Acórdãos STA

Acórdão do Supremo Tribunal Administrativo
Processo:02717/15.6BEBRG
Data do Acordão:01/12/2023
Tribunal:1 SECÇÃO
Relator:ADRIANO CUNHA
Descritores:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DOS ENTES PÚBLICOS
AUTARQUIA LOCAL
ESCOAMENTO DE ÁGUAS
PRESUNÇÃO DE CULPA
ILISÃO DE PRESUNÇÃO
CASO DE FORÇA MAIOR
Sumário:I - Para ilidir a presunção legal de culpa que impende sobre a Administração, nos termos do art. 493º, nº 1 do C.Civil, terá esta que demonstrar que os seus agentes cumpriram o dever de fiscalizar, de forma sistemática e adequada, a coisa móvel ou imóvel à sua guarda, ou que o evento danoso se ficou a dever a caso fortuito ou de força maior - como seja a ocorrência de anormais chuvas torrenciais (“tromba de água”) - que teria igualmente provocado o dano ainda que não houvesse culpa sua.
II - Deve considerar-se ilidida a citada presunção de culpa, quando, como no caso em apreço, se deu como comprovado nos autos, através de prova documental (informação meteorológica do “IPAM”) e de prova testemunhal, que: a precipitação atingiu valores anormais naquele local e momento, tendo-se abatido sobre a cidade uma “tromba de água” muito forte; que o túnel rodoviário que inundou, causando a submersão e consequente danificação de um veículo, costumava inundar quando chovia, mas já não ultimamente, pois de há tempos o problema ficara resolvido; que o túnel acumulou muito rapidamente água; que os “bombeiros voluntários” da cidade tiveram que acorrer a várias ocorrências.
Nº Convencional:JSTA00071643
Nº do Documento:SA12023011202717/15
Data de Entrada:05/04/2022
Recorrente:CÂMARA MUNICIPAL DE BRAGA
Recorrido 1:A... - COMPANHIA DE SEGUROS, SA E OUTROS
Votação:UNANIMIDADE
Meio Processual:RECURSO DE REVISTA
Objecto:ACÓRDÃO TCA NORTE
Decisão:CONCEDE PROVIMENTO
Área Temática 1:RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
Legislação Nacional:ARTIGO 493º , N.º 1DO CC
Aditamento:
Texto Integral: Acordam em conferência na Secção de Contencioso Administrativo do Supremo Tribunal Administrativo:

I – RELATÓRIO

1. O “MUNICÍPIO DE BRAGA”, Réu demandado na presente acção administrativa, interpôs o presente recurso de revista do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Norte (TCAN), de 3/12/2021 (cfr. fls. 279 e segs. SITAF), que concedeu provimento ao recurso de apelação que o Autor, AA interpusera da sentença absolutória do Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (TAF/Braga), de 23/2/2018 (cfr. fls. 207 e segs. SITAF), e que, revogando esta sentença, julgou a ação parcialmente procedente.

2. O Recorrente/Réu “Município” concluiu do seguinte modo as suas alegações do presente recurso de revista (cfr. fls. 317 e segs. SITAF):

«1ª O acórdão recorrido, com um voto de vencido, altera totalmente o decidido sem que tenha havido uma única modificação à matéria de facto.

2ª A questão que fundamenta o presente recurso é a singularidade de, sem alteração da matéria de facto, o acórdão recorrido, perante factos que comprovam de forma avassaladora a ocorrência de causa de força maior, julgou precisamente no sentido contrário.

3ª O voto de vencido, curto mas assertivo, é paradigmático do que está em causa: refere que com os factos provados 2, 6 e 9 o Recorrente provou a causa de força maior.

4ª A matéria em causa (responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos – dever de vigilância) convoca uma melhor aplicação do Direito, seja para obtenção da indispensável segurança jurídica, seja para que os entes públicos possam conhecer o entendimento maioritário que os Tribunais vão conferindo às normas legais nesta matéria.

5ª O Recorrente considera que deve ser admitida a revista, nos termos do artigo 150º/nº 1 do CPTA, para se obter uma melhor aplicação do Direito.

