Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo | |
| Processo: | 01085/18.9BELRS |
| Data do Acordão: | 10/02/2024 |
| Tribunal: | 2 SECÇÃO |
| Relator: | GUSTAVO LOPES COURINHA |
| Descritores: | LIVRE CIRCULAÇÃO DE CAPITAIS DIREITO COMUNITÁRIO DIVIDENDOS |
| Sumário: | Por força do regime constante do artigo 51.º, n.º 1 do CIRC (na versão anterior a 2014), conjugado com a proibição de discriminação dimanada do Acordo de Amizade Portugal-Brasil, há tratamento fiscal menos favorável quando os dividendos auferidos de fonte brasileira por uma sociedade residente em Portugal não se encontram isentos, não sendo objeto de aplicação a Cláusula de Salvaguarda ínsita no artigo 64.º do TFUE. |
| Nº Convencional: | JSTA000P32706 |
| Nº do Documento: | SA22024100201085/18 |
| Recorrente: | AT – AUTORIDADE TRIBUTÁRIA E ADUANEIRA |
| Recorrido 1: | A..., SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA |
| Votação: | UNANIMIDADE |
| Aditamento: | |
| Texto Integral: | Acordam na Secção do Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo I – RELATÓRIO I.1 – Alegações A FAZENDA PÚBLICA vem recorrer da sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa o qual julgou procedente a impugnação judicial deduzida pela sociedade A..., SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA contra os atos tributários de liquidação de Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Coletivas (IRC), referentes aos períodos de tributação de 2012 e 2013, na parte respeitante à tributação dos lucros distribuídos pela sua subsidiária, a sociedade «B..., S.A.», no valor global de € 7.891.540,47. Apresenta as suas alegações de recurso, formulando as seguintes conclusões a fls. 1291 a 1301 do SITAF. a) Contrariamente ao decidido na sentença, os arts. 57º e 59º do Acordo Brasil não consubstanciam uma renúncia de Portugal à faculdade que lhe é conferida pelo art. 64º do TFUE. b) Quando o CIRC entrou em vigor, em 01/01/1989, já excluía do regime de eliminação da dupla tributação económica, os lucros distribuídos por sociedades que não tivessem sede ou direção efetiva em território português, conforme resultava do seu art. 45º n.º 1, cuja redação, à data da entrada em vigor do CIRC, era a seguinte: “Para efeitos da determinação do lucro tributável será deduzida uma importância correspondente a 95% dos rendimentos, incluídos na base tributável, correspondentes a lucros distribuídos por entidades com sede ou direção efetiva em território português sujeitas e não isentas de IRC ou sujeitas ao imposto referido no art. 6.º, nas quais o SP detenha uma participação no capital não inferior a 25%, e desde que esta tenha permanecido na sua titularidade durante dois anos consecutivos”. c) In casu estamos perante um investimento direto, e, portanto, mantém-se, ainda, a possibilidade de ser aplicada a derrogação à livre circulação de capitais, prevista no art. 64º n.º 1 do TFUE. d) A sentença incorre em erro de julgamento ao fazer uma interpretação conjunta do previsto no art. 57º com o art. 59º, ambos do Acordo Brasil, já que o primeiro, garante o “tratamento não discriminatório” no âmbito da “Cooperação no domínio dos investimentos”, enquanto o segundo, trata a “Cooperação no domínio financeiro e fiscal”, que é o que está aqui em causa. e) Significa isto que, no domínio fiscal, a livre circulação de capitais, o “princípio da não discriminação em matéria fiscal” (n.º 1 do art. 59º do Acordo Brasil), tem de ser enquadrada dentro dos mecanismos entabulados entre Portugal e o Brasil, que visam evitar a dupla tributação e a evasão fiscal, isto é, como diz a letra da lei, com a “adoção de instrumentos adequados para evitar a dupla tributação e a evasão fiscais” (n.º 2 do art. 59º do Acordo Brasil). f) Esse instrumento adequado para evitar a dupla tributação e a evasão fiscal adotado foi a Convenção entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil Destinada a Evitar a Dupla Tributação e a Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento e o Protocolo anexo, assinados em Brasília, em 16 de maio de 2000, aprovados, para ratificação, pela Resolução da Assembleia da República n.º 33/2001, em 1 de março de 2001, e ratificado pelo Presidente da República, através do Decreto do Presidente da República n.º 27/2001, de 27 de abril. g) Esta interpretação, além de ir de encontro ao estabelecido nos arts. 5º e 2º n.º 2 do Acordo Brasil, obedece aos critérios de interpretação dos tratados internacionais, nomeadamente os previstos no art. 31º n.º 1 e 3 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados. h) A Convenção para evitar a dupla tributação entre Portugal e o Brasil é o único instrumento que pode ser encarado como prática posterior seguida pelos Estados em causa na aplicação dos Tratados, com vista a implementar o Acordo Brasil, e, portanto, a tratar a cooperação no domínio fiscal, visando a não discriminação em matéria fiscal. i) Desta forma é feita uma interpretação de boa fé, porque as partes contratantes do Acordo Brasil adotaram os deveres de conduta entre si estabelecidos contratualmente, com respeito pelos conceitos previstos no Acordo Brasil, e dos objetivos no âmbito da cooperação no domínio fiscal, e ainda dos fins dos instrumentos acordados adotar, que são, exatamente, evitar a dupla tributação e prevenir a evasão fiscal em matéria de impostos sobre o rendimento. j) No art. 23º n.º 2 da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e o Brasil, como método para eliminar as duplas tributações, prevê-se o seguinte: “2- No caso de Portugal, quando uma sociedade residente de Portugal receber dividendos de uma sociedade residente do Brasil sujeita ao imposto federal sobre a renda e não abrangida por qualquer isenção, em que a primeira detenha directamente uma participação não inferior a 25%, Portugal permitirá a dedução de 95% desses dividendos incluídos na sua base tributável, desde que a referida participação tenha sido detida durante os dois anos precedentes, ou desde a data da constituição da sociedade brasileira, se tiver ocorrido posteriormente, mas em qualquer dos casos unicamente se a participação tiver sido detida ininterruptamente durante esse período.”. k) A redação dada ao art. 23º n.º 2 da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e o Brasil é similar à redação do ex art. 45º do CIRC (atual art. 51º), que vigorou, de forma ininterrupta na ordem jurídica portuguesa desde 01/01/89, e, portanto, desde data anterior a 31/12/1993. l) Por consequência, a celebração do Acordo Brasil não significou a exclusão da aplicação do art. 64º n.º 1 do TFUE, porquanto, continuaram a verificar-se as restrições em vigor a 31/12/1993, dado que, sublinha-se, a redação do art. 23º n.º 2 da 2 da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e o Brasil é similar à redação do ex art. 45º do CIRC. m) Ou seja, quer o Acordo Brasil, quer a Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e o Brasil em nada afetaram o quadro jurídico relativo ao tratamento fiscal dos dividendos provenientes do Brasil, enquanto país terceiro, que vigorava em 31/12/1993. n) Assim, a legislação nacional em causa consubstancia uma restrição em vigor em 31/12/1993, podendo, por consequência, o Estado Português invocar o regime previsto no art. 51º do CIRC, porque este não se encontra excluído do regime derrogatório do n.º 1 do art. 64º do TFUE. o) Tendo a sentença decidido em sentido diferente, incorre em erro de julgamento quanto ao enquadramento jurídico da causa, bem como quanto à condenação da Recorrente no pagamento de juros indemnizatórios, e ainda quanto à condenação da Recorrente em custas do processo, devendo, em consequência, ser revogada. p) Afigura-se que, também neste Tribunal Superior deve ser dispensado o pagamento do remanescente da taxa de justiça, na parte que exceda os € 275.000,00, atendendo que a sua conduta da Recorrente não se afigura merecedora de censura, na medida em que pugna neste recurso, de modo fundamentado, pela posição adotada, em conformidade com o direito aplicável, e sem utilizar qualquer meio que possa ser reputado de inútil, desadequado ou dilatório, além de não se afigura que venham a ser apresentados requerimentos ou alegações prolixas. I.2 – Contra-alegações Foram proferidas contra alegações no âmbito da presente instância pela sociedade impugnante, ora recorrida - A..., SOCIEDADE UNIPESSOAL, LDA., com o seguinte quadro conclusivo: A. A única questão controvertida nos presentes autos é saber se a restrição – reconhecida, inclusive, pela AT – à livre circulação de capitais – uma liberdade com caráter erga omnes – que o artigo 51.