Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
Processo:
533/19.5T8BCL.G1.S1
Nº Convencional: 4ª SECÇÃO
Relator: MÁRIO BELO MORGADO
Descritores: CONTRATO DE TRABALHO
SOCIEDADE POR QUOTAS
SÓCIO GERENTE
TRANSMISSÃO DE ESTABELECIMENTO
TRANSMISSÃO DO CONTRATO
SUSPENSÃO DO CONTRATO DE TRABALHO
JUSTA CAUSA DE RESOLUÇÃO
JUSTA CAUSA
Data do Acordão: 09/25/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: REVISTA
Decisão: CONCEDIDA A REVISTA
Sumário :
I. Sem prejuízo das situações em que as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções de sócio-gerente e de trabalhador subordinado, a nomeação de trabalhador subordinado como gerente da sociedade implica (em regra) a suspensão do contrato de trabalho e não a sua extinção.

II. Reconhecido pela Relação que entre a Autora e um empresário em nome individual vigorava um contrato de trabalho, bem como que para a sociedade ré, entretanto constituída (na qual a autora detinha metade do capital social e, desde o início, assumiu efetivamente a gerência, deixando de exercer funções como trabalhadora subordinada), ocorreu uma transmissão de estabelecimento, que teve por objeto toda a estrutura produtiva que girava em torno daquela empresa, conclui-se que também se transferiu para a R. o contrato de trabalho que até aí vinculava as partes, nos termos do art. 285.º, nº 1, do Código do Trabalho.

III. Uma vez que a nomeação de trabalhador subordinado como gerente da sociedade implica em regra a suspensão do contrato de trabalho, este vínculo contratual suspendeu-se quanto aos seus efeitos, desde o momento da sua transferência para a ré.

Decisão Texto Integral:
Revista n.º 533/19.5T8BCL.G1.S1

MBM/JES/AP

Acordam na Secção Social do Supremo Tribunal de Justiça


I.


1.1. AA intentou ação declarativa comum, emergente de contrato de trabalho, contra Modasafira – Malhas e Confeções, Lda, pedindo a condenação desta a pagar-lhe determinadas quantias.

Alega ter procedido à resolução, com justa causa, do contrato de trabalho celebrado com a ré, sem que esta tenha liquidado os créditos a que tem direito.

1.2. A ré contestou, alegando nunca ter sido celebrado com a autora qualquer contrato de trabalho.

2. A ação foi julgada improcedente na 1ª Instância.

3. Interposto recurso de apelação, o Tribunal da Relação de Guimarães (TRG) confirmou a sentença recorrida, embora com fundamentação jurídica essencialmente diferente.

4. Inconformada, a A. interpôs recurso de revista

5. A R. contra-alegou.

6. Neste Supremo Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se no sentido de ser negada a revista (considerando que o invocado contrato de trabalho cessou com a constituição da sociedade ré, por caducidade), parecer a que apenas respondeu a A., em linhas com a posição antes sustentada nos autos.

7. Inexistindo quaisquer outras de que se deva conhecer oficiosamente (art. 608.º, n.º 2, in fine, do CPC), em face das conclusões das alegações de recurso, a única questão a decidir1 consiste em determinar se – à data em que a A. comunicou à R. a resolução do (invocado) contrato de trabalho – vigorava uma relação laboral entre as partes (na afirmativa, impor-se-á que a Relação conheça as questões que ficaram prejudicadas pela solução dada ao litígio, mormente se o contrato foi resolvido com justa causa).

Decidindo.


II.


