Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JSTJ00036627 | ||
Relator: | FERREIRA DE ALMEIDA | ||
Descritores: | AMBIENTE INTERESSES DIFUSOS ACÇÃO POPULAR PROCEDIMENTOS CAUTELARES | ||
Nº do Documento: | SJ199904140010902 | ||
Data do Acordão: | 04/14/1999 | ||
Votação: | MAIORIA COM 1 VOT VENC | ||
Referência de Publicação: | BMJ N486 ANO1999 PAG252 | ||
Tribunal Recurso: | T REL LISBOA | ||
Processo no Tribunal Recurso: | 2789/98 | ||
Data: | 07/02/1998 | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | AGRAVO. | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO. | ||
Área Temática: | DIR AMB. PROC CIV - PROCED CAUT. | ||
Legislação Nacional: | CONST97 ARTIGO 52 N3 ARTIGO 53 ARTIGO 59 N1 C ARTIGO 61 N1 ARTIGO 62 N1. L 83/95 DE 1995/08/31 ARTIGO 2. CPC95 ARTIGO 2 N2 ARTIGO 381 N1 ARTIGO 387 N2 ARTIGO 392. | ||
Sumário : | I - A Lei 83/95, de 31 de Agosto, que regula o direito de acção popular destinada a prevenir ou a fazer cessar as infracções contra a saúde pública e contra a prevenção do ambiente e qualidade de vida conferido pelo n. 3 do artigo 52 da Constituição a todos, pessoalmente ou através de associações, não contempla quaisquer procedimentos cautelares especiais. Daí que hajam de ser utilizados os procedimentos comuns, em consequência do princípio da adequação entre o direito e a acção destinada a fazê-lo reconhecer - artigo 2, n. 2, do C.P.Civil. II - Pretendendo-se com a providência tutelar interesses difusos ligados ao ambiente e qualidade de vida, não podem os requerentes aspirar a uma tutela egoísta e exclusiva das suas situações jurídicas individuais, uma vez que os interesses a tutelar se perfilam como pertença genérica da comunidade em que se inserem. III - Só em casos limite de grave e intolerável degradação do ambiente e da qualidade de vida, devidamente comprovados, e sem prescindir do sentimento dominante na comunidade social, será de admitir a exercitação de providências de carácter preventivo e repressivo com custos sociais exorbitantes. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam no Supremo Tribunal de Justiça: 1. A, B e outros requereram providência cautelar não especificada contra "C", "D", "E", "F", "G", "H", "I", "J", "L", "M", "N", e "O", pedindo que seja ordenado às requeridas que se abstenham de utilizar a antiga estação de recolha de eléctricos do Arco do Cego, em Lisboa, para aí desenvolverem a sua actividade comercial e de nela depositarem autocarros bem como produtos combustíveis ou similares. Alegam, em suma, que a actividade que as requeridas iriam desenvolver naquele terminal do Arco de Cego provocaria uma degradação ambiental e na qualidade de vida dos requerentes que têm, por isso, todo o interesse e todo o direito de a ela se oporem. 3. A providência cautelar acabou por ser indeferida na 1ª instância, e no agravo entretanto interposto foi proferido acórdão que confirmou aquela decisão de indeferimento. 4. De novo inconformados, os A.A. agravaram para este Tribunal, concluindo as suas alegações pela forma seguinte: 1º) o litígio dos autos envolve os moradores da zona do Arco do Cego e as empresas rodoviárias, ora recorridas, que pretendem utilizar a antiga estação de recolha de carros eléctricos da Carris, situada na mesma zona, e como terminal de carreiras "expresso"; 2º) os agravantes pretendem defender os seus interesses difusos referentes ao ambiente, saúde e qualidade de vida contra aquela utilização do terminal para carreiras "expresso"; e isto porque esta utilização, com a poluição de todo o nível que lhe está associada, afectará aqueles direitos dos moradores da zona do Arco do Cego; 3º) há, pois, um conflito entre os direitos destes moradores e o interesses das requeridas em melhorarem a sua exploração comercial já que os transportes que efectuam constituem actos tipicamente comerciais (artº366 do Cód. Comercial); 4º) neste conflito, os direitos em confronto são desiguais já que os dos agravantes são direitos que se conexionam com a sua personalidade moral, enquanto os das requeridas se conexionam com a sua actividade económica lucrativa; 5º) daí que se devesse ter dado prevalência aos direitos e interesses dos agravantes nos termos do art. 335º nº2 do C. Civil; ao não fazê-lo o acórdão recorrido violou o disposto no art. 66º nº1 da Constituição. 