Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:03120/19.4BEBJA
Data do Acordão:11/06/2024
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NUNO BASTOS
Descritores:CONTRA-ORDENAÇÃO
RECURSO
DECISÃO
REJEIÇÃO DO RECURSO
DECISÃO INTERLOCUTÓRIA
Sumário:As decisões interlocutórias das autoridades administrativas que indeferem a inquirição das testemunhas arroladas pelo arguido e a apensação de outros processos não são autonomamente impugnáveis nos termos do n.º 1 do artigo 55.º do RGCO.
Nº Convencional:JSTA000P32846
Nº do Documento:SA22024110603120/19
Recorrente:A..., LDA
Recorrido 1:AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA (E OUTROS)
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo:

1. A... lda., com o número único de matrícula e identificação fiscal ...80 e sede social no ..., n.º ... – ....º, ... ..., recorreu da decisão do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja que rejeitou o recurso da decisão de indeferimento da apensação e da prova testemunhal que havia requerido no processo de contraordenação n.º ...10, instaurado pelo Serviço de Finanças de Estremoz.

Com o requerimento de interposição do recurso apresentou a respetiva motivação.

Tendo sido convidado para tal, formulou as seguintes conclusões: «(…)

I. I. O presente recurso visa atacar o douto despacho que rejeitou o recurso;

II. O Tribunal “a quo” decidiu mal, quanto à não admissão do recurso interposto do despacho interlocutório proferido pelo Chefe do Serviço de Finanças de Estremoz que indeferiu, por inadmissível a apensação dos vários processos de contra ordenação referentes à mesma infracção;

III. E que indeferiu também o requerimento para a realização de diligência de prova apresentadas, em sede de defesa;

IV. Entendeu o Tribunal “à quo”, que o indeferimento do Chefe do Serviço de Finanças de Estremoz em relação ao requerimento para a realização de diligência de prova apresentadas em sede de defesa, não constitui um acto imediatamente lesivo para a arguida;

V. O mesmo se diga em relação ao indeferimento pelo Chefe do Serviço de Finanças de Estremoz, da requerida apensação dos vários processos, sem qualquer fundamentação;

VI. Com o devido respeito, por um lado, entende a ora Recorrente que tais indeferimentos, constituem actos imediatamente lesivos para a arguida que fica objectivamente impedida de exercer a sua defesa, no seu momento processual próprio;

VII. Por outro lado, constituem actos imediatamente lesivos para a arguida que fica objectivamente obrigada a reagir em separado, a cada um dos processos, quando poderia reagir a um só processo se tivesse sido admitida a requerida apensação;

VIII. Por outro lado ainda, a douta sentença que rejeita o recurso interlocutório está eivada de falta de fundamentação;

IX. “O dever de fundamentação das decisões judiciais não se cumpre com a indicação de uma qualquer razão, mas com o enunciado das razões que seguindo um caminho de lógica jurídica apontem para uma verdadeira outorga da tutela jurisdicional efectiva.

Os Juízes existem nos tribunais para dirimirem conflitos em conformidade com a lei, com obrigação de efectuar todo o esforço intelectual possível para que não seja denegada a tutela jurisdicional efectiva. Quando não aceitam uma pretensão que lhe é presente têm que ter o particular cuidado de explicar o raciocínio lógico que seguiram para a parte ficar ciente da sua falta de razão, sendo que a autoridade das decisões judiciais, assente na lei deve emergir delas próprias, do seu conteúdo, da sã utilização dos conceitos jurídicos e não ser imposta por forças ou interesses exteriores à relação material controvertida em que o Juiz não tem qualquer interesse próprio, sendo um terceiro imparcial chamado a dirimir o conflito em conformidade com a lei.” Texto constante da decisão sumária do Supremo Tribunal Administrativo de 23.03.2017, tirado do Recurso de Contra Ordenação n.º 539/16-30, subscrito pelo signatário;

X. A Meritíssima juíza “à quo” ao decidir sobre a rejeição do recurso, enuncia em síntese, a sua inadmissibilidade com o facto de o “thema decidendum” versar matéria que se destina apenas a preparar a decisão final de arquivamento ou aplicação da coima e por conseguinte vedada a estas decisões recorridas;

XI. Limita-se, pois, a enunciar a letra da lei, sem explicitar o raciocínio lógico que seguiu para determinar a rejeição do recurso e com isso, a Recorrente entender e compreender, a falta de razão que lhe assiste;

