tese sufragada pelo tribunal recorrido, afastando inclusive qualquer ideia de deslealdade processual e/ou de violação das garantias de defesa do arguido, a quem, como neste caso ocorreu, são garantidas todas as condições para o seu mais amplo exercício, nomeadamente do contraditório das declarações lidas em plena audiência e no momento da inquirição da testemunha que as prestou no inquérito, sem qualquer afronta ao disposto nos artigos 18º, n.º 2, 20º, n.º 4, e 32º, n.ºs 1, 2 e 5, da CRP, porque nenhum direito de defesa, em particular o do contraditório, foi coartado ou sequer limitado e o processo decorreu com transparência e lealdade, sendo, por isso, justo e equitativo.


Tal entendimento afigura-se correto e conforme às pertinentes e citadas nomas legais e constitucionais, não se afigurando constituir fundamento bastante para o pôr em causa a oposição doutrinária à equiparação das declarações prestadas no inquérito perante OPC às prestadas perante magistrado do Ministério Público, quando nestas a testemunha se limite a confirmar integralmente aquelas, mas sem a sua efetiva repetição e reprodução com as nuances próprias de cada ato declarativo, como afirmam Sandra Oliveira e Silva e Paulo Pinto de Albuquerque no comentário 8 ao artigo 356º do CPP inserto no “Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Declaração Europeia dos Direitos Humanos”, 5ª edição atualizada, UCP Editora, 2023.


Segundo este entendimento poderia colocar-se a questão suscitada pelo recorrente no presente recurso, sobre a invalidade e inconstitucionalidades decorrentes da leitura das referidas declarações, apesar da sua oposição expressa.


Todavia, acompanhando a referida jurisprudência das relações, considera-se válida a equiparação efetuada pelo tribunal recorrido das declarações prestadas no inquérito perante OPC com aquelas prestadas perante o Ministério Público, em auto no qual a testemunha reafirma integralmente as primeiras, mesmo não sendo elas neste reescritas, sem com isso se incorrer em qualquer vício impeditivo ou invalidante da sua consideração e valoração, menos ainda na violação das normas constitucionais referenciadas, por nenhuma restrição dos direitos fundamentais de defesa do arguido, designadamente do contraditório, serem postergadas, como evidencia a jurisprudência do TC referenciada no parecer do Ministério Público.


Não padece, por isso, o procedimento adotado de qualquer vício invalidante.


Note-se que o CPP, ao contrário do que prescreve quanto às declarações do arguido nos interrogatórios a que haja lugar, no sentido de, em princípio, eles serem registados em suporte áudio ou audiovisual, nos termos dos artigos 141º, n.ºs 7 a 9, e 144º, por referência ao artigo 101º, não estabelece, nem parece admitir para as declarações de outros intervenientes processuais, nomeadamente das testemunhas, que as mesmas, quando prestadas em inquérito, sejam registadas senão em auto escrito, em conformidade com o estipulado nos artigos 99º a 101º, meio que dificilmente confere a possibilidade de perceção e interpretação das ditas nuances declarativas a que aludem os mencionados autores, mais ainda quando é certo serem esses autos em princípio redigidos pelo funcionário e segundo discurso por ele mediado, seja no OPC ou no tribunal, ainda que sob a presidência de magistrado, salvo casos pontuais em que essa tarefa seja delegada, oficiosamente ou a requerimento, no próprio participante/declarante ou nos seus representantes, conforme previsto no artigo 100º, n.º2.


Termos em que também esta questão improcede.


*


Nestes termos e como acima antecipado, a procedência do recurso quanto à questão da invalidade do acórdão apreciada no ponto 2. 1. 1., prejudica o conhecimento e decisão das restantes duas questões suscitadas no recurso relativas à qualificação jurídica dos factos provados – crime de tráfico comum ou de menor gravidade [conclusão 4ª] e à medida da pena de prisão aplicada [conclusão 5ª].


IV. Decisão


Em face do exposto, acorda-se em:


Julgar parcialmente procedente o recurso do arguido AA, e, em consequência, declarar a nulidade do acórdão recorrido, por utilização na sua fundamentação da matéria de facto de prova proibida de valorar, e determinar a prolação de novo acórdão pela 1.ª instância que, com exclusão como meio de prova das declarações prestadas pelo arguido perante o juiz de instrução criminal no primeiro interrogatório judicial a que foi submetido na fase de inquérito, reconfigure a matéria de facto e respetiva matéria de direito.


.c) Sem custas (cfr. artigo 513º, n.º 1, do CPP).


Lisboa, d. s. c.


(Processado pelo relator e revisto e assinado digitalmente pelos juízes subscritores)


João Rato (Relator)


Albertina Pereira (1ª adjunta)


Jorge Gonçalves (2º adjunto)





_______________________________________________

1. Cfr. artigo 412º do Código de Processo Penal (CPP) e, na doutrina e jurisprudência, as correspondentes anotações de Pereira Madeira, in Código de Processo Penal Comentado, de António Henriques Gaspar et al., 2021 - 3ª Edição Revista, Almedina.

Tudo sem prejuízo, naturalmente, da necessária correlação e interdependência entre o corpo da motivação e as respetivas conclusões, não podendo nestas acrescentar-se o que não encontre arrimo naquele e sendo irrelevante e insuscetível de apreciação e decisão pelo tribunal de recurso qualquer questão aflorada no primeiro sem manifestação nas segundas, não podendo igualmente, salvo as de conhecimento oficioso, conhecer-se de questões novas não colocadas nem consideradas na decisão recorrida, como se afirmou no acórdão deste STJ, de 23.11.2023, proferido no processo n.º 687/23.6YRLSB.S1, relatado pelo Conselheiro Jorge Gonçalves, disponível em https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/.↩︎

2. Trata-se do segmento considerado expurgado no despacho referenciado no corpo do texto em que a Juíza titular, antes de admitir o recurso, reparou a nulidade nele suscitada por valoração das declarações do arguido no 1º interrogatório judicial a que foi submetido após a sua detenção.↩︎

3. Conforme defende Maia Costa em anotação ao artigo 243º do CPP, no citado “Código de Processo Penal Comentado”, de António Henriques Gaspar [et al.], também referenciado neste sentido no parecer do Ministério Público.↩︎