8. A matéria de facto fixada na decisão recorrida é a seguinte:

1. Autora eBB viveram como marido e mulher;

2. O que já se verificava em março de 2013;

3. Sendo que, em março de 2018, a autora deixou a habitação que constituía a casa de morada de família, ocorrendo a separação daqueles;

4. A sociedade Modasafira – Malhas e Confeções, Lda, foi constituída pela A. e BB, em 26 de março de 2013, com o capital social de 15.000,00 €, ficando cada um destes sócios titular de metade deste capital social, na proporção de 7.500,00 € para cada, pertencendo a cada um uma quota com igual valor nominal;

5. Tendo sido inicialmente nomeados gerentes da R. a A. e o sócio BB (…)

6. Tendo ficado (…) estabelecido no “Artigo 8.º Gerência” do contrato de sociedade, desde o início da constituição da R. e até hoje, que “A administração e representação da sociedade são exercidas por gerentes eleitos em assembleia geral.”, que “A sociedade obriga-se com a intervenção de um gerente” e que “A assembleia geral deliberará se a gerência é remunerada”;

7. Em 05 de Abril de 2013, pelas dez horas, na sede da R., reuniu a Assembleia-Geral dos sócios da R., com a presença dos seus únicos sócios e gerentes, a A. e BB, com o “Ponto único: Deliberar quanto à remuneração da sócia-gerente AA”;

8. Na referida Assembleia-Geral “foi deliberado que a sócia-gerente AA passe a ser remunerada com o valor mensal ilíquido de 485,00 euros (quatrocentos e oitenta e cinco euros), com efeitos a partir do dia cinco de abril de dois mil e treze.”;

9. Tal facto (…) foi comunicado à Segurança Social.

10. O BB exerce, a tempo inteiro, desde 01 de agosto de 2011, conjuntamente com o outro seu sócio CC, as funções de gerente da sociedade C..., Lda., (…), constituída em agosto de 2011;

11. Sendo remunerado por essas funções naquela sociedade;

12. Em 06 de julho de 2018 a autora comunicou à R., por carta registada com AR, a “renúncia à gerência”;

13. Renúncia essa que foi levada a registo comercial pela própria A., na Conservatória do Registo Comercial, pela Ap. 3 de 24 de julho de 2018;

14. Desde a data da constituição da ré, e até março de 2018, era a autora quem efetuava as encomendas de mercadorias a fornecedores da R., fazia os pagamentos aos fornecedores e trabalhadores da R., aceitava e organizava as encomendas dos clientes da R., acompanhava a execução e entrega dessas mesmas encomendas, e dava ordens aos funcionários da R. para executarem, essas encomendas;

15. Trabalhadores estes que sempre exerceram o seu trabalho sob as ordens, direção e fiscalização da A;

16. Em 5 de julho de 2018 a autora remeteu carta registada à ré, comunicando a resolução do contrato de trabalho, invocando justa causa, do seguinte teor: (…).

17. A autora foi admitida ao serviço de BB em data não concretamente apurada, mas pelo menos desde dezembro 2007, para exercer funções sob suas ordens e direção e fiscalização.2

18. A atividade do referido BB passou a ser assumida pela firma ré, constituída por autora e pelo referido BB, exercendo a autora as funções de gerente, conforme referidas em 5, 14 e 15. 3


III.


a) – Caracterização do litígio:

9. As instâncias coincidiram no sentido da inexistência de uma relação laboral entre as partes, à data em que a A., comunicou à R. a resolução do contrato de trabalho que invoca nos autos.

O Tribunal de 1ª Instância considerou que não existia contrato de trabalho entre a Autora e a Ré e que, mesmo que houvesse, o mesmo sempre teria “caducado por confusão”, dado aquela ter assumido a gerência da Ré (não foi abordada a natureza da relação entre a Autora e DD antes de 2013, nem pondera a eventual transmissão de estabelecimento e de contrato de trabalho para a Ré).

Por seu turno, o Tribunal da Relação (que procedeu ao aditamento à matéria de facto de dois pontos que são relevantes para a decisão de direito) entende que a Autora tinha um vínculo laboral com BB, sustentando, por outro lado, que se verificou uma transmissão de estabelecimento para a ré, tendo por objeto toda a estrutura produtiva que girava em torno da empresa em nome individual daquele.

Contudo, concluiu o TRG que tal contrato de trabalho não se transmitiu para a Ré (e, assim, que a autora nunca aí ingressou como trabalhadora), porquanto esta sociedade foi constituída também pela autora, que enquanto sócia detinha metade do capital social e assumiu efetivamente a gerência desde o início, pelo que (considera) se verificou um corte/hiato na referida situação jurídica laboral.