XII. Para depois enunciar a sua douta posição: “A decisão de indeferir a apensação ou ainda a realização de uma diligência de prova, por si só, não contendem com os direitos do arguido pois pode nem sequer chegar a haver qualquer condenação, ou, mesmo em caso de condenação, o valor da coima pode ser o valor mínimo possível. Por isso, uma decisão interlocutória dessa natureza não é imediatamente lesiva do arguido.”;

XIII. A necessidade de fundamentação das decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente, tem consagração no Art.º 205º, n.º 1 da CRP;

XIV. Pese embora o Art.º 64º n.º 4 do RGCO estabeleça que “deve o juiz fundamentar a sua decisão”, cremos ser razoavelmente pacífico que a sentença proferida em recurso de impugnação judicial deve obedecer, por força do Art.º 41º do mesmo Regime aos requisitos enunciados no Art.º 374º do CPP, designadamente ao seu n.º 2, onde se estabelece que na elaboração da sentença, ao relatório segue-se a fundamentação, “…que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.”;

XV. Revisitemos pois o tema anteriormente suscitado, fazendo-se lembrar que quanto a este ponto em concreto, faltou à Meritíssima juiz “à quo” ter o especial cuidado de explicar o raciocínio lógico que seguiu para que a Recorrente ficasse ciente da inadmissibilidade do consequentemente da sua falta de razão; seu recurso e

XVI. Face ao exposto, o douto despacho sob Recurso é nulo, por falta de fundamentação, nos termos conjugados do Art.º 64º, n.º 4 do RGCO com o Art.º 374º, n.º 2 e 379º, n.º ..., alínea a), ambos do CPP, aplicável por força do Art.º 41º, n.º1 daquele Regime;».

Pediu fosse admitido o recurso jurisdicional, fosse revogado o douto despacho que rejeitou o recurso da decisão administrativa e fosse o mesmo substituído por outro que o admitisse e determinasse a apreciação do seu mérito.

A Mm.ª Juiz lavrou douto despacho de admissão do recurso, a que atribuiu subida imediata nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

A Digna Magistrada do M.º P.º junto do Tribunal Administrativo e Fiscal de Beja, apresentou contra-alegações, que rematou com as seguintes conclusões:

1.º - A arguida vem recorrer da douta decisão que rejeitou o recurso interlocutório que interpusera, nos termos do art. 55º do RGCO, contra o indeferimento da apensação e da prova testemunhal que tinha requerido no processo de contraordenação.

2.º - Como questões prévias, entendemos que o presente recurso não deve ser superiormente admitido por quatro ordens de razão:

A - A – A interposição do presente recurso não é admissível uma vez que tal não o permite o disposto nos nºs 1 e 3 do art. 55º do RGCO, aplicável por força da al. b) do art. 3º do RGIT, que determinam, relativamente às decisões, despachos e demais medidas das autoridades administrativas, tomadas no processo contraordenacional, que estas são suscetíveis de impugnação judicial, porém, o tribunal de recurso competente decidirá em última instância.

B - B - Até à data, a arguida não efetuou o pagamento de qualquer taxa de justiça, nomeadamente pela interposição do presente recurso.

C - C - Ainda que na mera hipótese fosse admissível o presente recurso, resulta da leitura das Alegações de recurso que a arguida não apresenta conclusões, nos termos do disposto no nº 3 do art. 59º do RGCO.

D - D - Assim não sendo entendido e em face da douta decisão de rejeição da impugnação judicial, a arguida poderia ter apresentado reclamação da mesma para o Presidente do Tribunal a que o recurso se dirige, em conformidade com o estatuído no art. 405º do Código de Processo Penal (CPP) “ex vi” arts. al. b) do art. 3º do RGIT e nº 4 do art. 74º do RGCO, no entanto, resulta inadmissível a sua convolação em reclamação, por ter já decorrido o respetivo prazo.

3.º - A arguida entende que o Tribunal “a quo” decidiu mal quanto à não admissão do recurso que interpusera do despacho do Chefe de Finanças que não determinou a apensação dos processos de contraordenação e indeferiu a realização de diligências de prova apresentadas em sede de exercício do direito de defesa, uma vez que este despacho é nulo por imediatamente lesivo, pois que ofende um direito consagrado na Constituição da República Portuguesa (CRP).

