Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:0666/11.6BEBRG 01391/17
Data do Acordão:12/11/2019
Tribunal:2 SECÇÃO
Relator:NEVES LEITÃO
Descritores:REVISÃO DA MATÉRIA TRIBUTÁVEL
PERITOS INDEPENDENTES
PRINCÍPIO DA GRATUITIDADE DO PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO
Sumário:A onerosidade da intervenção do perito independente requerida pelo sujeito passivo no procedimento de revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos, cujo regime de remuneração é regulado pela Portaria 78/2001, 8 fevereiro (mediante expressa autorização legislativa concedida pelo art.º 93º n.º 4 LGT), não afronta o princípio da gratuitidade do procedimento administrativo (art. 11º nº1 CPA aprovado pelo DL nº 442/91, 15 novembro).
Nº Convencional:JSTA000P25284
Nº do Documento:SA2201912110666/11
Data de Entrada:12/06/2017
Recorrente:AT - AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA
Recorrido 1:A............ E OUTRO
Votação:UNANIMIDADE
Aditamento:
Texto Integral: 1. RELATÓRIO
1.1. A Fazenda Pública interpôs recurso para o Supremo Tribunal Administrativo da decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga que julgou procedente a impugnação judicial deduzida por A……………….. e B………………. contra liquidação adicional de IRS (ano 2006) e juros compensatórios, no montante global de € 288.567,33.

1.2. A recorrente apresentou alegações que sintetizou com a formulação das seguintes conclusões:

1. O presente recurso tem por objeto a douta sentença recorrida, proferida no processo supra referenciado, que julgou totalmente procedente, por provada, a impugnação judicial e, consequentemente, anulou a liquidação adicional de IRS aqui em causa, relativa ao ano de 2006, e respetivos juros compensatórios, no montante total de € 288.567,33, com todas as legais consequências.
2. Douta sentença essa que, a nosso ver, e salvaguardado o devido respeito por melhor entendimento, padece de erro de julgamento, em matéria de direito, e de concomitante fundamentação deficiente, escassa, incoerente, ilógica e errada.
3. Sendo a questão a resolver no presente processo a eventual ocorrência de "Preterição de formalidade essencial no procedimento de revisão por falta de participação de perito independente atenta a falta de meios económicos para pagar os honorários", não podemos concordar com a douta sentença aqui posta em crise, nomeadamente na parte em que dá por verificada tal "Preterição de formalidade essencial" por considerar que o nº 2 da Portaria 78/2001, de 08.02, colide com o princípio da gratuitidade do procedimento administrativo, entendido em termos absolutos, e consignado, nomeadamente, no nº 8 do artigo 91° da LGT.
4. A questão da alegada colisão entre o nº 2 da Portaria 78/2001, de 08.02, e o princípio da gratuitidade do procedimento administrativo, entendido em termos absolutos, e consignado, nomeadamente, no nº 8 do artigo 91° da LGT, já foi objeto de análise por esse Venerando Tribunal, nomeadamente no douto Acórdão de 2005.12.14, proferido no processo nº 01467/03, disponível em www.dgsi.pt. cujo sumário reza o seguinte: "I - A remuneração do perito independente e a responsabilidade pelo respectivo pagamento, fixadas na Portaria 78/2001, mediante expressa autorização legislativa concedida pelo art.° 93° n.º 4 da LGT, não afrontam o princípio da gratuitidade do procedimento administrativo e não padecem de qualquer outra ilegalidade.".
5. Verifica-se, pois, que o invocado princípio da gratuitidade do procedimento administrativo, consignado no nº 8 do artigo 91° da LGT e, ao tempo, no artigo 11°, nº 1 do CPA, aprovado pelo D.L nº 442/91, de 15.11 (e atualmente previsto no artigo 15° do novo CPA, aprovado pelo D.L nº 4/2015, de 07.01) não tem validade absoluta, antes comportando exceções estabelecidas em leis especiais (como é o caso do nº 2 da Portaria 78/2001, de 08.02).
6. Ademais, na sentença aqui posta em crise, após se ter consignado "Assim, entende-se que a nomeação de perito independente, quando solicitada é uma formalidade essencial, o mesmo não ocorrendo com a sua efectiva participação ou emissão de parecer", entendeu-se, "a este propósito", chamar à colação o Acórdão do STA de 2017.05.03, proferido no processo 01062/16, disponível em www.dgsi.pt. "em virtude da similitude com a situação em apreço".
7. A extrair-se alguma conclusão, para o caso concreto, do douto Acórdão do STA, de 2017.05.03, proferido no processo 01062/16, disponível em www.dgsi.pt., a mesma será a de que, a entender-se que a nomeação do perito independente, quando solicitada no âmbito de um procedimento de revisão da matéria tributável, é uma formalidade essencial, tal nomeação pressupõe a montante, como condição "sine qua non" , o pagamento por parte do contribuinte da remuneração a que alude o nº 4 do artigo 93° da LGT e os números 1, 2 e 3 da Portaria 78/2001, de 08.02 (como sucedeu, aliás, no caso aí analisado).
8. Assim sendo, e aqui chegados, afigura-se-nos ter ficado demonstrado que a douta sentença aqui em apreço, ao concluir como concluiu, incorreu em erro de julgamento em matéria de direito, dado ter efetuado uma errónea aplicação ao caso concreto das normas legais ínsitas no nº 4 do artigo 93° da LGT, nos números 1, 2 e 3 da Portaria 78/2001, de 08.02, no nº 8 do artigo 91° da LGT e no artigo 11° do CPA, aprovado pelo D.L nº 442/91, de 15.11, vigente ao tempo.
9. Erro de julgamento esse que deverá determinar, salvo melhor entendimento, a revogação da sentença aqui posta em crise, com todas as legais consequências, o que, respeitosamente, se requer.
10. Atendendo a que o valor da presente causa se encontra fixado em € 288.567,33 (logo superior a € 275.000,00), requer-se a V. Exas. que seja a Fazenda Pública dispensada do pagamento do remanescente da taxa de justiça, nos termos do disposto no n.º 7 do artigo 6.° do Regulamento das Custas Processuais, por se nos afigurarem verificados, no caso concreto, os respetivos requisitos legais.
Termos em que, com o sempre mui douto suprimento de V. Exas, deverá o presente recurso ser julgado procedente, anulando-se a douta decisão em apreço, com todas as legais consequências.