º (anterior 45.º e depois 46.º) do CIRC encerrava à data dos factos ao permitir a eliminação da dupla tributação económica sobre dividendos distribuídos por entidades residentes em território nacional, mas não sobre os lucros distribuídos por entidades domiciliadas em jurisdições terceiras (e.g., Brasil), se encontrava ou não habilitada pela cláusula de standstill ou de salvaguarda do artigo 64.º, n.º 1, do TFUE. B. A Recorrida sustentou que a questão deveria merecer uma resposta negativa, uma vez que, como decidiu o TJUE no acórdão de 24 de novembro de 2016 no processo C-464/14 (SECIL), citado pela douta sentença recorrida, “89 (…) há que considerar que um Estado-Membro também renuncia à faculdade prevista no artigo 64.º, n.º 1, TFUE quando, sem revogar formalmente a legislação existente, celebra um acordo internacional, como um acordo de associação, que prevê, numa disposição com efeito direto, a liberalização de uma categoria de capitais referida nesse artigo 64.º, n.º 1” (destaque nosso). C. A cláusula com efeito direto ou caráter autoexecutório inserida num instrumento de Direito Internacional Público que implicou a renúncia, pela República Portuguesa, à manutenção de regras restritivas da liberdade fundamental de circulação de capitais entre Estados-Membros e entre Estados-Membros e Estados terceiros consiste, no caso concreto, no artigo 59.º, n.º 1, do aqui designado Acordo Brasil, i.e., o Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, assinado em 22 de abril de 2000 e com entrada em vigor em 5 de setembro de 2001, com a seguinte redação: “Cada Parte Contratante atuará com base no princípio da não discriminação em matéria fiscal relativamente aos nacionais da outra Parte” (destaque nosso). D. A Recorrente AT não contesta, pelo menos de forma expressa, o efeito direto ou caráter self-executing da norma que emana do artigo 59.º, n.º 1, do Acordo Brasil. E. O que a Recorrente AT propugna, embora sem razão, é que a celebração da CDT entre Portugal e o Brasil com uma disposição vocacionada para a eliminação da dupla tributação sobre os dividendos (o artigo 23.º, n.º 2) cuja redação era quase idêntica à da disposição do CIRC que, à data, regulava a mesma matéria (o artigo 45.º, n.º 1, do CIRC, na redação conferida pelo Decreto Lei n.º 123/92, de 2 de julho, que vigorava à data da conclusão da CDT e que só viria a ser alterada pela Lei n.º 30-G/2000, de 29 dezembro), significa que Portugal não terá renunciado à possibilidade que lhe era conferida pelo artigo 64.º, n.º 1, do TFUE de manter as restrições à livre circulação de capitais com o Brasil que envolvessem investimento direto – como era o caso – e se encontrassem em vigor a 31 de dezembro de 1993. F. Ao contrário do que a Recorrente AT defende nas suas alegações, o que o artigo 5.º do Acordo Brasil estipula é tão-somente que a consulta e a cooperação em determinadas áreas, e não a sua própria execução, efetuar-se-ão em conformidade com os respetivos acordos setoriais (e.g., mecanismos de consulta mútua e troca de informações do artigo 26.º da CDT). G. Ora, uma vez que o artigo 59.º, n.º 1, do Acordo Brasil era claro, preciso e incondicional, no sentido de valer por si só, sem a necessidade de medidas internas complementares de adaptação ou execução, a eliminação das discriminações e a liberalização dos movimentos de capital entre os dois países não tinha sequer de constar de legislação ulterior, fosse ela doméstica ou internacional. H. O artigo 59.º, n.º 2, do Acordo Brasil, por seu turno, teve em vista estabelecer um dever para os Estados signatários de estreitarem os “laços de cooperação no domínio fiscal”, mormente para evitar a dupla tributação e a evasão fiscais. I. No entanto, a discriminação fiscal negativa dos rendimentos gerados no Brasil pagos à Recorrida que está em discussão nos autos não foi resultado da ausência de cooperação entre os Estados signatários. Ela decorreu, ao invés, de um ato unilateral da República Portuguesa, que manteve em vigor legislação a dar suporte àquela discriminação, não obstante a obrigação assumida em sentido contrário no Acordo Brasil. J. Não se pode dizer, por isso, que a questão da dupla tributação económica e a discriminação que daí decorria e que deveria ser eliminada por força do acordado entre as partes no artigo 59.º, n.º 1, do Acordo Brasil tinha forçosa ou exclusivamente de ser regulada pela CDT. K. A circunstância de pelo artigo 23.º, n.º 2, da CDT entre Portugal e o Brasil assinada em 16 de maio de 2000, que é ligeiramente posterior ao Acordo Brasil (22 de abril de 2000), se ter consagrado um regime de atenuação – e não de eliminação total – da dupla tributação económica não prejudica a ilegalidade da norma doméstica restritiva da livre circulação de capitais. L. Primeiro, porque constitui jurisprudência uniforme, aqui exemplificada pelo acórdão do TJUE de 25 de fevereiro de 2021 no processo C-403/19 (Société Générale), que “30 (…) embora os Estados-Membros, no âmbito das convenções bilaterais destinadas a evitar a dupla tributação, tenham a liberdade de fixar os critérios de conexão para efeitos da repartição da competência fiscal, essa repartição não lhes permite aplicar medidas contrárias às liberdades de circulação garantidas pelo Tratado FUE. Com efeito, no que se refere ao exercício do seu poder de tributação, eventualmente repartido no âmbito de convenções bilaterais destinadas a evitar a dupla tributação, os Estados-Membros são obrigados a respeitar as regras da União, mais precisamente o princípio da igualdade de tratamento”. M. Segundo, porque, como deixou claro TJUE no despacho de 18 de junho de 2012 no processo C-38/11 (Amorim Energia), citando jurisprudência, “mesmo uma restrição de pequeno impacto ou de menor importância a uma liberdade fundamental é proibida pelo Tratado”. N. Ao não eliminar, mas apenas atenuar, e mediante o preenchimento de condições mais exigentes (e.g., quanto ao nível da participação e período de detenção) do que aquelas que o CIRC previa em 2012 e 2013, a dupla tributação económica, a restrição à livre circulação de capitais em relação aos dividendos oriundos do Brasil subsistiu com a CDT. O. É verdade que aquando da sua introdução, no ano 2000, o regime do artigo 23.º, n.º 2, da CDT entre Portugal e o Brasil estava em perfeita harmonia com o regime vertido no CIRC, o qual, por sua vez, estava alinhado com a chamada Diretiva Mães-Filhas (cf. o preâmbulo do Decreto-Lei n.º 123/92, de 2 de julho, que alterou os n.ºs 1 e 5 do artigo 45.º do CIRC e cuja redação se manteve inalterada até ao ano 2000). P. Uma vez que a restrição a uma liberdade fundamental não é uma situação estanque, mas sim ambulatória, que é suscetível de ser alterada consoante vão sendo introduzidas alterações na lei doméstica, a desconformidade desta com o Direito da União Europeia surgiu posteriormente à celebração da CDT (2000). Q. Esta desconformidade verificou-se a partir do momento em que o artigo 46.º (antigo 45.º), n.º 1, do CIRC foi alterado pela Lei n.º 109-B/2001, de 27 de dezembro, e passou a permitir a eliminação, e já não a simples atenuação, da dupla tributação económica sobre dividendos distribuídos por uma sociedade residente em Portugal que fosse detida em menos de 25% - mais precisamente, 10% - por uma acionista igualmente portuguesa, mas continuou a vedar a aplicação da mesma regra a uma participação social idêntica pelo simples facto de a distribuidora dos dividendos residir no Brasil. R. Este facto, em si mesmo, consubstancia uma restrição à liberdade de circulação de capitais consagrada no artigo 63.º, n.