6ª Do facto provado 2 resulta que o túnel acumulou “muito rapidamente” água: precipitação normal para a época não determina a acumulação de água e, muito menos, de forma rápida.

7ª No facto provado 6 reforça-se a prova da precipitação anormal, quando se volta a assinalar a “rápida subida das águas no túnel”.

8ª No facto provado 9 dá-se por assente a ocorrência de precipitação anormal naquele dia, com uma intensidade máxima de 10 milímetros em 10 minutos.

9ª Só um evento absolutamente excecional é que pode provocar uma acumulação tão rápida de água, ou seja, só elevadíssima precipitação e num curto espaço de tempo é que poderia ter causado o que sucedeu.

10ª A imprevisibilidade da meteorologia é cada vez maior, e não há nenhuma entidade no mundo que consiga prever com exatidão a ocorrência de trombas de água.

11ª O caminho em parte seguido pelo acórdão recorrido consiste em transformar a prova do contrário da presunção legal do artigo 10º da Lei nº 67/2007, de 31.12 e do artigo 493º/nº 1 do CCiv. numa verdadeira prova da existência do Diabo, a cargo das entidades públicas.

12ª Provando-se a verificação de causa de força maior, mesmo que se considere que o Município atuou com culpa (no sentido do dever de vigilância não ter sido cumprido), a verdade é que o evento sempre se daria, pois a enorme quantidade de chuva caída no curto espaço de tempo de 10m causaria sempre, como causou, uma inundação.

13ª Ao decidir de modo diverso a sentença recorrida incorreu em erro de julgamento de Direito, concretamente do artigo 10º/nºs. 1 e 3 da Lei nº 67/2007, de 31.12 e do artigo 493º/nº 1 do CCiv.

TERMOS EM QUE deve o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se o acórdão recorrido e substituindo-o por outro que mantenha a sentença da 1ª instância».


3. O Recorrido/Autor, AA, apresentou contra-alegações, sem conclusões, pugnando pelo improvimento do presente recurso de revista e pela consequente manutenção do Ac.TCAN recorrido (cfr. fls. 343 e segs. SITAF).

Defende nas mesmas, em suma, que:

«(…) 25. (…) a Ré não logrou fazer prova de factos suficientes para ilidir a presunção que sobre si impendia.

26. Só por si, o facto de a precipitação ter atingido valores anormais na região de Braga para o mês de Outubro, tendo a intensidade máxima de precipitação atingido ou mesmo ultrapassado os 10 milímetros em 10 minutos, durante a tarde, não ilide a presunção que recai sobre o Réu.

(…) 28. O Réu/recorrente apenas tinha que provar que desenvolveu com profundidade e adequado controlo, vigilância e fiscalização para se aferir da eficácia e eficiência no cumprimento do respetivo dever e para aferir se se tratou antes de caso de força maior, ou que apesar da sua ação, apenas por causa de força maior o evento – inundação do túnel – ocorreu.

29. O que não pode ocorrer é, como pretende o Réu/recorrente, que tendo havido um caso de força, já não tenha que ilidir a presunção que sobre si recaia.

30. Seria completamente sem fundamento legal tal dispensa da obrigação legal de ilidir uma presunção que sobre ela recaía, contrariamente à alegada ilegal transformação da responsabilidade por factos ilícitos numa responsabilidade objetiva alega pelo Réu/recorrente.
(…)»

4. O presente recurso de revista foi admitido pelo Acórdão de 7/4/2022 (cfr. fls. 362/363 SITAF) proferido pela formação de apreciação preliminar deste STA, prevista no nº 6 do art. 150º do CPTA, designadamente nos seguintes termos:

«1. MUNICÍPIO DE BRAGA (…) peticiona a admissão do recurso de revista por si interposto do acórdão de 03.12.2021 do Tribunal Central Administrativo Norte (…) que concedeu provimento ao recurso que AA (…) havia dirigido à decisão proferida pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Braga (…) que o condenou ao pagamento ao A. «da quantia total de 6.856,40€ (sendo a quantia de 6.356,40€ a título de danos patrimoniais e a quantia de 500,00€ a nível de danos não patrimoniais), acrescida de juros, à taxa legal, contados desde a citação (…) e até efetivo e integral pagamento».