6º) não há qualquer conflito de direitos e interesses entre os moradores da zona do Arco do Cego e os moradores da Av. Casal Ribeiro onde se encontrava o terminal daquelas empresas - recorridas, até porque esta providência cautelar não se dirige sequer contra os moradores da zona da Av. Casal Ribeiro que até nem são parte nestes autos; 7º) mas mesmo que esse conflito existisse, há que considerar que a zona do Arco do Cego é uma zona habitacional por excelência ao contrário da Av. Casal Ribeiro que, como é público e notório, tem uma ocupação predominantemente do terciário; 8º) daí que a lesão do ambiente e da qualidade de vida dos moradores seja mais intensa no Arco do Cego do que na Av. Casal Ribeiro "zona despovoada em termos habitacionais" o que confere prevalência aos interesses e direitos dos agravantes, moradores do Arco do Cego; 9º) os interesses dos utentes do terminal rodoviário de "expressos" também não tem grande relevo já que esses utentes são-no esporadicamente; 10º) o mesmo se passa com os interesses dos 38 trabalhadores do terminal da Av. Casal Ribeiro já que não são esses interesses que, aqui, se debatem e estão em causa; 11º) a transferência do terminal rodoviário da Casal Ribeiro para a área do Arco do Cego vai provocar uma enorme poluição sonora e atmosférica por força da sobrecarga de autocarros que irão ser depositados no terminal e que circularão nas artérias de toda aquela zona; 12º) é por força disto que irá ser violado o ambiente, a saúde e a qualidade de vida dos moradores do Arco do Cego, a tal ponto que se justifica o deferimento da presente providência; 13º) assim, o acórdão recorrido violou os arts. 1º, 36 nº1, 65º nº1, 66º e 67º nº1 da Constituição da República Portuguesa, o art. 335 do CCIV, e o art. 3 a) da Lei nº 11/87 de 7/4. Pedem a revogação do acórdão recorrido, e o deferimento da providência cautelar nos termos em que esta foi requerida. 5. Contra-alegou tão só a "C" que - defendendo que não é parte substantiva neste conflito - pediu a confirmação do acórdão recorrido quanto a si. 6. Os factos dados como provados, nas instâncias, são os seguintes: a)- a requerida "D" suscitou junto da Câmara Municipal de Lisboa a necessidade de desactivar o seu terminal da Av. Casal Ribeiro em Lisboa; b)- em fins de 1995, a Carris decidiu concentrar a sua frota de "eléctricos" na Estação de Santo Amaro por razões de funcionalidade e economia de exploração, disponibilizando a Estação do Arco do Cego; c)- a C.M.L. propôs então à D que, a título provisório, fosse transferido o terminal para a Estação da Carris do Arco do Cego; d)- a deslocação do terminal para o Arco do Cego implicará um significativo aumento de circulação na zona envolvente; e)- tal aumento de circulação determinará o aumento correspondente de poluição sonora dela emergente; f)- e aumentará significativamente também a poluição atmosférica; g)- a poluição sonora e atmosférica são susceptíveis de afectar a qualidade de vida dos residentes da zona e, em casos clínicos pontuais, afectar-lhes-à também a saúde; h)- a zona do Arco do Cego é fundamentalmente uma área residencial; i)- a zona onde actualmente opera a "D" - Av. Casal Ribeiro - apresenta níveis de poluição atmosférica superiores aos legalmente permitidos; j)- a requerida D, com a mudança, visa melhorar as condições de operacionalidade dos seus serviços; l)- a D recebe no seu terminal da Av. Casal Ribeiro cerca de 150 a 160 autocarros diários, número que sobe significativamente às 6ª feiras e às 2ª feiras e durante a época de Verão; m)- para o terminal do Arco do Cego apenas transitam os autocarros de serviço expresso que actualmente utilizam o terminal da Av. Casal Ribeiro que assim ficará desactivado; n)- no terminal do Arco do Cego está previsto que o acesso se faça por uma das ruas circundantes e a saída pela rua oposta (Av. Duque de Ávila) através do corredor próprio a implantar no espaço do próprio terminal; o)- neste terminal em construção está previsto o parqueamento de 50 viaturas, sensivelmente o triplo das que cabem no terminal da Av. Casal Ribeiro; p)- o actual congestionamento da Av. Casal Ribeiro é agravado pelo esforço dos veículos em fila, em movimentos repetitivos de pára/arranca, para vencer o declive acentuado da via, aumentando a poluição local; q)- e nessa avenida a via é sufocada pelo menor espaço e pela altura das construções existentes, não havendo espaço para estacionamento; r)- tal situação é constante e repercute-se também no trânsito local da Praça de Saldanha e no escoamento das vias circundantes; s)- o