º 1, do TFUE (vide § 32 do acórdão do TJUE de 16 de junho de 2022 no processo C-572/20 (ACC Silicones), § 42 do acórdão do TJUE de 27 de abril de 2023 no processo C-537/20 (L Fund), §27 e 28 do despacho do TJUE de 1 de setembro de 2022 no processo C-67/22 (Pharol), § 63 do acórdão do TJUE de 20 de setembro de 2018 no processo C-685/16 (EV) e § 49 e 50 do citado acórdão do TJUE no processo SECIL, entre muitos outros). S. O que se exige, em todos os momentos, é o reconhecimento do princípio do tratamento nacional aos investimentos realizados por entidades da União Europeia em outros Estados, incluindo, no caso específico da liberdade de circulação de capitais, em Estados terceiros. Esta é uma consequência do seu caráter erga omnes. T. Este princípio do tratamento nacional era observado em 2000, aquando da assinatura do Acordo Brasil e da CDT, porquanto existia uma perfeita harmonia entre o direito doméstico português e o direito europeu, o que se devia ao facto de tanto o primeiro como a CDT replicarem a designada Diretiva Mães-Filhas. U. Mas esta paridade de tratamento entre a pessoa ou entidade que exerce as suas liberdades noutro território (o migrant) e a pessoa ou entidade que permanece no território de residência (o non-migrant) seria rompida, pouco depois, quando o CIRC veio possibilitar a eliminação completa da dupla tributação económica sobre dividendos de fonte doméstica e europeia relativamente a participações sociais inferiores a 25%, o que implicou que a CDT entre Portugal e Brasil, que continuava – e continua até hoje – a estipular um limiar mínimo de participação de 25%, passasse ela própria a consagrar uma restrição à liberdade de circulação de capitais. V. No exercício da sua competência legislativa, os Estados-Membros não estão impedidos de regular a questão da dupla tributação económica nas convenções que celebram, desde que o façam em conformidade com os ditames do Direito da União Europeia. Nenhuma diferença existe, a este nível, entre uma convenção de Direito Internacional Público e um ato legislativo como uma lei ou um decreto-lei (cf. artigo 4.º, n.º 3, do Tratado da União Europeia e, entre outros, o § 38 do acórdão do TJUE de 10 de abril de 2014 no processo C-190/12 (Emerging Markets Series of DFA Investment Trust Company)). W. Uma regra que vale de igual modo para as convenções entre Estados-Membros e para as convenções entre um Estado-Membro e um Estado terceiro, como sublinhou o TJUE, entre outros, nos § 56 a 58 do acórdão de 21 de setembro de 1999 no processo C-307/97 (Saint-Gobain ZN), no § 50 do acórdão de 19 de janeiro de 2006 no processo C-265/04 (Bouanich) e nos § 50 e 51 do acórdão de 16 de outubro de 2008 no processo C-527/06 (Renneberg). X. As convenções integram-se na ordem jurídica interna e obedecem à hierarquia de fontes normativas da ordem constitucional portuguesa, subordinando-se à CRP e também, por força do princípio do primado, ao Direito da União Europeia (cf. artigo 8.º, n.ºs 2 e 4, da CRP e os acórdãos dos Tribunal Constitucional n.º 63/86 (processo n.º 83/85), de 5 de março de 1986, e n.º 711/2020 (processo n.º 173/2020), de 9 de dezembro de 2020). Y. A partir do momento em que a CDT passou a prever regras mais restritivas do que aquelas que a lei doméstica prescrevia para a eliminação – ou melhor, no caso da CDT com o Brasil, mera atenuação – da dupla tributação económica sobre dividendos distribuídos por sociedades brasileiras a sociedades portuguesas, como a Recorrida, ela deu origem a uma restrição à liberdade de circulação de capitais entre Portugal e aquele Estado terceiro que, se não estava presente no momento da celebração da CDT (2000), surgiu a posteriori e se manteve até aos períodos em discussão nos autos (2012 e 2013). Z. Outro dos equívocos da Recorrente AT é a alegação de que o artigo 24.º, n.º 1, da CDT assegura “um igualitário tratamento, e, portanto, não existe à luz daquela um tratamento diferenciado em função do Estado de residência” (cf. ponto 12 das alegações). AA. Em primeiro lugar, não está em causa nos autos a tributação de um nacional português no Brasil, mas sim a tributação que um nacional português sofre no seu próprio Estado de residência (Portugal) em virtude da desconformidade das regras internas com o Direito da União Europeia. BB. Em segundo lugar, no cerne da discriminação aqui em discussão não está a nacionalidade, que é o elemento ou critério central do artigo 24.º, n.º 1, da CDT, mas sim a fonte do rendimento num país terceiro (no caso, Brasil). CC. O artigo 59.º, n.º 1, do Acordo Brasil, ao impor como critério orientador da ação dos Estados signatários a não discriminação em matéria fiscal, foi mais além das discriminações em razão exclusiva da nacionalidade e procurou precaver que Portugal (Estado que tributa) diferenciasse os nacionais portugueses que investem no Brasil (que não beneficiam da exclusão de dupla tributação económica sobre os lucros provenientes do exterior) dos nacionais portugueses que investem em território português ou noutro Estado-Membro (que beneficiam daquela exclusão de dupla tributação). DD. A não discriminação a que se refere o artigo 59.º, n.º 1, do Acordo Brasil obriga a observar a equidade, não na perspetiva mais restrita de tributar de forma igual residentes e não residentes, mas numa lógica mais ampla de neutralidade fiscal, isto é, “o princípio segundo o qual a tributação não deve interferir na escolha entre várias formas de investimento ou de organização dos negócios e que, num plano internacional, se reflete também numa neutralidade da localização dos investimentos e das poupanças” (Bruno Vinga Santiago, O princípio da não discriminação no cruzamento do Direito Fiscal Internacional com o Direito Fiscal Comunitário, Cadernos de Ciência e Técnica Fiscal, n.º 207, 2009, p. 16). EE. Foi especificamente a neutralidade na exportação de capitais – que “requer que o país da residência não discrimine entre rendimentos derivados de investimentos domésticos e rendimentos de investimentos no estrangeiro” (Bruno Vinga Santiago, ob. cit., p. 22) – que foi colocada em crise no caso concreto. Dela decorria que Portugal não podia discriminar, entre os seus nacionais, entre aqueles que auferiam dividendos de investimentos internos ou intraeuropeus e aqueles que obtinham dividendos de investimentos num país terceiro, que era o que sucedia nos períodos em discussão (2012 e 2013) com a recusa à eliminação da dupla tributação económica sobre estes últimos. FF. Embora não fosse vedada, à partida, pelo artigo 24.º, n.º 1, da CDT, uma vez que tinha como critério a fonte do rendimento e não a nacionalidade do seu titular, esta discriminação não passava pelo crivo do artigo 63.º, n.º 1, do TFUE quando lido em conjunto com o artigo 59.º, n.º 1, do Acordo Brasil, pois o que resulta deste último é uma obrigação clara, precisa e incondicional – isto é, que goza de efeito direto em sentido amplo ou caráter self-executing – para os Estados contratantes de atuar com base no princípio da não discriminação em matéria fiscal. GG. O artigo 59.º, n.º 1, do Acordo Brasil não fazer qualquer distinção entre os critérios de discriminação (e.g., nacionalidade, residência, fonte). HH. O facto de se tratar de um acordo de amizade, cooperação e consulta (Acordo Brasil) não é em si mesmo impeditivo do efeito direto em sentido amplo – isto é, se a disposição do tratado ou acordo invocada pelo particular para arguir a desconformidade da regra doméstica com o direito internacional é clara, precisa e incondicional, independentemente de atribuir um direito subjetivo ao particular – ou do caráter self-executing de algumas das suas cláusulas (vide § 55 das conclusões apresentadas pelo Advogado-Geral Michal Bobek no TJUE em 6 de maio de 2021 no processo C-819/19 (Stichting Cartel Compensation e Equilib Netherlands), bem como a nota de rodapé 117 das conclusões apresentadas pelo Advogado-Geral Sánchez-Bordona no TJUE em 3 de dezembro de 2020 no processo C-705/19 (Axpo Trading)). II. Há, de facto, vários antecedentes históricos no TJUE de situações em que foi reconhecido o efeito direto de cláusulas de acordos internacionais unicamente com base na segunda etapa do chamado teste Kupferberg – assim designado ter sido utilizado pela primeira vez no acórdão do TJUE de 26 de outubro de 1982 no processo C-104/81 (Kupferberg) –, que consiste em avaliar se uma determinada disposição é clara, precisa e incondicional, ou seja, exequível por si própria, sem a necessidade de medidas complementares a adotar pelo Estado para o efeito (vide, a título de exemplo, os § 99-104 e 131-133 do já citado acórdão SECIL, os acórdãos do TJUE de 31 de janeiro de 1991 no processo C-18/90 (Kziber), de 5 de julho de 1994 no processo C-432/92 (Anastasiou), de 12 de abril de 2005 no processo C-265/03 (Simutenkov), de 2 de março de 1999 no processo C-416/96 (El-Yassini), de 27 de setembro de 1999 no processo C-63/99 (Gloszczuk) e de 29 de janeiro de 2002 no processo C-162/00 (Pokrzeptowicz-Meyer)). JJ. O emprego do verbo na forma imperativa (“atuará”) e o sentido em que os Estados devem proceder (“com base no princípio da não discriminação em matéria fiscal”) não deixam margem para dúvidas quanto à proibição clara pelo artigo 59.