(…) 7. E entrando nessa análise refira-se que, “primo conspecto”, a argumentação desenvolvida apresenta-se como convincente, a ponto de justificar a admissão do recurso.

8. Com efeito, presentes os quadros normativo e factual e os juízos diametralmente divergentes das instâncias quanto ao objeto de dissídio, temos como não isento de dúvidas o juízo sob impugnação do TCA/N quanto ao operar/sujeitar do recorrente à presunção de culpa inserta no n.º 1 do art. 493.º do Código Civil em termos de culpa “in vigilando”, juízo firmado, aliás, apenas por maioria.

9. Daí que não se mostrando o juízo firmado dotado de óbvia plausibilidade que afaste a necessidade da intervenção do órgão de cúpula da jurisdição justifica-se a necessária a intervenção deste Supremo Tribunal, e a admissão da revista».

5. O Ministério Público junto deste STA, conquanto notificado nos termos e para os efeitos do disposto no art. 146º nº 1 do CPTA (cfr. fls. 370 SITAF), não emitiu parecer.

6. Colhidos os vistos, o processo vem submetido à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
*

II - DAS QUESTÕES A DECIDIR

7. Constitui objeto do presente recurso de revista apreciar e decidir, no âmbito delimitado pelas alegações do Réu/Recorrente (designadamente, nas respetivas conclusões), e tendo em consideração os factos dados como provados, se o Acórdão do TCAN recorrido procedeu a um correto julgamento do recurso de apelação, interposto pelo Autor, ao julgar, contrariamente ao decidido em 1ª instância pelo TAF/Braga, a procedência (parcial) da ação em consequência de ter entendido que o Réu demandado “Município de Braga” não ilidiu a presunção de culpa “in vigilando”, prevista no nº 1 do art. 493º do CC, que sobre si recaía.

*

III - FUNDAMENTAÇÃO

III. A – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

8. As instâncias deram como relevantemente provados os seguintes factos:

«1. No dia 26.10.2011, pelas 18h00m, no chamado Túnel da Rodovia, Avenida Padre Júlio Fragata, sentido BragaParque/Continente, o veículo propriedade do Autor, com a matrícula ..-..-OH, marca Kia Sportage, foi retido e inundado pela água que se acumulou no referido túnel.

2. O túnel acumulou muito rapidamente água, ficando o veículo do Autor praticamente submerso.

3. A inundação do veículo danificou o motor pois houve entrada de água nas condutas de admissão.

4. A reparação do veículo foi orçada em 5.556,40 euros.

5. Ficou danificada a parte elétrica e eletrónica do veículo, cuja reparação ascende a 800,00 euros.

6. O Autor, em virtude da rápida subida das águas no túnel, ficou bastante assustado e temeu mesmo pela vida pois não sabe nadar.

7. Na época das chuvas, como é a época em que ocorreu o sinistro, é normal a chuva e chuva com muita intensidade.

8. E em Braga, particularmente, é um facto notório que por vezes chove bastante, sendo Braga até apelidada de “penico do céu”.

9. No dia e local do sinistro, a precipitação atingiu valores anormais na região de Braga para o mês de Outubro, tendo a intensidade máxima de precipitação atingido ou mesmo ultrapassado os 10 milímetros em 10 minutos, durante a tarde.

10. O Réu celebrou com a Interveniente um seguro de responsabilidade civil, titulado pela apólice nº ...53, que se encontrava em vigor no dia 26.10.2011».

*

III. B – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

9. Como se viu, o TAF/Braga julgou a ação improcedente.

Não deixou de considerar – corretamente – que, nos casos como o presente de responsabilidade civil extracontratual dos entes públicos, no que respeita à violação dos deveres de fiscalização e conservação de vias de trânsito, é aplicável a presunção de culpa prevista no art. 493º nº 1 do CC (art. 10º nº 3 da Lei nº 67/07, de 31/12), cfr., a mero título exemplificativo, Acórdãos do Pleno da Secção de C.A. deste STA de 3/10/2002 (045160), 20/3/2002 (045831).