1.3. Não foram apresentadas contra-alegações.

1.4. O Ministério Público emitiu parecer no sentido da procedência do recurso e da devolução consequente do processo ao tribunal recorrido para apreciação das questões prejudicadas pela solução da questão reapreciada no recurso (fls 340/343)

1.5. Após os vistos dos juízes conselheiros adjuntos cumpre apreciar e decidir em conferência.

2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DE FACTO
A sentença recorrida julgou provados os seguintes factos:

1.A Administração Fiscal procedeu à liquidação adicional de IRS acrescido de juros, do ano de 2006, no montante de € 269.480,56 e € 19.086,77, ambos com data limite de pagamento em 05-01-2011, o que perfaz a quantia de € 288.567,33 (fls. 21 dos autos);

2.A liquidação adicional decorreu, de uma ação de inspeção tributária tendo por o exercício pelos impugnantes da atividade de comércio a retalho de artigos em segunda mão - objetos de arte - cujo projeto de relatório foi remetido pela Direção de Finanças aos mandatários constituídos pelos em 18.03.2009 (fls 22 e 23 do PA apenso aos autos)

3.Em sede de audiência prévia, os impugnantes, solicitaram que fosse obtida informação complementar de um dos bancos cujos depósitos, dos impugnantes haviam sido analisados pela IT, a fim de propor a revisão da matéria a revisão da matéria coletável (fls. 171 do PA);

4.Através do ofício n.° 5231 datado de 09.04.2009, o serviço de Finanças, indeferiu o pedido de prorrogação de prazo de audiência prévia e ainda de pedido de identificação dos titulares de contas (fls. 173 do PA);

5.Através do ofício n.° 5529, datado de 16.04.2009, foram enviados aos impugnantes o relatório de Inspeção tributária, e da fixação do IRS, dos anos de 2005 e 2006, no valor de 549 282,86€ e 102 666,03€ de IRS e do IVA e informado, ainda, que contra a fixação poderiam solicitar a revisão da matéria tributável, nos termos do art. 91.º da LGT; (conforme fls. 210 do PA apenso aos autos);

6.O relatório final foi remetido por carta registada com A/R (RC20937265PT) assinado no dia 28.04.2009, o qual foi assinado por C………….., filha dos impugnantes, em 30 de Novembro de 2009 – fls 207 do PA apenso aos autos