10. Quanto à recorrente, alega, essencialmente: (i) “a qualidade de sócio-gerente de uma sociedade não impede o reconhecimento da qualidade de trabalhador”; (ii) reconhecida pelo Tribunal a quo a transmissão do estabelecimento do BB para a R., deve concluir-se que para esta se transferiu o contrato de trabalho que até aí vinculava as partes.

b) – Implicações da nomeação como gerente de uma sociedade por quotas de um (seu) trabalhador subordinado (seguindo de muito perto a fundamentação do Ac. de 23.11.2023 desta Secção Social4):

11. Ao contrário do que acontece quanto às sociedades por quotas, esta matéria encontra-se especificamente regulamentada no tocante às sociedades anónimas, dispondo-se no n.º 1 do art. 398º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que, “durante o período para o qual foram designados, os administradores não podem exercer, na sociedade […] quaisquer funções temporárias ou permanentes ao abrigo de contrato de trabalho, subordinado ou autónomo […]”; e, no n.º 2, que, sendo designada como administrador uma pessoa que na sociedade exerça funções como trabalhador subordinado, “os contratos relativos a tais funções extinguem-se, se tiverem sido celebrados há menos de um ano antes da designação, ou suspendem-se, caso tenham durado mais do que esse ano”.

12. Esta última norma foi julgada inconstitucional, com força obrigatória geral, pelo Tribunal Constitucional5, por violação dos artigos 55º, d), e 57º, nº 2, a), da Constituição da República, na parte atinente à extinção do contrato de trabalho, mantendo-se, todavia, inalterado o estatuído quanto à suspensão do contrato.

Diz-se neste aresto: 6

«A incompatibilidade entre o exercício de funções laborais e o exercício do cargo de administrador é usualmente justificada com base em três razões.

Em primeiro lugar, certa doutrina sustenta existir uma impossibilidade estrutural de acumulação das funções: serão inconciliáveis o estatuto de subordinação inerente à condição de trabalhador e o cargo de administrador, que se identifica com a posição de empregador (Paulo de Tarso Domingues, "Administradores trabalhadores - breves notas", Católica Law Review, vol. II, n.º 2, 2019; Maria do Rosário Palma Ramalho, Tratado de Direito do Trabalho, Parte II - Situações Laborais Individuais, 6.ª Edição, 2016, p. 72; José Engrácia Antunes, A proibição de cúmulo administrador/trabalhador - da sua constitucionalidade, Almedina, Coimbra, 2018, p. 19; Acórdãos do STJ de 23.10.2013, proc. 70/11.6TTLSB.L1.S1, e de 17.11.2016, proc. 394/10.0TTTVD.L1.S1).

Em segundo lugar, e mesmo para a doutrina (hoje maioritária) que não considera haver impossibilidade, a opção visará proteger a independência dos administradores, prevenindo potenciais conflitos de interesses. Procurar-se-á assegurar que "o sujeito designado administrador exerce esse cargo sem as limitações que a posição no contrato de trabalho subordinado ou autónomo traria consigo" (cf. Alexandre Soveral Martins, "Comentário ao artigo 398.º", Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. VI, coord. Coutinho de Abreu, Almedina, Coimbra, 2013, p. 336; Coutinho de Abreu, "Sobre o trabalhador/administrador", Para Jorge Leite - Escritos Jurídicos, vol. II, p. 5; Luís Brito Correia, Os Administradores de Sociedades Anónimas, Almedina, Coimbra, 1993, p. 575; Júlio Gomes, Direito do Trabalho, vol. I - Relações Individuais de Trabalho, 2007, p. 167, e "Da validade do contrato de trabalho uma sociedade de um grupo para o exercício de funções de administração social noutra sociedade do mesmo grupo", Estudos de Direito do Trabalho em Homenagem ao Prof. Manuel Alonso Olea, Almedina, Coimbra, 2004, pp. 435 e 443; Ilídio Duarte Rodrigues, A Administração das sociedades por quotas e anónimas - organização e estatuto dos administradores, Lisboa Petrony, 1990, p. 304; Luís Miguel Monteiro, "Regime jurídico do trabalho em comissão de serviço", Estudos de Direito do Trabalho em Homenagem ao Prof. Manuel Alonso Olea, Almedina, Coimbra, 2004, p. 512; Engrácia Antunes, cit. pp. 14 e 16; Paulo de Tarso Domingues, cit., p. 16; Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 1018/1996; Acórdãos do STJ de 23.10.2013, proc. 70/11.6TTLSB.L1.S1, e de 25.11.2014, proc. 284/11.9TTTVD.L1.S1).