Todavia, entendeu que a ação devia improceder, uma vez que:
«não tendo sido feita qualquer prova sobre se o Réu providenciou ou não pela limpeza e manutenção do escoamento das águas pluviais, provou-se que, no dia em que ocorreu o sinistro, a precipitação atingiu valores anormais na região de Braga para o mês de Outubro. O mesmo é dizer – como disseram as testemunhas – que se abateu sobre a cidade de Braga uma “tromba de água”, chovendo em quantidades anormalmente elevadas para a época e para a cidade, circunstância que escapa ao domínio do Réu».

E concluiu, em consequência:
«Assim, quer se entenda que, no caso, não pode, desde logo, concluir-se pela existência de um comportamento ilícito do Réu, quer se entenda que, embora havendo um comportamento ilícito, não lhe pode ser assacada qualquer culpa na produção do evento gerador dos danos, visto que a inundação do túnel foi causada por circunstâncias fortuitas e de força maior, sempre será de concluir pela não responsabilização do Réu».

10. O TCAN, no Acórdão recorrido, começou por expressamente concordar com a sentença de 1ª instância quer com a dogmática acerca dos pressupostos cumulativos pertinentes para apurar da responsabilidade civil extracontratual, quer com a existência de uma presunção de culpa “iuris tantum” em prejuízo do Réu, entidade pública detentor de um dever de vigilância sobre as condições das vias a seu encargo.

Porém, divergiu daquela sentença quanto à aplicação deste regime legal ao caso concreto.

Ponderou o TCAN, a este propósito, em suma, que:
«(…) Antes se mostra assim manifestamente insuficiente alegar e provar que “No dia e local do sinistro, a precipitação atingiu valores anormais na região de Braga para o mês de Outubro, tendo a intensidade máxima de precipitação atingido ou mesmo ultrapassado os 10 milímetros em 10 minutos, durante a tarde”, sem que tivesse alegado e provado o que acima se disse acerca da devida vigilância e manutenção do sistema de escoamento de águas naquele ponto crítico da via e em altura em que habitualmente ocorrem chuvas muito intensas.
Ou seja, a similitude dos autos com as vertidas nos acórdãos do STA supra citados é a circunstância de não ter ficado provado que o Município de Braga tenha procedido a uma vigilância cuidada da verificação e manutenção desobstrutiva do sistema de escoamento de água naquele Túnel da Rodovia, de forma sistemática, adequada e continuada.
Acresce que, considerando-se caso de força maior todo o evento imprevisível e insuperável cujos efeitos se produzem independentemente da ação humana, a facticidade apurada é insuficiente para que se possa concluir pela verificação desta causa excludente de culpa do Réu Município, uma vez que não é pela circunstância de se ter apurado que, no concreto dia em que ocorreu o evento, choveu com muita intensidade que se pode concluir que essa queda de precipitação anormal foi imprevisível e anormal em concreto, quando se mostrou apurado que em Braga chove e chove com muita intensidade, de tal forma que até é conhecida como o “penico do céu”.
Para que se pudesse concluir que se estava perante um caso de força maior, necessário seria que se tivesse apurado que a chuva intensa que caiu era mais intensa do que aquela que habitualmente cai na cidade de Braga, sabendo-se que havendo num determinado local uma queda de precipitação habitual que é anormal tendo em consideração a generalidade dos locais mas que, para aquele concreto local, se trata de fenómeno atmosférico habitual, a entidade responsável pela via onde ocorreu o acidente tem de na sua concepção e manutenção de levar em consideração essa queda anormal de precipitação mas que, para aquele concreto local, não deixa de ser fenómeno atmosférico habitual, com o qual aquela deve portanto contar.
Ora, no caso presente, como foi dito, nada se apurou que permita concluir que se está perante uma queda de precipitação anormal, por excepcional face à queda de chuva anormal que habitualmente se verifica nesse local e época.
Em suma, a matéria apurada não permite concluir que a inundação verificada causadora dos danos no veículo do autor se tivesse ficado a dever a um fenómeno imprevisível e incontrolável para o Réu Município, por se tratar de fenómeno atmosférico verdadeiramente excecional e imprevisível para o mesmo».