4.º - E vem imputar à douta decisão de rejeição do recurso a falta de fundamentação e a sua consequente nulidade, pedindo, a final, a sua revogação e que seja substituída por outra que o admita e determine a apreciação do seu mérito.

5.º - Conforme bem resulta da leitura da douta decisão, foi efetuada a análise ao disposto no art. 55º do RGCO e aos factos concretos, resultando claríssimos os fundamentos sobre os quais aquela assenta, de forma perfeitamente compreensível, com raciocínio linear e capaz de serem compreendidas as razões que a determinaram, de tal modo que a arguida a compreendeu e até a atacou judicialmente, por não concordar com a mesma, não se verificando a invocada falta de fundamentação.

6.º - De todo o modo, verifica-se a inutilidade/impossibilidade superveniente da lide, bem como qualquer interesse em agir por parte da arguida/recorrente - em 14/10/2019 foi proferida decisão de aplicação da coima (€ 105,00, acrescido de custas), em 30/10/2019 a arguida efetuou o pagamento voluntário da coima e o processo contraordenacional foi extinto em 31/10/2019, pelo que se encontra extinto o procedimento por contraordenação pelo pagamento voluntário (al. c) do art. 61º do RGIT)

7.º - Termos em que, defendemos a inadmissibilidade do presente recurso, com a manutenção da douta decisão recorrida que não admitiu o recurso e a entender-se ser conhecido o presente recurso, a decisão colocada em crise não padece, a nosso ver, de qualquer vício, nem se mostram violados quaisquer preceitos legais, devendo, por isso, ser mantida, com a consequente improcedência do mesmo.».

Recebidos os autos neste tribunal, foram os mesmos com vista à Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta, que emitiu douto parecer.

Com dispensa dos vistos legais, cumpre decidir.


***

2. E cumpre, antes de mais, apreciar as questões prévias.

A primeira, traduz-se em saber se o recurso é admissível.

A Arguida interpôs o recurso (jurisdicional) de decisão (judicial) que rejeitou o recurso de decisão (administrativa) invocando o artigo 73.º, n.º 2, do Regime Geral do Ilícito de Mera Ordenação Social introduzido pelo Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outubro (RGCO).

Mas o recurso não pode ser admitido ao abrigo desta norma, porque só pode aceitar-se a coberto desse dispositivo legal o recurso da sentença. E o despacho recorrido não é uma sentença.

Não é sequer um despacho judicial pelo qual seja decidido o caso e a que alude o artigo 64.º do RGCO.

É um despacho em que o juiz decide não apreciar o caso. Isto é: decide não decidir.

Fica a questão de saber se o recurso pode ser admitido a coberto do artigo 63.º, n.º 2, do RGCO.

Do enquadramento sistemático desta norma deriva que se tem ali em vista o recurso do despacho que não admite o recurso de decisão de aplicação da coima.

E., no caso, o despacho recorrido não incidiu sobre uma decisão de aplicação da coima, mas sobre uma decisão administrativa interlocutória.

Embora seja um ponto duvidoso, entendemos que o recurso de decisão judicial que não admite recurso de decisão administrativa interlocutória com fundamento no facto de não ser imediatamente lesiva deve ser admitido por identidade de razão.

Na essência porque é a mesma a sua razão de ser: assegurar que o mérito das decisões administrativas consideradas lesivas é apreciado por um juiz ou que é sindicada em um grau a decisão que rejeita essa apreciação.

A tal não obsta o n.º 3 do artigo 55.º do RGCO, que tem em vista os casos em que há decisão do recurso de decisão administrativa e não os casos em que o juiz declina essa apreciação.

Com este fundamento, decidimos admitir o recurso.

3. A segunda questão prévia consiste em saber se o recurso não deve ser admitido por não ter sido paga a taxa de justiça com a sua interposição.

A taxa de justiça só é devida nos casos que estão previstos no Regulamento das Custas – n.º 7 do seu artigo 9.º.

Para os processos contraordenacionais rege especialmente o artigo 8.º, n.º 7, do Regulamento das Custas que é devida taxa de justiça pela impugnação das decisões das autoridades administrativas, quando a coima não tenha sido previamente liquidada – n.º 7 do artigo 8.º.

Nos restantes casos, a taxa de justiça é paga a final – n.º 9.