7.Em 30-11-2009, foi solicitado o pedido de revisão da matéria tributável e do IVA apurado e solicitado o seguinte pedido: “(...) requerem a nomeação de Perito Independente, em conformidade com o disposto no artº 91º 4 LGT, desde já adiantando que não dispõem de meios para pagamento da respectiva remuneração” - fls. 178 e seguintes e do PA);

8. Em 03-12-2009 foi proferido despacho sobre o requerido em 7) do seguinte teor:
“ Confirmo.
Considerando que a notificação do relatório final se processou em conformidade com o artº 19º da Lei Geral Tributária e 39º do CPPT, constata-se que o pedido agora apresentado é manifestamente extemporâneo”

9. A notificação do relatório final, subsequente ao projecto de relatório, e o despacho que, por revisão oficiosa, fixou o volume de negócios presumindo e o imposto em falta relativo aos exercícios de 2005 e 2006, não foi remetida pela Administração Fiscal aos mandatários da impugnante;

10. A Administração Fiscal sabia e fez constar do projecto de relatório que os impugnantes estavam ausentes do país e tinham constituído seus mandatários perante a própria AF os advogados oportunamente identificados com escritório em Braga. (fls. 7 do Projecto do Relatório);

11. Por ofício n.° 607914, datado de 19-05-2010 foi notificado o relatório final subsequente ao projeto de relatório, e o despacho que, por revisão oficiosa, fixou o volume de negócios presumindo e o imposto em falta relativo aos exercícios de 2005 e 2006, aos mandatários dos impugnantes conforme determinado por sentença proferida no Procº nº 1773/09BEBRG do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga – fls 363 do PA apenso aos autos.

12. Em 21-06-2010 foi solicitado pelos impugnantes a revisão da matéria tributável e do IVA apurado e solicitado o seguinte pedido: “(…) requerem a nomeação de Perito Independente, em conformidade com o disposto no artº 91º 4 LGT, desde já adiantando que não dispõem de meios para pagamento da respectiva remuneração” - fls.400 e seguintes e do PA);

13. Por ofício n.º 609506, datado de 28-06-2010 foram notificados os mandatários dos impugnantes com o seguinte teor:
“(..)
Fica V.Exª por este meio notificado de que no prazo de 10 dias, deverá efectuar o pagamento da importância de €3.000,00, já acrescida do IVA à taxa em vigor, mediante guias a solicitar nesta Direcção (…) sob pena de o procedimento prosseguir sem o aludido Perito Independente.” - fls 408 do PA apenso aos autos;

14. Os Impugnantes responderam ao ofício referido em 13) que se transcreve em parte:
“(...)
5. Por isso, para que não sejam negativamente discriminados, por impedidos de recorrer a um meio de defesa – a intervenção na Revisão de um perito independente – por falta de capacidade económica, os SPs pretendem que a Fazenda assuma o encargo da respectiva nomeação”

15. Em 02-07-2010 foi proferida a informação que se transcreve em parte:
“(...)
Concluindo, não tendo sido efectuado tal pagamento, deverá o procedimento seguir sem o requerido perito independente, cominação, de resto, lhe havia sido notificada.”

16. Em 05-06-2010 foi proferido despacho que se transcreve em parte:
“(...) Concordo e designo o dia 8 de Julho de 2010 (...)”

17. Em 17-05-2011 foi proferida sentença de insolvência pessoal dos aqui impugnantes que correu termos no Tribunal Judicial de Caminha, Secção Única, com o nº 134/11.6 TBCMN – fls 213 dos autos;

2.2. DE DIREITO
2.2.1. Questão decidenda: gratuitidade / onerosidade da intervenção do perito independente no procedimento de revisão da matéria tributável (arts.91º e 92º LGT)