º, n.º 1, do Acordo Brasil de todas as formas de discriminação em matéria tributária entre os Estados signatários (Brasil e Portugal). KK. Discriminações que incluem, do ponto de vista de Portugal, a consagração de um regime fiscal menos favorável para participações detidas em sociedades no Brasil do que para participações no capital de sociedades portuguesas (ou europeias) com base exclusivamente na origem dos rendimentos (vide § 112-114 e 140-141 do citado acórdão do TJUE no caso SECIL). LL. Acresce que o comando que o artigo 59.º, n.º 1, do Acordo Brasil contém – “atuará com base no princípio da não discriminação em matéria fiscal” – é suficientemente preciso (vide, a título de exemplo, § 71 e 72 do acórdão do TJUE de 6 de novembro de 2018 nos processos apensos C-569/16 e C-570/16 (Bauer)). MM. O conteúdo do artigo 59.º, n.º 1, do Acordo Brasil também é incondicional, o que se extrai, desde logo, da forma imperativa (“atuará”) empregue pelas partes e ainda da ausência de previsão de situações de dispensa ou de afrouxamento do cumprimento dessa obrigação pelos Estados signatários. NN. Ademais, esta disposição não aponta, direta ou indiretamente, para a necessidade de os Estados signatários tomarem medidas subsequentes com vista à sua aplicação e produção de efeitos. OO. O dever de não discriminar fiscalmente, em todas as suas dimensões, é, assim, uma decorrência direta do próprio Acordo Brasil, não de uma disposição de direito interno dos Estados contratantes. O mesmo é dizer que essa disposição vale por si mesma, tem efeito direto em sentido amplo ou é autoexecutória ou self-executing. PP. De onde resulta que, como decidiu o TJUE no acórdão SECIL (C-464/14, § 87-90), por ter adotado, a posteriori, disposições que “altera[ra]m a lógica em que assentava a legislação anterior”, em concreto, por, “sem revogar formalmente a legislação existente, [ter] celebra[do] um acordo internacional, como um acordo de associação, que prevê, numa disposição com efeito direto, a liberalização de uma categoria de capitais” referida no artigo 64.º, n.º 1, do TFUE, como é o caso dos capitais que envolvem investimento direto (o que não é controvertido), Portugal renunciou à faculdade conferida pelo artigo 64.º, n.º 1, do TFUE de continuar a aplicar medidas restritivas da livre circulação de capitais que estivessem em vigor a 31 de dezembro de 1993. QQ. A douta sentença recorrida deve, em face de todo o exposto, ser integralmente mantida, com todas as consequências aí previstas. I.3 - Parecer do Ministério Público Recebidos os autos neste Supremo Tribunal Administrativo, veio o Ministério Público emitir parecer com o seguinte conteúdo: I. Objecto do Recurso. 1. O presente recurso vem interposto da sentença do Tribunal Tributário de Lisboa, que julgou procedente a ação de impugnação judicial intentada contra os atos de liquidação de IRC relativos aos anos de 2012 e 2013, «na parte respeitante à tributação dos rendimentos decorrentes dos lucros distribuídos pela sociedade «B..., S.A.», no valor global de € 7.891.540,47 ». A Recorrente insurge-se contra o assim decidido por considerar que a sentença recorrida « … incorre em erro de julgamento ao fazer uma interpretação conjunta do previsto no art. 57º com o art. 59º, ambos do Acordo Brasil, já que o primeiro, garante o “tratamento não discriminatório” no âmbito da “Cooperação no domínio dos investimentos”, enquanto o segundo, trata a “Cooperação no domínio financeiro e fiscal”, que é o que está aqui em causa». Para o efeito alega que «a celebração do Acordo Brasil não significou a exclusão da aplicação do art. 64º n.º 1 do TFUE, porquanto, continuaram a verificar-se as restrições em vigor a 31/12/1993, dado que, sublinha-se, a redação do art. 23º n.º 2 da 2 da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e o Brasil é similar à redação do ex art. 45º do CIRC». E termina pedindo a revogação da sentença recorrida. 2. Para se decidir pela procedência da ação considerou-se na sentença recorrida que «….os artigos 57.º e 59.º do Acordo Brasil visam assegurar a livre circulação de investimentos entre Portugal e o Brasil, garantido o princípio da não discriminação entre investimentos realizados por entidades residentes e não residentes em território português e brasileiro. Solução esta que, aliás, já decorreria em abstrato da livre circulação de capitais prevista no artigo 63.º do TFUE». Mais se entendeu que «…resulta claro que dos artigos 57.º e 59.º do Acordo Brasil, que entrou em vigor em 05.09.2001, que estes revestem natureza superior e que, além disso, assumem natureza especial, sobrepondo-se, necessariamente, às disposições que estavam em vigor em 31.12.1993, o que afasta liminarmente a aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artigo 64.º do TFUE, que permitiria impedir a aplicação plena da liberdade de circulação de capitais aos investimentos diretos no Brasil». II. APRECIAÇÃO DE MÉRITO DO RECURSO. A questão que se coloca consiste em saber se a sentença recorrida padece do vício de erro de julgamento que lhe é assacado pela Recorrente, o que passa por saber se a celebração do acordo entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil em 2000 obsta ou não à aplicação da cláusula de salvaguarda prevista no artigo 64º do Tratado de funcionamento da União Europeia (TFUE) em relação a países terceiros e nessa medida se impõe ou não a aplicação do princípio da livre circulação de capitais previsto no artigo 63º do TFUE. 1. Ao contrário do entendimento vertido na sentença recorrida, a Recorrente entende que a celebração daquele acordo não obsta à aplicação da cláusula de salvaguarda, invocando para o efeito o argumento de que a questão deve ser apreciada à luz do disposto na “Convenção entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil Destinada a Evitar a Dupla Tributação e a Prevenir a Evasão Fiscal em Matéria de Impostos sobre o Rendimento”, por conter uma regulamentação mais específica e consubstanciar um instrumento legal de implementação daquele acordo no domínio fiscal. E na interpretação que a Recorrente faz deste instrumento legal e designadamente do disposto no artigo 23º, nº2, da CDT (“2- No caso de Portugal, quando uma sociedade residente de Portugal receber dividendos de uma sociedade residente do Brasil sujeita ao imposto federal sobre a renda e não abrangida por qualquer isenção, em que a primeira detenha directamente uma participação não inferior a 25%, Portugal permitirá a dedução de 95% desses dividendos incluídos na sua base tributável, desde que a referida participação tenha sido detida durante os dois anos precedentes, ou desde a data da constituição da sociedade brasileira, se tiver ocorrido posteriormente, mas em qualquer dos casos unicamente se a participação tiver sido detida ininterruptamente durante esse período.”) , «há sempre tributação de 5% dos dividendos incluídos na base tributável, e dependência do valor da participação da sociedade Portuguesa no capital da sociedade participada com residência no Brasil, que não pode ser inferior a 25%». Conclui, assim, a Recorrente que «Portugal e o Brasil convencionaram um sistema de prevenção da dupla tributação com um âmbito de aplicação limitado, na medida em que há sempre tributação de 5% dos dividendos incluídos na base tributável, e dependência do valor da participação da sociedade Portuguesa no capital da sociedade participada com residência no Brasil, que não pode ser inferior a 25%». 1.1 Afigura-se-nos, contudo, que não lhe assiste razão, uma vez que, salvo melhor opinião, o tribunal “a quo” fez um correto (e excelente) enquadramento legal da questão, ao realçar os efeitos do Tratado de Amizade celebrado com a República Federativa do Brasil, no sentido de afastar a aplicação de qualquer cláusula de salvaguarda ao abrigo do disposto no artigo 64º do TFUE. 1.2 Com efeito, acompanhamos a sentença recorrida no sentido de que «a livre circulação de capitais é a única das liberdades fundamentais que se aplica também a Estados terceiros, sendo pacífico o entendimento de que, à luz do disposto no artigo 63.