terminal do Arco do Cego dispõe de maior espaço, o qual desde há décadas está reservado aos transportes públicos; t)- em 1995 o Conselho de Administração da Carris, pela razão referida em b), decidiu passar a utilizar apenas uma parte da Estação do Arco do Cego; u)- continuando ali apenas a fazer o abastecimento de combustível e a recolher alguns autocarros, tendo aí mantido as funções de apoio logístico para o pessoal tripulante; v)- e pretende continuar a utilizar a Estação eventualmente com mais intensidade no quadro de uma possível instalação de uma rede de carros eléctricos modernos na cidade de Lisboa; x)- por isso, a utilização, por si acordada com a C.M.L., pela rede expressos da D, seria limitada a 5 anos; z)- as carreiras efectuadas pela C não são de longo curso nem de marcha rápida; aa)- a C continua, no âmbito do acordo referido em x), a exercer no locado a actividade da recolha de eléctricos e autocarros, seu abastecimento e manutenção; bb)- a estação do Arco do Cego está marginada por quatro arruamentos e nela é possível dispor de uma porta de entrada e outra de saída, em arruamentos distintos. 7. Nos termos do nº3 do artº 52º da CRP é conferido a todos, pessoalmente ou através de associações, o direito de acção popular destinada a prevenir ou a fazer cessar as infracções contra a saúde pública e contra a preservação do ambiente e da qualidade de vida. Tal acção foi regulamentada pela L 83/95 de 31/8, a qual, no seu artº 2º, confere titularidade procedimental a quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos. Não contempla essa Lei quaisquer procedimentos cautelares especiais, déficit que já lhe tem valido algumas críticas ( conf., v.g., o Dr. J.E. Figueiredo Dias, in "Tutela Ambiental e Contencioso Administrativo" - Studia Juridica - nº 29 - BFDC, pág. 312.), pelo que haveria que utilizar o procedimento cautelar comum regulado no artº 381º a 392º do CPC, " ex-vi " do nº 2 do artº 2º do mesmo diploma - princípio da adequação entre o direito e a acção destinada a fazê-lo reconhecer em juízo - como aliás bem fizeram as instâncias. Vejamos porém se se encontram ou não preenchidos, para o acolhimento favorável da providência, o requisito positivo do nº 1 do artº 381º e o requisito negativo do nº 2 do artº 387º desse Código. Movemo-nos no âmbito de relações jurídicas de carácter multipolar ou poligonal, nas quais não relevam interesses meramente genéricos ou difusos de ordem ambiental ou de qualidade de vida, mas também e sobretudo interesses concretos e diferenciados, quer de natureza pública atinentes a um correcto planeamento de transportes e a uma equilibrada ordenação e gestão urbanística, quer de natureza sócio-económica relativos à circulação de pessoas e bens, à actividade de livre empresa e à propriedade privada, à estabilidade do emprego dos trabalhadores e sua prestação em condições de saúde e segurança, direitos e interesses esses com idêntica dignidade constitucional - conf. artº s 53º, 59º nº 1 al. c), 61 º nº 1 e 62º nº1 da CRP. Pretende-se, com a presente providência, tutelar interesses difusos ligados ao ambiente e qualidade de vida alegadamente degradados pela actuação das empresas requeridas. Ora, os particulares requerentes, agindo como uma espécie de "ministério público especial", jamais poderiam aspirar a uma tutela egoísta e exclusiva das suas situações jurídicas individiuais, uma vez que os interesses a tutelar se perfilam como pertença genérica da comunidade citadina em que se inserem. Não vem, de resto, suficientemente demonstrada a especial qualificação dos interesses dos requerentes - ora agravantes - merecedora de uma tutela especial diferenciada da dos restantes munícipes. Falar-se tão-simplesmente em "moradores da zona do Arco do Cego", é demasiado vago para se aquilatar, de modo minimamente seguro, do particular ónus ou dos especiais custos em termos ambientais dos ora requerentes relativamente aos demais residentes ou utilizadores do local. É sabido existirem hoje meios técnicos dotados de fiabilidade para medição dos níveis de poluição sonora e da qualidade do ar; ora, da prova perfunctória inserta nos presentes autos não resulta, também com um mínimo de certeza e credibilidade, qualquer ultrapassagem significativa, atentatória dos níveis médios exigíveis e toleráveis, emergentes da transferência do terminal de camionagem para o local ora em utilização pelas empresas concessionárias requeridas e