Por fim, alude-se a uma finalidade de preservação do modelo legal de governação das sociedades anónimas, que atribui ao Conselho de Administração (e não aos trabalhadores) a competência quanto às decisões fulcrais da empresa, assentando num princípio de livre destituição dos administradores. A confusão nas mesmas pessoas da posição de administrador e de trabalhador (cujo despedimento depende de justa causa) poria em causa tal arquétipo - cf. Engrácia Antunes, cit., p. 18; Ilídio Duarte Rodrigues, cit., p. 307; Alexandra Marques Sequeira, "Da designação de trabalhador para membro de órgão estatutário da sociedade empregadora - efeitos no contrato de trabalho", Questões Laborais, n.º 46, 2015, p. 154; António José Sarmento Oliveira, "O contrato de administração. Sua natureza e possibilidade de cumulação com um contrato de trabalho", Revista de Ciências Empresariais e Jurídicas, n.º 5, 2005, p. 202.»

E, quanto à debatida aplicação analógica da regulamentação em causa a outros tipos sociais, maxime a gerentes de sociedades por quotas, sintetiza assim:

«Alguns Autores sufragam dever ser mobilizada no contexto das sociedades por quotas (Paulo de Tarso Domingues, cit., p, 22); outros propõem a sua extensão analógica apenas quanto ao segmento normativo em que se estabelece a suspensão contratual (Ilídio Duarte Rodrigues, cit., p. 314); outra corrente apela a uma ponderação do caso concreto (Ana Perestrelo de Oliveira, Manual de Governo das Sociedades, Almedina, Coimbra, 2017, p. 201; Maria do Rosário Palma Ramalho, Grupos..., cit., p. 521; Luís Brito Correia, "Admissibilidade de remuneração variável de um gerente de sociedade por quotas", Direito das Sociedades em Revista, Ano 1, vol. 2, 2009, p. 14; Acórdão do STJ de 29.09.1999, Acórdãos Doutrinais do STA, n.º 461, p. 762); enquanto que certa doutrina recusa a bondade daquela extensão aplicativa (Luís Miguel Monteiro, "Regime...", cit., p. 512; Alexandra Marques Sequeira, cit., p. 155; António José Sarmento Oliveira, cit., p. 205).»

13. Efetivamente, o sobredito regime normativo é insuscetível de automática aplicação analógica às sociedades por quotas.

Aliás, nalgumas situações, ele é mesmo inaplicável, uma vez que neste domínio as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções de gerente, melhor, de sócio-gerente e de trabalhador subordinado, como tem julgado este Supremo Tribunal (v.g., Acs. de 29.09.1999, Proc. n.º 98S364, e de 30.09.2004, Proc. n.º 03S2053).

Na verdade, nas palavras de Raul Ventura, citado no primeiro destes arestos:

«Na prática portuguesa existem numerosas pequenas sociedades por quotas em que o sócio-gerente exerce funções que não competem aos gerentes: exemplos típicos são o do gerente que vende ao balcão ou trabalha na oficina, ou "está encarregado de ordenhar as vacas" […].

[…]

[O]ra parece que nestes casos […] faltaria o vínculo de subordinação do trabalhador, que não poderá estar subordinado a si mesmo, na veste de gerente.

[…]

Inegável é que o vínculo laboral, com a respetiva subordinação se estabelece entre a sociedade-pessoa jurídica e o trabalhador: os gerentes não são a entidade patronal, mas sim órgãos desta. Ora, uma sociedade por quotas pode ter mais do que um gerente. No caso da pluralidade de gerentes haverá [poderá haver] quem, representando organicamente a sociedade, exprima as ordens, instruções, fiscalização características do lado ativo da subordinação de um gerente-trabalhador […].