º do TFUE, o conteúdo de tal liberdade é exatamente o mesmo quando estejam em causa Estados-Membros da União Europeia ou Estado terceiros. Consequentemente, as restrições à livre circulação de capitais são expressamente proibidas, quer estejam em causa Estados Membros da União Europeia, quer estejam em causa Estados terceiros». 1.3 Também não oferece dúvidas que «Da aplicação do regime constante no artigo 51.º, n.º 1 do CIRC, resulta efetivamente uma diferença de tratamento entre entidades detentoras de participações sociais de sociedades residentes e não residentes em Portugal. Esta diferença de tratamento é, pois, suscetível de dissuadir as sociedades residentes em Portugal de investirem o seu capital em sociedades estabelecidas em países terceiros». 1.4 Acompanhamos igualmente a sentença recorrida no entendimento de que «verificando-se que o disposto no artigo 64.º, n.º 1 do TFUE constitui uma derrogação ao princípio fundamental da livre circulação de capitais, o mesmo deve ser objeto de uma interpretação restritiva (cf., neste sentido, o Acórdão do TJUE, de 17.10.2013, Processo C-181/12, Caso «Welte»)». 1.5 E de que «…as disposições constantes do Acordo Brasil serão, atenta a sua natureza, contexto, clareza e precisão da sua redação, diretamente aplicáveis na ordem jurídica interna, por observarem os requisitos exigidos para o efeito, sem necessidade da adoção de qualquer medida subsequente. Tal acordo visou, essencialmente, no que respeita à livre circulação de capitais, assegurar a reciprocidade desta liberdade entre Portugal e o Brasil, nomeadamente no que respeita aos investimentos realizados por pessoas singulares e coletivas ou pessoas físicas e jurídicas de uma das partes contratantes, no território da outra parte. De facto, os artigos 57.º e 59.º do Acordo Brasil visam assegurar a livre circulação de investimentos entre Portugal e o Brasil, garantido o princípio da não discriminação entre investimentos realizados por entidades residentes e não residentes em território português e brasileiro». 1.6 Concluímos, assim, tal como na sentença recorrida, que o clausulado no Tratado de Amizade celebrado com a República Federativa do Brasil se impõe «às disposições que estavam em vigor em 31.12.1993, o que afasta liminarmente a aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artigo 64.º do TFUE, que permitiria impedir a aplicação plena da liberdade de circulação de capitais aos investimentos diretos no Brasil. Atento o exposto, forçoso será concluir pela verificação do vício de violação de lei, por incompatibilidade do artigo 51.º, n.º 1 do CIRC, em vigor à data dos factos, com o artigo 63.º do TFUE, na parte em que restringe a eliminação da dupla tributação económica através da isenção dos dividendos aos sujeitos passivos residentes em Portugal, Estados-Membros da União Europeia ou Estados terceiros». 1.7 Por outro lado não obsta a tal conclusão o disposto no artigo 23º, nº2, da Convenção Sobre Dupla Tributação celebrada entre Portugal e o Brasil, por esta disposição ter um âmbito mais restrito que o disposto no artigo 63º do TFUE e ceder perante o clausulado nesta disposição legal, que proíbe qualquer discriminação, como a que resulta do artigo 51º do CIRC, em razão da localização em país terceiro da sociedade que efetua o pagamento dos dividendos. 2. Em face do exposto, entendemos que a sentença recorrida fez um correto enquadramento legal da questão que foi colocada ao tribunal “a quo” e não padece do vício que lhe é assacado pela Recorrente, motivo pelo qual se impõe a sua confirmação, julgando-se improcedente o recurso.” I.4 - Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir. II - FUNDAMENTAÇÃO II.1 – De facto A decisão recorrida tem a seguinte matéria de facto: 1. A Impugnante é uma sociedade anónima que tem por objeto social a realização e promoção de investimentos internacionais, a prestação de serviços de assessoria ao investimento, de consultoria económica, de administração e contabilidade, bem como a gestão da carteira própria de títulos, nomeadamente obrigações e outros valores mobiliários – facto não controvertido, cf. ponto 63 da petição inicial e ponto 1 das Informações n.ºs ...8-AIR2/2018 e ...0-AIR2/2018, a fls. 41 a 57 do volume II do PAT e fls. 81 a 97 do volume IV do PAT, respetivamente; 2. A Impugnante encontrava-se integrada no grupo de sociedades denominado de «Grupo C...», que opera no setor elétrico, abrangido pelo Regime Especial de Tributação dos Grupos de Sociedades – facto não controvertido, cf. pontos 64 e 65 da petição inicial e ponto 12 da contestação; 3. Em 2000, foi constituída a sociedade «B..., S.A.», com o número de identificação fiscal ...31/0001-03 – facto não controvertido, cf. ponto 74 da petição inicial e «Atestado de Residência Fiscal no Brasil», emitido pela Autoridade Tributária Brasileira, em 15.03.2017, documento n.º 7 junto com a petição inicial; 4. A sociedade «B..., S.A.», é uma sociedade brasileira, residente fiscal no Brasil, com a sede em Rua ..., ...47-066, ..., ... – cf. «Atestado de Residência Fiscal no Brasil», emitido pela Autoridade Tributária Brasileira, em 15.03.2017, documento n.º 7 junto com a petição inicial; 5. Em 2012, a Impugnante detinha, diretamente, uma participação na sociedade «B..., S.A.», correspondente a cerca de 15,7% do respetivo capital social – facto não controvertido, cf. pontos 75 e 76 da petição inicial e pontos 14 das Informações n.ºs ...8-AIR2/2018 e ...0-AIR2/2018, a fls. 41 a 57 do volume II do PAT e fls. 81 a 97 do volume IV do PAT, respetivamente, conjugados com o documento n.º 6 junto com a petição inicial; 6. Em 2012, a Impugnante detinha, indiretamente, uma participação na sociedade «B..., S.A.», correspondente a cerca de 51,0% do respetivo capital social – facto não controvertido, cf. pontos 14 das Informações n.ºs ...8-AIR2/2018 e ...0-AIR2/2018, a fls. 41 a 57 do volume I do PAT e fls. 81 a 97 do volume IV do PAT, respetivamente, e documento n.º 6 junto com a petição inicial; 7. Em 2012, a Impugnante auferiu dividendos referentes à sua participação social na «B..., S.A.», no valor global de € 14.536.117,00 – facto não controvertido, cf. ponto 83 da petição inicial e ponto 34 das alegações finais escritas da Impugnante e ponto 14 da Informação n.º ...8-AIR2/2018, a fls. 41 a 57 do volume II do PAT e ponto 1 do requerimento apresentado pelo ERFP a fls. 1243 a 1245 do SITAF; 8. Em 30.05.2013, a Impugnante procedeu à entrega da sua «Declaração de Rendimentos – IRC, Modelo 22» n.º ...55-C4615-12, relativa ao período de tributação de 2012 – cf. fls. 138 a 142 do volume I do PAT; 9. Os dividendos referidos em 7) acresceram à matéria coletável da Impugnante, no período de tributação de 2012, tendo sido sujeitos a tributação em sede de IRC, correspondente ao montante de imposto a pagar no valor de € 4.243.154,52 – cf. fls. 138 a 142 do volume I do PAT, conjugado com o ponto 86 da petição inicial e com o ponto 35 das alegações finais escritas da Impugnante; 10. Em 06.06.2013, na sequência da declaração referida em 8), foi emitida pela A.T., a liquidação de IRC n.º ...80, substituída sucessivamente pelas liquidações de IRC n.ºs ...88, de 05.06.2014, ...73, de 30.07.2014, ...76, de 01.02.2016, ...09, de 01.09.2016 e ...79, de 24.04.2017 – cf. fls. 147 do volume I do PAT e ponto 4 da Informação n.º ...8-AIR2/2018, a fls. 41 a 57 do volume II do PAT; 11. Em 2013, a Impugnante auferiu dividendos da sua participação social na «B..., S.A.», no valor global de €12.367.410,00– facto não controvertido, cf. ponto 87 da petição inicial e ponto 29 das alegações finais escritas da Impugnante e ponto 14 da Informação n.º ...0-AIR2/2018, a fls. 81 a 97 do volume IV do PAT e ponto 1 do requerimento apresentado pelo ERFP a fls. 1243 a 1245 do SITAF; 12. Em 28.05.2014, a Impugnante procedeu à entrega da sua «Declaração de Rendimentos – IRC, Modelo 22» n.