Note-se que este julgamento foi assumido por maioria, já que no Ac.TCAN recorrido foi aposto o seguinte voto de vencido:
«Considero que, atenta a factualidade vertida no probatório – concretamente nos pontos 2), 6) e em especial no 9) -, o Réu logrou provar que o sinistro se ficou a dever a caso fortuito ou de força maior, ilidindo, assim, a presunção do artigo 493º nº 1 do CC. Deste modo, negaria provimento ao recurso e confirmaria a sentença recorrida».

11. Resulta da fundamentação do Acórdão recorrido, aliás no seguimento do alegado pelo Autor, que a procedência da ação se impunha por não ter o Réu Município comprovado que “tenha procedido a uma vigilância cuidada da verificação e manutenção do sistema de escoamento de água naquele Túnel da Rodovia, de forma sistemática, adequada e continuada”.

O Acórdão admite, porém, que a presunção que impendia sobre o Réu seria ilidida perante a prova da ocorrência de “um caso de força maior”. Mas, para tal, entendeu que “necessário seria que se tivesse apurado que a chuva intensa que caiu era mais intensa do que aquela que habitualmente cai na cidade de Braga. (…) Ora, no caso presente, como foi dito, nada se apurou que permita concluir que se está perante uma queda de precipitação anormal, por excecional face à queda de chuva anormal que habitualmente se verifica nesse local e época”.

Porém, é este raciocínio (maioritário) do TCAN que não podemos acompanhar, considerando os factos dados como provados.

Efetivamente, o Acórdão recorrido pondera que a queda de chuva foi intensa, e que seria “anormal” para outros locais; porém, para a cidade de Braga – conhecida, como se fez figurar nos factos provados, como o “penico do céu” -, essa intensidade já não seria anormal, pelo que, consequentemente, não se poderá considerar estar-se perante um caso de força maior imprevisível.

Todavia, esta conclusão não é suportada, como se disse, pelos factos dados como provados.

É verdade que resultou assente que em Braga, por vezes, chove bastante - cfr. ponto 8) do probatório. Porém, na data e local dos factos, chegou a registar-se uma intensidade de precipitação de 10 mm em 10 minutos, o que levou a dar-se como comprovado – cfr. ponto 9) do probatório – que “No dia e local do sinistro, a precipitação atingiu valores anormais na região de Braga para o mês de Outubro” (sublinhado nosso).

Assim, diferentemente do que retirou o TCAN dos factos provados, ficou comprovado que, não obstante em Braga, por vezes, chover bastante, na altura dos factos choveu “anormalmente”, mesmo para os padrões da cidade e da sua região. Aliás, foi isto que, corretamente, foi concluído quer pelo TAF/Braga quer pelo aludido voto de vencido aposto no Ac.TCAN recorrido.

E estes factos, tidos por provados nos referidos pontos, resultaram – como expressamente ficou consignado na sentença de 1ª instância, na motivação da “fundamentação de facto” – quer de documentos juntos (informação meteorológica prestada pelo IPMA) quer de prova testemunhal (“o túnel em causa costuma inundar quando chove (…) de há tempos para cá o assunto ficou resolvido”; “declarou haver várias inundações no túnel em causa, embora não tanto como naquele dia, referiu que naquele dia houve uma tromba de água muito forte, que teve que atender a várias ocorrências”).

Na verdade, se resultou comprovado que, naquele dia e local, a precipitação atingiu valores anormais na região de Braga, de 10 mm em 10 minutos, tendo-se abatido sobre a cidade uma “tromba de água” muito forte; que o túnel em causa costumava inundar, mas já não ultimamente (pois “o assunto ficou resolvido”); que, no dia e hora em causa, o túnel acumulou muito rapidamente água; que os “bombeiros voluntários de Braga” tiveram que atender a várias ocorrências; não restam dúvidas que é de concluir, como se afirmou na sentença do TAF/Braga, que «a inundação do túnel foi causada por circunstâncias fortuitas e de força maior», pelo que «sempre será de concluir pela não responsabilização do Réu».