No caso dos autos, não estamos perante a impugnação das decisões das autoridades administrativas e o valor da coima foi pago pela Arguida em 30 de outubro de 2019 (o que foi informado no processo pelo Serviço de Finanças).

Assim, sendo, a taxa de justiça é paga a final, de acordo com a regra geral.

Mesmo que assim não fosse entendido, nunca poderia derivar da falta de autoliquidação da taxa de justiça a rejeição do recurso. A entender que era devida taxa de justiça a pagar com a apresentação das alegações de recurso, o M.º P.º deveria ter promovido a notificação do interessado para a liquidar, porventura com o acréscimo legal.

Assim, não havia, também por aqui, fundamento legal para rejeitar o recurso por não ter sido liquidada taxa de justiça com a interposição do mesmo.

4. A terceira questão prévia é a de saber se o recurso não deve ser admitido por a Arguida não ter apresentado conclusões.

Mas a arguida foi, entretanto, convidada a apresentar as conclusões do recurso, ao que aderiu, pelo que se considera prejudicado o conhecimento desta questão prévia.

5. A quarta questão prévia é a de saber se o meio adequado para reagir contra a decisão que rejeita o recurso da decisão administrativa é a reclamação para o presidente do tribunal para que se recorre.

A esta questão respondemos negativamente. Na essência, porque o RGCO estabelece que é o «recurso» (e não a reclamação) o meio de impugnar as decisões do juiz que rejeita o recurso da decisão da autoridade administrativa.

Acresce que essa reclamação é o meio de impugnação de decisões judiciais que não admitem recursos jurisdicionais. E, no caso, não temos uma decisão que não admite um recurso jurisdicional (mas uma decisão que não admite a impugnação judicial de uma decisão administrativa, que o legislador também designou de recurso).

6. A quinta e última questão prévia é a de saber se se verifica a inutilidade superveniente da lide por a arguida/recorrente ter efetuado o pagamento voluntário da coima (ver a sexta conclusão das contra-alegações do recurso).

Se bem interpretamos, o M.º P.º entende que há inutilidade da lide porque entende também que o procedimento se extinguiu pelo pagamento voluntário e nos termos da alínea c) do artigo 61.º do RGIT.

Mas o procedimento não se extinguiu pelo pagamento voluntário: extinguiu-se pela decisão (administrativa). O pagamento só extinguiria o procedimento se tivesse sido efetuado no seu decurso.

Por outro lado, do facto de se ter extinguido por decisão não deriva a inutilidade deste recurso, porque não se tratou de nenhuma decisão absolutória ou de arquivamento.

Improcede, por isso, também esta questão prévia.

Não existindo outras questões prévias que importe resolver, passemos à análise do mérito do recurso.

7. A decisão recorrida tem o seguinte teor:

«(…)

A sociedade comercial “A..., Lda”, contribuinte fiscal nº ...80, com sede em ..., veio interpor o presente recurso judicial da decisão de indeferimento da apensação e da prova testemunhal que havia requerido no processo de contra-ordenação nº ...10, instaurado pelo Serviço de Finanças de Estremoz.

Consubstancia este um recurso de despacho interlocutório proferido no sobredito processo de contra-ordenação, pedindo, a final, a revogação daquele despacho e a sua substituição por outro que, por um lado, defira a apensação e, por outro lado, admita aquela diligência.

Para tanto, alega que assim não ocorrendo será ofendido o seu direito fundamental à defesa em processo de contra-ordenação.

Vejamos melhor a questão jurídica em apreço, revendo anterior posição já assumida por este Tribunal.

Nos termos do disposto no art. 55º, nº 1 do RGCO “As decisões, despachos e demais medidas tomadas pelas autoridades administrativas no decurso do processo são susceptíveis de impugnação judicial por parte do arguido ou da pessoa contra as quais se dirigem”.

Ressalva, todavia, o nº 2 do mesmo preceito referindo que “O disposto no número anterior não se aplica às medidas que se destinem apenas a preparar a decisão final de arquivamento ou aplicação da coima, não colidindo com os respectivos direitos ou interesses das pessoas.”

Daqui se conclui que o legislador não previu que todas as decisões interlocutórias, tomadas pela autoridade administrativa no decurso do processo de contra-ordenação, sejam impugnáveis, ou recorríveis, de forma autónoma.