ora agravadas. E não só para essa zona específica, como também para a comunidade citadina em geral em que tal zona se integra. Torna-se mister não olvidar que tal transferência- aliás de carácter provisório e transitório ( por um período máximo de 5 anos ) - se destinou precisamente a aliviar a "pressão ambiental" negativa incidente sobre o primitivo local sito na Av. Casal Ribeiro, localização essa reconhecidamente não recomendável em termos de concentração poluidora e de acessibilidade viária. E que tal transferência foi operada com base em acto de licenciamento camarário só impugnável perante os tribunais administrativos, a qual subsistirá, por isso, na ordem jurídica enquanto não for objecto de anulação por decisão transitada desses tribunais. Surge assim como meramente assertórica a afirmação de que a sobredita implantação da estação rodoviária vai necessariamente determinar um relevante agravamento do ambiente e da qualidade de vida em termos merecedores de tutela jurídica preventiva imediata; isto é, não se mostra suficientemente fundado nos autos o receio de grave lesão invocado pelos autores e a sua difícil reparabilidade - artºs 381º nº 1 e 387º nº 1 do CPC. E o hipotético benefício resultante da eventual proibição do actual exercício da actividade das requeridas e ora agravadas no referido local, seria muito provavelmente excedido pelos prejuízos daí advenientes para as mesmas em resultado da paralisia ou da sensível diminuição da sua actividade transportadora, com o seu inerente cortejo de efeitos negativos. E não só para as requeridas, como também - e perversamente - para o próprio ambiente e qualidade da vida comunitária citadina pois que, também muito provavelmente, e à míngua de outro local actualmente apropriado, outro recurso talvez não restasse ao município senão fazer regressar o terminal de "expressos" à R. Casal Ribeiro, onde a "pressão ambiental"- como já se deixou dito - seria reconhecidamente mais acentuada. No fundo, tudo leva a crer que a transferência de local ora posto em crise haja claramente obedecido a uma necessidade de distribuição, minimização e repartição dos custos sociais emergentes do acesso rodoviário à grande urbe citadina, dando assim prevalência ao interesse geral ou colectivo em detrimento dos interesses particulares, v.g de ordem "bairrista". Neste domínio da preservação do ambiente e qualidade de vida, naturalmente recolhedor de gerais simpatias, o recurso a medidas cautelares e preventivas congéneres deve ser devidamente ponderado e sopesado, e não banalizado ao sabor de quaisquer preocupações de natureza "fundamentalista", sob pena de o seu uso indiscriminado poder revelar-se estimulante da actividade económica e da gestão urbanística e até lesiva de outros "direitos e deveres económicos e sociais" constitucionalmente consagrados. Só em casos-limite de grave e intolerável degradação do ambiente e da qualidade de vida, devidamente comprovados - sem prescindir é claro do sentimento dominante na comunidade social - será de admitir a exercitação de providências de carácter preventivo e repressivo com custos sociais de carácter exorbitante. Será difícil - para não dizer impossível - conceber que qualquer transferência de local ou mesmo a criação "ex-novo" de um novo local para terminal rodoviário na periferia citadina não surtisse um qualquer impacto negativo em termos ambientais; também aí os residentes vizinhos poderiam invocar a sua indisposição para suportar a alteração do seu anterior habitat, até então poupado a tais efeitos negativos !... Seja como for, não vem demonstrado, com um mínimo de consistência, que a implantação transitória no Arco do Cego da sobredita estação de camionagem seja determinante de um " risco anormal de vizinhança " merecedor do decretamento da presente providência. Seria, de resto, sempre vaga e aleatória a fixação do perímetro a arvorar como "área atingida e/ou a proteger", por referência ao epicentro da presuntiva fonte poluidora. Para além de não virem suficientemente indiciados os requisitos da gravidade da lesão e da dificuldade da respectiva reparação - artº 381º nº 1 - tudo aponta, por outro lado, para que o prejuízo para os requeridos resultantes do decretamento da providência exceda consideravelmente o dano que com ela se pretende evitar ou prevenir - artº387º nº 2, ambas as disposições do CPC; custos económicos e sociais de exploração para as 12 empresas ora agravadas