É que desmentindo, os factos provados, o pressuposto de que partiu o TCAN – de que a chuva foi intensa, mas não anormal para a região de Braga -, então há-de concluir-se, como o próprio Ac.TCAN recorrido também não deixou de admitir, que a presunção que impendia sobre o Réu fica ilidida perante a prova da ocorrência de “um caso de força maior”, resultando este, como o próprio TCAN o expressou, de se ter efetivamente “apurado que a chuva intensa que caiu era mais intensa do que aquela que habitualmente cai na cidade de Braga”.

Resulta, pois, do exposto que o julgamento do TCAN, de procedência (parcial) da ação, não se pode manter.

12. Defende o Autor, nas suas contra-alegações (cfr. artigo 29º), que “não pode ocorrer, como pretende o Réu/Recorrente, que tendo havido um caso de força maior, já não tenha que ilidir a presunção que sobre si recaia”, pretendendo com isto significar, segundo entendemos, que a comprovação de um caso de força maior não dispensaria, ainda, o Réu de provar a sua diligência fiscalizadora, sob pena de continuar a responder pelos danos verificados.

Mas não é assim, visto que a previsão de verificação de um caso de força maior insere-se na própria norma que estabelece a presunção de culpa em questão, estatuindo, ela própria, a exoneração de culpa em caso de que se comprove “que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua” (nº 1, “in fine”, do art. 493º do CC), isto é, aceitando, esta disposição legal, a “relevância negativa da causa virtual”.

E é isto que se tem afirmado na jurisprudência quer deste STA quer na do STJ, onde a questão se coloca em termos similares, ainda que num caso estejam em causa entes públicos como eventuais responsáveis e, no outro, entes particulares.

Como se expressou no Ac.STJ de 22/9/2021 (19707/18):
«(…) a alternativa legal para afastar a culpa (contemplada na 2ª parte do art. 493º nº 1 do CC) é a invocação de causa virtual negativa relevante («que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua»), o que apenas se logra quando se demonstra que, mesmo que o dever de vigilância fosse cumprido à risca, o evento danoso sempre se verificaria, nomeadamente por força de um facto de terceiro ou acidental que levaria inexoravelmente à produção do dano» (sublinhado nosso).

Também no Ac.STJ de 7/2/2017 (4444/03):
«Quem detém, materialmente, a coisa, em nome próprio ou de outrem, suscetível de causar danos, com o dever de a vigiar (…), responde, com culpa presumida, pelos danos causados pela mesma, que pode afastar, desde que demonstre que nenhuma culpa houve da sua parte na produção dos danos, ou, não obstante a culpa com que atuou, que o dano se teria produzido ainda que o facto culposo se não tivesse verificado» (sublinhado nosso).

Ou o Ac.STJ de 10/3/2016 (7838/10):
«A presunção de culpa que impende sobre o proprietário do prédio ao abrigo do art. 493º, nº 1, do CC, pode ser ilidida mediante a prova da ausência de culpa ou a demonstração de que os danos se teriam igualmente produzido mesmo sem culpa» (sublinhado nosso).

Já este STA, no seu Acórdão de 9/2/2012 (035/12), explicitou:
«Tendo em consideração o disposto naquele preceito [art. 493º nº 1 do CC] o réu elide a presunção de culpa se demonstrar ter procedido a uma fiscalização adequada do arbóreo municipal, mas elide-a, igualmente, se provar que a queda da árvore que atingiu a autora se deveu a ocorrências anormais e imprevisíveis que sempre provocariam o dano sem culpa sua, ou, como se vê na lei, “que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua» (sublinhado nosso).

Também o Ac.STA de 22/6/2010 (0373/10):
«Nos termos do art. 493º, 1 do C. Civil – aplicável à responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entes públicos – quem tiver em seu poder coisa móvel ou imóvel com o encargo de a vigiar responde pelos danos que a coisa causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua».