É certo que daí não se pode extrair que a sua eventual ilegalidade se torne irrelevante, pois que essa eventual ilegalidade pode consubstanciar contaminação da validade da decisão final. Daí que constituirá fundamento de impugnação judicial desta decisão final. Assim se mostrando assegurada a reação ao vício que a inquina.

Esse é o caso daquelas decisões que se destinem a preparar a decisão final de arquivamento ou de aplicação da coima, como expressamente aquele nº 2 do art. 55º do RGCO. Com efeito, por não afetarem direitos ou interesses do arguido no momento em que são proferidas, são decisões excluídas da possibilidade de impugnação judicial autónoma prevista no nº 1 do mesmo preceito.

Na verdade, no exato momento em que são proferidas não configuram afetação direta e imediata de direitos dos arguidos e podem nunca chegar a trazer qualquer prejuízo para esses direitos uma vez que a decisão final a proferir poderá ser, como a própria norma prevê, de arquivamento.

A decisão de indeferir a apensação ou ainda a realização de uma diligência de prova, por si só, não contende com os direitos do arguido pois pode nem sequer chegar a haver qualquer condenação, ou, mesmo em caso de condenação, o valor da coima pode ser o valor mínimo possível. Por isso, uma decisão interlocutória dessa natureza não é imediatamente lesiva do arguido.

Posto isto, conclui-se, essa decisão não cabe na previsão do art. 55º, nº 1 do RGCO.

Como referem Manuel Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, exemplos de decisões subsumíveis no art. 55º, nº 1 do RGCO são as apreensões - in Contra-Ordenações, anotações ao regime geral, 2.ª edição, 2003, Vislis Editores, pág. 328.

A defesa do arguido contra a eventual ilegalidade dessa decisão, passará, pois, pela impugnação da decisão final que venha a ser proferida no processo de contra-ordenação respetivo, sempre que entenda que esta se mostre corrompida pela ilegalidade que imputa àquela decisão interlocutória, e na medida em que essa própria decisão final seja recorrível, por ter determinado a aplicação ao arguido de uma coima.

Face ao exposto, nos termos do art. 414º, nº 2 do CPP, aplicável subsidiariamente ao processo de contra-ordenação em geral, e este, por sua vez, ao processo de contra-ordenação tributária, conforme arts. 41º do RGCO e 3º, al. b) do RGIT, “O recurso não é admitido quando a decisão não for recorrível…”

Nestes termos, e nos das disposições legais citadas, rejeita-se o presente recurso de contraordenação.

Condena-se a Recorrente nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC (cfr. artigo 8º, nº 7 do RCP).

Registe e notifique.».

8. Tem precedência lógica a questão de saber se a decisão recorrida padece de falta de fundamentação.

A Recorrente entende que sim, porque entende também que a Meritíssima Juiz se limita a enunciar a letra da lei, sem explicitar o raciocínio lógico que seguiu para determinar a rejeição do recurso e em termos que permitissem à Recorrente entender e compreender a falta de razão que lhe assiste (ver a conclusão “XI” do recurso).

E porque é razoavelmente pacífico que a sentença proferida em recurso de contraordenação deve obedecer aos requisitos do artigo 374.º do Código de Processo Penal (ver a sua conclusão “XIV”).

Importa começar por referir que não estamos perante nenhuma sentença nem perante uma decisão sumária do recurso de decisão de aplicação de coima, pelo que as disposições indicadas pela Recorrente não vêm ao caso.

Em todo o caso, o despacho de não aceitação ou de rejeição do recurso também deve ser fundamentado, por ser um ato decisório do juiz. E os atos decisórios que devam ser fundamentados devem especificar os motivos de facto e de direito da decisão respetiva.

Só que a decisão recorrida observa, clara e inequivocamente, os requisitos da fundamentação dos atos decisórios do juiz. Porque convoca a norma do caso, explica como deve ser interpretada e explica porque é que considera que a situação do caso não cabe na sua previsão.

Aliás, as próprias alegações do recurso denunciam que a Recorrente apreendeu claramente o decidido, já que efetuou a análise crítica do seu conteúdo.

É, assim, manifesto, que a decisão recorrida não padece do vício que lhe é imputado.

Pelo que o recurso não merece provimento por aqui.

9. A questão que fica é a de saber se o tribunal de primeira instância incorreu em erro de julgamento ao concluir que as decisões interlocutórias tomadas pela autoridade administrativa e impugnadas nos autos não são imediatamente lesivas.