e seus trabalhadores e também para os utentes diariamente em demanda da capital. Não se mostram pois no caso "sub-specie" preenchidos os requisitos do "fumus boni juris" nem do "periculum in mora", para além de que a drástica decisão de abstenção de utilização da estação rodoviária pelas agravadas seria abertamente violadora do princípio constitucional estruturante da proporcionalidade, na suas vertentes "princípio da adequação" - salvaguarda de outros direitos ou bens constitucionalmente protegidos - e "princípio da proporcionalidade em sentido estrito" - consideração dos meios restritivos "na justa medida" relativamente aos fins a obter - conf., quanto a estes conceitos, G. Canotilho e V. Moreira in "Constituição da República Portuguesa Anotada", 3ª ed. pág. 152. Bem andaram pois as instâncias, ao indeferirem a providência cautelar "antecipatória " sob análise. 8. Em face do exposto, decidem : - negar provimento ao agravo; - confirmar, em consequência, o acórdão recorrido. Custas pelos requerentes-agravantes em partes iguais. Lisboa, 14 de Abril de 1999. Ferreira de Almeida, Moura Cruz, Noronha Nascimento. (Vencido nos seguintes termos: 1) Exigir em processo cautelar a mediação da poluição ambiental por meios técnicos formais é eliminar o efeito útil da providência e transpor para ela os meios exigentes de prova da acção definitiva. Aliás mesmo em acções definitivas, a descrição de matéria fáctica feita de maneira similar à desta providência - sem exames técnicos - foi considerada suficiente e bastante (cfr. Ac. S.T.J. - Bol. 477 , p. 406) para a procedência do pedido. Não há prova de qualquer licenciamento camarário; há, sim, indícios vagos da violação do P.D.M. de Lisboa. Mas para além disso nenhum licenciamento administrativo tem o condão de legalizar a ofensa a direitos básicos de personalidade conforme jurisprudência deste Supremo (cfr. Bol. 477, 406; 450, 403; 448, 334) sob pena de a definição do direito ficar confiada à opção de qualquer agente administrativo; e nenhuma providência cautelar cível tem os limites exigidos da suspensão de eficácia do acto administrativo sob pena de não servir para quase nada. 2) Nesta sequência defiriria integralmente a providência, excepto quanto à Carris, nos termos que se seguem. 3) Estamos perante uma providência para defesa de interesses difusos, finalmente consagrados no nosso ordenamento jurídico a partir do artigo 26-A do novo Código de Processo Civil e da Lei n. 83/95 de 31 de Agosto (nomeadamente dos seus artigos 1, 2 e 3). Trata-se, no fundo, da superação há muito esperada - e sempre adiada - da teoria subjectivista da relação jurídica que reconduzia todo o conflito social a uma inter-acção entre dois sujeitos jurídicos situados na parte oposta de uma friccionada relação jurídica; a aceitação do conceito de "interesses difusos" e até de "interesses colectivos" mais não é senão a admissão, por parte do legislador, de que o conflito social nem sempre nos aparece atomizado em termos da relação subjectiva inter-individual. De qualquer modo, a questão da legitimidade dos requerentes não é questionada. Daí que seja altura de perguntar: há efectivamente violação dos interesses dos moradores da zona do Arco Cego com a transferência do terminal rodoviário, ou essa violação inexiste de todo ou, mesmo a existir, não é relevante? A nossa resposta é manifestamente positiva: os requerentes têm toda a razão. As decisões das instâncias puseram o acento tónico no conflito de interesses entre os requerentes (moradores no Arco do Cego) e os outros moradores (os da área da Av. Casal Ribeiro) que têm sofrido os efeitos ambientais nocivos do terminal aí localizado e agora transferido. Simplesmente, tal conflito não existe porque não há que comparar as duas situações tal como os agravantes sublinham. Uma violação ambiental (ou de qualidade de vida) não se supera nem se elimina com outra violação ambiental que atinja outros cidadãos a menos que se esteja no domínio daqueles factos restritos em que a resolução de um problema social implica custos a uma certa e dada comunidade. Daí que o conflito de interesses e direitos não tenha, aqui, qualquer aplicação a nosso ver. 4) O ambiente é a disciplina que estuda e regula a conexão entre os seres vivos e o ambiente físico e natural em que se integram; e a violentação sistemática dessa inserção dos seres no meio físico conduziu à consciencialização dos perigos que espreitam o