No […] campo dos princípios, o obstáculo da subordinação não […] parece intransponível […].

Por outro lado, não pode alegar-se impossibilidade absoluta do exercício da autoridade patronal. Nas sociedades por quotas a assembleia pode alterar essa situação por duas maneiras; ou destituindo o gerente e elegendo outro (aliás, bastará eleger mais um) que despeça o trabalhador […]; ou dando ao gerente-trabalhador instruções vinculativas (artigo 259º C.S.C.) - […].

Admitida a cumulação das duas espécies de funções, passa-se a outra ordem de problemas, agora a prova da existência do contrato de trabalho subordinado […].

Na falta de expressas declarações negociais, nomeadamente provadas por escrito, haverá que recorrer a todas as circunstâncias do caso. Assim, pode ser decisivo que o contrato de trabalho seja anterior à designação como gerente, pois não é de presumir que o trabalhador - que continua a prestar o mesmo trabalho - queira, por causa daquela designação, precedida normalmente da aquisição de uma quota na sociedade, perder a sua antiga qualidade».

Quanto às circunstâncias a atender em cada caso concreto, o mesmo acórdão destaca os aspetos respeitantes:

“– À anterioridade, ou não do contrato de trabalho face à aquisição da qualidade de sócio-gerente;

– À retribuição auferida, procurando surpreender alterações significativas ou dualidade de retribuições;

– À natureza das funções concretamente exercidas, antes e depois da ascensão à gerência, designadamente em vista a apurar se existe exercício de funções tipicamente de gerência e se há nítida separação de atividades;

– À composição da gerência, designadamente ao número de sócios-gerentes e às respetivas quotas;

– À existência de sócios maioritários com autoridade e domínio sobre os restantes;

– À dependência, hierárquica e funcional, dos sócios-gerentes que desempenham tarefas não tipicamente de gerência, relativamente a estas atividades.”

14. Igualmente esclarecedor sobre o assunto é o referido pelo Ac. do STJ de 30.09.2004, no qual se lê a dado passo:

“[…]

Na hipótese de se tratar do sócio-gerente de uma sociedade por quotas, embora seja por via de regra difícil detetar a existência de subordinação jurídica, atendendo às funções que o gerente societário desempenha, este contrato de trabalho será plenamente válido e eficaz, pois que inexiste impedimento legal à coexistência do exercício da gerência neste tipo de sociedades com a execução de um contrato individual de trabalho subordinado.”

15. Pedro Maia, em estudo recente7, também sustenta a existência de razões para não aplicar, nos seus termos estritos”, “o regime extremo a que o legislador sujeitou os administradores das sociedades anónimas” aos gerentes das sociedades por quotas, em virtude de o modelo do tipo societário ser muito diferente, prevenindo, porém, que no plano sistemático não pode desconsiderar-se, pura e simplesmente, esse corpo normativo8.

16. Recentemente – e sem prejuízo das já aludidas situações em que “as realidades práticas podem reclamar a admissibilidade da acumulação das funções (…) de sócio-gerente e de trabalhador subordinado” –, decidiu o supradito Ac. de 23.11.2023 do STJ (Proc. n.° 2529/21.8T8MTS.P1.S1) que a nomeação de trabalhador subordinado como gerente da sociedade implica a suspensão do contrato de trabalho e não a sua extinção (por confusão ou por caducidade), ponderando, designadamente, que “seria dogmática e sistematicamente incompreensível – e com implicações práticas materialmente injustas – que o contrato de trabalho se suspendesse estando em causa uma sociedade anónima e, incoerentemente, se aplicasse às sociedades por quotas a solução (mais) extrema da sua extinção”.

c) – Quanto ao caso sub judice:

17. In casu, é indiscutível que a A. – após a constituição da sociedade R. – deixou de exercer funções como trabalhadora subordinada.

Mas, reconhecida pela Relação a transmissão do estabelecimento de BB para a R., não se vê que dos factos provados resulte qualquer “corte” ou “hiato” – ou qualquer outra circunstância – que obste à transferência para esta sociedade do contrato de trabalho da autora, como impõe o art. 285.º, nº 1, do CT, norma que estabelece esta consequência em caso de transmissão de estabelecimento “por qualquer título”.