º ...55-C3971-11, relativa ao período de tributação de 2013 – cf. fls. 192 a 196 do volume II do PAT; 13. Os dividendos referidos em 10) acresceram à matéria coletável da Impugnante, no período de tributação de 2013, tendo sido sujeitos a tributação em sede de IRC, correspondente a um montante de imposto a pagar no valor de € 3.648.385,95 – cf. fls. 192 a 196 do volume II do PAT, conjugado com o ponto 30 das alegações finais escritas da Impugnante; 14. Em 21.07.2014, na sequência da declaração referida em 12), foi emitida pela A.T., a liquidação de IRC n.º ...51, substituída sucessivamente pelas liquidações de IRC n.ºs ...40, de 19.06.2015, ...86, de 01.02.1026, ...06, de 31.10.2016 e ...44, de 06.02.2017 – cf. fls. 58 do volume IV do PAT e ponto 4 da Informação n.º ...0-AIR2/2018, a fls. 81 a 97 do volume IV do PAT; 15. Em 29.07.2014, a sociedade «B..., S.A.», procedeu à entrega da sua «Declaração de Informações Econômico-Fiscais da Pessoa Jurídica», relativa ao período de tributação de 2012, tendo procedido ao pagamento do Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido respetivos – cf. documentos n.ºs 8, 9 e 10 junto com a petição inicial; 16. Em 30.05.2017, a Impugnante apresentou, junto da Unidade dos Grandes Contribuintes – Divisão de Gestão e Assistência Tributária, pedido de Revisão do ato tributário de liquidação de IRC n.º ...55-C4615-12, relativo ao período de tributação de 2012, ao qual foi atribuído o n.º ...80 – cf. fls. 4 a 136 do volume I do PAT; 17. Em 31.05.2017, a Impugnante apresentou, junto da Unidade dos Grandes Contribuintes – Divisão de Gestão e Assistência Tributária, pedido de revisão do ato tributário, referente à liquidação de IRC n.º ...55-C3971-11, do período de tributação de 2013, ao qual foi atribuído o n.º ...55 – cf. fls. 59 a 190 do volume II do PAT; 18. Em 16.03.2018, pelo Diretor da UGC, foi proferido despacho de indeferimento do pedido de Revisão referido em 16), com fundamento na Informação n.º ...8-AIR2/2018, elaborada pela Divisão de Gestão e Assistência Tributária da UGC, em 13.03.2018, que sufragou o entendimento de que, pese embora segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, o disposto no “do artigo 51.º, n.º 1 do CIRC”, constitua uma restrição à liberdade de circulação de capitais entre Portugal e Estados terceiros, esta restrição está habilitada na derrogação que consta da cláusula de salvaguarda do “artigo 64.º, n.º 1 do Tratado de Funcionamento da União Europeia”, concluindo que a liquidação de IRC respeitante ao período de tributação de 2012 não padece de qualquer ilegalidade – cf. fls. 40 a 57 do volume II do PAT; 19. Em 16.03.2018, pelo Diretor da UGC, foi proferido despacho de indeferimento do pedido de Revisão referido em 17), com fundamento na Informação n.º ...18, elaborada pela Divisão de Gestão e Assistência Tributária da UGC, em 14.03.2018, que sufragou o entendimento de que, pese embora segundo a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, o disposto no “do artigo 51.º, n.º 1 do CIRC”, constitua uma restrição à liberdade de circulação de capitais entre Portugal e Estados terceiros, esta restrição está habilitada na derrogação que consta da cláusula de salvaguarda do “artigo 64.º, n.º 1 do Tratado de Funcionamento da União Europeia”, concluindo que a liquidação de IRC respeitante ao período de tributação de 2013 não padece de qualquer ilegalidade – cf. fls. fls. 80 a 97 do volume IV do PAT; 20. Em 18.03.2018, foi emitido, pelo Diretor da UGC, o ofício n.º ...62, sob registo e aviso de receção com a referência ...17..., dirigido à Impugnante, por via do qual foi comunicado o despacho referido em 18) – cf. fls. 37 a 39 do volume II do PAT; 21. Em 18.03.2018, foi emitido, pelo Diretor da UGC, o ofício n.º ...61, sob registo e aviso de receção com a referência ...03..., dirigido à Impugnante, por via do qual foi comunicado o despacho referido em 19) – cf. fls. 79 do volume IV do PAT. II.2 – De Direito I. Vem o presente recurso interposto pela Fazenda Pública da douta sentença proferida pelo Tribunal Tributário de Lisboa, a qual julgou procedente a impugnação judicial interposta pela sociedade impugnante, ora Recorrida, A..., Sociedade Unipessoal, Lda, contra a parte relativa à tributação dos rendimentos decorrentes dos lucros distribuídos pela sociedade «B..., S.A.», no valor global de € 7.891.540,47. Para decidir pela procedência da acção, considerou o Tribunal a quo, em resumo, que as liquidações de IRC de 2012 e 2013 são ilegais “…na parte respeitante à tributação dos lucros distribuídos pela sociedade «B..., S.A.», porquanto violam o princípio da livre circulação de capitais, previsto no artigo 63.º do TFUE e, consequentemente, por violação do artigo 8.º, n.º 4 da CPR, devendo, por isso, ser anuladas. Consequentemente, deve ser restituído à Impugnante o valor global de € 7.891.540,47, pago a título de tributação de tais rendimentos.” (pag. 26 da sentença recorrida). Mais alega a decisão recorrida que resulta claro “…que dos artigos 57.º e 59.º do Acordo Brasil, que entrou em vigor em 05.09.2001, que estes revestem natureza superior e que, além disso, assumem natureza especial, sobrepondo-se, necessariamente, às disposições que estavam em vigor em 31.12.1993, o que afasta liminarmente a aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artigo 64.º do TFUE, que permitiria impedir a aplicação plena da liberdade de circulação de capitais aos investimentos diretos no Brasil.” Pelo que concluiu “…pela verificação do vício de violação de lei, por incompatibilidade do artigo 51.º, n.º 1 do CIRC, em vigor à data dos factos, com o artigo 63.º do TFUE, na parte em que restringe a eliminação da dupla tributação económica através da isenção dos dividendos aos sujeitos passivos residentes em Portugal, Estados-Membros da União Europeia ou Estados terceiros.” II. Inconformada com o assim decidido, vem a Fazenda Publica interpor recurso para esta instância superior, alegando em síntese que “… a sentença incorre em erro de julgamento ao fazer uma interpretação conjunta do previsto no art. 57º com o art. 59º, ambos do Acordo Brasil, já que o primeiro, garante o “tratamento não discriminatório” no âmbito da “Cooperação no domínio dos investimentos”, enquanto o segundo, trata a “Cooperação no domínio financeiro e fiscal”, que é o que está aqui em causa.” Alega ainda a recorrente que “…a celebração do Acordo Brasil não significou a exclusão da aplicação do art. 64º n.º 1 do TFUE, porquanto, continuaram a verificar-se as restrições em vigor a 31/12/1993, dado que, sublinha-se, a redação do art. 23º n.º 2 da 2 da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e o Brasil é similar à redação do ex art. 45º do CIRC.” III. Aqui chegados, a questão que cumpre apreciar e decidir – atenta a circunscrição do objeto do recurso e a intervenção correta das Partes no presente Processo – é a de saber se a sentença recorrida padece do vício de erro de julgamento por ter julgado procedente a pretensão da impugnante ora recorrida ao reconhecer que teve lugar uma restrição, não justificada à luz do artigo 64.º do TFUE, à livre circulação de capitais entre Portugal e a República Federativa do Brasil e, por isso, desconforme com o artigo 63.º do TFUE. IV. Começamos por assumir, na linha da decisão recorrida, bem como da leitura feita pelas Partes, que nos encontramos diante a análise de legislação que afeta, em abstrato, a Livre Circulação de Capitais, tal qual proclamada pelo artigo 63.º do TFUE. E foi essa, de resto, a leitura igualmente sufragada pelo Tribunal de Justiça da União, no seu processo C-464/14, de 24 de Novembro de 2016 (doravante, “Acórdão SECIL”), respeitando precisamente (no essencial) a presente legislação – cfr. parágrafos 46 a 51. V. Pelo exposto, tudo se reconduz a esclarecer o âmbito do artigo 64.º do TFUE – designada de “cláusula de salvaguarda” (e que mais não é do que uma grandfather´s clause) – quando consagra, no seu n.º 1, que: “O disposto no artigo 63.º não prejudica a aplicação a países terceiros de quaisquer restrições em vigor em 31 de dezembro de 1993 ao abrigo de legislação nacional ou da União adotada em relação à circulação de capitais provenientes ou com destino a países terceiros que envolva investimento direto, incluindo o investimento imobiliário, estabelecimento, prestação de serviços financeiros ou admissão de valores mobiliários em mercados de capitais. Em relação às restrições em vigor ao abrigo da legislação nacional na Bulgária, na Estónia e na Hungria, a data aplicável é a de 31 de dezembro de 1999. Em relação às restrições em vigor ao abrigo da legislação nacional na Croácia, a data aplicável é a de 31 de Dezembro de 2002.” VI. A este respeito, entende a ora Recorrente, no essencial, que o regime constante do artigo 51.