Homem e o planeta a ponto de se tentar fixar um conjunto de regras destinadas a salvaguardá-los. Hoje, não se trata apenas de preservar espécies (maxime, animais) em perigo; trata-se também de perscrutar - para além da poeira imediata do curto prazo - quais serão os problemas com que o ser humano se irá defrontar se a predação ambiental persistir. Sabe-se quais são os principais factores de predação ambiental: o crescimento demográfico mundial a um ritmo quase geométrico (pensa-se que a população mundial ascenderá a 7,5 - 9,5 biliões por volta de 2025 e estabilizará em meados do século XXI a menos que a sida provoque os efeitos de destruição maciça), a eliminação das florestas tropicais húmidas, a industrialização dos países sub-desenvolvidos e o dióxido de carbono dos países desenvolvidos, este último o mais corrosivo poluente ambiental (os Estados-Unidos têm, aqui, a parte de leão). Perifericamente, outros factores associam-se para a violentação ambiental; factores que se localizam, muitas vezes, nas grandes metrópoles urbanas (como seja, o monóxido de carbono lançado pelos veículos automóveis), a ponto de, hoje, os historiadores dizerem que - salvo raras excepções - as megacidades que, antigamente, eram sinónimo de esplendor e riqueza, hoje começam a ser sinónimo de degradação ambiental e exclusão social. A destruição da camada do ozono e o efeito de estufa são bem o exemplo do jogo de dominó ambiental que podemos estar a engendrar: é previsível que haja uma subida generalizada do nível das águas dos mares com efeitos devastadores (há países que estarão a elaborar estudos de como fazer face a isso, como os Estados-Unidos e a Holanda; há países que sofrerão efeitos catastróficos como o Egipto, Bangladesh e Moçambique), é previsível que a alteração climática produza modificações estruturais na própria produção de alimentos essenciais a países de intensa densidade demográfica (como o arroz nos países orientais). É no conjunto das preocupações deste género que se enquadram as leis de defesa ambiental e que várias Constituições (nomeadamente a portuguesa) inserem disposições que visam a defesa e a preservação do ambiente, da saúde e da qualidade de vida dos seres humanos. Neste particular, podemos distinguir dois tipos de situações diferentes: num deles, as leis de defesa ambiental definem regras sobre a matéria, desligadas dos seus reflexos directos e imediatos para com os cidadãos (o cidadão individual beneficia indirectamente delas); o outro, essas leis prevêem violações de direitos subjectivos do cidadão como consequência directa das agressões ambientais. 5) É no contexto desta preocupação ambiental que os transportes urbanos têm que ser analisados. Estamos, aqui, no âmbito daquelas normas que não protegem direitos subjectivos "directos", mas que estabelecem prescrições de onde emana a protecção indirecta daqueles. A poluição rodoviária nas grandes cidades é, hoje, um dos maiores problemas ambientais. Daí que em diversas cidades europeias se estabeleçam restrições à circulação automóvel, nomeadamente em várias das suas zonas, ou haja a preocupação de evitar a entrada dos transportes colectivos privados no perímetro da cidade, terminando aqueles a sua circulação na periferia das urbes, ou haja a substituição de meios de transporte colectivos poluentes por não poluentes (ao contrário do que sucede em Portugal que terminou com uma tradição que vinha do século passado, vários países europeus mantêm os terminais dos transportes ferroviários - agora não poluentes - em pleno centro da cidade; e resolvem de forma exemplar a interligação entre o caminho de ferro e o avião, como sucede, entre outros, em Francforte - sobre o Reno - que dispõe do maior aeroporto europeu). É perante este conjunto complexo de questões urbanísticas cruzadas com a defesa ambiental que modernamente se impõe cada vez mais, que nos surge, com surpresa, a transferência do terminal rodoviário de carreiras "expresso" para o Arco do Cego; surpresa tanto maior se for verdade (coisa que para a presente decisão não tem senão um relevo de pormenor ) que o Plano Director de Lisboa prevê a instalação daqueles terminais rodoviários em zonas afastadas do centro citadino e de áreas residenciais (como, aliás, a lógica impunha). Em boa verdade, no caso presente não há qualquer conflito de interesses entre os residentes da Av. Casal Ribeiro e os do Arco do Cego. Se não faz qualquer sentido que se