E no Ac.STA, Pleno da Secção de C.A. de 14/1/2010 (0566/08):
«Ora, um caso de força maior é todo o acontecimento natural ou ação humana que, embora previsível, ou até prevenida, não se pode evitar, nem em si mesmo nem nas suas consequências. Na hipótese do caso de força maior fica prejudicado qualquer juízo de culpa sobre o potencial lesante, dado que em nada contribuiu para o evento» (sublinhado nosso).

Ainda no Ac.STA de 18/12/2002 (0930/02):
«Para ilidir a presunção legal de culpa que impende sobre a Administração, nos termos do art. 493º, nº 1 do C.Civil, terá esta que demonstrar que os seus agentes cumpriram o dever de fiscalizar, de forma sistemática e adequada, a coisa móvel ou imóvel à sua guarda, ou que o evento danoso se ficou a dever a caso fortuito ou de força maior (como seja a ocorrência de ventos fortíssimos e chuva torrencial) que teria igualmente provocado o dano ainda que não houvesse culpa sua» (sublinhado nosso).

E, finalmente, no Ac.STA de 28/5/2002 (047597):
«Tendo em vista o art.º 493.° n° 1 do C. Civil, não terá o A. que provar a culpa funcional do R., que incorre por via da presunção legal ali enunciada em responsabilidade civil extracontratual, pelos danos a que der causa resultantes de algum ato ilícito seu, salvo provando que nenhuma culpa lhe coube ou que os danos se teriam igualmente verificado na ausência dessa culpa» (sublinhado nosso).

Note-se que, em situação paralela – de responsabilidade de concessionárias pela vigilância e manutenção de auto-estradas -, onde os deveres impostos não são certamente menores (até por estar aí em causa o pagamento de um correspetivo preço por parte dos utentes), a lei, não deixando de prever uma semelhante presunção de culpa, exclui esta presunção em casos de “condições climatéricas anormais”, “condições climatéricas manifestamente excecionais, designadamente graves inundações”.
Veja-se o art. 12º, sob a epígrafe “Responsabilidade” da Lei nº 24/2007, de 18/7 (“Define direitos dos utentes nas vias rodoviárias classificadas como auto-estradas concessionadas, itinerários principais e itinerários complementares”):
«1 - Nas auto-estradas, com ou sem obras em curso, e em caso de acidente rodoviário, com consequências danosas para pessoas ou bens, o ónus da prova do cumprimento das obrigações de segurança cabe à concessionária, desde que a respetiva causa diga respeito a:
b) Atravessamento de animais;
c) Líquidos na via, quando não resultantes de condições climatéricas anormais.
(…)
3 — São excluídos do número anterior os casos de força maior, que diretamente afetem as atividades da concessão e não imputáveis ao concessionário, resultantes de:
a) Condições climatéricas manifestamente excecionais, designadamente graves inundações, ciclones ou sismos;
b) Cataclismo, epidemia, radiações atómicas, fogo ou raio;
c) Tumulto, subversão, actos de terrorismo, rebelião ou guerra» (sublinhado nosso).

13. Por tudo o exposto, deve retirar-se dos factos dados como provados que o Réu/Recorrente ilidiu a presunção de culpa, prevista no nº 1 do art. 493º do CC, que sobre si recaía.

Assim, é de conceder provimento ao presente recurso de revista interposto pelo Réu “Município”, revogando-se o Acórdão do TCAN recorrido e mantendo-se o julgamento de improcedência da ação firmado na sentença de 1ª instância, do TAF/Braga.

*

IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam em conferência os juízes da Secção de Contencioso Administrativo deste Supremo Tribunal, de harmonia com os poderes conferidos pelo art. 202º da Constituição da República Portuguesa, em:

Conceder provimento ao presente recurso de revista interposto pelo Recorrente/Réu “Município de Braga”, revogando-se o Acórdão do TCAN recorrido, e mantendo-se o julgamento de improcedência da ação firmado na sentença de 1ª instância, do TAF/Braga.

Custas a cargo do Recorrido/Autor (sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido).

D.N.

Lisboa, 12 de janeiro de 2023 – Adriano Fraxenet de Chuquere Gonçalves da Cunha (relator) – José Augusto Araújo Veloso – Maria do Céu Dias Rosa das Neves.