º (anteriormente, artigo 46.º e, antes ainda, artigo 45.º) do Código do IRC, por ter sido adotado anteriormente a 31 de Dezembro de 1993 – e apesar das múltiplas alterações que foi sofrendo – se encontra ao abrigo da cláusula de salvaguarda do artigo 64.º do TFUE, atento o facto de o essencial do seu regime ter permanecido inalterado e salvaguardado no artigo 23.º, n.º 2 da Convenção de Dupla Tributação entre Portugal e o Brasil. É o que se extrai das seguintes conclusões: “k) A redação dada ao art. 23º n.º 2 da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e o Brasil é similar à redação do ex art. 45º do CIRC (atual art. 51º), que vigorou, de forma ininterrupta na ordem jurídica portuguesa desde 01/01/89, e, portanto, desde data anterior a 31/12/1993. l) Por consequência, a celebração do Acordo Brasil não significou a exclusão da aplicação do art. 64º n.º 1 do TFUE, porquanto, continuaram a verificar-se as restrições em vigor a 31/12/1993, dado que, sublinha-se, a redação do art. 23º n.º 2 da 2 da Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e o Brasil é similar à redação do ex art. 45º do CIRC. m) Ou seja, quer o Acordo Brasil, quer a Convenção para Evitar a Dupla Tributação entre Portugal e o Brasil em nada afetaram o quadro jurídico relativo ao tratamento fiscal dos dividendos provenientes do Brasil, enquanto país terceiro, que vigorava em 31/12/1993.” Em conclusão, na posição da Recorrente, o regime de eliminação da dupla tributação económica vigente a 31 de Dezembro de 1993 era, ainda e sempre, o mesmo que se encontrava protegido a coberto da Cláusula de Salvaguarda 20 anos depois; e isto até à Reforma do IRC de 2014 ter feito cessar tal regime e alargado a investimentos realizados em Estados terceiros a isenção de tributação ali prevista, até então, unicamente para Estados da União Europeia. VII. Por contraste, entendeu a sentença recorrida que, por força da vigência do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil (doravante, “Acordo Amizade Portugal-Brasil”) – celebrado em 22 de Abril de 2000 e que teve a sua entrada em vigor em 5 de Setembro de 2001, aprovado para ratificação pela Resolução da Assembleia da República n.º 83/2000, de 14 de Dezembro – Portugal abdicou, quanto ao Brasil, do direito a valer-se da cláusula de salvaguarda, ao adotar uma regra de não discriminação, ínsita no artigo 57.º do mencionado Acordo de Amizade. Ao fazê-lo, pode ler-se na sentença recorrida, resultaria que “… os artigos 57.º e 59.º do Acordo Brasil visam assegurar a livre circulação de investimentos entre Portugal e o Brasil, garantido o princípio da não discriminação entre investimentos realizados por entidades residentes e não residentes em território português e brasileiro. … Ademais, e na sequência do Acordo Brasil, sempre se dirá, no que respeita à livre circulação de capitais referentes a investimentos envolvendo o Brasil, que as disposições suscetíveis de ser reconduzidas à cláusula de salvaguarda, isto é, as que estivessem em vigor em 31.12.1993, deixam de ser aplicadas. Com efeito, resulta claro que dos artigos 57.º e 59.º do Acordo Brasil, que entrou em vigor em 05.09.2001, que estes revestem natureza superior e que, além disso, assumem natureza especial, sobrepondo-se, necessariamente, às disposições que estavam em vigor em 31.12.1993, o que afasta liminarmente a aplicação da cláusula de salvaguarda constante do artigo 64.º do TFUE, que permitiria impedir a aplicação plena da liberdade de circulação de capitais aos investimentos diretos no Brasil.” Em conclusão, entendeu a sentença recorrida que a cláusula de salvaguarda (a grandfather’s clause) é inaplicável ao caso, devendo considerar-se o regime nacional alterado por efeito da regra da não discriminação constante do artigo 57.º do Acordo de Amizade Portugal-Brasil, o que torna imediatamente aplicável ao caso a estatuição do artigo 63.º do TFUE, a qual impõe a Livre Circulação de Capitais com Estados Terceiros. VIII. Já adiantamos que – na linha, aliás, do Parecer do Ministério Público junto aos autos – andou bem a sentença recorrida. Desde logo, a concepção de que possam subsistir por duas, três ou quatro décadas regimes fiscais que afrontam abertamente uma liberdade económica fundamental da União, apesar das múltiplas alterações que os mesmos possam ir sofrendo, parece-nos dificilmente sustentável; e, acrescente-se, que é superior à dezena o número dessas alterações na legislação aqui em causa, sendo em alguns casos alterações de grande magnitude. A ideia de que uma tal legislação fiscal poderia perdurar sine die, conquanto o mero núcleo mínimo do regime da mesma se mantenha, sempre se revelaria incompatível com o desiderato da integração económica que o espaço da União exige. IX. Para tal, recordem-se os termos exigentes em que o Tribunal de Justiça aceita as restrições protegidas pela Cláusula de Salvaguarda, trazendo aqui à colação o Acórdão SECIL: “87. … Com efeito, o artigo 64.°, n.° 1, TFUE não tem por objeto as disposições que, embora sendo em substância idênticas a uma legislação existente em 31 de dezembro de 1993, reintroduziram um obstáculo à livre circulação de capitais que, na sequência da revogação da legislação anterior, já não existia (v., neste sentido, acórdão de 18 de dezembro de 2007, A, C 101/05, EU:C:2007:804, n.° 49). 88. Um Estado Membro renuncia também a esta faculdade ao adotar disposições que alteram a lógica em que assentava a legislação anterior. A este respeito, resulta da jurisprudência que, na apreciação da faculdade que um Estado Membro tem de invocar o artigo 64.°, n.° 1, TFUE, os aspetos relativos à forma do ato que constitui uma restrição são secundários em relação aos aspetos relativos à substância da referida restrição. Com efeito, uma medida nacional adotada depois de 31 de dezembro de 1993 não está, só por essa razão, automaticamente excluída do regime derrogatório previsto no artigo 64.°, n.° 1, TFUE. Com efeito, estão abrangidas por esse regime as disposições que, na sua substância, são idênticas a uma legislação anterior ou que se limitam a reduzir ou a suprimir um obstáculo ao exercício dos direitos e das liberdades comunitárias que figuram na legislação anterior, mas estão excluídas do mesmo as disposições que assentam numa lógica diferente da do direito anterior e instituem novos procedimentos (v., neste sentido, acórdãos de 12 de dezembro de 2006, Test Claimants in the FII Group Litigation, C 446/04, EU:C:2006:774, n.° 192, e de 24 de maio de 2007, Holböck, C 157/05, EU:C:2007:297, n.° 41).” X. Mas, mesmo seguindo a linha mais conservadora sufragada pela 1.ª instância – em estrita linha, aliás, com o decidido pelo Tribunal de Justiça da União, no Acórdão SECIL – também dificilmente se poderá concluir em termos distintos. Recorde-se, a tal respeito, o que o Tribunal de Justiça da União realçou nos §§ 89 e 90 do Acórdão SECIL: “89. Ora, nestas condições, há que considerar que um Estado Membro também renuncia à faculdade prevista no artigo 64.°, n.° 1, TFUE quando, sem revogar formalmente a legislação existente, celebra um acordo internacional, como um acordo de associação, que prevê, numa disposição com efeito direto, a liberalização de uma categoria de capitais referida nesse artigo 64.°, n.° 1. Por conseguinte, esta alteração do quadro jurídico deve ser equiparada, quanto aos seus efeitos na possibilidade de invocar o artigo 64.°, n.° 1, TFUE, à introdução de uma legislação nova, que assenta numa lógica diferente da legislação existente. 90. Com efeito, a liberalização da circulação de capitais prevista por um acordo internacional ficaria desprovida de qualquer efeito útil se, nas situações em que esse acordo se opõe a uma legislação de um Estado Membro, este pudesse continuar a aplicar essa legislação ao abrigo do artigo 64.°, n.° 1, TFUE.” XI. Desde logo, importa analisar a redacção dos artigos 57.º e 59.º deste Acordo de Amizade Portugal-Brasil. Dispõe o artigo 57.