2.2.2. Apreciação jurídica
O princípio da gratuitidade do procedimento administrativo não tem validade absoluta, admitindo as excepções previstas em leis especiais que imponham o pagamento de taxas ou despesas efectuadas pela Administração (art.11º nº1 CPA aprovado pelo DL nº 442/91,15 novembro)
Este princípio, afirmado sem reserva no CPA revogado, assume uma formulação menos peremptória no actual CPA (aprovado pelo DL nº 4/2015, 7 janeiro) onde se prescreve: o procedimento administrativo é tendencialmente gratuito, na medida em que leis especiais não imponham o pagamento de taxas por despesas, encargos ou outros custos suportados pela administração (art.15º nº1 CPA)
O princípio não é especificamente afirmado no procedimento de revisão da matéria tributável fixada por métodos indirectos, o qual apenas prescreve que o sujeito passivo não está sujeito a qualquer encargo em caso de indeferimento do pedido, sem prejuízo do agravamento da colecta reclamada, que será exigida adicionalmente a título de custas, mas com carácter sancionatório, em situações específicas (art.91º nºs 8/10 LGT)
A remuneração do perito independente no procedimento de revisão da matéria tributável é regulada por Portaria do Ministro das Finanças (art.93º nº4 LGT; Portaria nº 78/2001,8 fevereiro)
Expressamente, a Portaria regulatória comina com a falta de nomeação a inexistência de depósito da remuneração do perito independente quando a sua intervenção for requerida pelo contribuinte (Portaria nº 2)
Correspondendo ao preço da prestação de um serviço de avaliação com características de elevada tecnicidade, aquela remuneração é distinta da gratuidade do procedimento, cujo objectivo é evitar que a repercussão para o sujeito passivo dos custos associados à sua instauração e tramitação constitua uma restrição intolerável ao exercício do direito de revisão da matéria tributável (art.91º nº1 LGT)
Confirmando aquela distinção, a intervenção do perito independente requerida pela Fazenda Pública está igualmente sujeita ao pagamento de remuneração, paga pela rúbrica 02.03.10C-Outros serviços- da dotação orçamental da DGCI (Portaria nº4)
Com relevância para a solução da questão decidenda afirmou-se no acórdão STA-SCT 14.12.2005 processo nº 1467/03
(…)são questões distintas as da gratuitidade do procedimento e a remuneração do perito independente
A circunstância de aquele procedimento ser, como a lei recomenda, gratuito –cfr. arts. 11º n.º 1 do CPA e art.º 91º n.º 8 da LGT – não contende ou colide com a legal consagração do direito a uma remuneração a atribuir ao perito independente. E não afronta ou viola aquele princípio a circunstância de a responsabilidade pelo pagamento desta remuneração estar legalmente acometida àquele que requereu a sua intervenção no procedimento, a saber quer o contribuinte, quer a Fazenda Pública – cfr. n.ºs 2, 4 e 5 da Portaria n.º 78/2001.
Toda esta matéria, desde a composição da Comissão até à utilização do sorteio como forma de determinação dos peritos independentes que terão intervenção nos procedimentos tributários têm em vista assegurar a sua independência em relação à administração tributária e ao sujeito passivo, por forma a garantir a isenção e imparcialidade da sua actuação.
A participação do perito independente constitui excepção à regra da intervenção no procedimento dos peritos indicados pela contribuinte e pela administração tributária (art.92º nº1 LGT); a sua onerosidade deve ser apreciada num plano de igualdade com a participação onerosa do perito independente requerida pela Fazenda Pública e com a indicação do perito pelo sujeito passivo, cuja prestação de serviço terá que ser remunerada por quem o indica
Finalmente, importa sublinhar que o sujeito passivo não comprovou a sua insuficiência económica nos termos da lei sobre o apoio judiciário, nem a sua eventual concessão, apenas permitindo a dispensa total ou parcial das taxas ou despesas efectuadas pela administração, abrangeria a dispensa do pagamento da remuneração do perito independente (art.11º nº2 CPA aprovado pelo DL nº 442/91,15 novembro)
Neste contexto a ausência de nomeação do perito independente indicado pelo sujeito passivo no procedimento de revisão da matéria tributável, por falta de pagamento da remuneração correspondente, não inquina a sua validade nem o acto de fixação da matéria tributável fixado no seu termo e o consequente acto de liquidação do imposto

3.DECISÃO
Acordam na Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo em conceder provimento ao recurso e,em consequência:
-revogar a sentença impugnada;
-ordenar a devolução do processo ao tribunal recorrido para apreciação das questões prejudicadas pela solução da questão apreciada no recurso
Custas pela recorrida

Lisboa, 11 Dezembro de 2019. - José Manuel de Carvalho Neves Leitão (relator) - Nuno Filipe Morgado Teixeira Bastos - José da Ascensão Nunes Lopes.