mantenha um terminal rodoviário na Av. Casal Ribeiro, com centenas de largadas de camionetas, com um frenesim constante de chegadas e partidas, com o encharcamento continuo do trânsito citadino bloqueado por força da circulação de camionetas, provocando um ónus permanente sobre os residentes da área, também não faz qualquer sentido que o mesmo terminal seja transferido para o Arco do Cego ou para qualquer outra área residencial de Lisboa; ademais com a agravante - quanto ao Arco do Cego - de o peso de carreiras "expresso" rodoviárias ser profundamente aumentado já que, como vem provado, esse terminal tem uma capacidade de acomodação muito maior que o da Av. Casal Ribeiro. A colisão de direitos a que alude o artigo 335 do Código Civil faz sentido quando há, efectivamente, direitos em colisão. No caso, os interesses difusos dos moradores da Casal Ribeiro não colidem com os do Arco do Cego ou com os dos moradores de qualquer outra zona habitacional de Lisboa; no caso, os residentes da Casal Ribeiro têm direito a que não sejam agredidos ambientalmente e na sua qualidade de vida como quaisquer moradores das várias zonas ou bairros Lisboetas. Defender a existência de uma colisão de direitos neste pleito, implica demonstrar o indemonstrável: implica comparar a situação ambiental e de qualidade de vida dos moradores de todas as áreas residenciais de Lisboa para se concluir, a final, que os que merecem menos tutela são os do Arco do Cego. é que, continuando nessa linha de raciocínio, bem se pode concluir que os da Graça merecem menos tutela que os do Arco do Cego (devendo, por isso, o terminal ir para lá), que os de Belém menos tutela que os da Graça (devendo o terminal ir para lá) e assim sucessivamente. O cerne desta providência cautelar consiste tão-só em saber se há ou não violação dos interesses difusos dos agravantes com o terminal de camionagem: se há, a providência será deferida e os requeridos terão que encontrar outro local para o terminal; se não há, a providência será indeferida porque não tem razão de ser. 6) A prova indiciária trazida aos autos é inequívoca. O terminal rodoviário instalado no Arco do cego vai ter efeitos devastadores em toda a área circundante: há um aumento de circulação com o correspondente aumento de poluição sonora e atmosférica; esta dupla poluição pode afectar a qualidade de vida, e a saúde dos moradores; no terminal da Av. Casal Ribeiro há uma média diária de 150 autocarros diários (número que sobe no Verão e aos fins de semana); o terminal do Arco do Cego alberga o parqueamento de 50 viaturas, ou seja, o triplo da capacidade do terminal de Casal Ribeiro. O que este leque de factos nos dá é a dimensão da violação de direitos básicos de personalidade e cidadania que os moradores do Arco do Cego vão sentir na pele. Qualidade de vida, saúde, direito ao repouso, qualidade ambiental, tudo isto será atingido; e nessa medida a defesa que os agravantes pediram judicialmente, ao abrigo do artigo 1 da Lei n. 83/95, tem toda a razão de ser. Justifica-se, por conseguinte, o deferimento da providência requerida (artigos 64 e 66 da Constituição da República Portuguesa). 7) Todo o raciocínio anterior é aplicável, mutatis mutandis, quer à situação dos utentes do terminal quer à situação dos trabalhadores das empresas rodoviárias. A melhoria da prestação de serviços aos utentes não se pode fazer à custa do sacrifício dos interesses difusos de quem reside na zona do terminal; e a melhoria das condições de trabalho de quem é assalariado das empresas de camionagem não é algo que colida ou se sobreponha aos direitos dos moradores da zona. Quer uma, quer outra coisa passam à margem das questões ambientais que estão na base da presente providência. No mesmo cumprimento de onda, temos a própria situação das empresas de camionagem. Neste particular - e sem ser necessário longos considerandos - há que salientar a inteira razão dos agravantes nas suas alegações: o interesse das empresas é nuclearmente económico mesmo quando pretendem melhorar os seus serviços, e, nessa medida, não pode prevalecer sobre os direitos ambientais dos recorrentes nos termos exactos do artigo 335 n. 2 do Código Civil. Para finalizar, há que referir um derradeiro pormenor: a Carris é alheia ao presente conflito que se reporta tão-só às empresas concessionárias de carreiras "expresso" (como emerge, aliás, dos autos) e, por isso, a providência peticionada não a pode atingir. |