º que: “1 — Cada Parte Contratante garantirá, em seu território, tratamento não discriminatório, justo e equitativo aos investimentos realizados por pessoas singulares e colectivas ou pessoas físicas e jurídicas da outra Parte Contratante, bem como à livre transferência das importâncias com eles relacionadas. 2 — O tratamento referido no n.º 1 deste artigo não será menos favorável do que o outorgado por uma Parte Contratante aos investimentos realizados em seu território, em condições semelhantes, por investidores de um terceiro país, salvo aquele concedido em virtude de participação em processos de integração regional, de acordos para evitar a dupla tributação ou de qualquer outro ajuste em matéria tributária. 3 — Cada Parte Contratante concederá aos investimentos de pessoas singulares e colectivas ou pessoas físicas e jurídicas da outra Parte tratamento não menos favorável que o dado aos investimentos de seus nacionais, excepto nos casos previstos pelas respectivas legislações nacionais.” (sublinhados nossos). Dispõe, por seu turno, o artigo 59.º daquele Acordo de Amizade que: “1 — Cada Parte Contratante actuará com base no princípio da não discriminação em matéria fiscal relativamente aos nacionais da outra Parte. 2 — As Partes Contratantes desenvolverão laços de cooperação no domínio fiscal, designadamente através da adopção de instrumentos adequados para evitar a dupla tributação e a evasão fiscais.” (sublinhado nosso). XII. Trata-se, estamos em crer, de formulações suficientemente claras e incondicionais, conducentes à produção de efeito direto, e que cumprem os critérios enunciados pelo Tribunal de Justiça da União para o efeito – cfr. § 96 do já citado Acórdão SECIL e vasta jurisprudência aí enunciada: “Segundo jurisprudência constante, uma disposição de um acordo celebrado pela União com países terceiros deve ser considerada como tendo efeito direto sempre que, atendendo à sua redação e ao objeto e natureza do acordo, contenha uma obrigação clara e precisa que não esteja dependente, na sua execução ou nos seus efeitos, da intervenção de qualquer ato posterior (v., neste sentido, designadamente, acórdãos de 27 de setembro de 2001, Gloszczuk, C 63/99, EU:C:2001:488, n.° 30; de 8 de maio de 2003, Wählergruppe Gemeinsam, C 171/01, EU:C:2003:260, n.° 54; de 12 de abril de 2005, Simutenkov, C 265/03, EU:C:2005:213, n.° 21; e de 14 de dezembro de 2006, Gattoussi, C 97/05, EU:C:2006:780, n.° 25).” (sublinhado nosso). XIII. Aliás, que assim é, parece resultar do facto de a Recorrente AT ter sentido a necessidade de contestar a aplicação do artigo 57.º ao caso, com o fundamento de que (alegadamente) o mesmo não versa sobre matérias fiscais, devendo antes considerar-se unicamente o artigo 59.º para tal desiderato – o qual, supostamente, era desprovido de efeito direto. Ora, esta objecção não pode colher. E por duas ordens de razões. Por um lado, nada no Acordo de Amizade Portugal-Brasil parece sugerir que o artigo 59.º é desprovido de efeito direto. E, certamente, não se extrai do mesmo que o n.º 1 deste normativo seja feito depender do disposto no respectivo n.º 2, que se reporta às Convenções de Dupla Tributação, cujo objeto ultrapassa em muito a mera remoção de efeitos discriminatórios. Como bem sublinha a Recorrida, nas suas conclusões, em suporte da decisão sob escrutínio: “…a discriminação fiscal negativa dos rendimentos gerados no Brasil pagos à Recorrida que está em discussão nos autos não foi resultado da ausência de cooperação entre os Estados signatários. Ela decorreu, ao invés, de um ato unilateral da República Portuguesa, que manteve em vigor legislação a dar suporte àquela discriminação, não obstante a obrigação assumida em sentido contrário no Acordo Brasil. J. Não se pode dizer, por isso, que a questão da dupla tributação económica e a discriminação que daí decorria e que deveria ser eliminada por força do acordado entre as partes no artigo 59.º, n.º 1, do Acordo Brasil tinha forçosa ou exclusivamente de ser regulada pela CDT.” XIV. Por outro lado, talvez impressionada pelas epígrafes dos respetivos normativos, a Recorrente parece secundarizar o facto de o próprio artigo 57.º abranger, simultaneamente, matérias fiscais, como se depreende da decisão de excepcionar do n.º 2 do mesmo (que estabelece uma cláusula recíproca de nação mais favorecida), precisamente, as soluções constantes de Convenções de Dupla Tributação ou de outros acordos fiscais. Julgamos ser evidente a conclusão de que só haveria que excluir do n.º 2 deste normativo (que remete para o n.º 1 quanto ao seu âmbito de aplicação, note-se) uma parte da hipótese legal que já constasse precisamente do n.º 1. Donde, forçoso é concluir que também o artigo 57.º, n.º 1 (já não o n.º 2, dada a exclusão aí expressamente prevista) do Acordo de Amizade Portugal-Brasil, ao consagrar uma regra de não discriminação, é aplicável às matérias fiscais. XV. Por fim, é de ressalvar ainda que, o facto de haver uma regulação destas matérias por CDT celebrada entre Portugal e o Brasil, no respectivo artigo 23.º, n.º 2 – e o facto de a sua redacção ser equivalente à da legislação nacional, à data da sua assinatura (ano 2000) – é, a este respeito, muito pouco relevante. Na verdade, à data dos factos – anos fiscais de 2012 e 2013 – o regime doméstico português tinha, de há muito, sido ampliado, reduzindo para meros 10% a dimensão da participação social exigida para efeitos da eliminação total da dupla tributação económica de dividendos provenientes da União, enquanto a exigência de 25% de participação social permanecia inalterada quanto ao Brasil e para uma eliminação meramente parcial; em óbvia violação, portanto, das regras de não discriminação ínsitas no mencionado Acordo de Amizade. Quer tal dizer que o regime português foi, já muito depois da assinatura daquele Acordo de Amizade, alterado em termos discriminatórios e bem distintos daqueles que vigoravam aquando da entrada em vigor da Cláusula de Salvaguarda do artigo 64.º e que poderiam a tal data ser justificados. Aliás, acrescente-se que essa cláusula convencional configura, hoje, tendencialmente letra morta, atenta a actual redacção do artigo 51.º do Código do IRC – na versão pós-2014 – que suporta a eliminação total da dupla tributação económica quanto a dividendos provenientes de países terceiros à União com o requisito de 10% de participação social. XVI. Assim sendo, afigura-se-nos que bem andou a sentença recorrida, ao entender que, por força do regime constante do artigo 51.º, n.º 1 do CIRC, conjugado com a proibição de discriminação dimanada do Acordo de Amizade Portugal-Brasil, a Recorrida foi objeto de um tratamento fiscal menos favorável, pelo facto de os dividendos por esta auferidos serem provenientes de uma sociedade sedeada num país terceiro, não residente em Portugal nem na União Europeia, e não sendo objeto de aplicação in casu a Cláusula de Salvaguarda ínsita no artigo 64.º do TFUE para essa diferença objetiva de tratamento. Pelo que o Recurso não merece provimento. XVII. Importa, agora, que nos pronunciemos a respeito do pedido de dispensa do pagamento do remanescente da Taxa de Justiça. Ora, e sem prejuízo da relativa complexidade e novidade do processo, a consideração da corretíssima conduta das Partes (na linha do já sucedido em 1.ª instância), assim como a verificação dos demais requisitos de que depende a dispensa do pagamento do remanescente da Taxa de Justiça, leva-nos a concluir que é de deferir a peticionada dispensa do remanescente do pagamento da Taxa de Justiça. III. CONCLUSÕES Por força do regime constante do artigo 51.º, n.º 1 do CIRC (na versão anterior a 2014), conjugado com a proibição de discriminação dimanada do Acordo de Amizade Portugal-Brasil, há tratamento fiscal menos favorável quando os dividendos auferidos de fonte brasileira por uma sociedade residente em Portugal não se encontram isentos, não sendo objeto de aplicação a Cláusula de Salvaguarda ínsita no artigo 64.º do TFUE. IV. DECISÃO Nos termos e com os fundamentos expostos, acordam os juízes da Secção Tributária deste Supremo Tribunal em negar provimento ao presente recurso, mantendo integralmente a decisão recorrida. Ademais, concede-se a dispensa do pagamento do remanescente da Taxa de Justiça. Lisboa, 2 de Outubro de 2024. - Gustavo André Simões Lopes Courinha (relator) - Francisco António Pedrosa de Areal Rothes - Joaquim Manuel Charneca Condesso. |