Não obstante – uma vez que, conforme já exposto, a nomeação de trabalhador subordinado como gerente da sociedade implica em regra a suspensão do contrato de trabalho –, não pode deixar de considerar-se que o vínculo contratual se suspendeu quanto aos seus efeitos, desde o momento da sua transferência.

Para além das razões de ordem dogmática que a suportam, esta solução também é a mais justa, pois não se alcança qualquer fundamento de ordem material para distinguir a situação dos autos de outra, hipotética, em tudo idêntica, embora com os acontecimentos localizados no âmbito de uma mesma pessoa coletiva (caso em que, indiscutivelmente, nos termos antes expostos, a nomeação do trabalhador subordinado como gerente da sociedade nunca implicaria a extinção do contrato de trabalho).

18. Aqui chegados, assente que o estabelecimento de BB se transmitiu para a R., bem como que se transferiu para esta o contrato de trabalho que até aí vinculava a Autora àquele, impõe-se decidir se o contrato foi resolvido com justa causa.

Neste âmbito, constata-se que foi em 06.07.2018 que a autora comunicou à R., por carta registada com AR, a renúncia à gerência (ponto 12 dos factos provados), sendo que a renúncia à gerência determina o termo da suspensão do contrato de trabalho (cfr. citado Ac. do STJ de 23.11.2023).

Mais resulta da factualidade assente que foi apenas no dia anterior (05.07.2018) que que a autora remeteu carta registada à ré, comunicando a resolução do contrato de trabalho, invocando justa causa (ponto 16 dos factos provados). Para tanto, alega factos que teriam tido lugar durante a suspensão do contrato de trabalho e que, por isso, não parece que possam relevar neste âmbito.

Todavia, uma vez que o art. 679.º, do CPC, exclui do julgamento da revista a “regra da substituição do tribunal recorrido”, consagrada no art. 665.º, do mesmo diploma, relativamente ao julgamento da apelação, o processo terá de ser remetido ao TRG para conhecimento de tal matéria.


IV.


19. Em face do exposto, concedendo a revista, acorda-se em:

a. Revogar o acórdão recorrido e, alterando-o nessa parte, declara-se que, aquando da transmissão para a ré do estabelecimento de BB, também se transferiu para aquela o contrato de trabalho que até aí vinculava este último à autora;

b. Remeter os autos à Relação, para apreciação das questões que ficaram por prejudicadas pela solução dada ao litígio, designadamente se o contrato foi resolvido com justa causa.

Custas pela parte vencida a final.

Lisboa, 25.09.2024

Mário Belo Morgado, Relator

José Eduardo Sapateiro

Albertina Pereira

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1. O tribunal deve conhecer de todas as questões suscitadas nas conclusões das alegações apresentadas pelo recorrente, excetuadas as que venham a ficar prejudicadas pela solução, entretanto dada a outra(s) [cfr. arts. 608.º, 663.º, n.º 2, e 679º, CPC], questões (a resolver) que, como é sabido, não se confundem nem compreendem o dever de responder a todos os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, os quais nem vinculam o tribunal, como decorre do disposto no art. 5.º, n.º 3, do mesmo diploma.↩︎

2. Ponto aditado pelo TRG.↩︎

3. Ponto aditado pelo TRG.↩︎

4. Proc. n.º 2529/21.8T8MTS.P1.S1.↩︎

5. Acórdão n.º 774/2019, de 17.12.2019, Proc. n.º 276/2019, D.R., n.º 18/2020, Série I, de 27.01.2020.↩︎

6. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎

7. O vínculo laboral e a prestação de serviços à sociedade por gerentes e administradores, in Sociedades Comerciais – A Constituição de Sociedade Comercial como Meio para a Criação do Próprio Emprego, coordenação de Maria de Fátima Ribeiro, Almedina, Coimbra, 2023, pp. 43 e ss.↩︎

8. Todos os sublinhados e destaques são nossos.↩︎