A esta questão respondemos negativamente. Das decisões administrativas interlocutórias em causa não cabe recurso autónomo precisamente porque não são atos imediatamente lesivos.

De salientar que, na sua transposição para a fase administrativa do processo de aplicação de coimas tributárias, esta norma deve ser conjugada com o artigo 95.º da Lei Geral Tributária, segundo o qual o interessado tem o direito de impugnar ou recorrer de todo o ato lesivo dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos.

Assim sendo, o artigo 55.º do RGCA deve ser interpretado no sentido de que são suscetíveis de impugnação judicial por parte do arguido os atos interlocutórios da administração tributária que devam ser considerados lesivos pela sua natureza ou pela lei.

Serão lesivos por natureza os atos que imponham deveres ou encargos, ónus, sujeições ou sanções, que causem prejuízos ou afetem de forma definitiva as condições do seu exercício, à semelhança do que se prescreve no artigo 160.º do Código do Procedimento Administrativo.

Serão lesivos por determinação legal aqueles em que o próprio legislador prescreva a impugnabilidade autónoma, como sucede como os atos de apreensão de bens – ver o artigo 73.º, n.º 7, do Regime Geral das Infrações Tributárias.

Todos os demais serão considerados não imediatamente lesivos, isto é, atos que, por si só, não colidem com os direitos ou interesses das pessoas, para os efeitos da sua impugnação judicial.

Ora, a decisão da autoridade administrativa que indefere a inquirição das testemunhas arroladas pelo arguido na fase administrativa do denominado processo de aplicação das coimas não deve ser considerada um ato lesivo para os efeitos do artigo 55.º do RGCO porque a inquirição de testemunhas na fase administrativa do processo de contraordenação tributária destina-se a instruir o procedimento, isto é, destina-se a preparar a decisão final.

Que assim é confirma-o o facto de vigorar no processo de contraordenações tributárias o princípio do inquisitório, cabendo ao dirigente do serviço decidir quais são os atos de instrução que relevam para a descoberta da verdade.

Assim, este tipo de decisões integra o núcleo dos atos que não são autonomamente impugnáveis, logo por força da primeira parte do n.º 2 daquele artigo 55.º.

E, de qualquer modo, estes atos nunca poderiam ser considerados lesivos por natureza. Fundamentalmente, porque não restringem o direito do interessado a que as testemunhas sejam ouvidas se, em impugnação judicial da decisão final, se vier a concluir que a sua audição era necessária ou poderia revestir de utilidade para a decisão.

Assim, não tem razão a Recorrente quando alega que «[a] falta do exercício do direito de defesa (…) não é suprida na fase de recurso ou na fase de julgamento [e] tem um momento próprio e único para ser exercido».

Não só a indicação dos meios de prova pelo arguido na fase a que alude o artigo 71.º do Regime Geral das Infrações Tributárias já representa o exercício do seu direito de defesa, como também a constatação, em fase judicial, da essencialidade dessa prova em fase administrativa afeta a legalidade da própria decisão administrativa que a dispensou, à luz do princípio do inquisitório. Sendo, por isso, perfeitamente viável o seu suprimento através da impugnação da decisão final.

O mesmo raciocínio pode ser transposto para o requerimento da apensação, sobretudo porque se tem entendido que apensação também pode ocorrer em fase judicial a tempo de viabilizar uma decisão final unitária, tudo em vista da melhor realização da justiça e da economia de meios.

Não se verificam, por isso, os pressupostos de parte a Recorrente para concluir que a decisão final é ilegal.

Em sentido equivalente ou convergente se decidiu nos acórdãos de 3 de junho de 2020 (processo n.º 0134/19.8BECTB), de 9 de novembro de 2022 (processo n.º 0457/18.3BEBJA), de 7 de dezembro de 2022 (processo n.º 018/20.7BEBJA)


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10. Conclusão

As decisões interlocutórias das autoridades administrativas que indeferem a inquirição das testemunhas arroladas pelo arguido e a apensação de outros processos não são autonomamente impugnáveis nos termos do n.º 1 do artigo 55.º do RGCO;


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11. Decisão

Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Tribunal em negar provimento ao recurso.

Custas pela Recorrente.

Lisboa, 6 de novembro de 2024. – Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos (relator) – Anabela Ferreira Alves e Russo – José Gomes Correia.